e-ISSN 1984-7246
A estratégia narrativa em Insubmissas
lágrimas de mulheres: uma leitura interseccional[i]*
Albânia
Celi Morais de Brito Lira
Universidade Federal do Norte do
Tocantins (UFNT)
Araguaína- TO, Brasil
lattes.cnpq.br/0543527615750378
A estratégia narrativa em Insubmissas lágrimas de mulheres: uma leitura interseccional
Resumo
Personagens e escritoras negras têm sido marcadas
por ausências e estereótipos dentro do sistema literário nacional. Conceição
Evaristo tem, ao longo de décadas como escritora negra, feito o enfrentamento a
essas marcações. A escrevivência, escrita marcada pela condição de mulher negra
proposta por Evaristo (2005), para sua prática como escritora, é a estratégia
narrativa de enfrentamento ao cânone, na medida em que descortina processos de
violência e silenciamento de personagens femininas. Dessa forma, este artigo tem por objetivo
analisar como se estabelece esse enfrentamento na obra Insubmissas lágrimas de mulheres (2011). Como a narradora interliga
as narrativas e personagens a partir de seus relatos de violência e de como
subverteram tais violências para contar suas experiências. Pretende-se,
portanto, a partir da perspectiva de Cândido (2011) acerca da literatura como
direito humano, estabelecer diálogo com a narrativa de Evaristo, a fim de se
apontar como a autora constrói uma teia de resistência de personagens femininas
negras dando-lhes a voz e o lugar nas narrativas. Para fundamentar tal
objetivo, o presente artigo toma por base pesquisadoras do feminismo negro,
cujos debates apontam para a interseccionalidade, como Gonzalez (1984),
Akotirene (2019), Collins (2016), Crenshaw (2002), a partir das quais se realiza
a revisão bibliográfica. Com essa leitura da obra, resta demonstrada a
intencionalidade da escrevivência, como estratégia narrativa para dar voz e
visibilidade a personagens femininas tradicionalmente silenciadas e
estereotipadas pelo cânone.
Palavras-chave: escrevivência;
interseccionalidade; Conceição Evaristo; feminismo negro.
The narrative strategy Insubmissas
lágrimas de mulheres: an intersectional reading
Abstract
Black characters and writers
have been marked by absences and stereotypes within the nacional literary
sistem. Conceção Evaristo has, over decades as a blck writer, confronted these
markings. The slavery proposed by Evaristo for her practice as a write is the
narrative strategy for confronting the
canon, as it reveals processes of violence
and silencing of female characters. In this way, this article aims to
analyse how this confrontation is
established in the wor Insubmissas
Lágrimas de mulheres (2011). How the narrator
interconnects the narratives and characters based on their reports of violence and how they subverted
such violence to tell their experiences. It is intended, therefore, from
the perspective of Cândido (2011) regarding literature as a human right, to
establish a dialogue with Evaristo’s narrative, in order to point out how the
author builds a web of resistance of black female characters by giving them
voice and place in narratives. TO support this objective, this article is based
on black feminist researchers, whose debates point to intersectionality, such
as Gonzalez (1984), Akotirene (2018), Collins (2016), Crenshaw (2002), from
which they if the bibliographic review.
With this reading of the work , the intentionality of writing remains
demonstrated, as a narrative strategy to give voice and visibility to female
characters traditionally silenced and stereotyped by the canon.
Keywords: writing; intersectionality; Conceição Evaristo; black
feminism.
___________________________
* O presente artigo resulta da
adaptação de parte da dissertação “Insubmissas lágrimas de mulheres: narrativas
de resistência e enfrentamento em Conceição Evaristo”, apresentada por esta
autora ao Programa de pós-graduação em Letras - PPG - Letras UFT. Disponível em
http://hdl.handle.net/11612/2815
A obra Vários escritos,
publicada pela Duas Cidades em 1970, reúne ensaios do professor, pesquisador,
sociólogo e crítico literário Antônio Candido. Dividida em duas partes, na
primeira realiza um exercício de crítica em ensaios sobre escritores que
compõem parte do cânone literário, entre os quais Machado de Assis, Oswald de
Andrade, Carlos Drummond, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Na segunda parte
da obra, as temáticas se ampliam para o debate a respeito do nacionalismo, das
classes e dos direitos humanos.
No primeiro ensaio desta segunda parte da obra, Cândido (2011)
discorre acerca do acesso à literatura como direito humano. Nas reflexões
iniciais sobre o direito à literatura, ao falar de como a humanidade é
contraditória, sendo capaz de conviver com a possiblidade de criar e destruir,
a de usufruir e excluir, a de congregar e segregar, nos lança o questionamento em
relação à necessidade da literatura.
Para fundamentar essa tese, o autor considera o termo literatura em
suas mais diversas manifestações, presentes nas mais variadas sociedades e,
portanto, englobando todas as culturas. A literatura, para Cândido, se
apresenta como uma manifestação universal, no sentido de englobar a humanidade
em sua capacidade de fabular, inventar, se desligar da realidade e se religar a
ela mesma a partir de desejos, sonhos, expectativas. Para o autor:
Não há povo e não há homem que possa viver sem
ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de
fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar
as 24 horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho
assegura durante o sono a presença indispensável deste universo,
independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou
poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está
presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo,
história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola
samba carnavalesco ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no
ônibus até a intenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um
romance (Cândido, 2011, p. 176-177).
Cândido (2011) segue afirmando a indispensabilidade da literatura, não
só como componente do cotidiano humano, mas como engrenagem do processo de
humanização, sendo, em suas palavras, uma ferramenta para confirmar o homem em
sua humanidade, pela capacidade que tem de atuar nos níveis consciente e
subconsciente. Longe de ser algo ingênua,
a literatura confirma e nega, propõe e denuncia,
apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a
literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de
negação do Estado de coisas predominantes (Cândido, 2011, p. 178).
Tais reflexões de Cândido (2011) dialogam com Conceição Evaristo em
seu deliberado projeto de construir uma escrevivência, que “em sua concepção
inicial se realiza, como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação
que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado…” (Evaristo, 2020, p. 30).
Seja pela necessidade de fabulação que leva a autora a afirmar que esse projeto
literário parte de experiências suas e de suas iguais, ficcionalizadas nas mais
diversas narrativas. Seja pela denúncia do silenciamento ao qual são submetidas
as personagens negras dentro do sistema literário, bem como pelos
desdobramentos responsáveis por criação e manutenção de estereótipos que
transitam do contexto social para o texto ficcional alicerçados pela violência.
O presente artigo se propõe à análise de como se estabelece o
enfrentamento à violência na construção de personagens femininas da obra Insubmissas lágrimas de mulheres (2011),
em diálogo com vozes das teorias literária e feminista. Esse livro é o quarto
publicado pela autora, em 2011, sendo o primeiro de contos. Composto por treze
narrativas, cujos títulos são os nomes das treze personagens centrais de cada texto,
a presente análise parte da construção narrativa da narradora em seu exercício
de escuta das histórias de violência de cada uma das personagens. Interessa ao
presente artigo, o recorte em torno de como a narradora constrói uma teia de histórias
e resistências às formas de violência experimentadas pelas personagens
femininas, subvertendo, assim a perspectiva canônica na qual personagens
femininas negras estereotipadas sucumbem aos processos de violência,
silenciamento e invisibilidade.
Para fundamentar tal recorte, a leitura parte dos diálogos da obra
analisada com estudos de Dalcastangnè (2008) alinhados às discussões acerca do
feminismo propostas por Gonzalez (1984),
Crenshaw (2002), Akotirene (2018), Collins (2016), observando a necessidade de
literatura como direito humano.
1 A
escrevivência e seus diálogos: uma teia de resistência
Em entrevista concedida à BBC-Brasil, prestes a participar do Salão do
Livro, em Paris-2018, onde lançaria a edição francesa de Insubmissas lágrimas de mulheres, Conceição Evaristo questiona as
dinâmicas que estruturam dificuldades por que passam as mulheres negras no
Brasil, sobretudo no campo literário. Ao ser perguntada acerca de que regras
são a base para que uma escritora negra seja considerada expoente aos 71 anos,
aponta para questões de racismo estrutural que alcançam os corpos de mulheres
negras, forçando-as ao silenciamento e à invisibilização.
Ao longo da entrevista, Evaristo destaca como sua primeira obra, Becos da memória, ficou à espera de
publicação por vinte anos. Mesmo a tendo encaminhado para várias editoras. Nas
palavras da autora:
O texto literário, no caso da autoria negra,
carrega a nossa subjetividade na própria narrativa. A temática negra,
principalmente quando trabalha com identidade negra, não é muito bem aceita.
Quando a temática negra trata do folclore, ou não é tão reivindicativa, aí
interessa. Mas quando questiona as próprias relações raciais no Brasil, é quase
um tema interdito. Principalmente se isso é colocado pela própria autoria negra
(Evaristo, 2018).
A autora segue afirmando a presença da subjetividade presente do
discurso entrecortado pelos marcadores de gênero, raça e classe, como
marcadores de uma violência estrutural, que busca manter silenciadas tais
subjetividades.
Em Insubmissas lágrimas[1],
Evaristo traz uma narrativa de enfrentamento à violência contra personagens
femininas negras, que traduz o cotidiano de opressões por que passam essas mulheres/personagens
invisíveis à sociedade e ao sistema literário. A construção narrativa da obra
se traduz em um exercício de enfrentamento das manifestações de violência, não
como casos isolados, mas como reflexo de um racismo que interseccionaliza as
opressões de gênero, raça e classe.
No livro, personagens negras enfrentam a violência e sobrevivem para
contá-la, transformando-a na matéria necessária para a narradora construir uma
teia de resistência, que conecta cada uma delas à realidade de violência na
qual se encontra inserida a mulher negra brasileira. O exercício da narradora
se constitui em dar voz a essa população de personagens, periféricas e
invisibilizadas pelo cânone. Delcastangné (2008, p. 1), ao tratar das relações
raciais na literatura brasileira contemporânea, afirma que “séculos de racismo
estrutural afastam dos espaços de poder e de produção de discurso”, tanto
personagens quanto narradores negros. Aqui, acrescentamos as autoras negras a
esse rol de excluídos do sistema literário.
No sentido de ampliar as possibilidades de debate, vozes feministas e
literárias se encontram tanto em Conceição Evaristo como em seu livro de contos
Insubmissas lágrimas (2011). A partir
da leitura de narrativas desta obra, analisaremos como se estabelece o
enfrentamento à violência na construção de personagens femininas.
Lélia Gonzalez, no artigo Racismo
e sexismo na cultura brasileira (1984), trata do racismo como sintoma da
neurose cultural do país, que se ampara, entre outras bases, no discurso da
democracia racial. Nessa obra, ao discorrer sobre como os negros são
silenciados, uma vez que havia sempre quem falasse por eles, tratando-os como
incapazes, nos adverte sobre o racismo disseminado no cotidiano brasileiro,
manifestado pela naturalização das opressões, produzindo entre outros
resultados, a inferiorização dos negros:
Exatamente porque temos sido falados,
infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se
fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos
nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.
A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo
de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver
na miséria. Por que? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com
nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal
(Gonzalez, 1984, p. 3).
A pesquisadora chama a atenção para estereótipos impostos à população
negra, classificando seus membros como incapazes, preguiçosos ou violentos.
Enfatiza o modo a partir do qual a sociedade naturaliza a favela como sendo o
lugar do negro, tornando lugar natural aquilo que socialmente se apresenta como
local de exclusão.
Ao tratar especificamente da mulher negra, Gonzalez (1984) observa
que, ao longo do processo histórico, desde a escravidão até a atualidade, a
construção do estereótipo da mulher negra passa de escrava à doméstica,
lavadeira ou à prostituta. Silenciada em sua existência social, segundo a
pesquisadora, a mulher negra surge apenas como um corpo desejado, ora nas
casas, para as experimentações sexuais dos patrões, ora no carnaval, quando
autorizada a ser a rainha.
Em sua prática, Gonzalez antecipa o debate acerca
da interseccionalidade ao questionar o modo como o racismo se encontra interceptado
pelas dimensões de gênero, de classe e orientação sexual, como índices
responsáveis por condições opressoras na vida da população negra.
Ainda na década de 1980, Lélia Gonzalez criticava o monoculturalismo epistêmico dos Estados
Unidos. Para a pesquisadora, ao monopolizar os discursos, tentavam impor o
ideal de unidade do pensamento estadunidense, o que representava o
silenciamento do debate ao sul da América nas comunidades tidas como
periféricas. Como forma de resistência a esse pensamento colonial ao sul das
Américas, Gonzalez se propõe a debater uma epistemologia que abarcasse a
realidade próxima, dedicando-se aos estudos sobre África e América. Critica a
postura missionária das civilizações ocidentais ao norte global, cujas bases
eurocêntricas foram responsáveis por longos processo históricos de violência e
expropriação. Ainda na década de 1980, Gonzalez se propõe a fazer o debate
sobre estruturas de raça, gênero, sexualidade e classe a partir da perspectiva
latinoamericana, portanto em confronto tanto com a hegemonia epistêmica do
norte global, quanto com o colonialismo e o imperialismo.
Ao debater o feminismo, a pesquisadora questiona a invisibilidade das
mulheres negras dentro do movimento feminista. Enfatiza como o feminismo se
baseia em teorias eurocêntricas, excluindo, assim, a realidade latinoamericana
e a experiência de mulheres negras. Ao propor o debate partindo da experiência
dessas mulheres latinoamericanas, as mulheres negras deixam de ser faladas a
partir de e passam a falar por si.
Percebe-se assim um diálogo
entre Gonzalez (1984) e Evaristo (2011), já que
em ambas reside a necessidade de enfrentamento a mecanismos de opressão à
mulher negra. Ao longo de sua trajetória como pesquisadora, Gonzalez se debruça
sobre a crítica a uma epistemologia de bases eurocêntricas que desconsidera
toda uma população americana, silenciando vozes necessárias à construção de
identidades múltiplas. Já Evaristo, em seu projeto de escrevivência faz o
enfrentamento ao sistema literário nacional, cujas bases eurocêntricas e
patriarcais criam e mantêm estereótipos de personagens femininas negras.
No texto introdutório de Insubmissas
lágrimas, escrito em primeira pessoa, há uma afirmação de que as histórias
contadas no livro se confundem com as histórias de quem escreve. “Da voz outra,
faço a minha, as histórias também (Evaristo, 2011, p. 9)”. Já nos contos, a
narradora, que parte em busca de histórias, ao se encontrar com Líbia Moirã e
ser interpelada sobre o interesse em escrever histórias de mulheres, responde:
“Eu invento, Líbia, eu invento! Fale-me algo de você, me dê um mote que eu
invento uma história como sendo a sua […]” (Evaristo, 2011, p. 74). Nos relatos
de violência feitos pelas personagens, percebe-se o entrecruzamento de
opressões, ao confrontarmos os marcadores gênero - raça - classe das mulheres
insubmissas ao destino.
Chegamos, assim, à “articulação metodológica proposta pelas feministas
negras e atualmente chamada de interseccionalidade”, nas palavras de Akotirene
(2018, p. 36). O termo interseccionalidade chega ao meio acadêmico, na década
de 1990, vindo da crítica às leis antidiscriminação, proposta por Kimberlé
Crenshaw, intelectual afroestadunidense, atuante na área do Direito. No
entanto, feministas negras como Sojourner Truth, bell hooks, Lélia Gonzalez e
Sueli Carneiro já trabalhavam com os seus fundamentos ao discutirem como
diversas formas de opressão agiam sobre a mulher negra de forma a mantê-la
silenciada, invisibilizada ou objetificada.
Ao tratar da mulher negra como a “forasteira de dentro” do movimento
feminista, Collins (2016) aponta como um dos temas-chave para o feminismo negro
o que chama de natureza interligada de opressão. Trata de como se encontram as
pesquisadoras negras como forasteiras de dentro, nas pesquisas sociológicas e
de como podiam se beneficiar dessa condição perante a academia. Em relação a
esse tema, afirma que:
A atenção dispensada por feministas negras à
natureza interligada da opressão é significante por duas razões. Em primeiro
lugar, esse ponto de vista muda todo o foco da investigação, partindo de uma
abordagem que tinha como objetivo explicar os elementos de raça, gênero ou
opressão de classe, para outra que pretende determinar quais são os elos entre
esses sistemas. A primeira abordagem prioriza comumente um tipo de opressão
como sendo primária e, em seguida, trata das opressões restantes como variáveis
que fazem parte do sistema que é visto como o mais importante. [...] em
contrapartida, a abordagem mais holística implícita no pensamento feminista negro
trata da interação entre múltiplos sistemas como o objeto de estudo. Em vez de
acrescentar às teorias existentes variáveis anteriormente excluídas, feministas
negras têm como objetivo desenvolver interpretações teóricas da própria
interação em si (Collins, 2016, p. 108).
Nessa perspectiva, não se estabelece a hierarquia entre as opressões
pelas quais passa a mulher negra. Não interessa saber que opressão é a inicial
e quais outras surgem como variáveis desta. Identificadas as opressões, a
partir do lugar social ocupado por essas mulheres, interessa ao feminismo negro
estabelecer as interações entre os sistemas de opressão, a fim de que possam
ser enfrentados.
Acerca da impossibilidade de hierarquização de opressões, Akotirene
afirma, corroborando o pensamento de Collins (2016) que:
Em vez de somar identidades, analisam-se quais
condições estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam
significados subjetivos desses corpos por serem experiências modeladas por e
durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas,
estabilizadas pela matriz de opressão, sob a forma de identidade (Akotirene,
2018, p. 39).
Ao trazer tais considerações para a narrativa analisada, observa-se a
impossibilidade de se somarem marcações de identidade de cada uma das
personagens – mulher, negra, favelada, doméstica, professora, lésbica – no
sentido de hierarquizá-las, mas de buscar as condições estruturais nas quais
esses sujeitos se encontram interseccionados pelas matrizes de opressão.
Portanto, na heterogeneidade de opressões
conectadas pela modernidade, afasta-se a perspectiva de hierarquizar
sofrimento, visto como todo sofrimento estar interceptado pelas estruturas.
Identidades sobressaltam aos olhos ocidentais,
mas a interseccionalidade se refere ao que faremos politicamente com a matriz
de opressão responsável por produzir diferenças, depois enxergá-las como
identidades (Akotirene, 2018, p. 14).
Insubmissas lágrimas pode ser lido como
a possibilidade de resposta de Evaristo (2011) ao questionamento fundante da
interseccionalidade sobre o que fazer politicamente com a matriz opressora que,
no sistema literário nacional, é a responsável por criar e manter estereótipos
de personagens femininas negras. O livro é a materialização do projeto premeditado
de enfrentamento das matrizes de opressão de corpos femininos, que dentro do
sistema literário nacional silencia e invisibiliza não somente personagens
femininas negras, mas suas autoras, não possibilitando, assim, que as
subjetividades desses sujeitos possam compor de forma presente e positiva suas
próprias identidades.
Numa descrição das personagens centrais de cada
um dos contos, todas mulheres, estão presentes as marcações de gênero, raça e
classe como vetores da proposta de enfrentamento do sistema literário e da
própria narrativa de nação, responsáveis pela manutenção de estereótipos da
mulher negra na literatura.
Ao afirmar que premeditou a escrita de Insubmissas lágrimas e criou mulheres
insubmissas ao destino, Conceição Evaristo realiza o exercício de enfrentamento
à matriz de opressão materializada pela violência vivida por cada personagem. A
insubmissão ao destino agiu de modo que essas narrativas não tivessem como
desfecho o estupro, o abandono ou a agressão física. Elas partem dessas manifestações
da violência para estabelecer o contradiscurso.
De personagens silenciadas, invisibilizadas e
periféricas assim tratadas pelo sistema literário, as personagens femininas que
compõem o corpus deste artigo são reorientadas das margens para o centro da
narrativa. Assumem, dessa maneira, as posicionalidades necessárias à
reorientação de significados subjetivos de seus corpos femininos atravessados
pela violência, mas não definidos por ela.
Em Insubmissas lágrimas
estabelece-se uma conexão entre as personagens, mediada pela narradora, que
parte dos relatos de violência experimentados e relatados por cada uma das
mulheres, para estabelecer uma teia de narrativas de insubmissão. São palavras
dessa narradora:
Enquanto Lia Gabriel me narrava a história dela,
a lembrança de Aramides Florença se intrometeu entre nós duas. Não só a de
Aramides, mas as de várias outras mulheres se confundiram em minha mente. [...]
outras deusas, mulheres salvadoras, procurando se desvencilhar da cruz,
avultaram a minha memória. Aramides, Lia, Shirley, Isaltina, Daluz e mais
outras que desfiavam as contas de um infinito rosário de dor (Evaristo, 2011,
p. 81).
Lia, Aramides, Isaltina, Shirley e Daluz são personagens centrais dos
contos aos quais emprestam seus nomes como títulos. Não há entre elas qualquer
relação narrativa, já que são personagens de unidades narrativas distintas. A
teia narrativa é construída pela narradora que, ao transpor o limite da
estrutura do conto, aproximando personagens em suas experiências, estabelece
conexões para o contradiscurso responsável por atacar a subalternização dos
corpos femininos. Nas palavras dessa narradora, as personagens, “elas mesmas, a
partir de seus corpos mulheres, concebem a sua própria ressurreição e persistem
vivendo” (Evaristo, 2011, p. 81).
Desafiando o processo de invisibilidade que se utiliza do espaço
literário e o extrapola para alcançar a narrativa de nação e manter os corpos
femininos invisíveis nos espaços sociais, essas mulheres tomam de volta a
narrativa de seus próprios corpos, ao desfiar o rosário de dor. A ressurreição
concebida a partir dos corpos-mulheres responde ao questionamento de Akotirene
(2018) acerca da reorientação de significados dos corpos femininos segundo as
novas posicionalidades ocupadas por esses corpos.
2 As
insubmissas narrativas: resistir para existir
Assim, temos as seguintes narrativas: “Aramides
Florença” – estuprada diante do filho e abandonada pelo marido; “Natalina
Soledad” – segregada pela família por ser mulher; “Shirley Paixão” – cumpre
pena por salvar a enteada do abuso sexual praticado pelo pai; “Adelha Santana
Limoeiro” – convive com o marido que não aceita o fim da virilidade; “Maria do
Rosário Imaculado dos Santos” – sequestrada e escravizada quando criança;
“Isaltina Campo Belo” – sofre estupro corretivo por ser lésbica; “Mary
Benedita” – se automutila para criar sua
arte; “Mirtes Aparecida Daluz” – cega, convive com a dor pelo companheiro ter
se suicidado; “Líbia Moirã” – atormentada por pesadelos da infância; “Lia
Gabriel” – espancada pelo marido para proteger os filhos; “Rose Dusreis” –
preterida como bailarina por ser negra; “Saura Amarantino” – condenada por ter
entregado a filha ao pai; “Regina Anastácia” – segregada por ser negra e ter se
casado com homem branco.
Em cada uma dessas narrativas se encontram mulheres que se predispõem
a relatar uma dentre tantas experiências de sofrimento. São mulheres comuns –
mães, esposas, professoras, autônomas – que se distanciam do estereótipo da
mulher negra sobre o qual nos fala Evaristo (2005), ao tratar da representação
da mulher negra na literatura.
A representação literária da mulher negra ainda
surge ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou
corpo-objeto de prazer do macho senhor. Interessante observar que determinados
estereótipos de negros/as, veiculados no discurso literário brasileiro, são
encontrados desde o período da literatura colonial (Evaristo, 2005, p. 52).
Em Insubmissas lágrimas, a
narradora estabelece a marcação de raça de modo que fique claro o grupo social
ao qual pertencem as personagens. Tal marcação se apresenta para estabelecer o
lugar de fala e o enfrentamento, como dito por Evaristo, ao passado escravo, ao
corpo-procriação e ao corpo-objeto.
hooks, no ensaio Intelectuais
negras(1995), dirigido às intelectuais negras estadunidenses, elabora uma
perspectiva crítica ao modo como mulheres negras seriam recepcionadas na
academia. Ao longo do texto, destaca o que chama de suposições sexistas sobre
os papéis ditos femininos e como tais suposições colaboram para a manutenção de
estereótipos.
Suposições sexistas sobre papeis femininos
informam expectativas das comunidades negras em relação às negras. Muita gente
negra compartilha dessa ideia defendida por diversos grupos nesta sociedade de
que as mulheres são inerentemente destinadas a servir aos outros com abnegação.
Coletivamente, muitas negras internalizam a ideia de que devem servir e estar
sempre prontas para atender quer queiram quer não a necessidade de outra pessoa
(hooks, 1995, p. 470).
Trata de papéis secundários sobre estigmatização
quanto à capacidade intelectual e de construção teórica e como os papéis
femininos em casa, com filhos e para a família fundamentam essas suposições
sexistas.
Dalcastangnè (2017), ao fazer o recorte de como a
mulher é percebida na literatura brasileira, abordando especificamente o tema
maternidade, afirma:
[...] um dos discursos mais recorrentes sobre as
mulheres é aquele que lhes atribui o papel de mãe, já normatizado e fixado em
torno da noção do instinto materno, que serve para a naturalização dos papéis
de gênero e elimina a ideia do amor como algo a ser construído em uma relação
(Dalcastagnè, 2017, p. 132).
No conto “Saura Amarantino”, percebe-se que tais
suposições sexistas se aplicam também a essa mulher interceptada, tal qual as
intelectuais negras estadunidenses, por estruturas de opressão de gênero, raça
e classe. Viúva ainda jovem, após um relacionamento breve, engravida e decide
por entregar a terceira filha ao pai.
Saura inicia sua conversa com a narradora,
afirmando que todos gritavam ou sussurravam algo a seu respeito por ter entregado
a terceira filha ao pai. Segue seu relato afirmando que tanto entende do amor,
quanto do desprezo que uma mãe é capaz de oferecer a um filho. A decisão de não
permanecer com a filha é tida pela família e pelo grupo social próximo como
algo abominável à condição materna. Com base no relato da personagem, nota-se
que não é aceito como natural a criança ter sido entregue ao pai. A partir daí,
cria-se o discurso de que a criança fora abandonada física e emocionalmente
pela mãe, que deixara de cumprir seu papel materno. Estabelece, assim, uma
contranarrativa diversa daquela social hegemônica para a qual o amor e a
maternidade partem, respectivamente, de concepções essencialista e compulsória.
Kimberlé Crenshaw, ativista dos direitos civis
estadunidense, é referência nos estudos da teoria interseccional, a partir da
qual as identidades sociais sobrepostas se relacionam com as estruturas de
opressão e discriminação. Como parte de suas pesquisas, o feminismo
interseccional faz o recorte acerca de como esses sistemas se sobrepõem para
alcançar e sujeitar mulheres. Segundo a autora:
A interseccionalidade [...] trata especificamente
da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros
sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as
posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a
interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram
opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou
ativos do desempoderamento (Crenshaw, 2002, p. 177).
Nesse sentido, segundo Crenshaw (2002), variados
eixos de poder, como gênero, raça e classe configuram as avenidas estruturantes
do discurso social e político, a partir do qual mulheres como Saura Amarantino
são interceptadas por distintas formas de opressão.
No conto, as escolhas feitas por Saura
desconstroem a narrativa patriarcal burguesa em torno da vida amorosa e sexual
da mulher na condição de viúva. Ao afirmar que não aceita ser julgada como uma
mulher sem sentimentos, porque não foi capaz de inventar amor pela terceira
filha, Saura rasura um discurso opressor, fundado na naturalização do amor
materno. “Não consigo inventar um sentimento em mim, só pra me salvar de
julgamentos alheios” (Evaristo, 2011, p. 104). Em sua fala fica clara sua
posição de enfrentamento à visão essencialista relativa ao modo como deveria
agir diante da maternidade.
Segundo Akotirene (2018, p. 43), “A interseccionalidade é sobre a
identidade da qual participa o racismo interceptado por outras estruturas.”
Estruturas que dão o suporte a que permaneça como verdadeiro o discurso
essencialista do amor materno. A pesquisadora ainda acrescenta que a
interseccionalidade se trata de uma experiência racializada, no sentido de
exigir que os preconceitos, a quem chama de caixinhas particulares, que criam
os obstáculos às lutas de modo global, sejam abandonados. Segue afirmando que
“A interseccionalidade nos mostra mulheres negras posicionadas em avenidas
longe da cisgeneridade branca heteropatriarcal” (Akotirene, 2018, p. 25), que
reforça a naturalização do papel da mulher nascida para viver a maternidade
compulsória. Mulheres negras que, segundo a pesquisadora, se encontram
interceptadas pelos trânsitos das diferenciações, sempre prontos para excluir
dessas mulheres suas identidades e subjetividades complexificadas. A exemplo de
Saura, que confronta as estruturas do heteropatriarcado, passando-lhe a
responsabilidade de cuidar da filha.
Tanto a família, como os demais membros do grupo social próximo à
Saura, nomeiam o ato de entrega da criança ao pai como abandono. Reafirmam,
assim, a naturalização dos papéis de gênero e lançam sobre a mulher o discurso
opressor daquela que não fora capaz de viver o amor incondicional pela filha.
Definem como deve ser a relação de Saura com a maternidade e com amor, como
inerente à condição materna. Em suas palavras finais, Saura Amarantino desabafa
“Só eu sei do meu sentir”, o que nos remete às considerações finais de hooks
sobre como o ativismo de intelectuais negras, diante do patriarcado, as
aproximam de experiências dolorosas.
Muitas vezes o trabalho intelectual leva ao
confronto com duras realidades. Pode nos lembrar que a dominação e a opressão
continuam a moldar as vidas de todos, sobretudo das pessoas negras e mestiças.
Esse trabalho não apenas nos arrasta mais para perto do sofrimento, como nos
faz sofrer (hooks, 1995, p. 477).
No relato de Saura se estabelece o
contra-discurso aos papéis femininos sobre os quais bell hooks (1995) nos fala.
Ao afirmar sua individualidade também em relação aos sentimentos, Saura nos
remete à complexidade que permeia sua decisão de entregar a filha ao pai.
Quando afirma ser incapaz de inventar sentimentos para fugir do julgamento
alheio, Saura enfrenta a narrativa hegemônica alicerçada no discurso
heteropatriarcal. Rompe, assim, o estereótipo do amor materno incondicional e
inescapável, sem, contudo, deixar de transparecer que também sofre pela decisão
tomada. Enfrenta o preconceito vivido por mulheres viúvas diante do exercício
de sua sexualidade. Questiona a ideia de amor como algo a ser construído numa
teia de relacionamentos, que passa pela relação mãe e filho, mas não se encerra
nesse modo reducionista de padronizar a maternidade. Afirma não sentir amor
pela terceira filha e vive a maternidade com seus dois primeiros filhos Idália
e Maurino.
Com isso, a interseccionalidade nos ajuda a
perceber a complexidade dos processos sociais e de gênero que se apresentam na
narrativa ora analisada. Algo possível apenas porque os relatos partem da
própria Saura e revelam um lugar de fala distinto daquele das narrativas
hegemônicas.
Em “Isaltina Campo Belo” enfrenta-se a percepção
de corpo-objeto. Desde a infância se sentia diferente, percebia-se ocupando um
corpo de menina, que não era o seu. Narra o estupro corretivo àquela que
precisava experimentar do homem para descobrir que, sendo negra, nascera para
gostar de sexo. Convidada para o aniversário do amigo de faculdade, a quem
confidenciara sua inquietação por se sentir homem em corpo de mulher, ao chegar
à casa é estuprada por ele e outros cinco amigos desconhecidos, em cumprimento
à promessa feita anteriormente.
Afirmava que eu deveria gostar muito e muito de
homem, apenas não sabia. Se eu ficasse com ele, qualquer dúvida que eu pudesse
ter sobre o sexo entre um homem e uma mulher acabaria. Ele iria me ensinar, me
despertar, me fazer mulher [...] eu não sabia o que responder para ele. Em mim,
eu achava a resposta, mas só pra mim (Evaristo, 2011, p. 55).
De Isaltina, o amigo só queria seu corpo, objeto de desejo e de
ensinamento de como ser mulher, sobretudo ela, uma mulher negra. Percebe-se,
assim, o corpo de Isaltina sendo atravessado pela heterossexualidade
compulsória. Uma necessidade externa à sua vontade, imposta pela experiência do
estupro como remédio para o componente que faltava àquela mulher, o de
experimentar o sexo heterossexual.
O discurso e a prática desse homem perante Isaltina representam o
reforço da heterossexualidade compulsória de que fala Adrienne Rich (2012).
Para a pesquisadora estadunidense, a heterossexualidade deve ser vista como uma
instituição política que retira poderes das mulheres. Ao discutir a heterossexualidade
compulsória, Rich (2012) chama a atenção ao modo como a sociedade, por meio das
instituições de controle se fortalecem cada vez mais, no sentido de estabelecer
o padrão heterossexual.
Acerca de como essas instituições se dirigem às mulheres, Rich afirma
que:
As mensagens dirigidas às mulheres têm sido,
precisamente, as de que nós somos parte da propriedade emocional e sexual dos
homens e que a autonomia e a igualdade das mulheres ameaçam a família, a
religião e o Estado. As instituições nas quais as mulheres são tradicionalmente
controladas - a maternidade em contexto patriarcal, a exploração econômica, a
família nuclear, a heterossexualidade compulsória - têm sido fortalecidas
através da legislação, com um fiat religioso,
pelas mensagens midiáticas e por esforços de censura (Rich, 2012, p. 19).
Aquele homem que pouco sabia sobre Isaltina, já que a conhecia da
faculdade, arrogava para si o direito masculino de invadir o corpo de uma
mulher e de subjugá-la pelo estupro: “E afirmava, com veemência, que tinha
certeza de meu fogo, pois, afinal, eu era uma mulher negra, uma mulher negra”
(Evaristo, 2011, p. 55). A autorização para o estupro se materializa na certeza
que o homem tem sobre o “fogo” da mulher negra. Algo construído socialmente
pelo racismo, pelo patriarcado, pela heteronormatividade e pelo eurocentrismo,
que se encontra sedimentado em parte do sistema literário, em narrativas que
subalternizam e silenciam corpos femininos negros.
Corroborando o pensamento de Rich (2012) sobre o modo como as mulheres
são tomadas por propriedade emocional e sexual dos homens, o que lhes daria o
acesso aos corpos dessas mulheres, Akotirene (2018) nos lembra de que o
androcentrismo da ciência moderna impôs às mulheres um lugar social descrito
como machos castrados, bem como os estereótipos de fracas e mães compulsórias.
A heterossexualidde compulsória autoriza a invasão de corpos e os mantêm
estereotipados em padrões de fragilidade e submissão:
[...] a interseccionalidade permite [...]
criticidade política a fim de compreenderem a fluidez das identidades
subalternas impostas a preconceitos, subordinações de gênero, de classe e raça
e às opressões estruturantes da matriz colonial moderna de onde saem
(Akotirene, 2018, p. 33).
O corpo-objeto, a quem foi imposto o estereótipo da sensualidade a
serviço do homem, desde o período de escravização, passa da negra da senzala à
mulata tornada rainha por um dia para a exploração do corpo sensual. A
representação do corpo da mulher negra como objeto para o usufruto do homem é
atravessada pelo racismo e pelo sexismo, que remonta às relações coloniais nas
quais as escravas, tidas como objetos, ora serviam aos trabalhos braçais no
campo, ora eram violentadas por seus senhores e capatazes. Tais imagens da
mulher negra extrapolaram os relatos históricos do período de escravização e
passaram a figurar os estereótipos literários de um sistema que insiste em
reproduzir modelos do patriarcado europeu.
Ratts (2007), no capítulo “Eu sou Atlântica: transmigração, mulher
negra e auto-estima”, parte de seu trabalho sobre a trajetória de vida de
Beatriz Nascimento, para nos remeter a como, ao longo da história brasileira, a
imagem das mulheres negras foi construída em torno da maternidade e da
submissão.
O autor destaca a atuação de Beatriz Nascimento no enfrentamento e na
desmistificação do amor e da submissão amorosa, a fim de que mulheres não
reproduzissem o comportamento masculino autoritário. Ainda na década de 1980,
os estudos de Nascimento apontavam para a necessidade de enfrentamento das
imagens de controle sobre o corpo feminino. Ratts (2007) chama a atenção para a
sobrecarga de estereótipos que recaem sobre mulheres negras que, como Beatriz
Nascimento, fazem o enfrentamento dessas relações raciais e de gênero.
[...] na literatura sobre relações raciais e de
gênero é notório que o enfrentamento diário de micro-mecanismos do racismo e do
sexismo atingem sobremaneira a saúde mental de mulheres negras.
[...] devem parecer fortes e não demonstrar
sentimentos, e suportar por toda uma vida lugares subalternos de opressão, de
trabalho e de existência sem ousar questioná-los sob o preço de ver recair
sobre si mesmas cargas a mais de estereótipos ou “imagens de controle” (Ratts,
2007, p. 78).
Do sentimento de vergonha e impotência ao alheamento quanto à
gravidez, e ao profundo sentimento de culpa, ao narrar sua dor, Isaltina
entende, anos mais tarde, que não havia nenhum homem dentro de si, mas uma
mulher que podia se “encantar por alguém e esse alguém podia ser uma mulher”
(Evaristo, 2011, p. 57).
Estereotipada no corpo-desejo, afinal era mulher negra; presa à imagem
de controle por não entender seu desejo por outra mulher. Em seu relato, trinta
e cinco anos depois de ocorrido o estupro, fica evidente como Isaltina fora
percebida e se percebia a partir da imagem de corpo-objeto, a ponto de se
questionar se não fora ela mesma a culpada e, portanto, merecedora do estupro.
Questionamento suplantado tão somente porque a narrativa parte da própria
personagem, que fala por si, a partir de si, expondo suas experiências e apropriada
de seu discurso e de sua história.
É por isso que Evaristo (2018) adverte sobre as interdições do texto
literário e da autoria negra, que a fizeram ser considerada expoente da
literatura aos 71 anos, em 2018, mesmo tendo percorrido o caminho editorial
desde a década de 1980. Porque como escritora, busca criar narrativas a partir
da fala de personagens historicamente silenciadas ou estereotipadas, para assim
enfrentar tais mecanismos e estabelecer lugares de fala tanto às personagens
femininas, quanto a ela mesma como escritora negra.
3
Considerações finais
De acordo com Cândido, a literatura como fabulação está presente em
cada um de nós como um componente do cotidiano.
É capaz de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, como também
pode ser instrumento de desmascaramentos sociais, éticos, históricos. Nesse
sentido, a literatura pode ser instrumento para negar espaço a mulheres e
personagens negros no sistema literário por mascarar direitos em favor de um
projeto alinhado com estruturas de opressão que visam criar e manter
estereótipos.
A escrevivência como prática
narrativa da trajetória literária de Conceição Evaristo, representa, assim, a
estratégia narrativa, por meio da qual se estabelece o premeditado enfrentamento
a esse sistema literário. Escritora, narradora e personagens se unem em torno
da escrevivência para enfrentar mecanismos opressores que criaram e mantiveram
personagens femininas presas a estereótipos e a processos narrativos de
silenciamento e invisibilidade.
Em Insubmissas lágrimas, as
narrativas centradas em personagens femininas interceptadas por violências, que
insistem em seguir suas vidas e falar a partir de suas subjetividades,
subvertem a lógica das opressões por resistirem a elas e por seguirem suas
vidas e narrativas. Nesse sentido, Evaristo (2011) dialoga com Cândido (2018)
fazendo da escrevevivência sua estratégia capaz de possibilitar fruição de
narrativas a partir de subjetividades femininas negras e do enfrentamento a
estereótipos.
A escrevivência se configura,
para as narrativas analisadas, como instrumento consciente de desmascaramento
de padrões opressores de gênero, raça, classe e sexualidade dos quais se
utiliza o sistema literário para manter, tanto escritoras quanto personagem
negras, silenciadas e invisibilizadas.
Na construção da imagem dos corpos mulheres que ressurgem e persistem,
há a síntese da proposta de narrativa de enfrentamento ao cânone.
Primeiramente, por não se conformarem, entre outros, aos estereótipos de corpos
negros objetificados. Depois, por ressurgirem a partir desses mesmos corpos,
para persistir vivendo. Suas histórias não se encerram com a manifestação de
violência física ou psicológica, seja do estupro, do abandono afetivo, do
espancamento, da agressão verbal. As experiências com a violência foram
determinantes para as novas posicionalidades dessas personagens, que se
insurgem diante das opressões e que não sucumbem às estruturas opressoras.
No ato premeditado de traçar uma escrevivência, Evaristo (2011)
reafirma Cândido (2011) em sua defesa da literatura como direito humano e,
portanto, direito que abarca a diversidade da humanidade. Nas narrativas
analisadas, ressurgir e persistir representam a resposta política das mulheres
diante da matriz de opressão gravada em seus corpos negros.
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[1] Ao longo deste
artigo, usaremos Insubmissas lágrimas para
nos referirmos à obra Insubmissas
lágrimas de mulheres (2011).