e-ISSN 1984-7246  

A “Carta aos cossacos” – algumas lições sobre pedagogia e prática política[i]

 

 

 

 

 

Lucas Moura Vieira

Escola Nacional de Administração Pública (ENAP)

Brasília, DF – Brasil 

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A “Carta aos cossacos” – algumas lições sobre pedagogia e prática política

 

Resumo

Este artigo tem como objetivo abordar lições de pedagogia e prática política na obra do pensador marxista Antonio Gramsci, sobretudo no que diz respeito às reflexões contidas nos Cadernos do Cárcere. O fio condutor do texto é um episódio narrado por John Reed, em seu clássico 10 dias que abalaram o mundo, sobre a capacidade de diálogo dos bolcheviques com outros grupos políticos, mesmo aqueles tidos como potencialmente antagônicos, como os cossacos. A partir daí o texto aborda a relação entre intelectuais e povo, em especial na Itália, e como Gramsci parte da noção de cisão para desenvolver importantes aportes para sua teoria política.

 

 

Palavras-chave: Antonio Gramsci; pedagogia; filosofia.

 

 

 

 

 

"The Letter to the cossacks" - some lessons on pedagogy and political practice

 

 

Abstract

This article aims to address lessons of pedagogy and political practice in the work of the Marxist thinker Antonio Gramsci, especially regarding the reflections contained in the Prison Notebooks. The guiding thread of the text is the episode narrated by John Reed in his classic "Ten Days That Shook the World" about the Bolsheviks' ability to engage in dialogue with other political groups, even those considered potentially antagonistic, such as the cossacks. From there, the text explores the relation between intellectuals and the people, especially in Italy, and how Gramsci uses the concept of “rupture” among them to develop significant contributions to his political theory.

 

 

Keywords: Antonio Gramsci; pedagogy; philosophy.

 

 

 

 

 

 

 

1 Uma conversa entre irmãos

No clássico 10 dias que abalaram do mundo, John Reed relata um episódio significativo, ocorrido em Petrogrado (atual São Petesburgo) no calor da Revolução, que servirá como fio condutor da argumentação aqui apresentada. O evento em questão diz respeito a como os bolcheviques lidaram com o anúncio de uma marcha de cossacos para o dia 4 de novembro de 1917, em reação aos grandes comícios convocados em comemoração ao dia do Soviete de Petrogrado. Os comícios bolcheviques, convocados sobre o pretexto de angariar fundos para a imprensa revolucionária, visavam realizar uma demonstração de força. A “marcha” dos cossacos ocorreria em ocasião da solenidade da procissão da cruz, em honra a libertação de Moscou de Napoleão em 1812. Nas palavras de Reed “A atmosfera estava carregada. Qualquer centelha poderia desencadear a guerra civil. O Soviete de Petrogrado distribuiu, copiosamente, um manifesto com o título: “Irmãos Cossacos!” (Reed, 2010, p. 86). O manifesto dizia o seguinte:

 

“Cossacos! Querem atirar-vos contra nós, operários e soldados. Esse plano de Caim foi preparado pelos nossos inimigos comuns: os opressores, as classes privilegiadas, os generais, banqueiros, grandes proprietários de terras, antigos funcionários, os velhos servidores do Tzar.

Nós somos odiados pelos usurários, pelos ricaços, pelos príncipes, nobres e generais, como aqueles que existem entre vós. Todos eles estão à espera do momento oportuno para destruir o Soviete de Petrogrado e esmagar a Revolução, a fim de novamente acorrentar o povo, como nos tempos do Tzar.

Prepara-se uma procissão de cossacos para 4 de novembro. Cada um de vós, irmãos cossacos, vai resolver, de acordo com a própria consciência, se deve ou não tomar parte nessa procissão. Nós não nos vamos intrometer na questão, porque não pretendemos tolher a liberdade de ninguém. Queremos, entretanto, dar-lhes um conselho, irmãos cossacos! Verificai bem se a procissão não é um pretexto para os vossos Caledines vos atirarem contra os operários e os soldados, com o intuito de provocar um derramamento de sangue, uma luta fraticida a fim de esmagar a nossa libertação e a vossa” (Reed, 2010, p. 86).

 

E a procissão não se realizou.

Não é certo afirmar que os cossacos fossem figuras essencialmente reacionárias, na primeira parte do livro 10 dias que abalaram do mundo podemos ver que a guarnição cossaca de São Petersburgo se negou a atirar contra os manifestantes comunistas. Por outro lado, havia a expectativa, por parte da imprensa reacionária, de que os cossacos se virassem contra os bolcheviques[1]. De todo modo, resta evidente que a intenção por trás da marcha dos cossacos era colocá-los em confronto com os bolcheviques, atrapalhando e tumultuando os comícios organizados para aquela data. A sabedoria tática dos bolcheviques permitiu desativar aquela armalhida, e eles o fizeram dialogando com aqueles que, supostamente, seriam os seus inimigos[2].

Julgamos que o episódio traz uma lição pedagógica valiosa, que diz respeito à capacidade e necessidade do diálogo, sobretudo com aqueles que em um primeiro momento possam paracer antagonistas, mas que, de fato, não o são. Nota-se, nas cartas aqui mencionadas, como os bolcheviques operam de forma clara e reiterada o movimento de colocar a questão da classe no centro do argumento, deslocando a relação “amigo x inimigo” do eixo “bolcheviques x cossacos”, para o eixo “bolcheviques e cossacos x burguesia e nobreza”.

De alguma maneira, a “carta aos cossacos” também lança luz sobre o erro que consiste em confundir os interesses do povo ou de parcelas do povo com os interesses da classe dirigente burguesa. Os interesses do povo não são os mesmos da burguesia, mesmo que ele possa defendê-la, por isso, é importante que se “fale ao povo”. Queremos aprofundar o tema, abordando a questão  da pedagogia sob o prisma gramsciano[3], em especial no que diz respeito à questão da educação popular.

2 Educação popular e cisão entre intelectuais e povo

A questão da educação popular está relacionada a uma série de problemas e, entre eles, destaca-se a questão da separação entre “educadores” e “educados”. Nos propomos a abrodar a questão pelo prisma da relação entre intelectuais e povo, conforme trabalhada por Gramsci. Nosso autor discorre, nos Cadernos do Cárcere, sobre a separação que há entre povo e intelectuais na Itália. Esse distanciamento – afirma Gramsci, recorrendo à França como contraponto – é herança e consequência do processo de formação do Estado nacional italiano, que se deu sem a participação ativa das massas populares, ao contrário da experiência francesa, de revolução ativa. Na Itália, a ausência de participação popular no processo de “formação nacional” fez com que as noções de povo e de nação não sejam entendidas como uma coisa só, indicando uma cisão entre intelectuais e povo. 

Gramsci afirma, no §44 do Caderno 6, que “a literatura italiana é separada do desenvolvimento real do povo italiano, é de casta, não sente (não reflete) o drama da história, ou seja, não é popular-nacional” (Gramsci, 2014, p. 189). Há, portanto, uma ligação entre a noção de nacional-popular e a noção de história e de política-história. A ausência da participação “ativa” das massas populares no processo de formação do Estado nacional, elemento característico de momentos de revolução passiva, como o Risorgimento italiano, tem um de seus reflexos na relação de distanciamento entre literatura e vida nacional. Diferentemente da França revolucionário, onde a literatura e a vida nacional se “encontraram”. Em outros momentos, Gramsci volta a explicitar a relação entre a ausência de movimentos políticos vindos “de baixo” e a separação que há entre os significados de “nacional” e de “popular”, como podemos ver no seguinte trecho do Caderno 21:

 

Na Itália, o termo “nacional” tem um significado muito restrito ideologicamente e, de qualquer modo, não coincide com “popular”, já que na Itália os intelectuais estão afastados do povo, ou seja, da ‘nação’; estão ligados, ao contrário, a uma tradição de casta, que jamais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional vindo de baixo (Gramsci, 2014, p. 41-42).

 

Esse “fosso” entre o “nacional” e o “popular” pode ser percebido quando se coloca em questão a literatura produzida e consumida em determinado local, como proposto por Gramsci, no caso italiano, recorrendo por vezes à França ou aos Estados Unidos. O distanciamento entre intelectuais e povo (entre pensamento e vida) fica evidente tanto na análise que Gramsci faz do processo do Risorgimento quanto em relação ao fascismo, como fica se observa no seguinte trecho: “[...] a forma de contato entre uma nação e seus escritores. Inexiste atualmente este contato, ou seja, a literatura não é nacional porque não é popular. Paradoxo da época atual” (Gramsci, 2014, p. 39). A literatura italiana não é nacional porque não é popular, como podemos observar nos exemplos utilizados por Gramsci, sobre o brescianismo, e também sobre Alessandro Manzoni e Luigi Pirandello, entre outros. 

Interessa-nos, sobretudo, explorar a “tensão” da relação entre intelectuais e povo em vista da especificidade italiana, qual seja, a da relação, na filosofia italiana, entre pensamento e vida, política e história. O tema da “ida ao povo”, nos parágrafos abordados, diz respeito à fratura entre intelectuais e vida, entre romancistas e povo e a ausência de um caráter nacional-popular na literatura produzida na península. Essa ausência tem sua raiz no processo de formação nacional italiano e indica uma forma de obstáculo às tentativas de superação dessa, digamos, má-formação nacional. O intelectual, para sê-lo no sentido forte, conforme assinalado em epígrafe, precisa compartilhar os sentimentos do povo-nação. Povo este que sente e pensa de forma difusa e impregnada de influências externas. 

 

Todo movimento intelectual se torna ou volta a se tornar nacional se se verificou uma “ida ao povo”, se ocorreu uma fase “Reforma” [disseminação cultural] e não apenas uma fase “Renascimento” [elevação cultural] […]. Mesmo que se devesse começar escrevendo “romances de folhetim” e versos de melodrama, não há “Renascimento” e não há literatura nacional sem um período de ida ao povo (Gramsci, 2014, p. 223).  

 

Como podemos ver, Gramsci afirma que não se pode desprezar o romance de folhetim apenas porque este constitui uma forma literária menor. É importante assinalar que Gramsci traça uma estratégia, um plano de ação, dotado de um sentido e visando um conjunto de objetivos, que perpassa a sua obra e que vai além da mera “experiência da derrota”, buscando definir também estratégias de luta. Gramsci sugere “partir” do folhetim, e o mesmo vale para o folclore, para atingir, ou mais precisamente, para falar aos anseios das massas populares. 

Os parágrafos dos Cadernos que abordam a literatura e temas afins trazem marcado o elemento de estratégia, que vai do uso da literatura, como meio para conhecer a mentalidade de certa camada social, à utilização – parcial, como veremos – de formas literárias mais difundidas como elemento que possibilta atingir determinado público. Esse movimento investigativo, é importante destacar, é feito por meio do “diagnóstico de época”, que diz respeito às noções de “nacional-popular” e de “revolução passiva”. Se este diagnóstico não está restrito e não parte apenas dos “debates sobre literatura” (chamemo-los assim) ele certamente o abrange. Como abrange também a cultura, a filosofia e a história, como nota-se nas críticas que Gramsci move contra Croce, particularmente nos Cadernos 10 e 11. Ressalta-se que a literatura, em especial, está relacionada à teorização do nacional-popular. 

Voltando ao aspecto estratégico-programático que perpassa a literatura, em especial ao romance de folhetim, nota-se que, para Gramsci, esse tipo de romance tem apelo popular, ou seja, é lido pelas “massas”. Portanto, deve servir como ponto de partida de um projeto que pretenda “educá-las”. Ou seja, o folhetim não deve ser descartado pela sua baixa qualidade artística, já que, apesar disso, ele se difunde e é exatamente esse tipo de difusão que interessa para Gramsci. Segundo o italiano, é possível, através dos gostos literários, conhecer a visão de mundo que diversos estratos sociais possuem e expressam. 

A temática da “elevação cultural” e da “difusão popular” de determinadas correntes de pensamento é bastante recorrente no pensamento gramsciano e aparece no dístico Renascimento – Reforma Protestante. O Renascimento conseguiu atingir altos graus de elevação cultural sem, porém, se difundir entre as massas populares, ou seja, não se tornou nacional-popular. A Reforma, por sua vez, se num primeiro momento “falha” em elevar o nível intelectual das massas, tem a virtude de ter se difundido amplamente, criando um terreno fértil sobre o qual séculos depois nasceria o Idealismo Alemão. O “projeto político” defendido por Gramsci, se assim podemos chamá-lo, consistia, em última instância, em uma união de Renascimento e Reforma, um movimento que fosse capaz de atingir um nível cultural tão elevado quanto o primeiro e fosse, ao mesmo tempo, tão difundido (especialmente entre as massas populares) quanto o segundo. Tal movimento consistiria naquilo que Gramsci chama de uma “reforma intelectual e moral”, termo que é utilizado como equivalente a “revolução”. Aprofundemo-nos um pouco neste tema: 

 

A França foi dilacerada pelas guerras de religião, com a vitória aparente do catolicismo, mas teve uma grande reforma popular no século XVIII, com o Iluminismo, o voltarianismo, a Enciclopédia, que precedeu e acompanhou a Revolução de 1789; tratou-se realmente de uma grande reforma intelectual e moral do povo francês, mais completa do que a luterana alemã, porque alcançou mesmo as grandes massas camponesas, porque teve um fundo laico acentuado e tentou substituir a religião por uma ideologia completamente laica representada pelo vínculo nacional e patriótico (Gramsci, 2007, p. 36).

 

Porém, nem este movimento francês, que representava uma grande reforma intelectual e moral, presenciou imediatamente um florescimento cultural. O renascimento é uma forma de cultura elevada, mas que não se difunde. A reforma protestante e a reforma intelectual e moral pela qual passou a França no período que precedeu 1789 são difundidas, mas não são elevadas (ao menos não imediatamente). Vejamos, temos aqui não só um tema que é recorrente nos Cadernos, e, portanto, um elemento que deve ser levado em conta, por tratar-se de algo central à visão de mundo gramsciana e não de um tema meramente parcial. Outra questão é a centralidade deste ponto para o tema da educação. Trata-se do problema de como difundir um pensamento elevado. Difundir e elevar ao mesmo tempo. Gramsci mostra como essa dicotomia se apresenta concretamente, nos casos em que há a difusão sem elevação (reforma, positivismo) e nos casos onde eleva-se, sem se difundir (renascimento, idealismo). 

A problemática da relação entre difusão e elevação apresentada por Gramsci faz necessário retornar ao folhetim. Se, por um lado, o folhetim era uma forma menor de produção literária e, mesmo assim, era muito difundido (e nesse ponto residia a sua ‘virtude’ ou ao menos o seu interesse); por outro lado, é importante destacar, Gramsci não associa imediatamente o ‘gosto popular’ a romances de baixa qualidade nem conclui daí que apenas a “má” literatura tem lugar entre o povo. Gramsci afirma que Deve-se também sublinhar o sucesso que sempre obtiveram junto às massas populares alguns dramas de Shakespeare, o que demonstra precisamente como é possível ser ao mesmo tempo grande artista e ‘popular’” (Gramsci, 2014, p. 49).  Porém, isso não resolve o problema do motivo pelo qual os jornais preferiam publicar romances de menor qualidade artística. A justificativa era de que estes vendiam mais e, portanto, davam mais lucro, porém, a “grande literatura” também encontrava lugar no gosto das massas populares, assim, a justificativa econômica vai para segundo plano. Nesse caso, devemos lembrar também que Gramsci vai além na argumentação e cita como exemplo Manzoni, que demonstra, em relação ao povo, “condescendente benevolência, não de identificação humana” (Gramsci, 2014, p. 209).

Aqui reaparece o artificialismo e o paternalismo na forma de retratar o “homem do povo” ou os “humildes”, expressão usual por parte dos intelectuais italianos em relação ao povo. Em contraste com essa posição, Gramsci menciona o forte caráter nacional-popular presente nas obras de Dostoievski. Nela, para Gramsci, é poderoso “o sentimento nacional-popular, isto é, a consciência de uma missão dos intelectuais diante do povo, que talvez seja “objetivamente” constituído por “humildes”, mas deve ser libertado desta ‘humildade’, transformado, regenerado” (Gramsci, 2014, p. 38). 

Portanto, trata-se de um processo de superação de dado estado de coisas – precisamente aquela que mantém o “humilde” como tal –, e este é o papel e a característica de uma literatura verdadeiramente nacional-popular: seu potencial revolucionário. Aqui reaparece o caráter ‘positivo’ do nacional popular. Em outro polo, há a literatura de cunho “paternalista”, que sulca um fosso entre intelectual e povo e que descreve essa distância como natural e chega a romantizá-la. O papel deste tipo de literatura, no final das contas, é o de manter aberto o fosso, e ela o faz ativamente. 

Para Gramsci, a “literatura popular em sentido pejorativo (como a de Sue e epígonos) é uma degenerescência político-comercial da literatura nacional-popular, cujos modelos são precisamente os trágicos gregos e Shakespeare” (Gramsci, 2014, p. 227). Uma degenerescência que, não custa repetir, retrata o povo de forma caricata e não tem o menor compromisso em compartilhar dos seus sentimentos e anseios ou de levá-lo a superar a situação na qual se encontra. Uma forma de literatura popular visa manter as coisas como estão, ou seja, as massas imobilizadas. Só se identifica com o “povo” aquele que aprende a compartilhar seus sentimentos, que aprende como ele sente e sabe o que ele almeja. Por essa razão, a literatura nacional popular é aquela que passa (ou deve passar) por uma fase de ida ao povo e de difusão cultural.

Ao menos três aspectos se destacam em relação à “ida ao povo”. O primeiro trata-se de um pressuposto, no sentido que apenas aprendendo e compartilhando do sentimento do povo um intelectual pode almejar se tornar nacional-popular. Em segundo lugar, há o aspecto da disseminação. Ir ao povo significa “levar” – fazer chegar – ao povo, no caso da literatura, obras que digam respeito aos seus interesses. Por isso, partir do folhetim. Em terceiro lugar, há também o aspecto da elevação cultural. O folhetim é um ponto de partida, uma concessão tática, mas não é ponto de chegada almejado. Podemos notar uma ideia de movimento, de projeto/programa, no qual a “realização” da Reforma-Renascimento é o objetivo final[4]. 

Outro aspecto que merece atenção é o de caráter estratégico que diz respeito à possibilidade de conhecer a “psicologia das massas” a partir do que essa massa lê. Sabendo o que é lido, consumido culturalmente, é possível compreender melhor o que a massa pensa, já que, a partir das fantasias de cada um, “entende-se” sua visão de mundo. Vejamos a sutileza, a profundidade analítica e o campo de exploração que tal possibilidade abre. A política para Gramsci é estética.  

 

Literatura popular. Romance de folhetim. Cf. o que escrevi sobre O Conde de Monte Cristo como modelo exemplar de romance de folhetim. O romance de folhetim substitui (e ao mesmo tempo favorece) a fantasia do homem do povo; é um verdadeiro sonhar com os olhos abertos. Pode-se ver o que Freud [O Poeta e o Fantasiar] e os psicanalistas afirmam sobre o sonhar com os olhos abertos. Neste caso, pode-se dizer que, no povo, o fantasiar depende do “complexo de inferioridade” (social), que determina longas fantasias sobre a ideia de vingança, de punição dos culpados pelos males sofridos, etc. Em o Conde de Monte Cristo, existem todos os elementos para gerar tais fantasias e, portanto, para propiciar um narcótico que atenue a sensação de dor, etc. (Gramsci, 2014, p. 200-201).

 

Para Freud (2016, p. 45), na passagem da infância para vida adulta troca-se o brincar pela fantasia, de modo que não se abandona o brincar (algo prazeroso), apenas substitui-se por outro (fantasiar). Diferentemente da brincadeira, os adultos guardam dos outros as suas fantasias, raramente revelando-as. Poeta é aquele que consegue revelar sua própria fantasia – que, no final das contas, dialoga com as fantasias dos outros. “Como o poeta realiza isso, eis aí o seu segredo mais íntimo; na técnica da superação desta repulsão, que certamente tem a ver com as limitações existentes entre o eu individual e os outros, consiste, verdadeiramente, a Ars poetica” (Freud, 2016, p. 45).

 

3 Intelectuais e reforma cultural das massas 

Se por um lado, como vimos no tópico anterior, Gramsci afirma que para “falar ao povo” é crucial conhecer como ele pensa e sente, do ponto de vista estratégico ele também sugere que é importante entender como os intelectuais representantes das classes às quais se pretente enfrentar pensam e agem, para melhor combatê-los.

 

Os intelectuais indianos são refratários à propaganda e o papa disse que é preciso trabalhar também entre eles, tanto mais porque as massas populares se converteriam se se convertessem núcleos intelectuais importantes (o papa conhece o mecanismo de reforma cultural das massas popular-camponesas mais do que muitos elementos do laicismo de esquerda: ele sabe que uma grande massa não pode converter-se molecularmente; deve-se, para apressar o processo, conquistar os dirigentes naturais das grandes massas, isto é, os intelectuais, ou formar grupos de intelectuais de novo tipo, motivo da criação de bispos indígenas); por isso, é necessário conhecer exatamente o modo de pensar e a ideologia destes intelectuais para melhor entender sua organização de hegemonia cultural e moral, a fim de destruí-la ou assimilá-la (Gramsci, 2011, p. 157-158).

 

Tal afirmação, contida no Caderno 7 §71, não está em contradição com a ideia de que, em um movimento que pretenda realizar uma reforma intelectual e moral, é necessário que se conheceça como o povo pensa e sente. Pelo contrário, a noção de que converter os intelectuais que representam determinado grupo ou classe serve como elemento de aceleração de dado processo de mudança, representa um aporte estratégico ao programa de reforma intelectual e moral. A dimensão da “ida ao povo” não se perde, ao contrário, acrescenta-se a ela a lição de que ao converter as principais figuras intelectuais que representam certos grupos, parte do grupo tente a converter-se juntamente a elas.

Porém, a noção de que é preciso conhecer a idelogia “destes intelectuais” para que se possa melhor destruí-la ou assimilá-la também está lidaga à ideia de que ao confrontar uma corrente de pensamento deve-se buscar fazê-lo na figura dos seus representantes mais capazes. Uma das muitas críticas movidas por Gramsci a Croce, nos Cadernos do Cárcere, diz respeito ao fato de que, ao atacar o marxismo, Croce o fez criticando uma vertente deteriorada e não sua versão mais “original”. Havia na Itália um corrente deteriorada, mas basteante difundida, do marxismo[5] e Croce teria focado o seu ataque nesta versão rebaixada. Essencialemente, isso consiste em um erro, pois atacar a forma rebaixada de uma teoria não é o suficiente “destuí-la”, algo que só se pode alcançar criticando-a em suas vertentes mais elevadas. Gramsci, em outros trechos dos Cadernos, retomará esta ideia de que ao atacar uma doutrina deve-se focar nos seus teóricos maiores e não nos pequenos.

A polêmica deve ser contra os “grandes”, mas não se deve perder de vista que aqueles (as massas) que compartilham de ideias retrogradas não devem ser criticados. Já que é preciso construir um diálogo com as massas. Ademais, este “diálogo”, como vimos no tópico anterior, envolve elementos de psicologia, não basta conhecer como pensa e o que quer o povo, é preciso compreender (e aqui “compreender” significa “sentir”) como ele sente. Em outras palavras, ainda citando Gramsci, “É um preconceito de intelectuais fossilizados acreditar que uma concepção do mundo possa ser destruída por críticas de caráter [meramente] racional” (Gramsci, 2013, p. 362).

Gramsci, ao analisar, a partir da literatura, como o povo ou determinado extrato popular pensa e sente, busca ao mesmo tempo compreender e modificar o contexto cultural e político no qual está inserido. Tal compreensão, como não poderia deixar de ser, almeja modificar a realidade na qual se insere. A análise da difusão dos diversos tipos de romance popular permite identificar as visões de mundo compartilhadas pelos grupos que ‘consomem’ tais romances. Partindo da preponderância de gosto em relação a determinado tipo de literatura, “pode-se extrair a prova de que existem no povo diversos estratos culturais, diversas “massas de sentimento” preponderantes num e noutro estrato” (Gramsci, 2014, p. 46). 

 Um dos sentidos deste debate refere-se a um conjunto de sentimentos compartilhado por um mesmo grupo. Daí deriva que o povo em si é heterogêneo, formado por um conjunto de grupos que se diferenciam, não apenas, mas também pela forma como “sentem”. Gramsci pensa o povo como algo concreto, real[6]. De todo modo, é interessante o quanto pode-se depreender, deste curto trecho, sobre a noção gramsciana de política. O conhecer e o conhecer como se sente são elementos necessários ao agir e ao teorizar[7].

 

4 Considerações finais

Em vista do debate sobre as lições pedagógicas, buscamos destacar a lição da conversa entre irmãos, ilustrada na significativa carta dirigida pelo Soviete de Petrogrado aos “Irmãos Cossacos”. A carta ressalta o elemento de classe que faz com que os cossacos, supostos inimigos dos bolcheviques, percebam-se do mesmo lado que os operários, e se coloquem em oposição aos exploradores (ricaços, nobres e generais). A lição do diálogo, retrata no episódio, é valiosa tanto por representra uma abertura de diálogo com supostos opositores, quanto por indicar quem é o inimigo comum que faz com que estes supostos opositores sejam “irmãos”. O episódio ocorre em um momento no qual a adesão das massas estava em disputa e os bolcheviques empenhavam-se em denunciar o “inimigo comum”, formado pelos grandes proprietários de terra e pelos capitalistas, e em convidavidar os trabalhadores cossacos a aderirem ao Congresso dos Sovietes. A posição dos bolcheviques era taxativa:  “Os cossacos, que sofrem por falta de terra, são nossos irmãos” (Reed, 2010, p. 161).

Antonio Gramsci desenvolve longamente nos Cadernos do Cárcere a ideia de que o intelectual engajado necessita compartilhar os sentimentos do povo-nação. Buscamos demonstrar que essa ligação, ou ao menos o espírito de ligação, está presente na carta aos cossacos. Nos debates sobre “elevação cultural” e “difusão popular”, presentes nos Cadernos, e, sobretudo, nos vários parágrafos dedicados ao romance de folhetim, é possível depreender a importância que Gramsci atribui ao movimento de ida ao povo. Vimos também a importânica que Gramsci dá para os movimentos de ida ao povo, sem preder de vista que, no trabalho de oposição de ideias, de acordo com nosso autor, deve-se ter como alvo os principais representantes intelectuais do campo oposto. Ou seja, para melhor combatê-los, é crucial que se compreenda como os principais intelectuais representantes das posições antagônicas pensam e agem.

Gostaríamos de finalizar este texto com uma das lições gramscianas que julgamos mais importante e cheia de sentido. Trata-se da ideia de que na luta, “os golpes não são dados de comum acordo”, e de que toda antítese deve, necessariamente, colocar-se como antagonista radical da tese, nas palavras de Gramsci “cada membro da oposição dialética deve procurar ser integralmente ele mesmo e lançar na luta todos os seus “recursos” políticos e morais, e que só assim se consegue uma superação real” (Gramsci, 2015, p. 318). Trata-se, portanto, de uma profunda lição de radicalismo e que deve ser interpretada em conjunto com a ideia de que a força e validade de uma “filosofia” se mede de acordo com a sua capacidade em tornar-se uma visão de mundo difundida.  

 

Referências

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia: a filosofia de Benedetto Croce. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. v. 1.

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: os intelectuais: o princípio educativo: jornalismo. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. v. 2.

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: Maquiavel: notas sobre o estado e a política. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. v. 3.

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: temas de cultura: ação católica: americanismo e fordismo. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 4.

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: o Risorgimento. Notas sobre a hsitória da Itália. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 4. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. v. 5.

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: Literatura. Folclore. Gramática. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. v. 6.

 

DEVEZA, Felipe. Santos. O movimento comunista e as particularidades da américa latina: um estudo comparado do México, do Brasil e do Peru (1919-1930). 420 p. Tese (Doutorado em História) UFRJ, Rio de Janeiro, 2014.

 

FREUD, Sigmund. O poeta e o fantasiar. In: ARTE, LITERATURA E OS ARTISTAS. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. p. 37-49.

 

REED, John. 10 dias que abalaram o mundo. Porto Alegre: L&PM, 2010.

 



[1] “No dia 12 de novembro de 1917, o jornal A Época noticiava: “OS ANARCHISTAS DE PRETROGRADO A BRAÇOS COM OS COSSACOS – KERENSKI, NO QUARTÉL GENERAL – Noticias recebidas de Petrogrodo dizem que na noite de 10 do corrente [...] anuncia que os cossacos, com o auxílio dos minimalistas, estão prestes a dominar os bolcheviques, com os quais tem travado batalha nas ruas da capital. [...] a divisão cossaca da Finlândia marcha sobre Petrogrado, afim de dar combate aos revolucionários, a própria guarnição da capital, que a princípio favorece, os maximalistas, começa a estar hesitante”” (Deveza, 2014, p. 95).

[2] Reed menciona, no mesmo livro, outra passagem em que os bolcheviques dirigem-se aos cossacos, desta vez a carta foi remetida pelo Comitê Militar Revolucionário e tinha o seguinte conteúdo: “Irmãos cossacos! Querem atirar-vos contra Petrogrado. Querem obriga-vos a combater contra os operários e soldados revolucionários da Capital. Para isso, dizem que Petrogrado odeia os cossacos. Não deem ouvido a uma só palavra dos nossos inimigos comuns, os grandes proprietários de terra e capitalistas. Nosso congresso tem representantes de todas as organizações conscientes de operários, soldatos e camponeses de toda a Rússia. O Congresso deseja que os trabalhadores cossacos ingressem no seu seio. Os generais reacionários, lacaios dos grandes proprietários e de Nicolau, o Sanguinário, são nossos inimigos. Os cossacos, que sofrem por falta de terra, são nossos irmãos [...]”  (Reed, 2010, p. 161).

[3] Mas também pelo prisma de Lenin, como reconhecia o próprio Gramsci , no Caderno 3, §48:  “No entanto, De Man tem um mérito incidental: demonstra a necessidade de estudar e elaborar os elementos da psicologia popular, historicamente e não sociologicamente, ativamente (isto é, para transformá-los, através da educação, numa mentalidade moderna) e não descritivamente, como ele faz; mas esta necessidade estava pelo menos implícita (talvez também explicitamente declarada) na doutrina de Ilitch [Lenin] , coisa que De Man ignora completamente”  (Gramsci, 2012, p. 197-198).

[4] Quando se fala em educação popular em Gramsci, por mais evidente que seja, é importante sempre destacar que para, o autor, o proceso educativo visa a autonomia, como pode-se notar do seguinte trecho dos Cadernos, presente no §12 do Caderno 11: “é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?  (Gramsci, 2013, p. 93-94).

[5] “É certo que se formou uma corrente deteriorada da filosofia da práxis, que pode ser considerada, em relação aos fundadores da doutrina, tal como o catolicismo popular em relação ao catolicismo teológico ou dos intelectuais: assim como o catolicismo popular pode ser traduzido em termos de paganismo, ou de religiões inferiores ao catolicismo por causa das superstições e bruxarias pelas quais estavam ou estão dominadas, igualmente a filosofia da práxis deteriorada pode ser traduzida em termos “teológicos” ou transcendentais, isto é, das filosofias pré-kantianas e pré-cartesianas” (Gramsci, 2013, p. 361).

[6] Ao falar em povo”, Gramsci está se referindo a grupos concretos de pessoas, portanto, ele não está operando na mesma chave de leitura do que aquela proposta por Ernesto Laclau, de povo como uma dinâmica da política (sendo o populismo uma de duas faces da própria dinâmica política, em conjunto com a institucional).

[7] “Talvez seja útil distinguir ‘praticamente’ entre a filosofia e o senso comum, para melhor indicar a passagem de um momento para o outro. Na filosofia, destacam-se notadamente as características de elaboração individual do pensamento; no senso comum, ao contrário, destacam-se as características difusas e dispersas de um pensamento genérico de uma certa época em um certo ambiente popular. Mas toda filosofia tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de todos os intelectuais). Trata-se, portanto, de elaborar uma filosofia que — tendo já uma difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e implícita nela — se torne um senso comum renovado com a coerência e o vigor das filosofias individuais. E isto não pode ocorrer se não se sente, permanentemente, a exigência do contato cultural com os ‘simples’.”  (Gramsci, 2013, p. 101).

 



[i] Artigo recebido em 01/11/2023

  Artigo aprovado em 01/07/2024

 

Parte deste artigo é adaptação do texto “Literatura e Nacional Popular Notas sobre a ida ao povo” apresentado no III Colóquio Internacional Antonio Gramsci (IGS-Brasil), ocorrido em Goiânia-GO, no período de 19/08/22 – 02/09/22.