e-ISSN 1984-7246  

A contribuição de Gramsci para a pesquisa sobre o projeto da classe burguesa para a educação brasileira[i]

 

André Silva Martins[ii]

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Juiz de Fora, MG – Brasil

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Mônica Dias Medeiros Pires[iii]

Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Juiz de Fora, MG – Brasil

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Mônica Jardim Lopes[iv]

Prefeitura Municipal de Juiz de Fora - MG

Juiz de Fora, MG – Brasil

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A contribuição de Gramsci para a pesquisa sobre o projeto da classe burguesa para a educação brasileira

 

Resumo

O presente artigo, vinculado a um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, aborda a contribuição teórico-metodológica de Antonio Gramsci para a pesquisa sobre o projeto da classe burguesa para a educação pública. Nessa direção, o artigo: i) destaca a contribuição do autor sobre produção do conhecimento e sua finalidade; ii) aponta os conceitos centrais para a análise do referido objeto; iii) apresenta exemplos da atuação da burguesia para ordenar a escolarização da classe trabalhadora. Ao acentuar que a educação precisa ser abordada na relação com a hegemonia, o artigo ressalta que a atualidade do pensamento de Gramsci reside também na definição de elementos para a construção do projeto anticapitalista de educação comprometido com a emancipação humana.

 

 

Palavras-chave: Gramsci; educação pública; classe burguesa.

 

 

 

 

Gramsci 's contribution to research on the education project of the bourgeois class in Brazil

 

 

Abstract

This article, bound to a project funded by the Research Support Foundation of Minas Gerais, addresses the theoretical-methodological contribution of Antonio Gramsci to the research on the project of the bourgeois class for public education. In this sense, the article i) highlights the author's contribution to knowledge production and its purpose; ii) points out the central concepts for the analysis of the mentioned object; iii) presents examples of the performance of the bourgeoisie to order the schooling of the working class. Emphasizing that education needs to be addressed concerning hegemony, the article alludes that the topicality of Gramsci's thought also lies in the definition of elements for the construction of the anti-capitalist project of education committed to human emancipation.

 

 

Keywords: Gramsci; public education; bourgeois class.

 

 

 

 

 

1 Introdução

O presente artigo, vinculado a uma investigação desenvolvida no âmbito do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação e Política Educacional (GTEPE), financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, tem por objetivo analisar a contribuição de Antonio Gramsci para pesquisas sobre o projeto da classe burguesa para a educação pública. Procuramos destacar a atualidade de seu pensamento, evidenciando determinados conceitos que possibilitam revelar a concepção, as estratégias e as táticas da burguesia no campo educacional.

Apesar de privilegiarmos a vinculação entre a educação escolar e a hegemonia neste artigo, temos como referência que, para Gramsci, a educação não se restringe à escolarização, pois perpassa o conjunto das relações sociais em vinculação com a problemática da hegemonia. Cabe ainda destacar que, para os trabalhadores, os processos educativos ocorrem nos sindicatos, nos partidos políticos e outras instâncias da vida coletiva da classe. Com efeito, a educação escolar pode ser compreendida como uma dimensão particular de um fenômeno sócio-político-econômico mais amplo.

De forma sumária, ressaltamos três formulações de Gramsci que adotamos como norte teórico-metodológico da análise contida neste artigo.

A primeira se refere à posição do autor em defesa da formação escolar da classe trabalhadora. Em artigo publicado em 1916, sob o instigante título Homens ou Máquinas?, Gramsci denunciou o caráter seletivo e dualista da escola italiana que restringia intencionalmente o desenvolvimento intelectual dos trabalhadores para preservar o acesso à cultura como privilégio de poucos.

Reagindo criticamente a essa realidade, Gramsci apresentou a seguinte afirmação:

 

O proletariado precisa de uma escola desinteressada. Uma escola na qual seja dada ao infante a possibilidade de formar-se, tornar-se homem, adquirir aqueles critérios gerais que servem para o desenvolvimento do caráter. Em suma, uma escola humanista, tal como entendiam os antigos e, mais recente, os homens do Renascimento. Uma escola que não hipoteque o futuro da criança e não constrinja sua vontade, sua inteligência e sua consciência em formação a mover-se num sentido pré-estabelecido (Gramsci, 2021, p. 56).

 

Considerando que o dualismo educacional é uma realidade da educação brasileira, como revelado por Libâneo (2012), a formulação supracitada serve de bússola para compreendermos a configuração da escolarização destinada aos filhos da classe trabalhadora e ainda para pensarmos alternativas a esse modelo restritivo de formação humana.

Com Gramsci, observamos que é possível compreender os meandros da escola pública na sociedade capitalista se analisarmos a educação no contexto das relações de hegemonia. Em 1932, ao aprofundar as reflexões sobre a educação que interessa a classe trabalhadora no Caderno 12, Gramsci apresenta referências alternativas ao projeto de educação da burguesia. Sobre o tema, destacamos uma ideia que nos parece representar o desafio para a educação anticapitalista:

 

[...] a tendência democrática, intrinsecamente, não pode significar apenas que um operário manual se torne qualificado, mas que cada “cidadão” possa tornar-se “governante” e que a sociedade o ponha, ainda que “abstratamente”, nas condições gerais de poder fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados [...] assegurando a cada governado o aprendizado gratuito das capacidades e da preparação técnica geral necessárias a essa finalidade (Gramsci, 2001a, p. 50).

             

A segunda ideia que destacamos inicialmente se vincula à contribuição de Gramsci para compreensão crítica do “puritanismo” burguês e, por conseguinte, do significado de sua intervenção na questão social.

Retomamos o texto de 1916 supracitado porque nele consta uma leitura crítica acerca do interesse da burguesia industrial sobre a formação dos trabalhadores naquele contexto histórico. Afirma Gramsci (2021, p. 57):

 

Decerto, para os industriais tacanhamente burgueses, pode ser mais útil ter operários-máquinas, em vez de operários-homens. Mas os sacrifícios a que o conjunto da colectividade se sujeita voluntariamente para melhorar a si mesma e fazer brotar do seu meio os melhores e os mais perfeitos homens, que a elevem ainda mais, devem espalhar-se beneficamente pelo conjunto da coletividade e não apenas por uma categoria ou uma classe.

 

Além disso, destacamos uma segunda formulação extraída da análise do autor sobre a expansão do industrialismo de tipo estadunidense no início do século XX, especificamente sobre a racionalização do trabalho, com atenção para as investidas burguesas na produção do novo código social do trabalho industrial, que foi sistematizada no Caderno 22 de 1934.

Gramsci identificou que o paradigma fordista em desenvolvimento no início do século XX estava, pelas mediações, criando a sociedade “de tipo americano” e que esse processo impactou negativamente na subjetividade da classe trabalhadora, comprometendo até mesmo a existência de parte desta classe. Diante disso, assinala o seguinte:

 

É deste ponto de vista que se devem estudar as iniciativas “puritanas” dos industriais americanos do tipo Ford. É certo que eles não se preocupam com a “humanidade”, com a “espiritualidade” do trabalhador, que, no nível imediato, são esmagadas. [...]. As iniciativas puritanas têm o objetivo de conservar, fora do trabalho, um certo equilíbrio psicofísico, capaz de impedir o colapso psicofisiológico do trabalhador, coagido pelo novo método de produção. Este equilíbrio só pode ser puramente externo e mecânico, mas poderá se tornar interno se for proposto pelo próprio trabalhador e não imposto de fora, por uma nova forma de sociedade, com meios apropriados e originais (Gramsci, 2001b, p. 267).

 

A terceira ideia que destacamos como norte teórico-metodológico se relaciona ao conceito de intelectual orgânico revelada também no Caderno 12. Trata-se de um conceito chave para interpretar a capacidade organizativa e dirigente de integrantes da classe burguesa. Gramsci (2001a) assinala que as classes sociais fundamentais criam seus intelectuais para mediar a organização, a unidade e a consciência política coletiva nos campos econômico, social e político. Nessa linha, referindo-se à burguesia, ele afirma que

 

Deve-se observar o fato de que o empresário representa uma elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica (intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica, não somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas também em outras esferas, pelo menos nas mais próximas à produção econômica [...]. Se não todos os empresários, pelo menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria classe; ou pelo menos, deve possuir a capacidade de escolher os “prepostos” (empregados especializados) a quem confiar esta atividade organizativa das relações gerais exteriores à empresa (Gramsci, 2001a, p. 15-16).

 

Verificamos que a “elite” a que Gramsci se refere vem desempenhando um papel político importante na elaboração, difusão e implementação do projeto que representa os interesses da classe na educação no Brasil. Esses sujeitos se destacam na criação de associações, fundações e institutos especializados – os aparelhos de hegemonia ou hegemônicos – e na condução da ação política para direcionar ou influenciar o conteúdo das políticas educacionais e, assim, definir as perspectivas de formação intelectual e moral de grande parte da classe trabalhadora.

Partindo dessas ideias sumariamente apontadas, assinalamos que a perspectiva teórico-metodológica de Gramsci para a investigação do projeto contemporâneo de educação da classe burguesa permite identificar dois pontos fundamentais: i) na história do capitalismo, a educação proposta pela burguesia não tem compromisso com o desenvolvimento intelectual e moral dos trabalhadores e de seus filhos; ii) na atualidade do capitalismo brasileiro, as frações da classe burguesa que defendem a escola pública não se movem por um princípio puritano e humanista, ao contrário, buscam conformar a classe trabalhadora para os parâmetros da sociabilidade do capitalismo dependente em crise.

Além dessa breve introdução, o artigo está dividido em quatro seções. Na primeira, abordamos alguns elementos da concepção de Gramsci sobre epistemologia e trabalho de pesquisa, ressaltando a importância do conhecimento científico para a compreensão da realidade concreta e a finalidade da pesquisa na sociedade de classes.  Na segunda, destacamos alguns conceitos que consideramos centrais para a investigação do projeto da classe burguesa para a educação. A finalidade da seção é ressaltar os conceitos de Gramsci que são indispensáveis ao estudo da educação na sociedade de classes. Na terceira, apresentamos uma síntese de formulações dos aparelhos de hegemonia da classe burguesa na educação para indicar como esta classe atua para afirmar o seu projeto. Por fim, na quarta, sistematizamos as considerações finais, acentuando a atualidade de Gramsci para a compreensão e posicionamento nas lutas em curso no campo educacional.

 

2 Gramsci: aspectos epistemológicos e a finalidade da pesquisa na sociedade de classes

Partilhamos o entendimento de que as formulações de Gramsci formam um conjunto coerente e articulado que expressa a seguinte perspectiva do materialismo histórico: a indissociabilidade entre a produção teórica, a análise da realidade e a ação política para enfrentar os problemas reais do tempo histórico. Observamos que a preocupação de nosso autor foi com a organização dos “subalternos” para transformar as ideias em força material, visando superar a ordem capitalista.

Essa perspectiva pode ser verificada na seguinte afirmação:

 

[...] a filosofia da práxis não busca manter os “simples” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simples não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais (Gramsci, 1999, p. 103).

 

Na acepção de Gramsci, o materialismo histórico tem a potencialidade de mediar o progresso intelectual das massas por priorizar a internalização de conceitos científicos na relação crítica com as noções espontâneas e pré-científicas que emergem da experiência cotidiana e do senso comum. Trata-se de um processo de construção da coerência entre o pensar e o agir para a superação dos sistemas de crenças que subordinam intelectualmente as massas (Gramsci, 1999). Portanto, Gramsci reconhece que os conceitos científicos mais avançados precisam mediar a superação das ilusões, das fantasias, dos dogmas e das formas fetichizadas, em síntese, de todos mecanismos que servem, por exemplo, para viabilizar a dominação de classes.

O conhecimento científico, e particularmente os conceitos, não são recursos do pensamento para contemplar a realidade, mas sim para coordenar o agir no mundo, pois “Toda ciência está vinculada às necessidades, à vida, à atividade do homem” (Gramsci, 1999, p. 174).

Nessa linha, Gramsci é claro na delimitação da especificidade do trabalho de pesquisa e da objetividade da ciência nos seguintes termos:

 

O trabalho científico tem dois aspectos principais: um que retifica incessantemente o modo de conhecimento, retifica e reforça os órgãos sensoriais, elabora princípios novos e complexos de indução e dedução, isto é, aperfeiçoa os próprios instrumentos de experiência e de sua verificação; outro que aplica este complexo instrumental (de instrumentos materiais e mentais) para determinar, nas sensações, o que é necessário e o que é arbitrário, individual, transitório. Determina-se o que é comum a todos os homens, o que todos os homens podem verificar da mesma maneira, independentemente uns dos outros, porque foram observadas igualmente as condições técnicas de verificação. ‘Objetivo’ significa precisamente, e tão somente, o seguinte: que se afirma ser objetivo, realidade objetiva, aquela realidade que é verificada por todos os homens, que é independente de todo ponto de vista que seja puramente particular ou de grupo (Gramsci, 1999, p. 173).

 

Especificamente sobre os conceitos, verificamos que Gramsci acentua que “Buscar a real identidade na aparente diferenciação e contradição, e descobrir a substancial diversidade por trás da aparente identidade é a mais delicada, incompreendida e contudo essencial capacidade do crítico das idéias e do histórico do desenvolvimento social” (Gramsci, 2000a, p. 206). Mas é necessário ressaltar que nosso autor apresentou criticamente um alerta sobre o cientificismo: “A superstição científica traz consigo ilusões tão ridículas e concepções tão infantis que a própria superstição religiosa termina enobrecida” (Gramsci, 1999, p. 176).

Com Gramsci, reconhecemos que os conceitos científicos são constructos teóricos que se destinam a nomear, qualificar e explicar dimensões da atividade humana na realidade social concreta para além das formas aparentes e imediatas dos fenômenos. Em outros termos, os conceitos se destinam a revelar o movimento e o significado das relações sociais de produção da existência humana e das relações de poder, isto é, a essência (materialidade histórica) das coisas (Kosik, 2002).

Compreendemos que os conceitos científicos se destinam à superação das representações do mundo das aparências, mediadas pelas formas difusas do senso comum. Nessa linha, a formulação de um conceito é o esforço de apreensão de aspectos da materialidade social concreta, sendo, ao mesmo tempo, um instrumento do pensar e forma particular da organização do conjunto do pensamento.

Considerando que o trabalho científico é uma atividade histórica, como assinala Gramsci (2015), e que o objeto deste trabalho são produtos da história, assinalamos que os conceitos são construções também históricas que medeiam a produção do concreto-pensado – a produção da consciência sobre a realidade social concreta em movimento – e, por conseguinte, do agir.

Isso exige que as construções científicas e, mais precisamente, os conceitos científicos sejam validados pelo princípio da atualidade, ou seja, por sua capacidade de possibilitar a interpretação do real. Gramsci (1999, p. 174) traduz essa questão com as seguintes palavras: “Se as verdades científicas fossem definitivas, a ciência teria deixado de existir como tal, como investigação, como novas experiências, reduzindo‐ se a atividade científica a repetição do que já foi descoberto. O que não é verdade, para felicidade da ciência”.

O princípio da atualidade e, mais precisamente, a advertência de Gramsci sobre as verdades científicas ressaltam três aspectos importantes. Em primeiro, a realidade não está subordinada aos conceitos, pois não é o pensamento que produz a realidade. Isso implica reconhecer que o conceito é a expressão teórica da realidade no pensamento, sendo que a sua função é possibilitar que a atividade intelectual seja exercida com elementos da essência histórica – a materialidade concreta – do mundo real. Em segundo, os conceitos precisam ser operados pela lógica dialética, portanto, tais constructos teóricos por si só não permitem interpretar o real. Em terceiro, não há neutralidade na produção científica, mesmo assim, com devidos cuidados teórico-metodológicos, é possível incorporar de modo subordinado um conceito de outro campo epistêmico sem carregar a concepção de mundo a que está vinculado. Especificamente sobre a terceira delimitação, Gramsci (1999, p. 175-176) assevera que

 

[...] não obstante todos os esforços dos cientistas, a ciência jamais se apresenta como nua noção objetiva; ela aparece sempre revestida por uma ideologia e, concretamente, a ciência é a união do fato objetivo com uma hipótese, ou um sistema de hipóteses, que superam o mero fato objetivo. É verdade, sem dúvida, que é relativamente fácil, neste campo, distinguir entre a noção objetiva e o sistema de hipóteses, através de um processo de abstração que está inserido na própria metodologia científica, de maneira que é possível apropriar-se de uma e recusar o outro. Esta é a razão pela qual um grupo social pode apropriar-se da ciência de outro grupo, sem aceitar a sua ideologia (a ideologia da evolução vulgar, por exemplo).

 

              Em síntese, produzir ciência para Gramsci significa construir conhecimento sobre a realidade social concreta para transformá-la.[1]

 

3 Alguns conceitos de Gramsci para interpretação das concepções, estratégias e táticas da burguesia acerca da educação

              Analisar a atuação da burguesia na educação brasileira à luz do pensamento de Gramsci exige interpelar criticamente o projeto educacional desta classe para apreender as concepções que fundamentam esse projeto, bem como as estratégias e as táticas que visam transformar tais concepções em força material na sociedade.

              O conceito de ideologia de Gramsci é essencial para essa análise. O ponto de partida é reconhecer que a educação é uma práxis vinculada à formação humana que responde às definições político-ideológicas em um certo tempo histórico que emergem das demandas das classes sociais em luta. Com Gramsci (2000), é importante identificar o grau de homogeneidade, autoconsciência e organização alcançada pela classe burguesa frente à classe trabalhadora, porque a afirmação de um projeto depende da capacidade de articulação política de seus intelectuais. O autor nos ensina que a classe

 

[...] adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se o interesse de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em “partido”, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano “universal”, criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados (Gramsci, 2000, p. 41).

 

              Assim, reconhecendo que a classe burguesa se afirma nas relações de poder como dirigente, interpelamos o seu projeto de educação, reconhecendo que as concepções contidas em tal projeto são uma resposta classista para a formação humana. Isso significa que as concepções são as expressões ideais referenciadas na leitura da classe sobre a realidade. Sobre esse aspecto, assinalamos uma importante afirmação de Gramsci (1999, p. 238):

 

[...] as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais.

 

Portanto, as formulações ideológicas da burguesia para a educação estão conectadas à uma forma de interpretar o estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Em outros termos, as concepções de educação da burguesia são respostas da classe para questões de um tempo histórico.

Na apreensão e interpretação dos fundamentos ideológicos das formulações burguesas, é importante observar o seguinte alerta:

 

É necessário, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalísticas, “voluntaristas”. Enquanto são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é a validade “psicológica”: elas “organizam” as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. Enquanto são “arbitrárias”, não criam mais do que “movimentos” individuais, polêmicas, etc. (nem mesmo estas são completamente inúteis, já que funcionam como o erro que se contrapõe à verdade e a afirma) (Gramsci, 2015, p. 237-238).

 

              Apesar de ser possível identificar diferentes menções ao termo ideologia nos escritos de Gramsci, a formulação mais marcante em seu pensamento é aquela que, em diálogo com Lenin (2020), qualifica conceitualmente o constructo como concepção de mundo que possibilita a organização e atuação das classes (Liguori, 2017), algo que permite que os seres humanos desenvolvam uma consciência sobre sua condição de classe e, a partir dela, movimentem-se como classe (Gramsci, 1999).

Com efeito, Gramsci (1999, p. 98-99) descreve a ideologia como “[...] o significado mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas”. Além disso, é importante considerar que

 

As idéias e as opiniões não “nascem” espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão, houve um grupo de homens ou até mesmo uma individualidade que as elaborou e apresentou na forma política da atualidade (Gramsci, p. 2000, p. 82).

 

Com esse conceito, é possível compreender que a concepção de educação é a expressão particular da forma de conceber o mundo produzida pela classe, portanto, não se trata de um apêndice da sua concepção de mundo, mas sim como algo orgânico ao seu modo de ser e de agir. Ademais, exige também reconhecer que a concepção de educação é forjada no terreno da luta de classes, isto é, a classe não formula abstratamente, mas sim a partir do mundo da produção e no confronto com a classe trabalhadora.

Em conjunto, esses pontos nos levam a buscar cientificamente o que há de novo na velha concepção de mundo da classe burguesa. Em outros termos, ao reconhecermos que o projeto de educação da classe burguesa tem conexões orgânicas com o desenvolvimento das forças produtivas sob a determinação das relações sociais de produção, concebemos que tal projeto é historicamente atualizado. Portanto, quando buscamos o “novo”, estamos reconhecendo que “A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais” (Marx; Engels, 2005, p. 43).

Na esteira da acepção de Gramsci, Martins (2009) identificou que na realidade brasileira, na segunda metade da década de 1990, frações da classe burguesa se reposicionaram frente à questão social frente ao conjunto do capitalismo em crise. Segundo o autor, tais frações identificaram ser necessário atualizar as estratégias e táticas de obtenção do consenso para consolidar a sociabilidade capitalista em novo patamar. Basicamente, isso envolveu um reposicionamento das empresas frente aos direitos trabalhistas, a questão racial, de gênero, ambiental etc. e a promoção do chamado “investimento social privado” no tratamento da questão social. Os intelectuais orgânicos de tais frações nomearam essa frente de ação de “responsabilidade social”.

Analisando criticamente a formulação burguesa, Martins (2009) revelou se tratar de uma construção ideológica da classe para o exercício da hegemonia frente ao conjunto de mudanças na materialidade da vida social que agravaram a questão social.[2] Com efeito, o autor qualificou teoricamente essa formulação como “ideologia da responsabilidade social”. Com o conceito de ideologia, é possível captar que as ações erráticas da classe na educação, movidas pelo espírito filantrópico de cada burguês, foram superadas por uma concepção orgânica e de referência para a construção da vontade coletiva da classe.

Assim, ressaltamos que, na perspectiva da análise referenciada no pensamento de Gramsci, as expressões vinculadas ao vocábulo “filantropia” são insuficientes para qualificar a atuação da classe burguesa na questão social, particularmente na educação.

Ainda que mobilizados numa linha crítica, expressões como “filantropia empresarial”, “filantrocapitalismo”, “filantropia social” e “filantropia de risco”, entre outros, não oferecem referências para elaboração do concreto-pensado, por conseguinte, não contribuem para desvelar os interesses da classe burguesa no campo educacional de modo preciso.

Especificamente sobre os limites de tais expressões, Fontes (2020, p. 19) assinala que

Não é filantropia o que caracteriza o capitalismo contemporâneo e do qual o Brasil é um dos pontos de observação privilegiado. Há inúmeros estudos brasileiros sobre o avanço do capital aos recursos públicos (educação, saúde e especialmente a previdência) através de aparelhos privados de hegemonia, como “organizações sociais”. Não existe capitalismo filantrópico, como demonstra Medeiros (2013), em minuciosa análise na qual realiza a crítica ontológica do que se apresenta como eventuais surtos de altruísmo, mas cujo objetivo é sobretudo defender o capitalismo, malgrado o horror econômico e social que disseminam. Há filantropia no capitalismo – esse é um privilégio da desigualdade. Pode ser compreendido como uma espécie de elogio do vício (a produção de desigualdades) à virtude. Não existe capitalismo filantrópico.

 

Pelo exposto, reafirmamos que a criação de novos conceitos destinados à apreensão teórica da realidade como síntese de múltiplas determinações é uma tarefa necessária porque o trabalho científico não é mera repetição das descobertas já realizadas, como alerta Gramsci (1999).

Contudo, se o objetivo é organizar teoricamente a realidade para elaboração do concreto-pensado, os conceitos precisam ter densidade histórica, isto é, precisam refletir teoricamente a concreticidade do mundo real. Quando isso não é considerado, a tendência é viabilizar uma análise que capta apenas elementos secundários dos fenômenos. Em nossa leitura, é isso que os termos “filantropia empresarial”, “filantrocapitalismo”, “filantropia social” e “filantropia de risco” oferecem.

Consideramos que a intervenção da burguesia na educação é movida pela ideologia historicamente orgânica da classe, pois permite ordenar a consciência e a ação coletiva classista em várias frentes no plano nacional e internacional. Essa ideologia é necessária porque a classe burguesa luta permanentemente para renovar a hegemonia. Com efeito, é a concepção de mundo que oferece consistência ao projeto de educação dessa classe. 

              Para exemplificar a inflexão da classe no campo educacional, destacamos o emblemático caso da cartilha intitulada O que as empresas podem fazer pela educação, publicada, em 1999, pelo Instituto Ethos de responsabilidade social com a colaboração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC). O objetivo da cartilha foi assim descrito:  apresentar “[...] sugestões de como as empresas podem somar esforços às escolas para melhorar a educação” (Instituto Ethos de Responsabilidade Social; Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, 1999, p. 5). Além disso, destacamos um excerto que justifica o significado da ação:

 

Esta publicação se dirige a empresários e empresárias que acreditam na possibilidade de construir um país mais justo.

[...] sugerimos estratégias para a empresa buscar aproximação com a escola ou secretarias de educação, a fim de iniciar um trabalho conjunto.

[...] propomos uma atuação do empresariado no sentido de se articular a seus pares e a outros atores sociais, com a perspectiva de influir na elaboração e execução das políticas públicas na área da educação. [...]

Essa parceria atesta o compromisso do setor empresarial de construir um mundo economicamente mais próspero e socialmente mais justo (Instituto Ethos de Responsabilidade Social; Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, 1999, p. 5).

 

              Fica evidenciado que a orientação ideológica foi assim definida: as empresas deveriam atuar diretamente nas escolas públicas. Além disso, a cartilha apontou que os burgueses deveriam realizar interlocuções com os Secretários de Educação e buscar inserções nos Conselhos Municipais, mas que também seria necessário que as lideranças da classe atuassem na “[...] formação de um Fórum de Empresas pela Educação” (Instituto Ethos de Responsabilidade Social; Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, 1999, p. 60).

              Pina (2016) revela que, ao longo dos anos 2000, cresceu no seio da classe burguesa a compreensão de que as ações na educação deveriam ser profissionalizadas através de aparelhos específicos e não mais pela atuação direta das empresas. De acordo com o autor, ainda que os primeiros aparelhos burgueses especializados tenham surgido nos anos de 1990, foi na década seguinte que se registrou o crescimento de associações, fundações e institutos empresariais dedicados a intervir na educação. O autor conceituou essa configuração como “ideologia da responsabilidade social na educação”.

              Esse dado indica que, além do conceito de ideologia, a análise da atuação da classe burguesa na educação exige mobilizar também o conceito de hegemonia, pois, como revela Gramsci (1999), a concepção de mundo precisa se tornar força ativa nas relações de poder para organizar a própria classe e seus aliados históricos e ainda exercer o domínio sobre a classe adversária.

Gramsci (2000) qualifica a hegemonia como direção e domínio, uma forma específica em que uma classe transforma uma concepção particular de mundo em referência comum para um tempo histórico, possibilitando conduzir e comandar a sociedade. Trata-se do exercício do poder político que, em conexão com as bases materiais, para a dominação, combinando convencimento e coerção. Nessa linha, Gramsci (2000, p. 95) afirma que

 

O exercício normal da hegemonia, no terreno clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações –, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados.

 

Com efeito, analisar a hegemonia burguesa no campo educacional exige reconhecer a sua vinculação com a materialidade econômica e também com as formas políticas relacionadas à orientação intelectual e moral para a produção do conformismo social (Gramsci, 1999).

Nessa perspectiva, o exercício da hegemonia envolve a desarticulação dos processos de produção da consciência político-coletiva das frações subalternizadas para impedir que tais frações vivam como classe sem produzir para si a existência política da classe.

Pelas relações de hegemonia, a classe burguesa atua para bloquear a homogeneidade e a autoconsciência da classe trabalhadora para desarticular a sua existência política ou para evitar que a sua organização política não ultrapasse o nível elementar da consciência política, isto é, econômico-corporativa (Gramsci, 1999).

Gramsci (1999, p. 399) acentua que, no sentido latu, “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica” que, em última instância, exige a existência e atuação de aparelhos hegemônicos (ou de hegemonia). Nessa perspectiva, refletindo sobre a problemática do direito e o Estado capitalista, Gramsci acentua a especificidade da classe burguesa e a relevância da ideologia e da hegemonia com a seguinte afirmação:

 

As classes dominantes precedentes [feudais] eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não tendiam a assimilar organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar ‘técnica’ e ideologicamente sua esfera de classe: a concepção de casta fechada. A classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a a seu nível cultural e econômico (Gramsci, 2000, p. 271, grifo nosso).

 

Esse contínuo movimento revela que “A realização de um aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento” (Gramsci, 1999, p. 320).

Isso significa que há uma conexão orgânica entre ideologia, hegemonia e aparelhos hegemônicos e que tal nexo é destinado a viabilizar que a classe burguesa seja reconhecida e confirmada como referência intelectual e moral das diferentes frações da classe trabalhadora. Na educação, isso significa que as/os professoras/es se conectem com intelectuais e aparelhos hegemônicos burgueses, elegendo-os como referência para o trabalho docente.

No Brasil, a classe burguesa nomeia em termos jurídicos e políticos seus aparelhos hegemônicos no campo educacional como associações, institutos e fundações como destacado por Pina (2016). Em geral, informam que tais aparelhos seriam dedicados à melhoria da qualidade da educação pública e que, portanto, seriam “apartidários”. Desse modo, sinalizam uma suposta neutralidade ideológica, pois se moveriam apenas pela promoção do bem comum ao defenderem a educação pública.

Para decifrarmos as estratégias e táticas de atuação dos aparelhos hegemônicos da classe burguesa na educação é indispensável acionarmos o conceito de Estado integral de Gramsci, que pode ser qualificado a partir de alguns aspectos.

O primeiro é que o Estado integral é o Estado capitalista, síntese complexa e contraditória, “[...] forma concreta de um mundo produtivo” (Gramsci, 2015, p. 428) cuja materialidade, portanto, está assentada no sistema de produção capitalista da existência, mais precisamente, nas relações sociais que instituem tal sistema, ou seja, nas relações entre as classes sociais fundamentais. Afirma Gramsci (2015, p. 427): “[...] o Estado só é concebível como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção”. Considerando que o sistema de produção é derivado da atividade humana, logo as classes sociais são decisivas na sua constituição, determinando inclusive a natureza e especificidade do Estado capitalista.

 Isso significa que na acepção de Gramsci, o Estado não tem uma forma pura e muito menos uma materialidade em si, o que nos leva a confirmar que o Estado não é sujeito da história e muito menos é uma forma político-jurídica apartada das lutas de classes. Ao contrário, o Estado integral é, ao mesmo tempo, o campo e a materialização condensada de tais lutas, sendo que a complexidade do fenômeno estatal é definida pelo nível de organização da sociedade. Gramsci pontua de forma inequívoca que o Estado capitalista é uma produção da sociedade, salientando que “O Estado é soberano, na medida em que é a própria sociedade organizada” (Gramsci, 2000, p. 204).

O segundo ponto se refere à materialidade do Estado integral. Para Gramsci, como produto da história, o Estado capitalista é a síntese dialética, unidade e distinção, entre sociedade civil e sociedade política (entendida como aparelho estatal). Em suas palavras, “[...] isto significa que por ‘Estado’ deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil” (Gramsci, 2000, p. 255), sendo que a distinção entre tais instâncias é uma produção do pensamento para captar as especificidades, pois “[...] sociedade civil e Estado se identificam na realidade dos fatos” (Gramsci, 2000, p. 47).

Isso significa que, a partir das relações sociais de produção da existência, mediatizadas pela indissociabilidade entre economia e política,[3]  as classes, através de seus diferentes aparelhos hegemônicos produzem e dinamizam o Estado e suas funções. Nessa linha, o conceito de Estado integral permite apreender que as estratégias e táticas de tais aparelhos nascem e influenciam a dinâmica da sociedade civil como também plasmam, pelas mediações, a aparelhagem estatal. Assim, a sociedade civil e o aparelho estatal são definidos pela condensação material de ideologias que emergem como resultado das relações sociais de produção e das relações de poder travadas entre classes e suas frações. Na educação, a condensação material se revela na legislação, nos planos e nas políticas educacionais, entre elas as políticas curriculares, na estrutura e funcionamento dos sistemas educacionais e das unidades escolares, influenciando até os processos pedagógicos.

Ao compreendermos o Estado capitalista pelo conceito de Estado integral, constatamos que a expressão “parceria público-privada” não tem densidade histórica para explicar o que de fato ocorre na realidade social concreta. Tal termo cumpre uma finalidade importante, qual seja: obscurecer o sentido e a finalidade real dos vínculos entre organismos privados e governos.

Reafirmamos que os aparelhos hegemônicos da burguesia procuram transformar a ideologia da classe como referência da sociabilidade, isto é, da vida intelectual e moral de um povo. Para tanto, é indispensável que tais aparelhos afirmem a concepção burguesa de mundo em todas as instâncias da sociedade civil e do aparelho estatal. Significa oferecer ao conjunto da população uma visão particular de uma classe como se fosse universalmente válida para as frações da classe trabalhadora. É a trama dos interesses privados na produção da sociabilidade que legitima o controle privado de bens sociais que deveriam ser públicos.

Sobre essa questão, em uma nota sobre a cultura italiana, Gramsci formula o seguinte:

 

[...] além da escola, nos vários níveis, que outros serviços não podem deixar à iniciativa privada, mas – numa sociedade moderna – devem ser assegurados pelo Estado e pelas entidades locais (municipais e provinciais)? O teatro, as bibliotecas, os museus de vários tipos, as pinacotecas, os jardins zoológicos, os hortos florestais, etc. É preciso fazer uma lista de instituições que devem ser consideradas de utilidade para a instrução e a cultura públicas e que são consideradas como tais numa série de Estados, instituições que não poderiam ser acessíveis ao grande público (e se considera, por razões nacionais, que devam ser acessíveis) sem uma intervenção estatal. Deve-se observar que precisamente estes serviços são quase inteiramente negligenciados por nós; um exemplo típico são as bibliotecas e os teatros. Os teatros existem na medida em que são um negócio comercial: não são considerados serviços públicos (Gramsci, 2001a, p. 187-186, grifo nosso).

 

Gramsci nos alerta que, na sociedade capitalista, assegurar a dimensão pública dos aparelhos culturais é algo estratégico para a classe trabalhadora porque tais aparelhos podem desempenhar funções importantes na elevação cultural das massas e bloquear a expansão da mercantilização dos bens sociais.

Portanto, como assinalado, a assim chamada “parceria público-privada” é na verdade um mecanismo da privatização de novo tipo (Martins; Souza; Pina, 2020) que se destina a viabilizar a ampliação da hegemonia burguesa em todas as dimensões da vida social, entre elas, a educação escolar.

Com Gramsci, verificamos que frações da burguesia brasileira iniciaram um movimento novo a partir dos anos 2000 que se difere das formas arcaicas de organização, posição e ação frente à educação pública de décadas anteriores (Pina, 2016). Na análise da especificidade desse processo, verificamos que não se trata da expressão material que revelaria a perspectiva do projeto capitalista de desenvolvimento autônomo em alternativa à condição de dependência na qual o Brasil se encontra historicamente vinculado. Ao contrário, a intervenção da burguesia na educação pública segue subordinada ao projeto imperialista. Portanto, sua finalidade é viabilizar a mundialização da educação a partir de conexões entre imperialismo e dependência pela criação do mercado mundial do conhecimento no século XXI (Souza, 2021) para atualizar o conformismo social por meio da reprodução da força de trabalho no contexto do trabalho alienado e precarizado, de expansão do “empreendedorismo” e das mudanças tecnológicas e organizacionais que ampliam o trabalho morto em detrimento do trabalho vivo.

 

4 Atuação dos aparelhos de hegemonia da classe burguesa na educação

Já assinalamos, Gramsci (1999; 2021) revelou que o projeto de educação da classe burguesa significa a escolarização restrita, que cerceia o desenvolvimento intelectual e moral, para aprofundar a condição de subalternidade das massas. O referido projeto confirma uma marca social histórica do capitalismo do século XX assim descrita por ele: “[...] cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes estratos uma determinada função tradicional, dirigente ou instrumental” (Gramsci, 2001a, p. 49).

Com Gramsci, verificamos que o desafio da classe trabalhadora consiste em: “[...] criar um tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (Gramsci, 2001a, p. 49). Trata-se, na acepção de Gramsci (2001a), da criação da escola “desinteressada”, isto é, uma instituição dedicada à profunda formação humanista de cultura geral[4] sem perder o nexo com a atividade fundante da vida humana – o trabalho.[5]

Portanto, em sua concepção, a formação básica, comum e indispensável a todas as pessoas não é a que se destina à especialização precoce para o trabalho produtivo, mas sim aquela comprometida com o pleno desenvolvimento humano mediado pela socialização e incorporação dos conhecimentos filosóficos, científicos e artísticos produzidos pela humanidade.

Pelas mediações, é possível identificar que a essência histórica do projeto de educação da classe burguesa na atualidade brasileira não se difere qualitativamente da escola destinada às massas trabalhadoras na Itália de Gramsci. Indubitavelmente, não se trata da reprodução imediata do modelo de escola do passado no presente. Contudo, a finalidade não é distinta, pois o seu fundamento é assegurar uma formação restrita, de caráter instrumental dos trabalhadores.

Cabe assinalar que a desumanização dos trabalhadores pela educação pode ser considerada o reflexo social da desumanização do trabalho na sociedade capitalista, como revelado por Marx (2010), decorrente da postura da classe burguesa, como observou Engels (2010, p. 308) ao se reportar à burguesia industrial no século XIX.

Consideramos que a finalidade dos aparelhos de hegemonia altamente especializados é assegurar a desumanização do trabalhador pela educação para reduzi-lo à condição de “mão de obra” – termo caro para o pensamento liberal.

Nos limites do presente artigo, destacamos alguns pontos que marcam a especificidade de tais aparelhos na educação brasileira.

O primeiro ponto a ser destacado é a posição comum sobre a ausência de apontamentos críticos sobre a livre iniciativa privada na educação. Em outras palavras, os aparelhos de hegemonia não identificam a escola privada como um problema político e social. Com isso, embora advogue em nome da educação pública, os aparelhos de hegemonia da classe burguesa validam, em última instância, o dualismo educacional porque reconhecem que a escola das massas não se confunde com a escola destinada aos grupos dirigentes da sociedade.

O segundo ponto se refere à estratégia de legitimação da posição que ocupam no campo educacional. Em geral, os aparelhos de hegemonia da classe burguesa se apresentam pela formulação genérica de “organizações da sociedade civil”, supostamente independentes por não estarem vinculados diretamente a legendas partidárias, e por não dependerem de financiamento público para se manterem. Alegam que se movem em defesa da “qualidade” da educação pública, portanto, estariam representando o espírito público em nome do bem comum.[6] Com isso, buscam conquistar a confiança e a credibilidade para serem reconhecidos como os “verdadeiros” porta-vozes da educação pública.

O terceiro ponto se refere à legitimação cientificista de suas propostas para a educação pública. Apoiados na construção da legitimidade social, via de regra, os aparelhos divulgam que suas propostas estariam baseadas em evidências empíricas.   Vários estudos veiculados pelos aparelhos contam com chancelas acadêmicas de instituições e/ou de pesquisadores. Com esse discurso, buscam veicular que as formulações que apresentam seriam “neutras” porque estariam lastreadas por “evidências científicas”. Com isso, informam que estariam produzindo ciência para a educação pública sugerindo, indiretamente, que os aparelhos de contra-hegemonia da classe trabalhadora estariam fazendo apenas política.[7]

  O quarto ponto é o tema equidade educacional. Em geral, os aparelhos de hegemonia não utilizam a expressão “igualdade educacional”. Valendo-se da polissemia do termo “equidade” promovem o apagamento político-ideológico do princípio de igualdade. A partir de uma leitura liberal de “justiça social”, veiculam que a equidade seria o instrumento para lidar com os diferentes e, assim, diminuir as desigualdades.[8]

O quinto ponto é a relação que estabelecem com os governos municipais, estaduais e federal sob a égide da noção de “parcerias”. Os aparelhos de hegemonia atuam nas secretarias de educação e no Ministério da Educação para executar ações ou influenciar o delineamento de políticas. Observamos que “parceria” é um eufemismo para privatização de novo tipo. Através da relação que estabelecem, os aparelhos difundem o seu projeto em larga escala e não mais pontualmente em uma e outra escola, como no início das ações iluminadas pela “ideologia da responsabilidade social”. Sobre esse ponto, é interessante que esses aparelhos estão conectados ao bloco no poder independentemente da posição política do governo. Essa atuação confirma a leitura de Gramsci sobre o Estado integral, isto é, a divisão entre sociedade civil e sociedade política é didática e não orgânica.[9]

O sexto ponto é sobre a defesa incondicional da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Alguns aparelhos foram decisivos para a construção, legitimação e divulgação desse artefato pedagógico, como revela a pesquisa de Pires (2020), desenvolvida no âmbito do GTEPE. Afirmar a pedagogia das competências como teoria de referência para a BNCC pode ser considerada uma demonstração de força político-ideológica.

Compreendemos que a BNCC está vinculada ao neotecnicismo, nos termos definidos por Saviani (2013), possuindo um forte caráter instrumental e restritivo ao desenvolvimento intelectual e moral pleno dos estudantes das escolas públicas. Em conjunto, os aparelhos defendem a centralidade da BNCC para as políticas educacionais e associam esse artefato à ideia de equidade com qualidade educacional. Para esse tema, em particular, os principais aparelhos integram um aparelho de hegemonia denominado de Movimento pela Base. Além disso, há o apoio de outro aparelho, chamado de Instituto Reúna, que se destaca em ações para implementação pedagógica da BNCC.[10]

 Em síntese, pela lente gramsciana, verificamos que a força político-ideológica da classe burguesa na educação não se deve ao brilhantismo de um empresário ou de um preposto bem preparado da classe. Não decorre também da criação de teorias políticas, econômicas e pedagógicas originais. Ao contrário, a força reside no grau elevado de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançada pela classe, revelada na consistência e atuação de seus aparelhos de hegemonia, articulados em uma rede no plano nacional e internacional, e na capacidade de adaptar ideias para a realidade nacional e transformá-las em atividade prática.

 

5 Considerações finais

Pelo conjunto de elementos apresentados, afirmamos que o pensamento de Gramsci é central para o estudo da atuação da classe burguesa na educação, porque oferece um complexo conceitual que permite adentrar nos fundamentos da sociedade capitalista e captar as metamorfoses dessa sociedade a partir da composição social e política que emerge das bases materiais.  Nessa direção, reconhecemos que seu pensamento é extremamente relevante para que possamos interpretar o modo de ser e de agir desta classe nos campos econômico, político e social e, particularmente, educacional em nosso tempo histórico.

Com efeito, pela lente gramsciana, afirmamos que a classe burguesa no Brasil, apesar de não ter interesse em romper com os grilhões da dependência, demonstrou capacidade de se renovar politicamente e de transformar ideias em referências para o agir, delineando a configuração da escola destinada às massas.

Por fim, a atualidade de Gramsci reside também em sua contribuição para pensarmos coletivamente um projeto de educação anticapitalista. Sobre esse ponto, a concepção do autor sobre escola unitária desenvolvida no Caderno 12 (Gramsci, 2001a) é indubitavelmente atual e necessária.

Talvez, essa seja a tarefa mais complexa de nosso tempo, pois a heterogeneidade da classe trabalhadora e as dificuldades organizativas que se refletem no nível de consciência político-coletiva contrastam com o que a classe burguesa vem apresentando nas lutas sociais. Entretanto, esse fato histórico não abala nossa vontade sobre a construção de um projeto anticapitalista de educação em nosso tempo. Até nesse ponto, Gramsci pode ser tomado como inspiração e referência.

Referências

 

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IAMAMOTO, Marilda Villela. O Brasil das desigualdades: “questão social”, trabalho e relações sociais. SER social, [Brasília, DF], v. 15, n. 33, p. 326-342, 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/13051/11406 . Acesso em: 10 ago. 2021.

 

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PIRES, Mônica Dias Medeiros. A influência empresarial na política curricular brasileira: um estudo sobre o Movimento pela Base Nacional Comum. 2020. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/11599/1/monicadiasmedeirospires.pdf . Acesso em: 28 ago. 2020.

 

SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2013.

 

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SEMERARO, Giovanni. Anotações para uma teoria do conhecimento em Gramsci. Revista Brasileira de Educação, [Rio de Janeiro], p. 95-104, 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/G6NwYF7z7khvhqjQmkz7cfM/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 28 maio 2020.

 

SOUZA, Camila Azevedo. Educação básica em disputa: o jogo dos empresários no mercado mundial do conhecimento no século XXI. Campinas: Mercado das Letras, 2021.

 

 

 

 



[1] Duas produções podem auxiliar na compreensão da relação de Gramsci com a ciência. Semeraro (2001) apresenta uma reflexão sobre epistemologia no pensamento de Gramsci.  Marcus Martins (2008) analisa a filiação de Gramsci ao pensamento de Marx.

[2] Iamamoto (2013) explica que por questão social devemos compreender os desdobramentos que emergem da exploração do trabalho e da concentração da riqueza socialmente produzida que restringem à condição de vida da classe trabalhadora. Basicamente, a questão social é constituída pelos elementos que marcam a desigualdade social.

 

[3] Pensar as relações sociais de produção da existência, as relações de poder e a condensação material das ideologias é necessário reconhecer a unidade e distinção entre política e economia, isto é, do bloco histórico assim proposto por Gramsci (1999, p. 251): “A estrutura e as superestruturas formam um “bloco histórico”, isto é, o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção”.

[4] No escrito de 1916, intitulado Socialismo e Cultura, Gramsci apresentou uma crítica ao que chamou de cultura como saber enciclopédico e a defesa da cultura como desenvolvimento da humanidade. Ver Gramsci (1976).

[5] O Caderno 12 de Gramsci é uma referência necessária para compreensão dos limites do projeto burguês de educação e, ao mesmo tempo, para a construção do projeto anticapitalista de formação humana. Semeraro (2021) é uma referência importante para o estudo do referido caderno.

[6] Para identificação desse ponto, recomendamos a leitura das descrições que tais aparelhos veiculam em suas páginas eletrônicas no ícone “quem somos”. A título de exemplo, indicamos os seguintes casos: Todos pela Educação <https://todospelaeducacao.org.br/quem-somos/>; Fundação Lemann

   <https://fundacaolemann.org.br/institucional/quem-somos>; Instituto Ayrton Senna

    https://institutoayrtonsenna.org.br/quem-somos/

[7] À título de comprovação, indicamos: o estudo encomendado pelo Todos pela Educação à Fundação Carlos Chagas (MARICONI, Gabriela Miranda et al. Formação continuada de professores: contribuições da literatura baseada em evidências. São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Todos pela Educação, 2017.); Instituto Ayrton Senna (INSTITUTO AYRTON SENNA. Ideias para o desenvolvimento de competências socioemocionais: resiliência emocional. São Paulo, 15 jul. 2020. Disponível em https://institutoayrtonsenna.org.br/content/dam/institutoayrtonsenna/documentos/instituto-ayrton-senna-macrocompetencia-resiliencia-emocional.pdf. Acesso em: 8 maio 2022.); Todos pela Educação e Fundação Carlos Chagas (TODOS PELA EDUCAÇÃO; MOVIMENTO PELA BASE; FUNDAÇÃO LEMANN. Políticas pedagógicas: recomendações de políticas pedagógicas para os governos federal e estaduais. São Paulo: Todos pela Educação, 2022.); Fundação Itaú Social e Laboratório de Educação (FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL; LABORATÓRIO DE EDUCAÇÃO. Estudos e evidências sobre potencialidades e limites do uso de livros digitais. São Paulo: Fundação Itaú Social, 2020.).

[8] Para exemplificação, apresentamos: o estudo que o Todos pela Educação encomendou ao grupo coordenado por Paulo Blikstein, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, (BLIKSTEIN, Paulo et al. Tecnologias para uma educação: novo horizonte para o Brasil. São Paulo: Todos pela Educação, 2021);  a definição de equidade educacional veiculada pela Fundação Lemann em https://centrolemann.org.br/equidade-na-educacao/ ; o informe de pesquisa produzido pelo aparelho Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CEMPEC. Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Informe de pesquisa - ensino médio, qualidade e equidade: avanços e desafios em quatro estados: CE, GO PE e SP. [S. l.]: Cenpec, 2016. Disponível em: https://www.cenpec.org.br/wp-content/uploads/2016/02/Informe_Jornalista.pdf . Acesso em: 1 out. 2023).

[9] Listamos algumas divulgações de iniciativas que podem ser consultadas em: https://institutoayrtonsenna.org.br/parceria-entre-instituto-ayrton-senna-e-seduc-sp-forma-professores-e-gestores-para-projeto-de-vida/; https://www.institutonatura.org/mais-uma-parceria-da-rede-de-apoio-a-educacao/ ; https://institutopositivo.org.br/atuacao/ade-granfpolis/ .

[10] Isso pode ser comprovado no: Todos pela Educação; Movimento pela Base; Fundação Lemann (2022);  site do Instituto Reúna dedicado a detalhar formas de aplicação da BNCC https://www.institutoreuna.org.br/ferramentas/mapas-de-foco-bncc ; no site do Instituto Votorantim que divulga 60 planos de aula sobre educação financeira à luz da BNCC disponível em https://pve.institutovotorantim.org.br/2022/11/24/60-planos-de-aula-de-educacao-financeira-alinhados-com-a-bncc/



[i] Artigo recebido em: 31/10/23

 Artigo aprovado em: 06/06/24

[ii] Contribuições do autor: conceituação; análise formal; aquisição de financiamento; investigação; administração do projeto; visualização; escrita – rascunho original; escrita – análise e edição.

[iii] Contribuições da autora: curadoria de dados; análise formal; visualização; escrita – análise e edição.

[iv] Contribuições da autora: curadoria de dados; análise formal; visualização; escrita – análise e edição.