e-ISSN 1984-7246
Lucas
Moura Vieira
Escola Nacional de
Administração Pública (ENAP)
Brasília, DF – Brasil
lattes.cnpq.br/0518521883856194
A “Carta aos cossacos” – algumas lições sobre pedagogia e prática
política
Resumo
Este artigo tem como objetivo abordar lições de
pedagogia e prática política na obra do pensador marxista Antonio Gramsci,
sobretudo no que diz respeito às reflexões contidas nos Cadernos do Cárcere. O
fio condutor do texto é um episódio narrado por John Reed, em seu clássico 10
dias que abalaram o mundo, sobre a capacidade de diálogo dos bolcheviques com
outros grupos políticos, mesmo aqueles tidos como potencialmente antagônicos,
como os cossacos. A partir daí o texto aborda a relação entre intelectuais e
povo, em especial na Itália, e como Gramsci parte da noção de cisão para
desenvolver importantes aportes para sua teoria política.
Palavras-chave: Antonio Gramsci;
pedagogia; filosofia.
"The Letter to the
cossacks" - some lessons on pedagogy and political practice
Abstract
This article aims to address
lessons of pedagogy and political practice in the work of the Marxist thinker
Antonio Gramsci, especially regarding the reflections contained in the Prison
Notebooks. The guiding thread of the text is the episode narrated by John Reed
in his classic "Ten Days That Shook the World" about the Bolsheviks'
ability to engage in dialogue with other political groups, even those
considered potentially antagonistic, such as the cossacks. From there, the text
explores the relation between intellectuals and the people, especially in
Italy, and how Gramsci uses the concept of “rupture” among them to develop
significant contributions to his political theory.
Keywords: Antonio Gramsci; pedagogy; philosophy.
1 Uma conversa entre irmãos
No clássico 10 dias que abalaram do mundo, John Reed relata um episódio
significativo, ocorrido em Petrogrado (atual São Petesburgo) no calor da
Revolução, que servirá como fio condutor da argumentação aqui apresentada. O
evento em questão diz respeito a como os bolcheviques lidaram com o anúncio de
uma marcha de cossacos para o dia 4 de novembro de 1917, em reação aos grandes
comícios convocados em comemoração ao dia do Soviete de Petrogrado. Os comícios
bolcheviques, convocados sobre o pretexto de angariar fundos para a imprensa
revolucionária, visavam realizar uma demonstração de força. A “marcha” dos
cossacos ocorreria em ocasião da solenidade da procissão da cruz, em honra a
libertação de Moscou de Napoleão em 1812. Nas palavras de Reed “A atmosfera
estava carregada. Qualquer centelha poderia desencadear a guerra civil. O
Soviete de Petrogrado distribuiu, copiosamente, um manifesto com o título:
“Irmãos Cossacos!” (Reed, 2010, p. 86). O manifesto dizia o seguinte:
“Cossacos! Querem atirar-vos contra
nós, operários e soldados. Esse plano de Caim foi preparado pelos nossos
inimigos comuns: os opressores, as classes privilegiadas, os generais,
banqueiros, grandes proprietários de terras, antigos funcionários, os velhos
servidores do Tzar.
Nós somos odiados pelos usurários,
pelos ricaços, pelos príncipes, nobres e generais, como aqueles que existem
entre vós. Todos eles estão à espera do momento oportuno para destruir o
Soviete de Petrogrado e esmagar a Revolução, a fim de novamente acorrentar o
povo, como nos tempos do Tzar.
Prepara-se uma procissão de cossacos
para 4 de novembro. Cada um de vós, irmãos cossacos, vai resolver, de acordo
com a própria consciência, se deve ou não tomar parte nessa procissão. Nós não
nos vamos intrometer na questão, porque não pretendemos tolher a liberdade de
ninguém. Queremos, entretanto, dar-lhes um conselho, irmãos cossacos! Verificai
bem se a procissão não é um pretexto para os vossos Caledines vos atirarem
contra os operários e os soldados, com o intuito de provocar um derramamento de
sangue, uma luta fraticida a fim de esmagar a nossa libertação e a vossa”
(Reed, 2010, p. 86).
E a procissão não se realizou.
Não é certo afirmar que os cossacos fossem
figuras essencialmente reacionárias, na primeira parte do livro 10 dias que abalaram do mundo podemos
ver que a guarnição cossaca de São Petersburgo se negou a atirar contra os
manifestantes comunistas. Por outro lado, havia a expectativa, por parte da
imprensa reacionária, de que os cossacos se virassem contra os bolcheviques[1].
De todo modo, resta evidente que a intenção por trás da marcha dos cossacos era
colocá-los em confronto com os bolcheviques, atrapalhando e tumultuando os
comícios organizados para aquela data. A sabedoria tática dos bolcheviques
permitiu desativar aquela armalhida, e eles o fizeram dialogando com aqueles
que, supostamente, seriam os seus inimigos[2].
Julgamos que o episódio traz uma lição
pedagógica valiosa, que diz respeito à capacidade e necessidade do diálogo, sobretudo
com aqueles que em um primeiro momento possam paracer antagonistas, mas que, de
fato, não o são. Nota-se, nas cartas aqui mencionadas, como os bolcheviques
operam de forma clara e reiterada o movimento de colocar a questão da classe no
centro do argumento, deslocando a relação “amigo x inimigo” do eixo
“bolcheviques x cossacos”, para o eixo “bolcheviques e cossacos x burguesia e
nobreza”.
De alguma maneira, a “carta aos cossacos”
também lança luz sobre o erro que consiste em confundir os interesses do povo
ou de parcelas do povo com os interesses da classe dirigente burguesa. Os
interesses do povo não são os mesmos da burguesia, mesmo que ele possa
defendê-la, por isso, é importante que se “fale ao povo”. Queremos aprofundar o
tema, abordando a questão da pedagogia
sob o prisma gramsciano[3],
em especial no que diz respeito à questão da educação popular.
2 Educação popular e cisão entre intelectuais e povo
A questão da educação popular está
relacionada a uma série de problemas e, entre eles, destaca-se a questão da
separação entre “educadores” e “educados”. Nos propomos a abrodar a questão
pelo prisma da relação entre intelectuais e povo, conforme trabalhada por
Gramsci. Nosso autor discorre, nos Cadernos
do Cárcere, sobre a separação que há entre povo e intelectuais na Itália.
Esse distanciamento – afirma Gramsci, recorrendo à França como contraponto – é
herança e consequência do processo de formação do Estado nacional italiano, que
se deu sem a participação ativa das massas populares, ao contrário da
experiência francesa, de revolução ativa. Na Itália, a ausência de participação
popular no processo de “formação nacional” fez com que as noções de povo e de
nação não sejam entendidas como uma coisa só, indicando uma cisão entre
intelectuais e povo.
Gramsci afirma, no §44 do Caderno 6, que “a
literatura italiana é separada do desenvolvimento real do povo italiano, é de
casta, não sente (não reflete) o drama da história, ou seja, não é
popular-nacional” (Gramsci, 2014, p. 189). Há, portanto, uma ligação entre a
noção de nacional-popular e a noção de história e de política-história. A
ausência da participação “ativa” das massas populares no processo de formação
do Estado nacional, elemento característico de momentos de revolução passiva, como
o Risorgimento italiano, tem um de
seus reflexos na relação de distanciamento entre literatura e vida nacional.
Diferentemente da França revolucionário, onde a literatura e a vida nacional se
“encontraram”. Em outros momentos, Gramsci volta a explicitar a relação entre a
ausência de movimentos políticos vindos “de baixo” e a separação que há entre
os significados de “nacional” e de “popular”, como podemos ver no seguinte
trecho do Caderno 21:
Na Itália, o termo “nacional” tem um
significado muito restrito ideologicamente e, de qualquer modo, não coincide
com “popular”, já que na Itália os intelectuais estão afastados do povo, ou
seja, da ‘nação’; estão ligados, ao contrário, a uma tradição de casta, que
jamais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional vindo
de baixo (Gramsci, 2014, p. 41-42).
Esse “fosso” entre o “nacional” e o “popular”
pode ser percebido quando se coloca em questão a literatura produzida e
consumida em determinado local, como proposto por Gramsci, no caso italiano,
recorrendo por vezes à França ou aos Estados Unidos. O distanciamento entre
intelectuais e povo (entre pensamento e vida) fica evidente tanto na análise
que Gramsci faz do processo do Risorgimento
quanto em relação ao fascismo, como fica se observa no seguinte trecho: “[...]
a forma de contato entre uma nação e seus escritores. Inexiste atualmente este
contato, ou seja, a literatura não é nacional porque não é popular. Paradoxo da
época atual” (Gramsci, 2014, p. 39). A literatura italiana não é nacional
porque não é popular, como podemos observar nos exemplos utilizados por
Gramsci, sobre o brescianismo, e
também sobre Alessandro Manzoni e Luigi Pirandello, entre outros.
Interessa-nos, sobretudo, explorar a “tensão”
da relação entre intelectuais e povo em vista da especificidade italiana, qual
seja, a da relação, na filosofia italiana, entre pensamento e vida, política e
história. O tema da “ida ao povo”, nos parágrafos abordados, diz respeito à
fratura entre intelectuais e vida, entre romancistas e povo e a ausência de um
caráter nacional-popular na literatura produzida na península. Essa ausência
tem sua raiz no processo de formação nacional italiano e indica uma forma de
obstáculo às tentativas de superação dessa, digamos, má-formação nacional. O
intelectual, para sê-lo no sentido forte, conforme assinalado em epígrafe,
precisa compartilhar os sentimentos do povo-nação. Povo este que sente e pensa
de forma difusa e impregnada de influências externas.
Todo movimento
intelectual se torna ou volta a se tornar nacional se se verificou uma “ida ao
povo”, se ocorreu uma fase “Reforma”
[disseminação cultural] e não apenas uma fase “Renascimento” [elevação
cultural] […]. Mesmo que se devesse começar escrevendo “romances de folhetim” e
versos de melodrama, não há “Renascimento” e não há
literatura nacional sem um período de ida ao povo (Gramsci, 2014, p. 223).
Como
podemos ver, Gramsci afirma que não se pode desprezar o romance de folhetim
apenas porque este constitui uma forma literária menor. É importante assinalar
que Gramsci traça uma estratégia, um plano de ação, dotado de um sentido e
visando um conjunto de objetivos, que perpassa a sua obra e que vai além da
mera “experiência da derrota”, buscando definir também estratégias de luta.
Gramsci sugere “partir” do folhetim, e o mesmo vale para o folclore, para
atingir, ou mais precisamente, para falar aos anseios das massas
populares.
Os
parágrafos dos Cadernos que abordam a
literatura e temas afins trazem marcado o elemento de estratégia, que vai do
uso da literatura, como meio para conhecer a mentalidade de certa camada
social, à utilização – parcial, como veremos – de formas literárias mais
difundidas como elemento que possibilta atingir determinado público. Esse
movimento investigativo, é importante destacar, é feito por meio do
“diagnóstico de época”, que diz respeito às noções de “nacional-popular” e de
“revolução passiva”. Se este diagnóstico não está restrito e não parte apenas
dos “debates sobre literatura” (chamemo-los assim) ele certamente o abrange.
Como abrange também a cultura, a filosofia e a história, como nota-se nas
críticas que Gramsci move contra Croce, particularmente nos Cadernos 10 e 11. Ressalta-se que a
literatura, em especial, está relacionada à teorização do
nacional-popular.
Voltando
ao aspecto estratégico-programático que perpassa a literatura, em especial ao
romance de folhetim, nota-se que, para Gramsci, esse tipo de romance tem apelo
popular, ou seja, é lido pelas “massas”. Portanto, deve servir como ponto de
partida de um projeto que pretenda “educá-las”. Ou seja, o folhetim não deve
ser descartado pela sua baixa qualidade artística, já que, apesar disso, ele se
difunde e é exatamente esse tipo de difusão que interessa para Gramsci. Segundo
o italiano, é possível, através dos gostos literários, conhecer a visão de
mundo que diversos estratos sociais possuem e expressam.
A
temática da “elevação cultural” e da “difusão popular” de determinadas
correntes de pensamento é bastante recorrente no pensamento gramsciano e
aparece no dístico Renascimento – Reforma
Protestante. O Renascimento conseguiu atingir altos graus de elevação
cultural sem, porém, se difundir entre as massas populares, ou seja, não se
tornou nacional-popular. A Reforma, por sua vez, se num primeiro momento
“falha” em elevar o nível intelectual das massas, tem a virtude de ter se
difundido amplamente, criando um terreno fértil sobre o qual séculos depois
nasceria o Idealismo Alemão. O “projeto político” defendido por Gramsci, se
assim podemos chamá-lo, consistia, em última instância, em uma união de
Renascimento e Reforma, um movimento que fosse capaz de atingir um nível
cultural tão elevado quanto o primeiro e fosse, ao mesmo tempo, tão difundido
(especialmente entre as massas populares) quanto o segundo. Tal movimento
consistiria naquilo que Gramsci chama de uma “reforma intelectual e moral”,
termo que é utilizado como equivalente a “revolução”. Aprofundemo-nos um pouco
neste tema:
A França foi dilacerada
pelas guerras de religião, com a vitória aparente do catolicismo, mas teve uma
grande reforma popular no século XVIII, com o Iluminismo, o voltarianismo, a
Enciclopédia, que precedeu e acompanhou a Revolução de 1789; tratou-se
realmente de uma grande reforma intelectual e moral do povo francês, mais
completa do que a luterana alemã, porque alcançou mesmo as grandes massas
camponesas, porque teve um fundo laico acentuado e tentou substituir a religião
por uma ideologia completamente laica representada pelo vínculo nacional e
patriótico (Gramsci, 2007, p. 36).
Porém, nem este movimento
francês, que representava uma grande reforma intelectual e moral, presenciou
imediatamente um florescimento cultural. O renascimento é uma forma de cultura
elevada, mas que não se difunde. A reforma protestante e a reforma intelectual
e moral pela qual passou a França no período que precedeu 1789 são difundidas,
mas não são elevadas (ao menos não imediatamente). Vejamos, temos aqui não só
um tema que é recorrente nos Cadernos,
e, portanto, um elemento que deve ser levado em conta, por tratar-se de algo
central à visão de mundo gramsciana e não de um tema meramente parcial. Outra
questão é a centralidade deste ponto para o tema da educação. Trata-se do
problema de como difundir um pensamento elevado. Difundir e elevar ao mesmo
tempo. Gramsci mostra como essa dicotomia se apresenta concretamente, nos casos
em que há a difusão sem elevação (reforma, positivismo) e nos casos onde
eleva-se, sem se difundir (renascimento, idealismo).
A problemática da relação entre difusão e
elevação apresentada por Gramsci faz necessário retornar ao folhetim. Se, por
um lado, o folhetim era uma forma menor de produção literária e, mesmo assim,
era muito difundido (e nesse ponto residia a sua ‘virtude’ ou ao menos o seu
interesse); por outro lado, é importante destacar, Gramsci não associa
imediatamente o ‘gosto popular’ a romances de baixa qualidade nem conclui daí
que apenas a “má” literatura tem lugar entre o povo. Gramsci afirma que “Deve-se também sublinhar o sucesso que sempre
obtiveram junto às massas populares alguns dramas de Shakespeare, o que
demonstra precisamente como é possível ser ao mesmo tempo grande artista e
‘popular’” (Gramsci, 2014, p. 49).
Porém, isso não resolve o problema do motivo pelo qual os jornais
preferiam publicar romances de menor qualidade artística. A justificativa era
de que estes vendiam mais e, portanto, davam mais lucro, porém, a “grande
literatura” também encontrava lugar no gosto das massas populares, assim, a
justificativa econômica vai para segundo plano. Nesse caso, devemos lembrar também
que Gramsci vai além na argumentação e cita como exemplo Manzoni, que
demonstra, em relação ao povo, “condescendente benevolência, não de
identificação humana” (Gramsci, 2014, p. 209).
Aqui reaparece o artificialismo e o
paternalismo na forma de retratar o “homem do povo” ou os “humildes”, expressão
usual por parte dos intelectuais italianos em relação ao povo. Em contraste com
essa posição, Gramsci menciona o forte caráter nacional-popular presente nas
obras de Dostoievski. Nela, para Gramsci, é poderoso “o sentimento
nacional-popular, isto é, a consciência de uma missão dos intelectuais diante
do povo, que talvez seja “objetivamente” constituído por “humildes”, mas deve
ser libertado desta ‘humildade’, transformado, regenerado” (Gramsci, 2014, p. 38).
Portanto, trata-se de um processo de
superação de dado estado de coisas – precisamente aquela que mantém o “humilde”
como tal –, e este é o papel e a característica de uma literatura
verdadeiramente nacional-popular: seu potencial revolucionário. Aqui reaparece
o caráter ‘positivo’ do nacional popular. Em outro polo, há a literatura de
cunho “paternalista”, que sulca um fosso entre intelectual e povo e que
descreve essa distância como natural e chega a romantizá-la. O papel deste tipo
de literatura, no final das contas, é o de manter aberto o fosso, e ela o faz
ativamente.
Para Gramsci, a “literatura popular em
sentido pejorativo (como a de Sue e epígonos) é uma degenerescência
político-comercial da literatura nacional-popular, cujos modelos são precisamente
os trágicos gregos e Shakespeare” (Gramsci, 2014, p. 227). Uma degenerescência
que, não custa repetir, retrata o povo de forma caricata e não tem o menor
compromisso em compartilhar dos seus sentimentos e anseios ou de levá-lo a
superar a situação na qual se encontra. Uma forma de literatura popular visa
manter as coisas como estão, ou seja, as massas imobilizadas. Só se identifica
com o “povo” aquele que aprende a compartilhar seus sentimentos, que aprende
como ele sente e sabe o que ele almeja. Por essa razão, a literatura nacional
popular é aquela que passa (ou deve passar) por uma fase de ida ao povo e de
difusão cultural.
Ao menos três aspectos se destacam em relação
à “ida ao povo”. O primeiro trata-se de um pressuposto, no sentido que apenas aprendendo
e compartilhando do sentimento do povo um intelectual pode almejar se tornar
nacional-popular. Em segundo lugar, há o aspecto da disseminação. Ir ao povo
significa “levar” – fazer chegar – ao povo, no caso da literatura, obras que
digam respeito aos seus interesses. Por isso, partir do folhetim. Em terceiro
lugar, há também o aspecto da elevação cultural. O folhetim é um ponto de
partida, uma concessão tática, mas não é ponto de chegada almejado. Podemos
notar uma ideia de movimento, de projeto/programa, no qual a “realização” da
Reforma-Renascimento é o objetivo final[4].
Outro
aspecto que merece atenção é o de caráter estratégico que diz respeito à
possibilidade de conhecer a “psicologia das massas” a partir do que essa massa
lê. Sabendo o que é lido, consumido culturalmente, é possível compreender
melhor o que a massa pensa, já que, a partir das fantasias de cada um,
“entende-se” sua visão de mundo. Vejamos a sutileza, a profundidade analítica e
o campo de exploração que tal possibilidade abre. A política para Gramsci é
estética.
Literatura popular. Romance de folhetim. Cf. o que
escrevi sobre O Conde de Monte Cristo como modelo exemplar de romance de
folhetim. O romance de folhetim substitui (e ao mesmo tempo favorece) a
fantasia do homem do povo; é um verdadeiro sonhar com os olhos abertos. Pode-se
ver o que Freud [O Poeta e o Fantasiar] e os psicanalistas afirmam sobre o
sonhar com os olhos abertos. Neste caso, pode-se dizer que, no povo, o
fantasiar depende do “complexo de inferioridade” (social), que determina longas
fantasias sobre a ideia de vingança, de punição dos culpados pelos males
sofridos, etc. Em o Conde de Monte Cristo, existem todos os elementos para
gerar tais fantasias e, portanto, para propiciar um narcótico que atenue a sensação
de dor, etc. (Gramsci, 2014, p. 200-201).
Para
Freud (2016, p. 45), na passagem da infância para vida adulta troca-se o
brincar pela fantasia, de modo que não se abandona o brincar (algo prazeroso),
apenas substitui-se por outro (fantasiar). Diferentemente da brincadeira, os
adultos guardam dos outros as suas fantasias, raramente revelando-as. Poeta é
aquele que consegue revelar sua própria fantasia – que, no final das contas,
dialoga com as fantasias dos outros. “Como o poeta realiza isso, eis aí o seu
segredo mais íntimo; na técnica da superação desta repulsão, que certamente tem
a ver com as limitações existentes entre o eu individual e os outros, consiste,
verdadeiramente, a Ars poetica”
(Freud, 2016, p. 45).
3 Intelectuais e reforma cultural das massas
Se por um lado, como vimos no tópico
anterior, Gramsci afirma que para “falar ao povo” é crucial conhecer como ele
pensa e sente, do ponto de vista estratégico ele também sugere que é importante
entender como os intelectuais representantes das classes às quais se pretente
enfrentar pensam e agem, para melhor combatê-los.
Os intelectuais indianos são
refratários à propaganda e o papa disse que é preciso trabalhar também entre
eles, tanto mais porque as massas populares se converteriam se se convertessem
núcleos intelectuais importantes (o papa conhece o mecanismo de reforma
cultural das massas popular-camponesas mais do que muitos elementos do laicismo
de esquerda: ele sabe que uma grande massa não pode converter-se
molecularmente; deve-se, para apressar o processo, conquistar os dirigentes
naturais das grandes massas, isto é, os intelectuais, ou formar grupos de
intelectuais de novo tipo, motivo da criação de bispos indígenas); por isso, é
necessário conhecer exatamente o modo de pensar e a ideologia destes
intelectuais para melhor entender sua organização de hegemonia cultural e
moral, a fim de destruí-la ou assimilá-la (Gramsci, 2011, p. 157-158).
Tal afirmação, contida no Caderno 7 §71, não
está em contradição com a ideia de que, em um movimento que pretenda realizar
uma reforma intelectual e moral, é necessário que se conheceça como o povo
pensa e sente. Pelo contrário, a noção de que converter os intelectuais que
representam determinado grupo ou classe serve como elemento de aceleração de dado
processo de mudança, representa um aporte estratégico ao programa de reforma
intelectual e moral. A dimensão da “ida ao povo” não se perde, ao contrário,
acrescenta-se a ela a lição de que ao converter as principais figuras
intelectuais que representam certos grupos, parte do grupo tente a converter-se
juntamente a elas.
Porém, a noção de que é preciso conhecer a
idelogia “destes intelectuais” para que se possa melhor destruí-la ou
assimilá-la também está lidaga à ideia de que ao confrontar uma corrente de
pensamento deve-se buscar fazê-lo na figura dos seus representantes mais
capazes. Uma das muitas críticas movidas por Gramsci a Croce, nos Cadernos do Cárcere, diz respeito ao
fato de que, ao atacar o marxismo, Croce o fez criticando uma vertente deteriorada
e não sua versão mais “original”. Havia na Itália
um corrente deteriorada, mas basteante difundida, do marxismo[5]
e Croce teria focado o seu ataque nesta versão rebaixada. Essencialemente, isso
consiste em um erro, pois atacar a forma rebaixada de uma teoria não é o
suficiente “destuí-la”, algo que só se pode alcançar criticando-a em suas
vertentes mais elevadas. Gramsci, em outros trechos dos Cadernos, retomará esta ideia de que ao atacar uma doutrina deve-se
focar nos seus teóricos maiores e não nos pequenos.
A polêmica deve ser contra os “grandes”, mas
não se deve perder de vista que aqueles (as massas) que compartilham de ideias
retrogradas não devem ser criticados. Já que é preciso construir um diálogo com
as massas. Ademais, este “diálogo”, como vimos no
tópico anterior, envolve elementos de psicologia, não basta conhecer como pensa
e o que quer o povo, é preciso compreender (e aqui “compreender” significa
“sentir”) como ele sente. Em outras palavras, ainda citando Gramsci, “É um
preconceito de intelectuais fossilizados acreditar que uma concepção do mundo
possa ser destruída por críticas de caráter [meramente] racional” (Gramsci,
2013, p. 362).
Gramsci, ao analisar, a partir da literatura,
como o povo ou determinado extrato popular pensa e sente, busca ao mesmo tempo
compreender e modificar o contexto cultural e político no qual está inserido.
Tal compreensão, como não poderia deixar de ser, almeja modificar a realidade
na qual se insere. A análise da difusão dos diversos tipos de romance popular
permite identificar as visões de mundo compartilhadas pelos grupos que
‘consomem’ tais romances. Partindo da preponderância de gosto em relação a
determinado tipo de literatura, “pode-se extrair a prova de que existem no povo
diversos estratos culturais, diversas “massas de sentimento” preponderantes num
e noutro estrato” (Gramsci, 2014, p. 46).
Um dos sentidos deste debate
refere-se a um conjunto de sentimentos compartilhado por um mesmo grupo. Daí
deriva que o povo em si é heterogêneo, formado por um conjunto de grupos que se
diferenciam, não apenas, mas também pela forma como “sentem”. Gramsci pensa o
povo como algo concreto, real[6].
De todo modo, é interessante o quanto pode-se depreender, deste curto trecho,
sobre a noção gramsciana de política. O conhecer e o conhecer como se sente são
elementos necessários ao agir e ao teorizar[7].
4 Considerações finais
Em vista do debate sobre as
lições pedagógicas, buscamos destacar a lição da conversa entre irmãos,
ilustrada na significativa carta dirigida pelo Soviete de Petrogrado aos
“Irmãos Cossacos”. A carta ressalta o elemento de classe que faz com que os
cossacos, supostos inimigos dos bolcheviques, percebam-se do mesmo lado que os
operários, e se coloquem em oposição aos exploradores (ricaços, nobres e generais).
A lição do diálogo, retrata no episódio, é valiosa tanto por representra uma
abertura de diálogo com supostos opositores, quanto por indicar quem é o
inimigo comum que faz com que estes supostos opositores sejam “irmãos”. O
episódio ocorre em um momento no qual a adesão das massas estava em disputa e
os bolcheviques empenhavam-se em denunciar o “inimigo comum”, formado pelos
grandes proprietários de terra e pelos capitalistas, e em convidavidar os
trabalhadores cossacos a aderirem ao Congresso dos Sovietes. A posição dos
bolcheviques era taxativa: “Os cossacos,
que sofrem por falta de terra, são nossos irmãos” (Reed, 2010, p. 161).
Antonio Gramsci desenvolve
longamente nos Cadernos do Cárcere a
ideia de que o intelectual engajado necessita compartilhar os sentimentos do
povo-nação. Buscamos demonstrar que essa ligação, ou ao
menos o espírito de ligação, está presente na carta aos cossacos. Nos debates
sobre
“elevação cultural” e “difusão popular”, presentes nos Cadernos, e, sobretudo, nos vários parágrafos dedicados ao romance
de folhetim, é possível depreender a importância que Gramsci atribui ao
movimento de ida ao povo. Vimos também a importânica
que Gramsci dá para os movimentos de ida ao povo, sem preder de vista que, no
trabalho de oposição de ideias, de acordo com nosso autor, deve-se ter como
alvo os principais representantes intelectuais do campo oposto. Ou seja, para
melhor combatê-los, é crucial que se compreenda como os principais intelectuais
representantes das posições antagônicas pensam e agem.
Gostaríamos de finalizar este
texto com uma das lições gramscianas que julgamos mais importante e cheia de
sentido. Trata-se da ideia de que na luta, “os golpes não são dados de comum
acordo”, e de que toda antítese deve,
necessariamente, colocar-se como antagonista radical da tese, nas palavras de
Gramsci “cada membro da oposição dialética deve procurar ser
integralmente ele mesmo e lançar na luta todos os seus “recursos” políticos e
morais, e que só assim se consegue uma superação real” (Gramsci, 2015, p. 318). Trata-se,
portanto, de uma profunda lição de radicalismo e que deve ser interpretada em
conjunto com a ideia de que a força e validade de uma “filosofia” se mede de
acordo com a sua capacidade em tornar-se uma visão de mundo difundida.
Referências
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Carlos Nelson Coutinho. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. v.
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GRAMSCI,
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DEVEZA, Felipe. Santos. O movimento comunista e as particularidades
da américa latina: um estudo comparado do México, do Brasil e do Peru
(1919-1930). 420 p. Tese (Doutorado em História) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2014.
FREUD, Sigmund. O poeta e o fantasiar. In: ARTE, LITERATURA E OS ARTISTAS. Belo Horizonte: Editora Autêntica,
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REED, John. 10 dias que abalaram o mundo. Porto
Alegre: L&PM, 2010.
[1] “No dia 12 de novembro
de 1917, o jornal A Época noticiava: “OS ANARCHISTAS DE PRETROGRADO A BRAÇOS
COM OS COSSACOS – KERENSKI, NO QUARTÉL GENERAL – Noticias recebidas de
Petrogrodo dizem que na noite de 10 do corrente [...] anuncia que os cossacos,
com o auxílio dos minimalistas, estão prestes a dominar os bolcheviques, com os
quais tem travado batalha nas ruas da capital. [...] a divisão cossaca da
Finlândia marcha sobre Petrogrado, afim de dar combate aos revolucionários, a
própria guarnição da capital, que a princípio favorece, os maximalistas, começa
a estar hesitante”” (Deveza, 2014, p. 95).
[2]
Reed menciona, no mesmo livro, outra passagem em que
os bolcheviques dirigem-se aos cossacos, desta vez a carta foi remetida pelo
Comitê Militar Revolucionário e tinha o seguinte conteúdo: “Irmãos cossacos!
Querem atirar-vos contra Petrogrado. Querem obriga-vos a combater contra os
operários e soldados revolucionários da Capital. Para isso, dizem que
Petrogrado odeia os cossacos. Não deem ouvido a uma só palavra dos nossos
inimigos comuns, os grandes proprietários de terra e capitalistas. Nosso
congresso tem representantes de todas as organizações conscientes de operários,
soldatos e camponeses de toda a Rússia. O Congresso deseja que os trabalhadores
cossacos ingressem no seu seio. Os generais reacionários, lacaios dos grandes
proprietários e de Nicolau, o Sanguinário, são nossos inimigos. Os cossacos,
que sofrem por falta de terra, são nossos irmãos [...]” (Reed,
2010, p. 161).
[3] Mas também pelo
prisma de Lenin, como reconhecia o próprio Gramsci , no Caderno 3, §48: “No entanto, De Man tem um mérito incidental:
demonstra a necessidade de estudar e elaborar os elementos da psicologia
popular, historicamente e não sociologicamente, ativamente (isto é, para
transformá-los, através da educação, numa mentalidade moderna) e não
descritivamente, como ele faz; mas esta necessidade estava pelo menos implícita
(talvez também explicitamente declarada) na doutrina de Ilitch [Lenin] , coisa
que De Man ignora completamente” (Gramsci,
2012, p. 197-198).
[4] Quando se fala
em educação popular em Gramsci, por mais evidente que seja, é importante sempre
destacar que para, o autor, o proceso educativo visa a autonomia, como pode-se
notar do seguinte trecho dos Cadernos, presente
no §12 do Caderno 11: “é
preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira
desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo
“imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos
grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua
entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província,
pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do
velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria
das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela
impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo
de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho
do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar
ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais
aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?” (Gramsci, 2013, p. 93-94).
[5] “É certo que se formou uma corrente deteriorada da filosofia da práxis, que pode ser considerada, em relação aos fundadores da doutrina, tal como o catolicismo popular em relação ao catolicismo teológico ou dos intelectuais: assim como o catolicismo popular pode ser traduzido em termos de paganismo, ou de religiões inferiores ao catolicismo por causa das superstições e bruxarias pelas quais estavam ou estão dominadas, igualmente a filosofia da práxis deteriorada pode ser traduzida em termos “teológicos” ou transcendentais, isto é, das filosofias pré-kantianas e pré-cartesianas” (Gramsci, 2013, p. 361).
[6] Ao falar em
“povo”, Gramsci
está se referindo a grupos concretos de pessoas, portanto,
ele não está operando na
mesma chave de leitura do que aquela proposta por Ernesto
Laclau, de “povo” como uma dinâmica da política (sendo o populismo
uma de duas faces da própria dinâmica política, em conjunto com a
institucional).
[7] “Talvez seja útil
distinguir ‘praticamente’ entre a filosofia e o senso comum, para melhor
indicar a passagem de um momento para o outro. Na filosofia, destacam-se
notadamente as características de elaboração individual do pensamento; no senso
comum, ao contrário, destacam-se as características difusas e dispersas de um
pensamento genérico de uma certa época em um certo ambiente popular. Mas toda
filosofia tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de
todos os intelectuais). Trata-se, portanto, de elaborar uma filosofia que —
tendo já uma difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e
implícita nela — se torne um senso comum renovado com a coerência e o vigor das
filosofias individuais. E isto não pode ocorrer se não se sente,
permanentemente, a exigência do contato cultural com os ‘simples’.” (Gramsci, 2013,
p. 101).
[i]
Artigo recebido em 01/11/2023
Artigo aprovado em 01/07/2024
Parte deste artigo é adaptação do texto “Literatura e Nacional Popular Notas sobre a ida ao povo” apresentado no III Colóquio Internacional Antonio Gramsci (IGS-Brasil), ocorrido em Goiânia-GO, no período de 19/08/22 – 02/09/22.