e-ISSN 1984-7246
“Guardador de Lembranças”:
aspectos da memória negra na obra de Oswaldo de Camargo[i]
Ricardo
Silva Ramos de Souza
Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF)
lattes.cnpq.br/0957236705724364
“Guardador de Lembranças”:
aspectos da memória negra na obra de Oswaldo de Camargo
Resumo
Oswaldo
de Camargo começou a publicar literatura em 1958 e, desde então, destaca-se
pela sua longevidade em mais de sessenta anos de atividade literária com uma
obra constituída em diferentes gêneros, apresentando, como uma de suas
características, o cuidado com a memória da história da literatura e das
autorias negras brasileiras. Assim, Camargo publicou antologias de poesia, uma
história da literatura negra brasileira, livros ensaísticos dedicados a autores
negros e também explora esse viés memorialístico na sua ficção. O presente
artigo investiga a importância da memória literária negra e os registros nos
seus livros ensaísticos, de ficção e na antologia de poesia organizada por ele,
relacionando essas obras com a singularidade da vida literária de Oswaldo de
Camargo, capaz de proporcionar as condições possíveis para combater o
esquecimento e investir na presença do negro na literatura brasileira.
Palavras-chave: Oswaldo de Camargo;
autorias negras; memória; literatura brasileira.
“Keeper of Memories”:
aspects of black memory in the work of Oswaldo de Camargo
Abstract
Oswaldo de Camargo began
publishing literature in 1958 and, since then, has stood out for his longevity
in more than sixty years of literary activity with a work consisting of
different genres, presenting, as one of its characteristics, care for the
memory of history of literature and black Brazilian authors. Thus, Camargo
published poetry anthologies, a history of black Brazilian literature, essay
books dedicated to black authors and also explored this memorialistic bias in
his fiction. This article investigates the importance of black literary memory
and the records in his essays, fiction books and the poetry anthology organized
by him, relating these works to the singularity of Oswaldo de Camargo's
literary life, capable of providing the possible conditions to combat oblivion
and invest in the presence of black people in Brazilian literature.
Keywords: Oswaldo de Camargo; black authors; memory; brazilian
literature.
1 Introdução
Quanto a mim, se meus dezenove anos
pudessem falar, assim diriam: que fez de nós, que fez de tudo aquilo com que te
impregnamos?
– Fiz-me guardador de lembranças. Não
homenageio vocês lembrando?
(CAMARGO, 2020, p. 69)
Na noveleta Negro disfarce, o escritor e crítico literário Oswaldo de Camargo
(1936) investe na autoficção para retratar o grande momento de uma instituição
do movimento negro paulista, a Associação Cultural do Negro (ACN), ocorrido em
1958 com as múltiplas atividades organizadas para o chamado “O Ano 70 da
Abolição”. Camargo tinha participação intensa na ACN, pois foi poeta, pianista
nas sessões festivas, dirigiu o departamento cultural e foi redator-chefe da
revista Niger (1960). Na efemeridade supracitada, teve a inclusão de um poema
de sua autoria, “Grito de Angústia”, na edição de estreia dos Cadernos de Cultura Negra – Série Cultura
Negra, publicado em dezembro daquele ano.
Na ACN, ele teve contato com militantes da
imprensa negra e do associativismo negro atuantes desde a década de 1920, caso
de José Correia Leite, entre outros. Esses militantes já tinham experiência
necessária para saber as dificuldades, desafios e impasses para manter uma
organização negra, também traziam a experiência do período ditatorial de Getúlio
Vargas (1937-1945), quando as associações negras e os jornais da imprensa
alternativa foram extintos, desestabilizando aquele núcleo de militantes
(Silva, 2023). Assim, as comemorações do intitulado “O Ano 70 da Abolição”,
organizado pela ACN com outras instituições negras e com o apoio de
intelectuais e políticos paulistas, foram uma forma de mobilização indignada
contra as comemorações oficiais do IV Centenário da cidade de São Paulo
(1554-1954), que excluíram as contribuições de negras e negros para o
desenvolvimento da capital paulista. Nessa efemeridade, de acordo com Mário
Augusto Medeiros da Silva (2023), elaborava-se uma nova narrativa oficial para
a história de São Paulo, destacando o passado “glorioso” dos bandeirantes e a
participação dos imigrantes para o desenvolvimento da cidade.
Essas comemorações oficiais, inseridas no
discurso ideológico do poder dominante, estão relacionadas ao que Lélia
Gonzalez distingue nas noções de consciência e memória. A consciência seria o
lugar do encobrimento, da alienação, do esquecimento e do saber; e a memória —
no caso, a negra — seria o “lugar de inscrições que restituem uma história que
não foi escrita, o lugar de emergência da verdade, dessa verdade que se
estrutura como ficção” (2020, p. 78). Foi na dialética entre a exclusão pela
consciência e a inclusão pela memória que a ACN procurou subverter as
manifestações oficiais com as suas realizações.
Diante desse quadro de exclusão e
esquecimento, velhos militantes negros decidiram criar a Associação Cultural do
Negro em 28 de dezembro de 1954, entretanto, a ACN só ganharia corpo para as
suas atividades a partir de 1956, quando já se discutia a necessidade de
relembrar o septuagésimo aniversário de abolição da escravatura.
Oswaldo de Camargo chega muito jovem à ACN,
perto de completar vinte anos de idade, e vivencia os debates realizados dentro
da Associação sobre uma história do Brasil que não contemplava a participação
de negras e negros, e dos desafios de um pós-abolição de muitas dificuldades
para essa parcela da população na Segunda República (1945-1964). A ACN era,
nesse contexto, um lugar singular, pois reunia políticos e autoridades de São
Paulo, intelectuais como Florestan Fernandes, Alfredo Schmidt e Sérgio Milliet,
jornalistas, historiadores, literatos, além do público negro, como relata
Oswaldo de Camargo:
[...] A história recente do negro
brasileiro é uma história de domésticas. Aquelas meninas lindas estão ali,
quase todas são domésticas. Trabalham em casa de família, raras professoras.
[...] Uma boa parte de negros trabalham em empregos [de] funcionário público.
[...] Você tem que levar em conta que a Associação, ela tem um impasse
tremendo. A intelectualidade, o grupo de intelectuais, era um grupo
minoritário. O grupo mais forte da Associação era o grupo que me levou à
Associação, que é o grupo de convescote, do piquenique, do esporte, que era
mais forte que a Literatura [...] (Silva, 2023, p. 204-205).
O grupo de Literatura citado por Camargo era
formado por ele, Carlos de Assumpção, Eduardo de Oliveira, entre outros, mas
esses três conseguiram, cada um a seu modo, construir uma vida literária, porém
quem atingiu maior longevidade e uma produção mais extensa foi Oswaldo de
Camargo. Mas, a questão, para o nosso interesse neste artigo, é: teria a
proximidade com velhos militantes e a experiência na Associação Cultural do
Negro influenciado o cuidado de Oswaldo de Camargo com a memória do negro
brasileiro, influenciando as suas produções literária e ensaística?
O presente artigo pretende explorar a
importância da memória literária e histórica negra registrada nos seus ensaios
“Pequeno mapa da poesia negra” (1977), O
Negro Escrito (1987), Negro drama –
Ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade (2018); na biografia Lino Guedes – seu tempo e seu perfil
(2016); na organização da antologia A
Razão da Chama (1986); e na ficção Negro
disfarce (2020) e O carro do êxito
(1972, 2023), relacionando essas obras com a singularidade de sua vida
literária no associativismo negro e na imprensa negra, capaz de proporcionar as
condições possíveis para investir na história da literatura negra brasileira,
combatendo, os apagamentos na história brasileira.
2 Memória, lembrança e esquecimento
Oswaldo de Camargo detém um enorme arquivo
pessoal dedicado à cultura negra, o que o possibilitou elaborar A Razão da Chama: Antologia de poetas negros
brasileiros e O Negro Escrito:
Apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira, publicados
em 1986 e 1987, respectivamente. Essas duas obras foram lançadas próximas do
centenário da Abolição em 1988, um período de disputas em torno da memória
nacional, quando o movimento negro denunciava a farsa da abolição e o caráter
festivo das comemorações oficiais. Nesse sentido, as considerações de Michael
Pollak sobre as memórias subterrâneas que surgem em momentos de crise são
importantes, pois
essas lembranças durante tanto tempo
confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não
através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado,
longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil
impotente opõe ao excesso de discursos oficiais (Pollak, 1989, p. 5).
Em razão desse controle do discurso, Michael
Pollak observa que “a memória é um elemento constituinte da identidade”, pois
“a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e
intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos
diversos” (Pollak, 1989, p. 204-205). Essas disputas são, portanto, geradoras
de tensões e concepções dominantes de memória e identidade de uma nação.
Já Hugo Achugar (2006, p. 162-163) considera
os novos agentes sociais essenciais para revisar a história e seus
esquecimentos, pois a abertura para outros pontos de vista “implica reconhecer
os múltiplos cenários da memória nacional” com a presença de novos atores
sociais que procuram reconstruir “uma história própria esquecida pelo discurso
da comunidade hegemônica”. Essa disputa se dá pela negociação que, ao mesmo
tempo, “implica a releitura ou a análise da nação e do nacional, [...] uma
batalha pelo discurso e pela representação [...], uma batalha por ocupar a
posição do que tem/possui a história, do que sabe e do que escolhe”. Uma
disputa que precisa ser negociada, exigida pelos grupos minoritários contra o
autoritarismo dos discursos nacionais hegemônicos e homogêneos.
Oswaldo de Camargo, como o “guardador de
lembranças”, investe contra o esquecimento, mostrando a sua preocupação com o
porvir a partir do que escolhe lembrar. Daí, delimitou os critérios do que
desejaria lembrar para a construção de sua memória.
Nesse contexto explicitado em torno da
memória, lembrança e esquecimento, é imensurável a contribuição das obras
ensaísticas de Oswaldo de Camargo e todo o seu cuidado em elaborar as obras
supracitadas por uma perspectiva diacrônica da presença do negro na literatura
brasileira, contrariando os apagamentos da historiografia literária brasileira
tradicional, que reduz a presença das autorias negras a poucos nomes, casos de
Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa, e a exclusão de toda uma
diversidade de autorias negras. Nesse sentido, Oswaldo de Camargo tem plena
consciência de sua importância em transmitir o que sabe, o que viveu:
Eu sou elo. Então eu digo elo pelo
seguinte: quando eu venho a São Paulo, em 54, eu vou imediatamente, com 19 anos
já, me entrosar com a coletividade negra e de uma maneira diferente, como um
estranho. [...] eu estou vivendo uma cultura de elite branca. Eu me torno um
dos primeiros jornalistas negros, um dos únicos jornalistas negros. Ser revisor
do Estadão, naquela época, era uma proeza. Eu fiz um teste com 19 anos, passei
e me tornei revisor do jornal O Estado de São Paulo. [...] na “Associação
Cultural do Negro”, vou conhecer os grandes líderes da “Frente Negra”, que
fizeram a Imprensa Negra, etc. Eu vou conviver com eles em pé de igualdade.
Eles me respeitam muito porque eu sou jornalista, ex-seminarista, sou pianista,
começo a formar um coral dentro da “Associação Cultural do Negro”. Então, os
velhos que nunca tiveram isso na sua coletividade, nunca tiveram um pianista,
nunca tiveram um seminarista, me encaravam como um filho, um filho bem-vindo,
um filho que estava fazendo coisas novas. Porque, naquele tempo, o que o negro
estava procurando? Respeitabilidade. Quer ser respeitado e o respeito passa por
posturas de bom comportamento branco. Quanto mais ele se igualava ao
comportamento branco, melhor para eles, ele está subindo. E eu estou
representando isso para eles: negro e representando as possibilidades de uma
educação branca. [...] aí está o elo. Devido à idade, eu sou o único que está
nessa situação. [...] quando, em 75 por aí, aparece uma nova geração, [...]
alguns com formação universitária, como Cuti, outros fazendo filosofia e etc.,
eles não têm nada em mãos, nem conhecem o “Protesto”, não têm um livro do Lino
Guedes, não têm nada. Quem vai fornecer tudo para eles? Sou eu quem vai
fornecer. Entende? Aí é o elo. E não somente vai fornecer livros, mas o
testemunho de como foi. [...] eu tenho dito o seguinte: que a única coisa que
me envaidece mesmo, de verdade, é que, de todos que começaram, o que persistiu,
de verdade, fui eu. [...] e, de repente, eu percebo, de fato, que para falar
daquele tempo, se eu não falar, não há quem fale mais. Para escrever sobre
aquele tempo, se eu não escrever, não há quem escreva. Então, eu acabo sendo um
testemunho de carências (Filippo, 2007, p. 135-136).
Nesse longo trecho, Camargo sinaliza várias
questões para o que seriam as carências, pois, evidencia, em seu testemunho, a
dificuldade de acesso a materiais de literatura negra encontrada pela geração
de autorias negras dos anos 1970, a geração da série Cadernos Negros; dificuldade ainda presente em nossos dias,
principalmente no que diz respeito a obras lançadas nas décadas de 1970 e 1980,
de baixa tiragem e circulação restrita.
O depoimento ainda evidencia o que a ACN
percebia em Oswaldo de Camargo, pois o jovem atendia aos objetivos da
instituição quanto à “elevação do elemento negro” na sociedade, como o respeito,
em razão da educação formal refinada dentro dos padrões brancos. José Correia
Leite revela a sua impressão da chegada de Camargo à ACN:
Gostei muito dele. Expusemos quais
eram nossas propostas e mostramos que tínhamos grande necessidade de pessoas com
o seu preparo. [...] além de poeta ele era músico, compunha e tocava bem piano.
Eu fiquei contente porque vi naquilo uma coisa difícil. Não era comum a gente
ver um negro procurando encontrar consigo mesmo. E foi o que eu vi no jovem
Oswaldo de Camargo, um negro que estava procurando se encontrar. Ele parece que
não tinha tido oportunidade de estar no meio negro. No outro meio, sei que ele
não tinha uma boa aceitação. Parece que ele queria estar mesmo com o seu povo,
sua gente, seus irmãos [...] (Cuti, 2007, p. 170-171).
E aí Camargo se posiciona, a partir dessa
vivência, como o elo de gerações, quem transmitiu a sua experiência com os
velhos militantes da ACN, e busca registrar isso em seus depoimentos e obras de
ficção, preenchendo as lacunas dos escassos arquivos daquela instituição e das
décadas de 1920 e 1930.
O escritor e ensaísta Cuti revela como o
autor negro atua como um intelectual nas associações negras, pois:
a figura do escritor acaba sendo
considerada, em especial por alguém que produz ideias e, quase sempre, é
portador de um conhecimento capaz de contribuir para o processo de
conscientização dos associados, além de conferir-lhes o status que a figura do
escritor goza no contexto social brasileiro (Cuti, 2010, p. 115).
Cuti reforça a importância de Camargo e de sua
geração, pois suas “indicações de leitura passam a fazer parte da ativa função
de guiar e sugerir veredas intelectuais aos mais novos” (Cuti, 2010, p. 116).
Assim,
[s]em esses autores, a vontade
coletiva de traçar uma vertente negra na literatura brasileira não teria
logrado êxito, pois essa não é tarefa de escritores isolados, mas daqueles que
contribuem para a criação de uma vida literária, buscando, por meio de atitudes
de aproximação com seus parceiros, o reforço da identidade racial (Cuti, 2010,
p. 123).
Assumindo a função de elo de gerações,
Camargo, em 1977, participa da seção Afro-latino-América do jornal Versus e publica o “Pequeno mapa da
poesia negra”, em que traça um breve panorama da literatura negra no século XX.
Aproxima-se de jovens literatos e, em 1978, o ano 90 da Abolição, participou do
primeiro volume da série Cadernos Negros, ainda prefaciou o livro de
poesia O Arco-íris negro, dos jovens
Éle Semog e José Carlos Limeira, e lançou a novela A descoberta do frio
em 1979. Na década seguinte, foi membro fundador do Quilombhoje Literatura em
1983, e tem uma sequência de publicações: o livro de poesia O estranho (1984); organiza a antologia A Razão da Chama (1986); e o ensaio O Negro Escrito (1987). Os dois últimos livros
serão analisados na seção seguinte.
3 “Aqui há palavras de negros”: A Razão da Chama e O Negro
Escrito
Com a aproximação do centenário da Abolição,
temáticas a favor do negro passaram a ter alguma visibilidade na mídia e nas
artes; a literatura acompanhou esse processo, inclusive a vertente literária
negra, muito em função da postura incisiva das autorias negras ligadas aos Cadernos Negros. Na década de 1980,
houve eventos de grande repercussão com a presença das autorias negras no
“Perfil da Literatura Negra” em 1984 e a “Bienal Nestlé”, em 1986. Houve uma
ação inédita: as três edições do Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros
Brasileiros, realizadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Petrópolis, nos anos de
1985, 1986 e 1987, resultando na publicação de Criação crioula nu elefante branco, com os textos do primeiro
encontro, e Corpo de negro rabo de
brasileiro, edição mimeografada referente ao segundo encontro.
O Quilombhoje lançou Reflexões sobre a literatura afro-brasileira, originado da “Noite
da Literatura Afro-brasileira” durante o III Congresso de Cultura Negra das
Américas, realizado na PUC-SP em 1982, mas somente lançado em 1985. Das
antologias, destaque para Axé,
organização de Paulo Colina e publicada pela Global, em 1982, e Schwarze poesie, organizada pela
acadêmica Moema Parente Augel e publicada pela alemã Edition Diá em edição
bilíngue português-alemão. Por fim, a série Cadernos
Negros mantinha as suas publicações anuais, intercalando poesia e conto, e
alguns poucos livros autorais em edições do autor, em sua maioria.
Frisamos a novidade representada por toda
essa movimentação em torno das autorias negras brasileiras, até então algo
inédito no meio da literatura brasileira. Entretanto, esse contexto não
concretizou a inserção permanente da vertente literária negra brasileira nas
pesquisas acadêmicas nem na crítica literária, muito menos impulsionou a
abertura no mercado editorial tradicional.
Antecipando esse processo, em 1977, Oswaldo
de Camargo traçou, em “Pequeno mapa da poesia negra”, um breve panorama da
poesia negra brasileira no primeiro número da seção Afro-Latino-América do
jornal Versus. Ele demonstra a
necessidade de se debruçar sobre essa produção e expõe os desafios de escrever
uma história por mãos negras (Nascimento, 2021):
Eis que se inicia a fase de nos
descobrirmos. Traçar o mapa, marcar o território de nossa herança poética
desconhecida e esparsa. Tentar fazer o
que jamais se fará oficialmente: a coleta de nossa produção literária, o
nosso clamor espalhado em jornais da imprensa negra marginal, nas revistas
negras, recolher os inéditos, trazê-los, enfim, à tona. Tarefa prolongada e dura, quanto urgente e necessária. Nossa tarefa
(Camargo, 1977, p. 14, grifo nosso).
Camargo é direto e objetivo ao mostrar a
urgência de que os pesquisadores negros precisariam assumir essa tarefa: a de
registrar, catalogar, dar visibilidade à produção poética negra, apesar das
dificuldades de se encontrar material. Menciona, ainda, os rastros de autores
como Cumba Júnior, Gervásio de Morais e Lino Guedes, poetas da primeira metade
do século XX. Sobre Guedes, faz uma afirmação que até hoje é um problema para
nós, as reedições de livros: “Nunca, que saibamos, se reeditaram seus livros e
a história literária simplesmente o ignora” (Camargo, 1977, p. 15).
Destaca a obra de Solano Trindade e de seu
contemporâneo, o poeta Carlos de Assumpção, com quem estreou em publicação no
já citado Cadernos de Cultura da ACN
em 1958. Oswaldo de Camargo aponta uma metodologia para as pesquisas sobre a
história da poesia negra do século XX, que passa pelas associações negras de
São Paulo, como a ACN e o Teatro Experimental do Negro, assim como pela
imprensa negra. O texto inclui uma pequena antologia de poemas do próprio
Camargo, Solano Trindade, Ruy Dias, Domingos Caldas Barbosa, Lino Guedes e Zulu
Nguxi, pseudônimo de Hamilton Cardoso.
Nove anos depois, Oswaldo de Camargo oferecia
ao público leitor e à literatura brasileira a pequena e fundamental A Razão da Chama: antologia de poetas negros
brasileiros, pela Edições GDR, tendo como colaboradores os parceiros
literários Paulo Colina e Abelardo Rodrigues. A antologia traz 22 poetas: “De
Caldas Barbosa a Cruz e Sousa”, com Domingos Caldas Barbosa, Luiz Gama,
Gonçalves Crespo e Cruz e Sousa; e em “De Lino Guedes aos ‘Novíssimos’”, tem-se
Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira, Carlos de Assumpção, Oswaldo
de Camargo, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Geni Mariano Guimarães, Paulo
Colina, José Carlos Limeira, Cuti, Miriam Alves, Abelardo Rodrigues, Éle Semog,
Jônatas Conceição da Silva, Ronald Tutuca (hoje, Ronald Augusto), José Luanga
Barbosa e J. Abílio Ferreira.
Com A
Razão da Chama, Camargo inova ao propor uma leitura diacrônica da poesia de
autoria negra brasileira, revelando uma tradição – a chama – de escrita poética
negra desde o século XVIII, com Domingos Caldas Barbosa, até poetas surgidos
nos anos 1980. Essa publicação determina um passo essencial para o entendimento
da poesia negra no Brasil, com uma seleção de poetas significativos e poemas
que mostram características essenciais das poéticas negras. Assim, podemos
relacionar a angústia da opressão racista sentida por Cruz e Sousa no poema
“Emparedado” e as formas conscientes de lidar com uma estrutura racial adversa
descrita por Éle Semog em “Ponto Histórico”, publicado em 1978. Vemos, com
isso, uma tradição de poesia negra de denúncia do racismo e dos efeitos na
subjetividade da pessoa negra na sociedade brasileira.
Na apresentação da antologia, Camargo traz as
polêmicas da época a respeito de um autor ser negro, o que entende como
fundamental para a interpretação de um mundo:
Haverá – e disso não duvidamos – o
momento, nas Letras pátrias, em que será fastidioso o relembrar da cor, a etnia
do poeta – têm cor o verso, o sentimento? – mas o momento por que nós negros
passamos na Literatura Brasileira exige ainda essa atitude. Por quê? (Camargo,
1986, p. IX).
O organizador reclama do material exíguo para
a antologia, acrescenta uma observação pertinente a respeito da pouca produção
das autorias negras, principalmente no início do século XX, quando expõe a
primeira publicação de Lino Guedes em 1926 e questiona: “Lino Guedes, um
começo, 28 anos após a morte de Cruz e Sousa. Que aconteceu, irmãos, com a
Poesia que o negro devia escrever, durante esses 28 anos!?” (Camargo, 1986, p.
XI). E reivindica o espaço da poesia de autoria negra na história da literatura
brasileira: “que algo nosso – por direito – se retinha, ocultado às margens de
um rio difícil de transpor mas que vamos atravessando [...] amparados e
sustentados por levas de palavras. As nossas palavras” (Camargo, 1986, p. XII).
No ano seguinte, Oswaldo de Camargo produz
aquele que seria o seu maior e mais importante livro direcionado para a crítica
literária e para a história da literatura brasileira com O Negro Escrito: apontamentos sobre a presença do negro na literatura
brasileira. Essa é uma obra de referência para pesquisadores, críticos
literários e leitores em geral, pois, naquela época era o mais amplo estudo
realizado sobre o elemento negro em nossa literatura, com a distinção de ter
sido feito com o ponto de vista de um autor-crítico literário-historiador
negro-brasileiro. Sobre a pesquisa realizada, afirma:
Eu só pude escrever O negro escrito porque comecei a juntar
livros sobre o negro em um tempo em que isso não era comum. Hoje, você vai
procurar certos livros, Horto, por
exemplo, de Auta de Souza, e não vai encontrar em lugar nenhum ou então terá
muita dificuldade, porque há bastante gente pesquisando. Vai à busca do romance
Furundungo, do Souza Carneiro, pai do
Edison Carneiro, e parecerá inincontrável. Trata-se de um romance baiano com um
glossário enorme e maravilhoso, com jargões da época. Houve um tempo em que eu
era um dos poucos pesquisadores dessa literatura. E fui juntando isso devagar,
bem antes da chegada da nova geração, que veio formar como que um coletivo de
autores negros, formado por Paulo Colina, Cuti (Luiz Silva), Jônatas da
Conceição, Adão Ventura, e tantos outros. E os livros que iam surgindo eu ia guardando: textos da Associação
Cultural do Negro, cartas, etc. Na hora em que fui redigir O negro escrito, 90% do material eu já tinha comigo... Como não é
uma literatura de muitos autores, foi possível fazer em curto tempo um livro de
cento e tantas páginas, porque tratei de uma literatura de um segmento muito
empobrecido. Esse empobrecimento – reflexo iniludível da história do negro no
Brasil – se mostra no ato de publicar, caro e difícil. Então, foi possível
fazer o livro com o que tinha em minha biblioteca, com não demoradas pesquisas
e com muita paixão (Camargo, 2011, p. 43, grifo nosso).
Camargo reforça a sua singularidade entre as
autorias negras por meio do cuidado e do viés de historiador apresentado logo
cedo, aproveitando-se das oportunidades que a vida lhe apresentou, assim foi
possível ir adquirindo obras de difícil acesso e pouca circulação. Dessa forma,
esse “guardador de lembranças” foi formando a sua biblioteca, destacando a sua
passagem pela Associação Cultural do Negro, tornando possível a pesquisa para O Negro Escrito, “em curto tempo”, pois
a maioria do material necessário ele já possuía. Ainda realça as carências
dessa produção literária negra, as poucas publicações no passado, em razão do
custo gráfico elevado para a feitura de um livro, e o seu comprometimento ético
e político com a causa negra.
O
Negro Escrito é prefaciado por Paulo Colina, que ressalta
a depuração da bibliografia afro-brasileira consultada, pois Camargo expõe as
diferentes abordagens feitas por críticos e pesquisadores da presença do negro
na literatura em diálogo com os seus apontamentos, muitas vezes incisivos
quanto à qualidade literária do texto. Ainda destaca a necessidade de ter voz e
se fazer ouvir, o grande embate com a crítica literária brasileira:
Onde andava, então, o negro escrito, o escritor negro?
Mudo. Os brancos davam o tom, a cor e a fala do negro. [...]
Por experiência, sei que toda vez que o negro escrito aparece em um debate,
uma conferência, palestra, surgem, de pronto a pergunta: “Mas, por que
literatura negra? Existe? A literatura tem cor?” E sou obrigado a retroceder às
análises que tenho feito desde que me confronto com o mundo. Para chegar à
conclusão de que à sociedade pátria interessa o negro mudo.
Tudo uma questão de voz. Quer ver,
leitor? Quando se questiona a existência de uma literatura negra ou
afro-brasileira – quero dizer, o negro
escrito, o escritor negro se expressando perante e enquanto mundo – existe
aí uma tentativa de negação. Negação dos valores que o negro despe em seu que –
fazer literário. Bom adiantar não ser tema fundamental ao negro a defesa da
ecologia, nem a bolsa de valores ou o privê da moda. Frisar que a sociedade
brasileira se diz democraticamente racial. Essa grife. Que não resiste à nudez
(Colina, 1987, p. 11, grifo próprio).
Colina aborda os embates com a crítica
literária e a academia por meio da exclusão da autoria negra, não dando valor à
sua agência; por conseguinte, Colina critica a postura de democracia racial,
mas quando se tem que falar do negro, este não pode falar por si, a sua voz
teria e deveria ser do outro, o branco. Ou seja, como o prefaciador ironiza,
uma “questão de voz. Ou de tonalidade do discurso” (Colina, 1987, p. 12).
O ensaio de O Negro Escrito é dividido em três seções e mais uma antologia
temática, que não será aqui abordada. Em sua introdução, Camargo traça um
perfil da presença negra desde a Antiguidade – Grécia e Roma –, passando por
Portugal e a chegada dos escravizados ao Brasil.
Na seção seguinte, “Negros e mulatos na
literatura brasileira”, Camargo começa com o que considera “ao que parece – o
primeiro negro a escrever um texto no Brasil”: Henrique Dias, com o sugestivo
título de uma carta enviada ao rei de Portugal, “Sou tratado com pouco
respeito”, de 1º de agosto de 1650. Infere-se, com o domínio da escrita, a
consciência racial e a denúncia da discriminação. Em seguida, Camargo trata,
por diferentes fontes, de Manuel da Silva Alvarenga, Domingos Caldas Barbosa,
Teixeira e Sousa, Paula Brito, Castro Alves, Gonçalves Crespo, Machado de
Assis, Cruz e Sousa, Auta de Souza, entre outros. No início do século XX,
destaque para Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade e traz uma breve
citação a Gervásio de Morais. Ressalta que o negro quase não escreveu ficção,
foi sobretudo poeta, e relaciona essa ausência com a pulsante imprensa negra de
São Paulo da época que não formou prosadores:
[...] que foi que travou a realização
da prosa ficcional, com o conto, a novela? A Imprensa Negra não poderia ter sido uma escola de se escrever
também ficção? Nem lembramos o romance, obra que, por seu porte e meandros,
exige relativa ‘escravidão literária’, esforço grande e contínuo.
O certo é que os contos – excetuando
os do esquecido Gervásio de Morais – não vieram, a novela não veio, o romance
não veio, até 1951, quando saiu das oficinas de “Di Giorgio e Cia.” o livro de Romeu Crusoé, A Maldição de Canaan. Exígua produção, irrisória – repetimos – após
a ficção do mestre Lima Barreto (Camargo, 1987, p. 74, grifo próprio).
A abordagem de Camargo materializa a constatação
da “exígua produção” quanto à ficção. Camargo ainda dedica um breve
levantamento da produção para o teatro, tanto de autoria negra quanto sobre o
negro, e encerra a seção com uma relação de livros com a presença do negro na
literatura brasileira publicados de 1888 a 1952. Para a época, esse esmero em
catalogar e classificar foi fundamental para pesquisas posteriores.
Na última seção, “Autores negros
contemporâneos (Depoimento sobre uma época)”, com rigor, refere-se aos
escritores com “boas intenções”: “Consequência: obra refutada e o menosprezo,
cedo ou tarde, do tempo que a ninguém perdoa. E, afinal, Literatura é alma,
visão ou sociedade inscrita com palavras; o resto são ‘objetos de papel’, até
por vezes interessantes, mas por pouco tempo” (Camargo, 1987, p. 89).
A partir desse ponto, trata dos poetas
surgidos na Associação Cultural do Negro: ele, Carlos de Assumpção, Eduardo de
Oliveira; os quais trata como “elo” – por uma questão cronológica do que ele
considera a “nova poesia negra”, tendo como o seu precursor, o poeta gaúcho
Oliveira Silveira. E, assim, destaca os nomes de Adão Ventura, Éle Semog,
Abelardo Rodrigues, Miriam Alves, Arnaldo Xavier, Cuti, Paulo Colina, Esmeralda
Ribeiro, Ronald Tutuca, entre outros. Camargo ainda cita a relevância dos ensaios
Reflexões sobre a literatura
afro-brasileira, do grupo Quilombhoje, e Criação crioula nu elefante branco, referente ao 1º Encontro de
Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros.
Camargo finaliza os seus apontamentos
exaltando o surgimento da série Cadernos
Negros em 1978, porém destaca o que considerou como “erro”: a inclusão de
autores que privilegiavam o factual em detrimento da poesia já no primeiro
volume. Em alguns participantes da série, para ele, faltou “muitas vezes, tinta
de qualidade no escrever das letras de muitos que lá se imprimiram, faltou
perspectiva de História Literária. Deve-se comemorar. Mas se poderiam soltar
mais fogos...” (Camargo, 1987, p. 109). Por fim, Oswaldo de Camargo incluiu
duas relações de livros com temática negra: uma de poesia; outra, de ficção e
teatro. Mais uma preciosidade para a época.
O
Negro Escrito é uma fonte de enorme aprendizado, além de
possibilitar a apreciação sobre a crítica de Oswaldo de Camargo a seus pares e
a contextualização histórica realizada por ele. Esse livro e A Razão da Chama revelam diferentes
aspectos e dicções das autorias negras desde o século XVII, sendo obras
valiosas para consultarmos a história da produção literária negra, contada por
quem a vive intensamente e, desde cedo, teve a preocupação de reunir, arquivar
e catalogar esses conteúdos. Com isso, Oswaldo de Camargo expõe o seu esmero
pela literatura produzida pelas autorias negras, e o seu rigor e compromisso
ético e político com a história da literatura negra brasileira.
4 O retorno à crítica e à história: Lino Guedes e Mário de
Andrade
Na segunda década do século XXI, Oswaldo de
Camargo lança dois ensaios sobre os escritores Lino Guedes e Mário de Andrade.
Publicados pela paulistana Ciclo Contínuo Editorial, Lino Guedes – seu tempo e seu perfil (2016) e Negro drama – ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade (2018),
o guardador de lembranças retorna à primeira metade do século XX para retomar a
sua veia crítica e de historiador.
Lino
Guedes – seu tempo e seu perfil integra a Coleção
Con_textura Negra, dirigida pelo editor Marciano Ventura, e traz um perfil
bastante generoso, elucidativo e crítico da obra do paulista Lino Pinto Guedes.
Nascido em Socorro (SP) no dia 24 de junho de 1897, Guedes foi escritor de
ensaios, teatro e principalmente poesia, publicando, até a sua morte em 4 de
março de 1951, treze livros autorais; um feito notável para uma autoria negra
dessa época. Foi, também, jornalista dos mais atuantes da imprensa negra
durante as décadas de 1920 e 1930.
Nessa pequena obra, Oswaldo de Camargo traça
o perfil biográfico de Lino Guedes, sua relação com a imprensa negra e o
associativismo negro do início do século XX, analisa poemas e ensaios, recorre
à fortuna crítica da época sobre esse autor e ainda realiza uma digressão ao
abordar o precursor da imprensa negra, o multifacetado Francisco de Paula
Brito, e Arlindo Veiga dos Santos, da Frente Negra Brasileira (1931-1937). Com
essas menções, Camargo ajuda a estimular a curiosidade de leitores e
pesquisadores em torno desses nomes.
Sobre a relevância de Lino Guedes para a
literatura brasileira, Oswaldo de Camargo faz a seguinte abordagem:
Lino Guedes, se o lembramos hoje, é
porque foi tão somente Lino Guedes. E, para ser Lino Guedes, escolheu, no jogo
do interesse literário, com quem queria e com quem devia ficar. Em vez de com
jovens “extravagantes”, como Mário e Oswald, a ponderação de remanescentes da
“boa escrita”, como Coelho Neto, João Ribeiro, Silveira Bueno, que o apreciaram
em cartas e prefácios.
E reexpomos: Lino Guedes e a imprensa
feita por negros, ativíssima no seu tempo, foram representativos do meio social
em que surgiram e atuaram. O Movimento de 22 veio para quebrar, demolir, zombar
dos figurões, refazer a mentalidade gasta; os movimentos negros, seus líderes,
seus poetas, sua imprensa – sabe-se – não tinham nada para quebrar, mas tudo
ainda por fazer. O negro passou ao lado do que não lhe interessava; passou ao
lado do Movimento de 1922. Não era aquele o caminho de subida, a subida da
coletividade negra, ao menos a de São Paulo (Camargo, 2016, p. 32-33).
Detentor de uma poesia simples, direcionada e
lida para um público negro iletrado, em sua maioria, que frequentava as
associações negras, Lino Guedes passou longe das vanguardas modernistas, em que
o negro objeto inspirou o negrismo, porém, Guedes marca a sua relevância “pela
sua atitude pró elevação do elemento negro brasileiro” em sua poesia, sendo,
por fim, um registro histórico ao trazer em seus livros, “um momento crucial da
coletividade negra pós-abolição” (Camargo, 2016, p. 51-52).
Já o ensaio Negro drama: Ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade,
publicado em 2018, contém prefácio da Drª Maria Nazareth Soares Fonseca e, como
anexos, o ensaio “A superstição da cor preta”, escrito em 1938, e uma seleta de
poemas do modernista abrangendo a questão racial. O ensaio inspira-se no artigo
“A superstição da cor preta”, divulgado na revista Publicações Médicas, nº C – Ano IX, junho-julho de 1938. Nesse
artigo, Mário de Andrade propõe-se a analisar os usos do termo “negro” para se
referir a pessoas negras ou mestiças, além do seu uso “infeliz”, discriminador
e preconceituoso. Daí, Oswaldo de Camargo apresenta uma investigação
transdisciplinar para mostrar os conflitos do modernista Mário de Andrade com o
seu pertencimento racial; investe em 26 breves capítulos para abordar o
contexto histórico no qual o modernista estava inserido, escora-se em
diferentes fontes da história, da antropologia, da sociologia e da crítica
literária para investigar os impasses de Andrade diante de ser negro ou não.
Com um discurso envolvente, muito bem
fundamentado e rico em exemplos, Camargo trata a maneira como a sociedade
brasileira lidava com intelectuais e literatos negros e/ou mestiços no século
XIX e no pós-abolição, principalmente no período em que Mário de Andrade viveu.
Nessa perspectiva, o autor expõe as formas conflituosas como Machado de Assis,
Francisco Otaviano, Basílio da Gama e Gonçalves Dias eram recepcionados em uma
sociedade que valorizava a brancura, marcada pela escravidão. Como exemplo,
Paula Brito teve sua origem racial “desviada” por H. Garnier em 1905, que o
descreve como “homem de cor tisnada como um califa dos contos árabes”,
prontamente respondido por Camargo como um “sutil disfarce para não o apresentar
como mulato ou preto, o que não casava com sua visível ascensão social no Rio
de Janeiro em que se tornou – pode-se afirmar – o primeiro empresário negro do
País” (Camargo, 2018, p. 33). Camargo reitera, com ironia, a “cor tisnada” de
Paula Brito e remete a Mário de Andrade, “no olhar-se a si mesmo racialmente,
marca-se como de ‘cor duvidosa’” (Camargo, 2018, p. 33).
Ele ainda investiga as formas populares ou
pejorativas como os negros eram chamados no tempo de Mário de Andrade.
Valendo-se desse momento, alia, em torno do vocábulo “getulino”, Luiz Gama,
Lino Guedes e a imprensa negra para buscar a origem do termo. “Getulino”, assim
como “Afro”, era um pseudônimo de Luiz Gama, o qual Camargo compreende como o
primeiro poeta a evidenciar a identidade negra na literatura brasileira. Daí,
Camargo discorre sobre os seus pseudônimos e demonstra como o vocábulo getulino
passou despercebido pela crítica, mas não passaria por um intelectual negro:
De Afro se deduz facilmente: Africano,
mas Getulino passou despercebido em todas as biografias de Gama [...]. Aclara
esse pseudônimo a hipótese de Gama, autodidata ferrenho, que chegara a
conhecimentos amplos de Mitologia, de arte poética e de domínio da técnica do
verso, ter descoberto Getúlia (daí a derivação “getulino”) com suas leituras
sobre mitos e histórias de deuses e heróis da antiguidade. Getúlia situava-se
na África, e é referida na Eneida de Virgílio. Releva notar que Eneida, poema
dos mais amados e influentes da cultura ocidental, foi leitura quase que obrigatória
dos poetas de língua portuguesa dos séculos XVII, XVII e XIX. Deve-se, então,
reter: Getúlia, espaço africano na mitologia grega; no segundo século depois de
Cristo, nome de uma região onde vivem os gétulos (gente de tez tisnada), que
oporá firme resistência ao domínio romano (Camargo, 2018, p. 26).
Já na imprensa negra da década de 1920, Getulino foi o título de um periódico da
imprensa negra, tendo como editor, Lino Guedes, que, conforme Camargo sinaliza,
foi utilizado como sinônimo de pessoas pretas no poema “Dedicatória”, de
Guedes, no livro Negro preto cor da noite
(1936): “O que aqui está escrito/ não conseguirá saber/ porque ninguém sabe
ler./ Isso muito desconsola,/ oh, getulina pachola,/ que transforma o velho
Piques/ na estranha zona dos chics”. A partir desse exemplo, segundo Camargo,
getulino, no contexto do pós-abolição seria “coletivo de gente de cor, negrada,
quando não gentalha preta...” ou “homem de cor, ‘patrício’” (Camargo, 2018, p.
41).
Ele ainda resgata outra referência a getulino
no prefácio de Judas Isgorogota para O
Canto do Cisne Preto, livro de poesia de Lino Guedes publicado em 1927: “O Canto do Cisne Preto é um ensaio de
literatura negra; daí, este é o primeiro livro intrinsicamente getulino que se
faz no Brasil. Virtude esta bastante, convenhamos, para canonizar o autor no
rol dos iniciadores” (Guedes, 1927, p. 3 apud
Camargo, 2018, p. 41). Ressaltamos que esses livros de Lino Guedes são raros;
Camargo é um dos poucos a ter essas obras.
Ele encerra essa abordagem expondo as
relações de Mário de Andrade com os intelectuais e ativistas da imprensa negra
e do associativismo negro; inclui, no livro, uma foto com Fernando Góes e
Francisco Lucrécio, militantes da Frente Negra Brasileira. Daí, Camargo lança a
hipótese de Andrade ter sido identificado ou chamado como getulino:
Mário - verifica-se por vários poemas
seus e contos – era um amoroso caminhador da Pauliceia. É viável, então, que
tenha ouvido em suas andanças por ruas, esquinas ou becos por onde passasse, a
palavra getulino, dirigida coloquialmente a ‘irmãos de raça’.
Alguma vez aplicada a ele?
Impossível saber (Camargo, 2018, p.
43).
Oswaldo de Camargo nos mostra como Mário de
Andrade desviava-se de questões referentes ao seu pertencimento racial, ainda
que se aproximasse de militantes negros como Francisco Lucrécio, ex-integrante
da Frente Negra Brasileira:
[...] na época surgiu, depois do
Movimento 22, o Movimento Pau-Brasil, o petróleo é nosso, o movimento
nacionalista. E a Frente fazia parte desse movimento, junto com intelectuais
brancos; entrosavam-se muito bem conosco, embora o Mário de Andrade sempre
tenha se escondido. E ele constantemente era abordado. Ele chegou a me dizer:
‘Falam que eu sou negro’. Perguntei: ‘O que responde?’; ‘Eu digo: vou passando
muito bem, obrigado.’ Não assumia (Barbosa, 1998, p. 21 apud Camargo, 2018, p. 31).
E na poesia? Como Mário de Andrade se
posicionava? Oswaldo de Camargo utiliza o exemplo do poema “Eu sou
trezentos...”: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,/ Mas um dia afinal
eu toparei comigo.../ Tenhamos paciência, andorinhas curtas,/ Só o esquecimento
é que condensa/ E então minha alma servirá de abrigo” (Camargo, 2018, p. 48).
Sem julgamentos, o ensaísta constata que “procurar o literato negro em Mário de
Andrade é debruçar-se sobre um dos trezentos e cinquenta que ele diz ser e
deparar-se com a necessidade de imaginar outros, insuspeitados...” (Camargo,
2018, p. 49).
Assim, a partir de um artigo de Mário de
Andrade, publicado em 1938, em que discute as discriminações e preconceitos a
negros na sociedade brasileira, Oswaldo de Camargo propõe uma investigação,
ainda que breve, mas rica em referências e na metodologia transdisciplinar para
relacionar a indefinição identitária do poeta modernista com aspectos da
literatura, da imprensa e do associativismo negros e seus agentes do século XIX
e contemporâneos a ele como uma estratégia para, sem julgamentos à postura de
Andrade, inseri-lo como um autor e intelectual negro, fazendo de Negro drama: Ao redor da cor duvidosa de Mário
de Andrade uma abordagem original.
5 A história literária negra e do associativismo negro na ficção
camarguiana
Desde o livro O Carro do Êxito, de 1972, que Oswaldo de Camargo utiliza a
autoficção, ou alterficção, como integrante de seu projeto ficcional. Nessa
perspectiva, o autor vem trabalhando nos seus contos, novelas e noveletas
aspectos inerentes à história literária negra brasileira e, por conseguinte, à
presença da população negra na história brasileira, tanto por personalidades
como por eventos com protagonismo negro.
Os mais interessantes momentos da prosa
ficcional, para os objetivos deste artigo, encontram-se nos textos em que
Camargo se inspira em sua experiência pessoal e bagagem cultural para recriar
passagens do associativismo negro, principalmente na Associação Cultural do
Negro (ACN), quando ele surgiu para a literatura.
Na noveleta Negro disfarce, publicada pela Ciclo Contínuo em 2020, Camargo cria
a sua narrativa a partir do manifesto “O Ano 70 da Abolição” divulgado pela ACN
em 1958. Com o apoio de diferentes instituições negras, o manifesto procurar
agregar o maior número possível de instituições, políticos e intelectuais para
as comemorações do septuagésimo aniversário de abolição da escravatura. O livro
trata do entusiasmo do narrador Benedito com a intensa movimentação de negras e
negros, políticos e intelectuais na ACN e no salão literário do Dr. Brasílio.
Ao nomear um narrador, isso já seria um disfarce do autor, pois, com essa
estratégia narrativa Camargo rompe com a relação fechada
autor-narrador-personagem, formulada por Serge Doubrovsky (1977) para a
autoficção, e assim configurando-se em um outro.
Nesse salão literário, temos perspectivas
diferentes sobre o momento da ACN e suas conquistas em prol da coletividade
negra, representadas nos personagens Benedito, Deodato e Dr. Brasílio. Este, um
velho militante negro muito bem-sucedido, de elevada cultura e empolgado com o
momento da ACN; já Deodato é um jovem também muito bem-sucedido, de refinada
educação, mas de origem pobre e pessimista com os rumos do movimento negro. As
discussões tensas entre essas três personagens dão a tônica dessa noveleta,
demonstrando um painel de contradições e disputas entre os indivíduos da
militância negra.
Camargo explora a recriação até mesmo de si,
multiplicando-se em alteridades: como Benedito, narrador-personagem;
assemelha-se a Deodato, pela erudição, pelo apreço à música erudita e também
por ser escritor; há, ainda, o pianista Alcebíades Camargo, função exercida por
Oswaldo de Camargo na ACN; e Leonardo Bravo é um dos poetas da ACN, que Deodato
cita versos de “Grito de Angústia”, na noveleta atribuída àquele poeta, mas, na
verdade, é um poema de Oswaldo de Camargo. O autor, na sua reinvenção de si em
outros, faz com que Leonardo Bravo seja admirado por Benedito, porém seja
tratado com indiferença por Deodato. Trata-se de uma ousadia e de liberdade
narrativa que enquadramos não como uma autoficção, mas sim como uma alterficção
(Nascimento, 2017); uma alterficção negra que esgarça as fronteiras do eu real
e dos eus imaginados inseridos em um momento histórico único da Associação
Cultural do Negro.
Em Negro
disfarce, a ficcionalização de si é uma constante diante de fatos
verificáveis e de diferentes menções à história do movimento negro e da literatura
negra. Com habilidade, o narrador camarguiano utiliza a fragmentação e as
lacunas da memória para relembrar o passado e demonstrar a curiosidade que
possibilitou a coleta de dados, a formação de arquivo e a memória privilegiada
desse passado na Associação Cultural do Negro para enumerar poetas, associações
e periódicos da imprensa negra:
Essa, a minha aventura; ouvir: meu
destino.
Procurei, na época, no Ano 70, ouvir a
muitos. [...]
Quantas vezes, ansioso de saber, saí,
domingos frios de São Paulo, rumo à casa de antigos lutadores, vários da Frente
Negra.
Remendar, com desconhecidos dados, a
história cultural do negro em São Paulo, foi meu intento. [...] importunei quem
tivesse jornais antigos, revistas, e, preso a malcontidas emoções, percorri as
colunas de Palmares, Zumbi da Casa Verde, O Novo Horizonte... Deparei-me, então,
com poemas iniciais de Lino Guedes, ali poeta tateante; Leonardo Bravo,
principiando; Cumba Júnior, de cueiros na Literatura.
*
Saí dessas “imaginações” (Camargo,
2020, p. 40-41, grifo próprio).
Já no livro de contos O Carro do Êxito, sua estreia na ficção, em 1972, Oswaldo de
Camargo não foi tão transgressor quanto em Negro
disfarce. Na edição mais recente, de 2023, os contos recriam passagens
vivenciadas por ele nas décadas de 1930 a 1970, conforme nota do autor
assumindo a autoficção como estratégia narrativa: “momentos e circunstâncias do
percurso da vida do autor inseridos na ficção” (Camargo, 2023, p. 17).
O conto “Niger” é um exemplo da autoficção
camarguiana e como a ficcionalização de si nos traz elementos do cotidiano do
movimento negro na década de 1960. Niger
– Órgão informativo da coletividade negra paulistana teve apenas quatro
edições em 1960, mas sua curta existência registrou fatos marcantes, como a visita
da escritora Carolina Maria de Jesus à sede da ACN quando do lançamento de seu
livro Quarto de Despejo e, em outra
edição, celebrava a posse de Patrick Lumumba, primeiro-ministro do Congo, país
recém-libertado da colonização belga.
O conto se inicia com o narrador onisciente
se apresentando: “Sou um dos rapazes que escrevem para o Niger, órgão informativo da coletividade negra paulistana”
(Camargo, 2023, 48); titular da coluna “Sociedade de Ébano”, responsável por
registrar as festividades como casamentos, aniversários e premiações da
comunidade negra, fazendo-o frequentar os clubes negros paulistanos, trajado
com um “príncipe de gales” para representar o Niger, e dentro do respeito que o elemento negro deveria passar
para a sociedade, conforme apregoado pela ACN, e sendo conhecido como o
“Ibrahim Sued[1]
crioulo” (Camargo, 2023, p. 51). O narrador revela o seu cotidiano para criar a
coluna até ter uma surpresa quando vai entregar o seu material ao
redator-chefe, aqui chamado de Firmino Alves:
– Põe no lixo!
Não entendi o que ele falou, cheguei
mais perto, segurando o meu trabalho, mas ele, mais uma vez, antes que eu
abrisse a boca:
– Põe no lixo!
Então entendi que nem “Sociedade de
Ébano” nem o resto do Niger iam sair
mais. Quase chorei de desespero, pois tanto caprichei e agora vem em cima de
nós essa desgraça.
Hoje estou sem rumo, derruído. Se eu
pudesse, eu sumia de São Paulo, essa paisagem podre! [...].
Dei azar com o Niger, dei azar! (Camargo, 2023, p. 51).
Essas decepções com a efemeridade dos
periódicos da imprensa negra era algo bem comum; em razão da precariedade
econômica, a regularidade dos periódicos não era cumprida, os patrocinadores
rareavam e ainda havia a falta de engajamento de muitas das pessoas envolvidas.
Esses eram alguns dos motivos para a brevidade desses periódicos. O conto de
Camargo retrata a desilusão de seus participantes. Seria a dele?
O conto “Família” traz outro ponto de vista
desses periódicos. Nele, dois velhos militantes estão discutindo a
possibilidade de fusão de Niger e do
jornal Novo Horizonte, este já com
quase dez anos de existência, ainda que de periodicidade irregular; trata
também das disputas entre os grupos negros que comandam esses periódicos. O conto mostra que as dificuldades para manter
a publicação não eram uma exclusividade desses dois periódicos: “O Ébano apodreceu, o Redenção há três meses que não sai” (Camargo, 2023, p. 92). Para a
felicidade de todos, surge um apoiador para concretizar a fusão Novo Horizonte-Niger, assim retratada
pelo narrador nas tradicionais reuniões dominicais:
[...] sento-me e escuto o que
discutem. E suas palavras me extasiam. Acompanho a mão do Ovídio, traçando no
ar os planos do renovado jornal, com salvadora parceria. Acompanho sua mão
grossa, os dedos curtos, apontando no mapa da cidade extenso na parede os
bairros de maior concentração de povo negro (Camargo, 2023, p. 93).
Porém, como as realizações para essa
coletividade negra são repletas de obstáculos, segue o desfecho dessa parceria:
Agora estou sentado em frente do
Ovídio. Cheiro o seu suor e apalpo, com pena, o motivo do seu silêncio.
Jacirinha foi ao Serenaides Club com o noivo. Ninguém apareceu [...]. Olho os
dedos do Ovídio, breves, grosseiros. Ovídio ronca. Por um momento abre os olhos
e sorri, mostrando compreensão, como a dizer que as coisas são assim mesmo
(Camargo, 2023, p. 94).
O desencanto se apodera da cena, as pessoas
desaparecem, o que materializa o silêncio; a rotina deve continuar. A postura
passiva de Ovídio, descrita pelo narrador, registra, de forma seca, a
fragilidade dos projetos dessa coletividade. Nesse ponto, a autoficção
camarguiana retrata o que foi a triste realidade da imprensa negra durante a
Segunda República, como constatam Silva (2023) e Domingues (2020), apesar de
ter existido uma quantidade considerável de periódicos, conforme pesquisa de
Oliveira (2021).
Esta breve amostra procurou demonstrar como
Oswaldo de Camargo apresenta a história da presença negra em São Paulo na sua
ficção, por meio da autoficção e da alterficção, valendo-se de seu testemunho
para recriar passagens marcantes de uma parte da coletividade negra paulistana.
Trata-se de um projeto literário vigoroso e de extrema criatividade e
originalidade no panorama das autorias negras e essencial para a literatura
brasileira.
6 Considerações finais
Procuramos trazer nesses breves apontamentos
a atuação de Oswaldo de Camargo como “guardador de lembranças”, alcunha
registrada pelo autor na noveleta Negro
disfarce, pois compreendemos que essa imagem está inserida no seu projeto
estético, ético e político, favorecendo as diferentes alteridades de produtor
de textos, tais como o literato, o crítico literário, o biógrafo, o historiador
e o jornalista, ou seja, um intelectual negro de múltiplas abordagens em prol
de sua memória individual e da memória coletiva negra, praticamente esquecida
pelas narrativas da história oficial.
Daí a importância de seu testemunho
registrado em diferentes gêneros textuais, como exploramos neste artigo: o
ensaísta de O Negro escrito que alinha
o crítico literário rigoroso com o historiador da presença do negro na
literatura brasileira, mas com ênfase nas autorias negras; o organizador de
antologia com uma visão diacrônica para a poesia das autorias negras em A Razão da Chama; a sua colaboração, já
como o “elo de gerações” para a imprensa negra ao realizar um brevíssimo
levantamento em “Pequeno mapa da poesia negra” na seção Afro-Latino América do
jornal Versus; o biógrafo capaz de
atrelar aos biografados Lino Guedes e Mário de Andrade personalidades negras do
século XIX e do pós-abolição, assim como o associativismo negro e a imprensa
negra em fontes de pesquisa amplas e, muitas vezes, raras.
Nesse sentido, destaca-se a sua abordagem
transdisciplinar para a identidade racial de Mário de Andrade, aprofundando
questões sobre a “cor duvidosa” desse ícone da literatura brasileira. Por fim,
a originalidade do projeto (auto/alter)ficcional de Oswaldo de Camargo para
mesclar, a partir de suas vivências, a história literária negra, o
associativismo negro e a imprensa negra, com estratégias narrativas que
surpreendem o público leitor quando se depara com a reinvenção de si em outros,
como em Negro disfarce, e nas
diferentes passagens que registram as dificuldades para manutenção dos
periódicos negros na década de 1960 nos contos de O Carro do Êxito.
A singularidade de sua história de vida,
quando lhe apresentava enormes desafios na infância e adolescência,
proporcionou oportunidades, as quais Oswaldo de Camargo soube aproveitar,
construindo uma trajetória em meio a velhos intelectuais negros e intelectuais
não negros, como Florestan Fernandes e Sérgio Milliet, fazendo da Associação
Cultural do Negro o complemento de sua formação educacional em seminários
católicos. A ACN sinalizou caminhos, incentivando a sua produção literária,
inserindo-o nos periódicos da imprensa negra e, principalmente, mostrando ao
jovem Oswaldo de Camargo, em meio à efervescência do “Ano 70 da Abolição”, as
fragilidades do movimento social negro, assim como as barreiras criadas pelo
racismo para aquela coletividade. Inferimos que essa vivência e esse contexto
foram fundamentais para que Camargo criasse a sensibilidade, desde jovem, para
catalogar documentos e adquirir obras a respeito da coletividade negra, e
também de ter a curiosidade, a humildade para aprender com e ouvir os mais
velhos, os militantes remanescentes da Frente Negra Brasileira e da imprensa
negra.
Com isso, ele foi desenvolvendo um acervo
particular que passou a integrar os seus projetos literários e ensaísticos,
cultivando a sua memória e a memória da coletividade negra, materializando um
compromisso estético, ético e político contra o silêncio, o esquecimento e o
apagamento do elemento negro na história brasileira. A obra de Oswaldo de
Camargo vence, com persistência e resistência, a precariedade e a carência que
insistem em acompanhar a nossa coletividade negra.
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[1] Famoso colunista social
do Rio de Janeiro, durante anos assinou uma coluna no jornal carioca O Globo.
[i] Artigo recebido em 15/09/2023
Artigo aprovado em 10/10/2024
Fonte de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES)