e-ISSN 1984-7246
Escrevivência, lugar de fala e
autoetnografia: a importância das pesquisas antirracistas[i]
Flavio
Fortunato Cardoso[ii]
Fundação Universidade Regional de
Blumenau (FURB)
Blumenau - SC, Brasil
lattes.cnpq.br/4324509813301120
Lilian
Blanck de Oliveira[iii]
Fundação Universidade Regional de
Blumenau (FURB)
Blumenau - SC, Brasil
lattes.cnpq.br/2060996038464074
Escrevivência: sentidos na obra
evaristiana e modos de viver a pesquisa em educação
Resumo
Um dos aspectos da colonialidade do saber é
subalternizar conhecimentos e sabedorias construindo uma hierarquização do
conhecimento. Na tentativa de problematizar e socializar determinados temas em
seus termos e conceitos podemos, por vezes, os generalizar e ou universalizar
olvidando suas singularidades e origens, tirando de grupos historicamente
subalternizados o direito ao lugar de fala e de enunciação. Isso se dá quando
nossa abertura para o diverso e o diferente está alicerçada em uma perspectiva
multicultural diferencialista e/ou assimilacionista. O objetivo deste ensaio é
perceber como, na busca de nos tornarmos pesquisadores/as antirracistas,
podemos esvaziar certos sentidos e sensações de termos e/ou conceitos os
retirando dos seus contextos de origem, universalizando o específico e
fortalecendo o racismo epistêmico. Utilizamos o método qualitativo com ênfase
na revisão bibliográfica e buscamos identificar possíveis equívocos no
entendimento e utilização de conceitos como: Escrevivência (Evaristo, 2020) e
Lugar de fala (Ribeiro, 2019). A problemática na utilização desses conceitos
nos encaminha a pesquisas sobre o método autoetnográfico. Situado entre os
métodos de pesquisa participantes, a autoetnografia possibilita a aproximação
do(a) pesquisador(a) com o sujeito/território de pesquisa auxiliando-o(a) a
lidar com seus próprios impulsos, sentimentos e emoções em relação ao
objeto/sujeito de pesquisa e sua própria cultura. Uma investigação de
perspectiva autoetnográfica se apresenta como um lugar de fala para
pesquisadores/as, que, conscientes das exigências do caminhar em áreas de
fronteira cultural utilizando as contribuições de pensadores(as) imersos nas
temáticas e contextos em estudo; orientação metodológica cultural;
autobiográfica na interpretação dos conteúdos acessados, continuam no exercício
de letramento racial.
Palavras-chave: escrevivência; lugar
de fala; autoetnografia.
Writinscreening, speech position, and autoethnography: the importance of
anti-racist researches
Abstract
One aspect of the coloniality
of knowledge is the subalternation of knowledge and wisdom, constructing a
hierarchy of knowledge. In attempting to problematize and socialize specific
topics in their terms and concepts, we may sometimes generalize and/or
universalize them, overlooking their singularities and origins, thus depriving
historically subalternized groups of the right to speak and enunciate. It
occurs when our openness to diversity and difference is grounded in
multicultural differentials and/or assimilationist perspectives. This essay
aims to understand how, in our quest to become anti-racist researchers, we can
empty particular meanings and sensations from terms and/or concepts by removing
them from their original contexts, thereby universalizing the specific and
reinforcing epistemic racism. We employ a qualitative method with an emphasis
on literature review to identify potential misconceptions in the understanding
and use of concepts such as "Escrevivência" (Evaristo, 2020) and
"Lugar de Fala" (Ribeiro, 2019). The challenge in using these
concepts leads us to research the autoethnographic method. Situated among
participatory research methods, autoethnography enables the researcher to
approach the subject/territory of research, helping them deal with their
impulses, feelings, and emotions regarding the object/subject of research and
their culture. An investigation from an autoethnographic perspective serves as
a position of speech for researchers who, aware of the demands of navigating
cultural borderlands, draw on the contributions of thinkers immersed in the
themes and contexts under study. This method involves cultural and
autobiographical guidance in interpreting the accessed content, allowing
researchers to continue their journey in racial literacy.
Keywords: writinscreening; speech position; autoethnography.
1
Abrindo a roda
A pesquisa científica nos coloca constantemente o desafio de pensar a
realidade a partir de outros lugares (tanto objetivos, quanto subjetivos),
outros olhares, outras formas de sentir, de experienciar, de saborear, de
inspirar e expirar o mundo em sua grande complexidade. Por esse motivo, estamos
incessantemente buscando novos conceitos e teorias que possibilitem
perceber/sentir o mundo para além do sentido da visão, da observação do outro,
conforme tem sido feito no projeto epistêmico ocidental (Oyĕwùmí, 2021). A
busca por uma nova forma de pensar e descrever o mundo, capaz de
de(s)colonizá-lo (Haesbaert, 2021), acaba em alguns momentos criando novas
colonizações (hooks, 2017). Isso se dá principalmente quando a nossa abertura
para o diverso, para o diferente, está ainda fortemente alicerçada em uma
multiculturalidade diferencialista e assimilacionista (Candau, 2013).
Acredita-se que todas as formas de percepção cosmológica devem ser conhecidas e
socializadas, não tirando de alguns grupos historicamente subalternizados o
direito ao lugar de fala e de enunciação. Diminuindo, ou em outras palavras, esvaziando
os sentidos e sensações que envolvem a construção dessas formas outras de
perceber/sentir o mundo, que circundam indivíduos-comunidades historicamente
subalternizados.
Tendo em mente esse pequeno introito, buscamos enunciar o que se
propõe ser o objetivo deste ensaio: perceber, como na busca de nos tornarmos
pesquisadores/as antirracistas, podemos esvaziar certos sentidos e sensações de
termos e/ou conceitos os retirando dos seus contextos de origem,
universalizando o específico e fortalecendo o racismo epistêmico. Para isso,
utilizamos o método qualitativo, com ênfase na revisão bibliográfica, buscando
perceber possíveis equívocos no entendimento e na utilização de conceitos como:
Escrevivência (Evaristo, 2020) e Lugar de fala (Ribeiro, 2019).
Ao utilizar tais terminologias com o objetivo de construir um trabalho
antirracista, o/a pesquisador(a) pode fragilizar trabalhos cheios de boas
intenções, tendo o efeito contrário, ou seja, de perpetuar o racismo estrutural
e estruturante (Almeida, 2020). A análise passa ainda pela forma como brancos,
historicamente, têm analisado o negro-tema (Ramos, 1995), em vez de focar na
análise de si próprios[1]
enquanto sujeitos que historicamente têm produzido um olhar diferencialista
(Candau, 2013) sobre a sabedoria daqueles que eles próprios racializaram.
O percurso seguido neste ensaio é o seguinte: 1) uma breve introdução que pretende abrir a roda de
conversações, trocas e aprendizados que a segue; 2) na Avamunha,
música/toque inicial, expomos o processo de letramento racial e de percepção
dos equívocos na utilização do termo escrevivência (Evaristo, 2020), equívocos
que flertam com o racismo epistêmico; 3) destacamos os marcos teóricos que
levaram Conceição Evaristo (2020) a
moldar o termo Escrevivência e
a sua importância como lugar de enunciação de mulheres e homens negros
conscientes da luta histórica por um lugar de fala; 4) neste ponto, buscamos
mais uma vez evidenciar o que é o Lugar
de fala com o auxílio de Ribeiro (2019) e de Pinheiro (2023), percebendo que
a Escrevivência enquanto conceito é um posicionamento, um lugar de fala
específico que lhes devolve a potência de emissão com/por e para os seus e os
outros; 5) finalizamos apresentando a autoetnografia como uma metodologia participante que auxilia a perceber,
por meio da reflexão constante, os espaços possíveis para uma escrita “com”,
que não se apropria do lugar de fala e da anunciação do Outro[2],
mas que acolhe, participa e não busca dar um sentido universal à diversidade
presente nos diferentes textos e contextos que formam o Outro.
Lembramos que o texto que apresentamos em forma de ensaio tem sua
estrutura escritural, baseado no método da autoetnografia[3], nos aprendizados
realizados durante o período em que foi desenvolvida a pesquisa de mestrado, e
em leituras posteriores, referentes ao período de doutoramento em curso. Tais
pesquisas (mestrado e doutorado) se encontram na encruzilhada do letramento
racial, do reconhecimento das diversas colonialidades sofridas pelo povo negro
com base na construção supremacista da branquitude. E, na tentativa de
possibilitar a volta inversa na árvore do esquecimento[4], não só
para os descendentes dos escravizados, mas para a branquitude que pretende se
tornar crítica do seu lugar de privilégio e produzir verdadeiramente atitudes
antirracistas em todos os campos do conhecimento.
2 Avamunha[5]
Seu xodó era com o efeito das palavras, não era
um sujeito obcecado pela clareza, suspeitava que aquilo que chamam de falso
pode ser um rebolado do dizer. Era um ser que buscava explicações, mas não era
um racionalista; cismava com a tal da verdade absoluta desde quando, em uma
macumba na praia de Cocotá, na Ilha do Governador, uma Pombagira o olhou,
gargalhou e entoou a máxima “descartiana”: nada
é verdadeiro até ser reconhecido como tal. O malandro batia cabeça com esse
verso, desconfiava que o sopro era uma espécie de demanda (Rufino, 2020, p.
23).
Fico imaginando que até hoje, Seu Xodó deve estar cismando com esse
sopro/ponto da Pombagira “nada é verdadeiro até ser reconhecido como tal”. A
partir desse sopro, podemos pensar o contrário também “tudo é verdadeiro
enquanto ninguém duvida de tal”. O que me leva a pensar em um dos grandes
filósofos da modernidade (Hegel, 1995), amplamente citado por pesquisadores(as)
negros(as) que utilizam uma citação feita por Cheikh Anta Diop[6].
O que Diop faz é citar um trecho de uma das aulas do curso sobre a Filosofia da
História, ministrado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel, aula publicada pela
primeira vez em 1837, seis anos após a morte do autor. “Filosofia da História é
a obra que representa o estágio mais elevado e desenvolvido de seu pensamento,
sendo um resumo e uma conclusão de toda a sua obra anterior” (Hegel, 1995,
contracapa), assim considerada pelos editores da obra no Brasil (Editora da
UNB). O trecho amplamente citado a partir da leitura de Cheikh Anta Diop da
Filosofia da História é o seguinte:
Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la
posteriormente pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum
movimento ou desenvolvimento para mostrar, e o que porventura tenha acontecido
nela – melhor dizendo, no Norte dela – pertence ao mundo asiático e ao europeu.
Cartago foi um momento importante e passageiro; mas como colônia fenícia
pertence a Ásia. O Egito será abordado como transição do espírito humano do
Oriente para o Ocidente, mas ele não pertence ao espírito africano. Na verdade,
o que entendemos por África é algo fechado sem história, que ainda está envolto
no espírito natural, e que teve que ser apresentado aqui no limiar da história
universal (Hegel, 1995, p. 88).
Trazer esse longo trecho do livro Filosofia
da História de Hegel (1995) nos serve de pedra de toque, para observarmos como
o pensamento ocidental coloniescravizador permanece vivo, consciente ou
inconscientemente e como a consciência branca (branquitude) quando acrítica[7],
ainda percebe as pessoas negras (somatório de pessoas pretas e pardas, segundo
o IBGE) como descendentes de escravos que devem obedecer, e nunca ocupar o
mesmo espaço que um branco (shoppings, escolas, universidades, aviões, carros
de luxo), a menos que sejam convidadas. Isso torna o processo de construção de
uma branquitude crítica uma tarefa árdua e longa, principalmente porque mexe
com os brios e com a necessidade de entender-se como um ser racializado, visto
que quem cria a ideia/conceito de raça, racializa-se ao mesmo tempo em que
racializa o Outro.
Retirar parte considerável do continente africano da história,
concebendo seus povos como atrasados em múltiplos sentidos, inclusive e talvez
uma das maiores causas desse entendimento de atraso, por não ter um modelo de
desenvolvimento, como o que já se desenhava há muito na Europa de Hegel. Europa
que cerca de 100 anos após a morte de Hegel é assolada por uma ideologia de
pureza genética e cultural que conhecemos como nazismo, em que toda a diferença
deveria ser eliminada através dos mais diferentes dispositivos de ódio
existentes nos campos de concentração.
Passada a Segunda Grande Guerra Mundial (quando cerca de 40 milhões de
pessoas perderam suas vidas, contabilizando apenas os civis, fora o grande
número de soldados das mais diferentes nações envolvidas na guerra de alguma
forma), a Organização das Nações Unidas
(ONU) formula a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH) em 1948. Essa declaração tem como um de seus
principais objetivos evitar que outras grandes guerras voltem a acontecer no
âmbito internacional a ponto de dizimar milhões de vidas, tal qual acontecera
nas duas grandes guerras mundiais. Atualmente, 193 países que constituem a ONU,
entre eles o Brasil, são signatários da DUDH, embora ela não tenha força de lei
nesses países. Enquanto signatários desse acordo internacional, devem fazer o
possível para cumprir os 30 artigos da DUDH. Apesar disso, de acordo com a
United for Human Rights (UHR),
Os promotores dos direitos humanos estão de
acordo em que, 60 anos depois da sua emissão, a Declaração Universal dos
Direitos do Homem ainda é mais um sonho que uma realidade. Existem violações da
mesma em qualquer parte do mundo. O relatório Mundial 2008 de Amnistia
Internacional e outras fontes mostram que pessoas são torturadas ou maltratadas
em pelo menos 81 países, que julgamentos injustos são realizados em pelo menos
54 países, e que se restringe sua liberdade de expressão em pelo menos 77
países. As mulheres e as crianças, em especial, são marginalizadas de muitas
formas, a imprensa não é livre em muitos países e os dissidentes são
silenciados, com frequência de forma permanente. Ainda que tenham sido
conseguidas algumas vitórias em 6 décadas, as violações dos direitos humanos
ainda são uma praga no nosso mundo actual (United for Human Rights, 2012, p.
40).
De que adianta ser signatário de uma convenção internacional se
desconhecemos ou negamos nossa história? Ao impor seu início a partir do
surgimento do pensamento grego ou do pensamento filosófico germânico como um
dos únicos e privilegiados herdeiros do pensamento grego, não se contabilizaram
as fontes milenares africanas de onde os gregos sorveram grande parte de seus
conhecimentos. Para a sorte dos pensadores gregos, ainda não existia a
propriedade intelectual naquela época e eles não precisavam citar os
verdadeiros produtores do conhecimento por meio dos quais produziram seus
entendimentos de mundo. Tampouco nós saberíamos disso se não fosse por
pesquisadores como Cheikh Anta Diop. De acordo com Darch (2019, p. 29),
A partir da década de 1960, o paradigma de
‘afrocentrismo’ tentou superar essas contradições. Alguns proponentes do
afrocentrismo argumentam que “é válido conceituar a África como um ponto de
partida geográfica e cultural no estudo dos povos de ascendência africana”.
Numa tal formulação, é a experiência dos povos negros, onde quer que estejam,
que é objeto de estudo, e os estudos africanos em si, podem, assim, compreender
a experiência negra no Brasil, em Cuba, no Caribe, e em toda a Diáspora
africana. O foco geográfico no qual os estudos africanos poderiam ter
preguiçosamente dependido assim se transforma no fundamento de uma espécie de
ciência social menos arrumada, mas, mais caprichosa, mais ampla e mais
inclusiva. Cheikh Anta Diop reconhecido como o ‘pai do afrocentrismo’ às vezes
é representado como querendo mostrar meramente que os egípcios da antiguidade
eram negros, procurando provas de melanina nos seus restos mortais mumificados.
Mas o significado mais profundo do seu trabalho, sugiro, encontra-se numa
questão muito mais larga, ou seja, como Mamdani coloca a questão, “se a
história, antes da chegada dos brancos, pudesse ser entendida como uma história
social, ou se os limites de nossa compreensão se definiram pelos limites da
arqueologia...”
Cheikh Anta Diop é, com certeza, uma chave para pensar o continente
africano para além daquilo que foi posto por pensadores brancos, tais como
Hegel (1995). Poderíamos dizer quase inocentemente ser uma pena que até o
presente não tenhamos nenhuma das grandes obras de Diop traduzidas para o
português. Isso não impossibilitou que o conhecimento produzido por esse e
outros pensadores relevantes anteriores e posteriores a ele chegassem até nós.
Aliás, recentemente, temos tido uma crescente de textos de autores negro-africanos
traduzidos e publicados em Língua Portuguesa, um exemplo disso é o livro “As
almas do povo negro”[8]
escrito por W. E. B. Du Bois (1868 – 1963). Publicado pela primeira vez em 1903,
nos Estados Unidos, chegaram por aqui antes de Du Bois, Aimé Césaire com
“Discurso sobre o colonialismo” e Frantz Fanon com obras como “Pele negra,
máscaras brancas” e “Os condenados da terra”, que figuram entre os mais
conhecidos e lidos. Podemos destacar ainda Achille Mbembe, e vejamos que até o
momento a lista consta apenas com nomes masculinos, então lembrar pensadoras e
escritoras negras e africanas é algo ainda mais recente. O meu primeiro contato
com uma escritora negra foi a partir de um TED Talk em que a escritora
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre “O perigo de uma história única”.
Depois disso, o primeiro artigo de uma escritora negra que lembro ter lido foi
“Visualizando o corpo: Teorias ocidentais e sujeitos africanos” de autoria da
também nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, seu livro foi publicado na totalidade em
2021.
Ao refletirmos sobre o pensamento negro em nível de Brasil, talvez os
nomes mais lembrados na atualidade sejam os de Alberto Guerreiro Ramos, Abdias
Nascimento, Milton Santos, Muniz Sodré, Clóvis Moura, Sílvio Almeida (atual
ministro dos Direitos Humanos), Lourenço Cardoso, Lélia Gonzalez, Beatriz
Nascimento, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo. Se, ao leitor, pode parecer que
no Brasil temos mais nomes de mulheres pensadoras do que de homens para
lembrar, não se engane, esse é um recorte da minha memória, enquanto
pesquisador, de alguns nomes que me vêm à lembrança. Cabe destacar que, dos
nomes citados, muitos deles são recentes e entram na discussão acadêmica a
partir de suas pesquisas situadas nas duas últimas décadas. Há os que já
seguiram para a companhia de seus ancestrais, tornando-se também eles ancestres
da sabedoria negra brasileira. Muitas e muitos outras(os) intelectuais negras(os)
estão se construindo com referenciais afrocentrados devido a séculos de lutas
de/com/pela/para a r-existência.
Embora não seja recente a pesquisa sobre a brancura, branquidade e
branquitude (crítica e acrítica) e tantos outros correlatos, Cardoso (2020)
perpassa a construção histórica do termo, tendo identificado William Edward
Burghardt Du Bois (1977) como precursor na teorização da identidade branca,
seguido de Frantz Fanon (1952). No Brasil podemos citar: Alberto Guerreiro
Ramos (1995), Edith Piza (2002), César Rossatto e Verônica Gesser (2001), Maria
Aparecida Bento, (2002), Liv Sovik (2005), Lucio Otávio Alves Oliveira (2007),
Lourenço Cardoso (2020), Lia Vainer Schucman (2012), Ana Helena Ithamar Passos
(2013), Jorge Hilton de Assis Miranda (2015) Joyce Souza Lopes (2016), Cintia
Cardoso (2018), autoras e autores que têm dado continuidade à discussão sobre
branquitude e branquidade no Brasil.
Em seu livro “O branco frente à rebeldia do desejo: um estudo sobre o
pesquisador branco que possui o negro como objeto científico tradicional”,
publicado em 2020, Cardoso (2020) tensiona o fato de que pesquisadores brancos
estudando o negro na sociedade brasileira raramente pesquisam o seu lugar, mas
a posição marginalizada ocupada pelo sujeito negro. Posição essa que já era há
muito questionada por Guerreiro Ramos (1995) porque o negro continua sendo tema
de pesquisa de brancos, qualificando-o como negro-tema, enquanto os brancos
continuam fora da discussão, como seres universais não racializados.
Du Bois (1920) talvez tenha sido um dos primeiros pensadores a
escrever sobre os brancos, em DARKWATER:
Voices from within the Veil que tem o segundo capítulo com o seguinte
título: The souls of white folk. No
Brasil, Guerreiro Ramos e outros pensadores deram início à discussão no meio
acadêmico que ficou congelada até que, na década de 2010, Carone e Bento (2014)
passaram a discutir na Psicologia Social a questão do racismo e da construção
da branquitude. Embora as tensões sobre o termo permaneçam e os estudos não
sejam novos, há um caminho construído a respeito do branco-tema. A sua retomada
pela academia é recente, como nos lembra a “intelectual diferentona”, Barbara
Carine Soares Pinheiro (2023), a partir da notícia da morte de George Floyd, em
plena pandemia causada pelo vírus do COVID-19, parte da academia passa a querer
se reconhecer como antirracista e começamos a perceber livros sobre branquitude
emergindo do mundo editorial.
Naquele momento, eu, Flávio, estava iniciando o curso de mestrado,
advindo de um curso de licenciatura no qual tive a sorte de ter dois
professores negros, um homem e uma mulher. Antes deles, a única lembrança de um
professor negro foi no ensino médio. Pela especificidade do curso, acabei
conhecendo alguns pensadores negros, lembro-me de ter estudado sobre “A
tradição viva” (Hampaté-Bâ, 2010), sobre a “Epistemologia da Ancestralidade”
(Oliveira, 2011). Houve outros autores africanos, mas esses nomes e textos
ficaram gravados na memória. Foram eles os impulsionadores para, posteriormente,
me questionar sobre o que queria pesquisar no mestrado. Passados quase 20 anos
da minha vida como abiã[9],
dentro de casas de Candomblé de nação Ketu, não via como começar minhas
pesquisas sem pensar nas relações entre as religiosidades afroindígenas ou
afro-brasileiras e o local em que estou inserido, o Vale do Itajaí (Cardoso,
2022).
Devido ao fato de a pesquisa estar inserida em um Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, a primeira pergunta que queríamos
poder responder é como essa religiosidade chegou até a região estudada. E aqui,
talvez, caiba a pergunta de o que isso tem a ver com o tema deste ensaio? A
resposta embora pareça simples, não é. O imbróglio tem início em um
entendimento imaturo que se apresenta inicialmente na nota de rodapé de número
64 que se encontra na página 56 da dissertação de mestrado (Cardoso, 2022, p.
56)[10] que convida à leitura de
uma única nota de fim que se encontra na página 290. Nesse ponto é possível ler
o seguinte:
Em alguns momentos na escrita deste relatório
dissertativo, me deparei na encruzilhada da paráfrase, que pega de empréstimo
os meus entendimentos sobre determinada escrita, muitas dessas perdidas em um
tempo/estar/lugar, do qual não fiz, e por mais que tente não faço parte. Por
este e outros motivos tenho preferido trazer sempre que possível a escrita, ou
melhor as escrevivências do autor na íntegra, para que possamos nos aproximar
ao máximo de seus entendimentos. É justamente para entender como Conceição
Evaristo constrói a ideia de escrevivências que trazemos na sequência um trecho
do livro: “Escrevivência: a escrita em
nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo”, organizado por
Constância Lima Duarte e Isabella Rosado Nunes e publicado em 2020 (Cardoso,
2022, p. 290-291).
É a partir desse recorte que nos encaminhamos para a próxima seção
deste ensaio. Por levar em consideração que em nossa leitura à época do texto
supracitado, faltou-nos letramento racial para compreender adequadamente o que
é a escrevivência e, para não a utilizar de maneira leviana, produzindo
epistemicídios e racismos epistêmicos, buscamos universalizar um termo que de
certa forma é específico, como veremos a seguir.
3
Escrevivência: o lugar de fala das mulheres negras
E a Mãe Preta se encaminhava para os aposentos
das crianças para contar histórias, cantar, ninar os futuros senhores, que
nunca abririam mão de suas heranças e de seus poderes de mando, sobre ela e sua
descendência. Foi nesse gesto perene de resgate dessa imagem, que subjaz no
fundo da minha memória e história, que encontrei a força motriz para conceber,
pensar, falar e desejar e ampliar a semântica do termo (Evaristo, 2020, p. 30).
Para dar continuidade a essa discussão e aos aprendizados que o
letramento racial nos proporciona, utilizamos como base para as construções
realizadas nesta seção o mesmo texto que foi utilizado no mestrado: o capítulo
dois da obra citada na seção anterior escrito pela própria Conceição Evaristo,
“A Escrevivência e seus subtextos” (Evaristo, 2020). A epígrafe acima nos
introduz no tema, e nos aponta o erro cometido. Na busca por um termo que
pudesse explicar a escrita da experiência vivida e escrita dentro de um
contexto que, para nós, era antirracista, decolonial e intercultural, acabamos
caindo na armadilha do racismo epistêmico.
Grosfoguel (2011, p. 343) compreende a gênese do racismo epistêmico
Desde la redefinición y nombramiento del mundo
con la cosmologia cristiana (por ejemplo, uso de nombres como Europa, África,
Asia y, más tarde, América) y la caracterización de todo el conocimiento no
cristiano como producto de fuerzas paganas y diabólicas, hasta la presunción en
su provincialismo eurocéntrico de que es solo en la tradición grecorromana,
pasando por el Renacimiento, la Ilustración y las ciencias occidentales que se
alcanzan la «verdad» y la «universalidad», se normalizó el privilegio
epistémico de la «política identitaria» masculina, occidental y eurocéntrica
hasta el punto de la invisibilidad como «política identitaria» hegemónica. se
convirtió en el conocimiento universal normalizado. De esta forma, se
consideraron inferiores todas las «otras» tradiciones de pensamiento.
O racismo epistêmico é parte da colonialidade do saber, um tipo de
colonialidade que “penetra e organiza os marcos epistemológicos, acadêmicos e
disciplinares, induzindo a caracterizar como fundamentalistas, essencialistas e
racistas tanto as lógicas desenvolvidas por comunidades ancestrais, quanto as
novas tentativas desses povos [...]” (Fleuri et al., 2009, p. 33). Nesse sentido, compreendemos que ao buscar
universalizar o termo como um conceito que pudesse ser utilizado para qualquer
forma de escrita, desconsiderando as especificidades dele, recaímos na prática
de racismo epistêmico. Ao utilizar o termo recaí, estou afirmando que já caí na
prática de racismo, e que tornei a cair; provavelmente, recairei novamente
muitas outras vezes; faz parte do aprendizado, do letramento racial. Barbara
Pinheiro (2023) diz que aprender dói! E no início dói muito mais, devido a
nossa fragilidade branca (Diangelo, 2018). Dói aprender que estamos dentro de
uma sociedade estruturalmente racista, e que, portanto, somos racistas, não
apenas pelos privilégios que nos são garantidos pela cor, ou pela ausência de
cor. A ausência da cor marginalizada, uma cor que é detectada como alvo de quem
deveria proteger a todos, mas que em nome de uma necropolítica (Mbembe, 2018),
corremos muito menos risco de sermos mortos asfixiados ao fazer uma corrida,
como aconteceu com George Floyd.
Ao pensar o termo Escrevivência, Conceição Evaristo (2020) afirma que
Escrevivência, em sua concepção inicial, se
realiza como um ato de escrita de mulheres negras, como uma ação que pretende
borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres
escravizadas tinha potência de emissão também sob o controle dos escravocratas,
homens, mulheres e até crianças (Evaristo, 2020, p. 30).
Hoje, ao reler essa citação que está presente em Cardoso (2022, p.
291), ela me faz voltar para outra parte do texto, na qual há uma epígrafe do
livro “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”, escrito por
Grada Kilomba (2019). O capítulo em questão é intitulado “A máscara”; nele, a
autora fala sobre a máscara de flandres, “[...] era composta por um pedaço de
metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a língua e
o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo
e a outra em torno do nariz e da testa” (Kilomba, 2019, p. 33). Kilomba (2019)
segue dizendo que a utilização da máscara tinha como primeiro objetivo impedir que
homens e mulheres negros se alimentassem enquanto trabalhavam nas plantations, mas ultrapassa esse
entendimento, ao afirmar que:
[...] sua principal função era implementar um
senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de
tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela
simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de
silenciamento das/os chamadas/os “Outras/os”:
Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?
(Kilomba, 2019, p. 33).
Ao compreendermos o
diálogo entre Conceição Evaristo (2020) e Grada Kilomba (2019), perceberemos
que a voz das mulheres negras, durante o período da colonização, ou era
impedida pela máscara ou precisava servir a casa-grande como voz que fazia os
futuros senhores dormirem. A esse respeito, Conceição Evaristo deixa ainda mais
evidente em seu texto que “a nossa escrevivência não é para adormecer os da
casa-grande, e sim para acordá-los de seus sonos injustos” (Evaristo, 2020, p.
30). E temos que ter muito cuidado para não esvaziar o termo escrevivência com
a pretensão de torná-lo universal, afirmando que uma vez que ele é criado não
pertence mais ao autor, mas ao mundo das ideias. Entender o lugar de enunciação
primeira da escrevivência é importante para que não cometamos esse erro, esse
racismo epistêmico.
Escrevivência surge de uma prática literária cuja
autoria é negra, feminina e pobre. Em que o agente, o sujeito da ação, assume o
seu fazer, o seu pensamento, a sua reflexão, não somente como um exercício
isolado, mas atravessado por grupos, por uma coletividade. Para uma melhor
apreensão do conceito de Escrevivência, como aparato teórico, para melhor
pensarmos o termo, trago um imaginário mítico da cosmogonia africana para
contrapor a narrativa de Narciso, aplicada ao entendimento da escrita de si
como uma escrita narcísica. [...] a Escrevivência não é uma escrita narcísica,
pois não é uma escrita de si, que se limita a uma história de um eu sozinho,
que se perde na solidão de Narciso. A Escrevivência é uma escrita que não se
contempla nas águas de Narciso, pois o espelho de Narciso não reflete o nosso
rosto. [...]. O nosso espelho é de Oxum e de Iemanjá. Nos apropriamos dos
abebés das narrativas míticas africanas para construirmos os nossos aparatos
teóricos para uma compreensão mais profunda de nossos textos (Evaristo, 2020,
p. 38).
Dessa forma, toda e qualquer consideração de escrevivência feita na
dissertação para todo e qualquer autor, que não seja uma autoria negra,
feminina, pobre e com senso de coletividade, não deve ser considerada
Escrevivência. É necessário compreender que por melhores que sejam suas
intenções, um escritor homem, branco, ainda que homossexual, não deve se
apropriar dessa forma de escrita, chamando a sua escrita de escrevivência,
mesmo que este esteja analisando a escrita e/ou vivência de mulheres negras.
Pois ele não é “o agente, sujeito de ação, [nem] assume o seu fazer, o seu
pensamento, a sua reflexão, não somente como um exercício isolado, mas
atravessado por grupos, por uma coletividade” (Evaristo, 2020, p. 38). Mais à
frente, a autora reflete e aponta para o seguinte:
Creio que o poema em prosa “Emparedado”, de Cruz
e Sousa, poderia ser lido como Escrevivência. Ao pensar em Recordações do
escrivão Isaías Caminha, percebe-se que Lima Barreto, provavelmente, aproveitou
da sua experiência, da sua vivência como um sujeito negro, para criar
recordações de Isaías Caminha. E tanto Cruz e Sousa como Lima Barreto não
estavam escrevendo só sobre o seu drama pessoal por serem negros, mas o drama,
os problemas existenciais das pessoas negras da época (Evaristo, 2020, p. 39).
Se a escrita de alguns homens negros pode ser lida de certo modo como
escrevivência, como nós, homens e mulheres brancos, podemos chamar a escrita
das nossas vivências experienciadas? Respeitando o lugar de fala e de
enunciação das mulheres negras? Talvez para ter uma melhor compreensão e
resposta, precisemos retornar ao conceito de lugar de fala e, dessa forma,
compreender como o conceito de Escrevivência se insere diretamente no lugar de
fala.
4
Lugar de fala: o lugar que ocupo no mundo quando falo de algo
Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as
mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um
lamaçal e elas devem ocupar os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir
numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou
uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei,
juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma
mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o
que comer – e também aguentei chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco
filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor
de mãe, ninguém a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? (Truth, 1851, apud Ribeiro, 2019, p. 19)
No Brasil é quase impossível pensar em lugar de fala sem se lembrar de
Djamila Ribeiro (2019). Djamila não é a criadora do termo, mas pode ser
considerada uma das responsáveis por trazer a discussão do tema para o Brasil.
No livro “Lugar de Fala”, a autora busca explicitar o conceito que dá nome ao
livro e a sua importância para mulheres negras. Como era de se esperar, alguns
autores reviraram o livro em busca de falhas na forma como a autora construiu
seu argumento, para então produzirem suas críticas. Penso que provavelmente
ignoraram o que a autora registra na apresentação do livro, quando afirma que
“O propósito aqui não é impor uma epistemologia de verdade, mas contribuir para
o debate e mostrar diferentes perspectivas” (Ribeiro, 2019, p. 14). As críticas
à filósofa pareceram um julgamento da Santa Inquisição das Ciências Sociais,
extremamente preocupada com os conceitos sagrados da disciplina, que não foram
devidamente citados pela autora, o que deixou claro o lugar de fala desses
interlocutores: um lugar de sexismo, de academicismo e, podemos pensá-lo também,
como um lugar de neocolonialismo.
Mas afinal, o que é lugar de fala? Para nos levar a compreender o que
é esse lugar, espaço, território – inscrito na territorialidade decolonial do
saber –, a autora nos alerta para o cuidado com os esvaziamentos de conceitos
importantes causados pela urgência que as redes geram, podemos ler aqui redes
sociais, enquanto mídias digitais que se proliferam nos nossos tempos. Antes de
explorar mais profundamente o conceito com a ajuda e em diálogo com outras
pensadoras como Grada Kilomba (2019), Patricia Hill Collins (1997), Linda
Alcoff (2016) e Gayatri Spivak (2010), Ribeiro (2019) faz uma revisão da
utilização do termo pela imprensa onde é um “instrumento teórico – metodológico
que cria um ambiente explicativo para evidenciar que jornais populares ou de
referência falam de lugares diferentes” (Ribeiro, 2019, p. 56). Depois de
trazer a forma de introdução explicativa do entendimento de lugar de fala a
partir da comunicação, Djamila passa, então, a explorar como o termo surge
dentro das teorias feministas.
Acreditamos que este surge a partir da tradição
de uma discussão sobre feminist
standpoint – em uma tradução literal “ponto de vista feminista” –
diversidade, teoria racial crítica e pensamento decolonial. As reflexões e
trabalhos gerados nessas perspectivas, consequentemente, foram sendo moldados
no seio dos movimentos sociais, [...], como forma de ferramenta política e com
o intuito de se colocar contra uma autorização discursiva. Porém, é
extremamente possível pensá-lo a partir de certas referências que vêm
questionando quem pode falar (Ribeiro, 2019, p. 57).
A autora vai construindo sua
argumentação sobre o lugar de fala a partir do entendimento de ponto de vista,
enquanto lugar social que ocupo quando descrevo o que vejo, ou seja, o lugar
que eu me encontro objetiva e subjetivamente quando falo. Um local social,
histórica e culturalmente construído. Em outra parte do texto, a escritora
afirma que
O lugar social não determina uma consciência
discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz
ter experiências distintas e outras perspectivas. A teoria do ponto de vista
feminista e lugar de fala nos faz refutar a visão universal de mulher e de
negritude, e outras identidades, assim como faz com que homens brancos, que se
pensam universais se racializem, entendam o que significa ser branco como
metáfora do poder, como nos ensina Kilomba. Com isso pretende-se também refutar
uma pretensa universalidade. Ao permitir uma multiplicidade de vozes o que se
quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se
pretende universal (Ribeiro, 2019, p. 69).
Embora Ribeiro (2019) não deixe dúvidas sobre o que é lugar de fala,
encontramos pessoas dizendo, que apenas negros podem falar sobre racismo por
ser seu lugar de fala. Que brancos não podem falar de racismo porque não o
sentem na pele, que só as mulheres podem discutir o feminismo e por aí vai.
Surgem outras narrativas, dizendo que o lugar de fala seria um aspecto da
análise do discurso, não necessariamente um lugar social. E dentre uma série de
explicações acadêmicas foi Pinheiro (2023) que tornou mais didático o
entendimento de o que é o lugar de fala. A professora, pesquisadora e escritora
soteropolitana nos propõe que nos imaginemos em uma história mais ou menos como
esta que vou descrever.
Imagine-se dentro de um ônibus, sentado(a) quando recebe o anúncio de
que está sendo assaltado(a). Na sequência a mídia chega ao local para
televisionar o ocorrido. Quantos lugares de fala temos? Apresentaremos alguns lugares de fala, tanto das pessoas dentro
do ônibus, como fora dele. Para tornar o entendimento mais didático, Pinheiro
(2023, p. 62 -63) apresenta a seguinte narrativa em que ela é a pessoa
assaltada, e está sendo entrevistada pela equipe de TV para saber como tudo
aconteceu: 1) ela foi entrevistada e falou do furto pela ótica de quem estava
sentada tranquila no seu banco, e de repente levou um grande susto, perdeu a
carteira e o celular e ouviu de perto os gritos do assaltante; 2) o assaltante
falou sob o ponto de vista de quem precisava dos itens por alguma razão: entrou
no ônibus e me achou mais vulnerável por eu estar com o celular na mão
distraída; bem-posicionada perto da porta de saída; 3) as outras pessoas do
ônibus cada uma falou com base no que viu, pois, todo mundo presenciou o assalto
e tinha uma narrativa a respeito.
Poderíamos adicionar outros lugares de fala a narrativa feita por
Pinheiro (2023): 4) o do policial que deteve o assaltante e que contará a
história a partir do inquérito policial a ser instaurado e que deverá levar em
consideração os diferentes lugares de fala acima enunciados, somando a eles o
seu próprio; 5) o de um transeunte que passava pela rua naquele momento e viu o
assalto acontecendo, estando fora do ônibus sem ter qualquer interferência e/ou
participação na cena; 6) das pessoas que assistiram em casa as notícias
transmitidas pela TV local; 7) as pessoas que apenas ouviram falar, e foram
repassando a notícia aleatoriamente.
Cada um dos personagens acima tem um lugar de fala, nenhum é igual ao
outro, mas cada um a partir da sua perspectiva conta a mesma história (Ribeiro,
2019; Pinheiro, 2023). Desse modo, compreendemos que a Escrevivência enquanto
conceito ou como método de escrita pode ser compreendida como a escrita a
partir de um lugar de fala, vivências e experiências, pelas quais mulheres
negras passam com maior frequência do que mulheres brancas. Mas se a
escrevivência não é um lugar a partir do qual podemos falar quando falamos de
nossas vivências enquanto pessoas brancas, de que lugar devemos enunciar nossas
experiências?
5
Autoetnografia como um método de pesquisa participante: considerações não finais
A ideia de escrevivência talvez possa trazer algo
novo para a teoria da literatura pensar. Parece-me que o conceito de
autoficção, de escrita de si, de narrativas do eu, e até de ego-história,
quando o historiador resolve por meio do aparato da ciência que ele conhece,
narrar a sua vida como sujeito histórico, como sujeito da história de seu
tempo, [...] (Evaristo, 2020, p. 38).
Na defesa de dissertação, Cardoso (2022) foi indagado por um dos
membros da banca quanto ao fato de a Escrevivência parecer ser o método que
dava estrutura ao texto. Outro se referiu ao texto dissertativo como uma
espécie de saga do autor que estava acontecendo naquele momento de letramento
racial: ou seja, o início de uma saga do ir-e-vir. Nesse processo de ir e vir,
nos defrontamos, então, com outra possível abordagem metodológica: a
autoetnografia.
[...] a autoetnografia é uma abordagem centrada
nas vivências do próprio sujeito em seu contexto social, e que permite a
“compreensão das ambiguidades que se colocam diante de sujeitos que se
inquietam, pesquisam e refletem sobre si mesmos”. O autoetnógrafo está em uma
“zona de fronteira” ou “entre duas culturas” (Sousa et al., 2016, p. 29).
Homi Bhabha (2013) entende essa zona de fronteira como sendo um
entrelugar. Esse lugar de fronteira entre duas culturas poderia ser também
entendido dentro da cultura ancestral negra (territorialidades negras e/ou
afroindígenas nomeadas de terreiros de Umbanda e/ou Candomblé) como um lugar da
porteira[11].
Da porteira para dentro se guarda o awó –
os segredos – em que apenas algumas poucas manifestações religiosas são
abertas à comunidade circundante, com o intuito de a comunidade ser
coparticipante do axé, que se manifesta e vibra pelos espaços e
territorialidades, cujas divindades são a representação (de rios, cachoeiras,
matas, caminhos, mar, ar etc.) e a manifestação.
Para sua própria sobrevivência, esses espaços, até então fechados
quase que hermeticamente, foram se abrindo aos olhares externos, mas ainda
conservam seus segredos, cabendo aos de dentro traduzir o que é traduzível para
o lado de fora da porteira. Para isso acontecer é necessário se colocar na
porteira, na fronteira, no entrelugar, na encruzilhada, aprender com Exu Onã, o
Senhor da casa, quais segredos podem transpor a fronteira imposta pela
porteira. Nesse contexto, ao optar pela autoetnografia, o pesquisador(a) que é
interno a esse espaço/tempo compreende que há um caminho a seguir, pois,
A autoetnografia deve ser etnográfica em sua
orientação metodológica, cultural em sua orientação interpretativa, e
autobiográfica, quanto ao conteúdo. A ação concreta da escrita autobiográfica
emerge da emoção que engloba a corporeidade e a expansão da consciência de si
quando um enredo se descortina, enquanto a da autoetnografia parte da
introspecção e de uma atenção a nossos pensamentos, emoções, sentimentos ou
percepção física, que nos lança através da memória a uma experiência que
vivemos (Sousa et al., 2016, p. 29).
Em nossa percepção, a autoetnografia quanto à sua orientação
interpretativa conforme sugere Sousa et
al. (2016) deve ser cultural, mas é necessário ir além. Existem múltiplas
formas de pensar e analisar o cultural; pontuamos a importância de que, ao
construir a autoetnografia como método de pesquisa, ela deve ser pensada de uma
maneira “intercultural e crítica”. Na concepção de Walsh (2009), a
interculturalidade crítica “tem suas raízes plantadas não no Estado ou na
academia, mas em discussões políticas arguidas pelos movimentos sociais, o que
‘faz ressaltar seu sentido contra-hegemônico, sua orientação com relação ao
problema estrutural-colonial-capitalista e sua ação de transformação e
criação’” (Walsh, 2009; Cardoso, 2022, p. 85).
Neste sentido, ao nos propormos a pesquisar não só a religiosidade de
matriz africana como “força vital” para a manutenção das diferentes comunidades
(territorialidades afroindígenas-brasileiras), ao longo de séculos de maus
tratos físico-corpo-materiais e silenciamentos metafísico-objetivo-subjetivo[12],
entendemos que a autoetnografia auxilia quem está do lado de dentro da porteira
a traduzir o encantamento vivido e produzido em outros mundos/territorialidades
existentes dentro do território. Para além de tentar compreender como a
religiosidade/ancestralidade renovou a força vital de homens e mulheres na
diáspora negro-atlântica moderno-contemporânea, buscamos também entender o
nosso lugar como brancos dentro dessa religiosidade que se abriu para o povo brasileiro,
em busca de respeito e de paz. Esse movimento que ultrapassa o religioso em
direção a uma estratégia política de sobrevivência (Sodré, 2019).
Embora o hibridismo cultural religioso não seja uma novidade para os
povos africanos, que ao longo de séculos utilizaram essa estratégia (Lopes,
2021; Oliveira, 2021), no Brasil a influência da “branquitude” dentro das
territorialidades afroindígenas precisa ser compreendida. De um modo ou de
outro, mentes ocidentalizadas em múltiplos aspectos, somados ao insulamento dos
terreiros de Umbanda e Candomblé, muitas vezes considerados primitivos em meio
a uma modernidade ocidental, neocolonial, diferencialista e assimilacionista,
produziram um outro cultural por um amplo espectro de encruzilhamentos. Neste
sentido, é preciso perceber e identificar
como se dá o processo de interação entre o particular e o cultural e, como se
dá a leitura intercultural – a leitura de fronteira.
“Na experiência autoetnográfica emergem interações do particular
(íntimo) com o cultural (o outro), é um olhar para dentro e para fora, que
através da memória nos remete do pessoal para o cultural, formando, assim,
fronteiras tênues, porém essenciais para compor o todo” (Sousa et al., 2016, p. 29). Poderíamos dizer,
então, que o intento de Cardoso (2022) percebido como saga pessoal, pode ser
compreendido em parte pelo perfil autobiográfico. Esse perfil autobiográfico
inscrito nos métodos de investigação participante em que o pesquisador é também
sujeito da pesquisa que realiza, não o tornam um escrevivente, tendo como base
o conceito de Escrevivência em Evaristo (2020), mas é caminho para um método a
ser desenvolvido na sequência da pesquisa iniciada no mestrado que se estende
para o doutorado.
Um exercício em escrita autobiográfica se apresenta como uma
preparação para uma prática investigadora de perspectiva autoetnográfica, como
um lugar mais apropriado de fala de alguém que se percebendo racista, continua
o seu letramento racial. Situado em uma zona de fronteiras culturais, conta com
a contribuição imprescindível de diferentes e diversas/os intelectuais
negras/os; de uma orientação metodológica cultural; autobiográfica enquanto
orientação interpretativa em relação ao conteúdo; de atenção introspectiva a
pensamentos, emoções, sentimentos e/ou percepções físicas, que o lançam através
da memória a experiências em vivência e/ou vivenciadas.
Referências
ALMEIDA, Sílvio. Racismo
estrutural. 1. ed. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
BHABHA, Homi. O
local da cultura. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013. 441 p. (Humanitas)
CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios
para a prática pedagógica. In:
MOREIRA, Antonio Flávio; CANDAU, Vera Maria (org.). Multiculturalismo: diferenças
culturais e práticas pedagógicas. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. Cap. 1. p.
13-37.
CARDOSO, Flavio Fortunato. O voo da Sankofa: percursos e participação de negras e negros
afrodiaspóricos e desenvolvimento no Alto Vale do Itajaí. 2022. 293 f.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Departamento de Ciências
Sociais e Filosofia, Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2022.
CARDOSO, Lourenço. O branco frente a rebeldia do desejo: um estudo sobre o pesquisador
branco que possui o negro como objeto científico tradicional. Curitiba: Appris,
2020. 354 p. (A branquitude acadêmica, v. 2).
CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (org.). Psicologia social do racismo: estudos
sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. 189 p. (Psicologia social).
COLLINS, Patricia Hill. Comment on
Hekman's "Truth and Method: Feminist Standpoint Theory Revisited":
Where's the Power? Signs,
Chicago, v. 22, n. 2, p. 375-381, 1997.
DARCH, Colin. Para além do Benim: olhando a África como
'uma infinidade de lugares contemporâneos reais'. In: SANTOS, Flávio Gonçalves dos; DEPELCHIN, Jacques (org.). Presença intelectual africana: Cheikh
Anta Diop. Ilhéus: EDITUS, 2019. Cap. 1. p. 17-36.
DIANGELO, Robin. Não
basta não ser racista: sejamos antirracistas. São Paulo: Faro Editorial,
2018. 192 p.
DU BOIS, William Edward Burghardt. Black
reconstruction in the United States. New York: [s. n.], 1977.
ELIADE, Mircea. O
sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1992. 191 p. (Tópicos).
ELLIS, Carlyn; ADAMS,
Tony E.; BOCHNER, Arthur P. Autoetnografia: un panorama. In: CALVA, Silvia
Marcela Bérnard (org.). Autoetnografia: una metodologia cualitativa.
Agua Calientes; San Luiz Potosí: Aguas Calientes, 2019. Cap. 1. p. 17-41.
Traducion de Silvia Marcela Bérnard Calva. Maria de la LuzLuévano Martinez e
Alejandro Rodriguez Castro.
EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES,
Isabella Rosado (org.). Escrevivência:
a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de
Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. Cap. 2. p. 26-47.
FLEURI, Reinaldo Matias et al. Pesquisas Interculturais: descolonizar o saber, o poder, o
ser e o viver. In: OLIVEIRA, Lilian
Blanck de et al (org.). Culturas e diversidade religiosa na América
Latina: pesquisas e perspectivas pedagógicas. Blumenau; São Leopoldo:
Edifurb: Nova Harmonia, 2009. Cap. 2. p. 30-46.
GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, islamofobia
epistémica y ciências Sociales coloniales. Tabula
Rasa, Bogotá, n. 14, p. 341-355, jan./jun. 2011.
HAESBAERT, Rogerio. Território
e descolonialidade: sobre o giro (multi)territorial/de(s)colonial na
“América Latina”. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Niterói:
Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2021.
HAMPATÉ-BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História geral da África, I:
metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. Cap. 8. p.
167-212.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1995. 373 p.
HOOKS, Bell. Ensinando
a transgredir: educação como prática de liberdade. 2. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2017.
KILOMBA, Grada. Memórias
da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
248 p.
LOPES, Nei. Bantos,
malês e identidade negra. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. 221 p.
(Cultura Negra e Identidades).
MBEMBE, Achille. Necropolítica:
biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1
Edições, 2018. 80 p.
OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente. Rio de Janeiro: Ape'Ku, 2021. 220 p. (Coleção X, Trilogia da
Ancestralidade, v. 1
OLIVEIRA, Eduardo David de. Epistemologia da ancestralidade. In: FILOSOFIA AFRICANA, [s.
l.], 2011. Disponível em:
https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/eduardo_oliveira_-_epistemologia_da_ancestralidade.pdf.
Acesso em: 07 out. 2019
OYĔWÙMÍ, Oyĕrónké. A
invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos
ocidentais de gênero. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser um educador antirracista. São Paulo: Planeta do Brasil,
2023. 160 p.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Patologia social do “branco”
brasileiro. In: RAMOS, Alberto
Guerreiro. Introdução crítica à
sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995. p. 215-240.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019. 112 p.
(Feminismos Plurais)
RUFINO, Luiz. Mentira vira verdade e verdade vira mentira.
In: SIMAS, Luiz Antonio;
RUFINO, Luiz; HADDOCK-LOBO, Rafael. Arruaças: uma filosofia popular
brasileira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. Cap. 2. p. 20-24.
SANTOS, Flávio Gonçalves dos; DEPELCHIN, Jacques
(org.). Presença intelectual
africana: Cheikh Anta Diop. Ilhéus: EDITUS, 2019. 133 p.
SILVA, Claudilene Maria da. A volta inversa na árvore do esquecimento e nas práticas de branqueamento:
práticas pedagógicas escolares em história e cultura afro-brasileira. 2. ed.
Curitiba: CRV, 2020. 212 p.
SODRÉ, Muniz. O
terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. 3. ed. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2019. 168 p.
SOUSA, Cinthia Barreto Santos et al. Rotas Metodológicas de um Barco à Deriva. In: RABINOVICH, Elaine Pedreira et al. (org.). Autoetnografia colaborativa e investigação
autobiográfica: a casa, os silêncios e os pertencimentos familiares.
Curitiba: Juruá, 2016. Cap. 1. p. 25-42. (Coleção Família e
Interdisciplinaridade)
TEIXEIRA, Anderson Rodrigues. “O abiã é o começo, o pé da história”: performances do noviciado
no(s) candomblé(s). 2017. 198 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)
–Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
UNITED FOR HUMAN RIGHTS (Los
Angeles) (ed.). Fazer
dos direitos humanos uma realidade: livro do professor. Los
Angeles: Human Rights, 2012. 229 p.
WICKERT, Tarcísio Alfonso. Linguagem, Subjetividade e
ensino religioso: uma leitura a partir de Gadamer e Lévinas. In:
OLIVEIRA, Lilian Blanck de; RISKE-KOCH, Simone;
WICKERT, Tarcísio Alfonso (org.). Formação de docentes e ensino religioso no
Brasil: tempos, espaços, lugares. Blumenau: Edifurb, 2008. Cap. 2. p.
18-30.
[1] Com
estudos relativos ao “branco-tema” (Cardoso, 2020).
[2] “Para
Lévinas, o princípio da ética da alteridade é o respeito pelo diferente [a/o
Outra/o]. O rosto do outro nos convoca, nos interpela e nos convida. A ética da
alteridade revela no rosto do outro o seu infinito. Esta ética quebra os
paradigmas tradicionais estabelecidos por outras éticas. O que identifica o
outro é o seu rosto, e é muitas vezes no rosto do outro que eu encontro a minha
própria identificação. Cada rosto é diferente, mas me dá sentido do respeito,
face a face, olho no olho (alteridade), eu me vejo no outro, pois há uma
interpelação quando estamos diante do rosto do outro. [...]. E tudo isso começa
pelo olhar no rosto do outro, prestar atenção e saber ouvir o outro olhando em
seus olhos e vendo de perto o seu rosto (alteridade). Não é um olhar
superficial, é um olhar de empatia, sentir o que o outro sente, sentir o que
pensa e como vê a vida. Resumindo, é uma ética da alteridade empática que
estabelece relações de respeito nas suas diferenças” (Wickert, 2007, p. 54).
[3] O presente
ensaio ao assumir-se como uma autoetnografia, segue alguns preceitos enquanto
uma autobiografia somada a uma etnografia. A respeito da autoetnografia, Ellis,
Adams e Bochner (2019) afirmam: “Os autobiógrafos também podem tornar os textos
artísticos e evocativos, alterando o ponto de vista do autor. Às vezes, podem
usar a primeira pessoa para contar uma história, geralmente quando a observam
ou vivenciam pessoalmente uma interação e participam como ‘testemunhas
oculares’ de forma íntima e imediata (Cauley, 2008). Outras vezes, podem usar a
segunda pessoa para trazer os leitores para a cena; testemunhar ativamente com
o autor uma experiência da qual se faz parte, para que o leitor não se sinta
distanciado do acontecimento relatado (por exemplo, Glave, 2005; McCauley,
1996; Pelias, 2000). Podem também utilizar a segunda pessoa para descrever
momentos que parecem muito difíceis de narrar (Glave, 2005; Pelias, 2000;
McCauley, 1996). Às vezes, os autobiógrafos usam a terceira pessoa para
estabelecer o contexto de uma interação, relatar resultados e apresentar o que
os outros fazem ou dizem (Cauley, 2008)” (Ellis, Adams e Bochner, 2019).
[4] Sobre a
árvore do esquecimento, Silva (2020, p. 18) conta que, [...] antes de deixar o
porto de Ouidah, na atual República do Benin, os africanos escravizados eram
levados à árvore do esquecimento – plantada pelo rei Agadja em 1727. Depois de
nove voltas dadas pelos homens – as mulheres davam sete – acreditava-se que
origens, identidade cultural, lembranças de suas moradas e de suas localizações
geográficas perdiam-se no limbo. A memória era reconhecida pelos mercadores de
escravos como uma poderosa arma de resistência.
[5] Cardoso
(2006, p. 260) apresenta uma série de nomes dados a esse toque, Avamunha,
Ramunha, Mumunha, Avaninha entre outros. Esses toques que possuem pequenas
diferenças rítmicas ou na forma de serem percursionados [...] nas diferentes
casas de candomblé, a partir da nação a que pertencem (Ketu, Gege, Angola, Fon
etc.). Pode ser utilizado em diferentes momentos do culto, para a entrada de
filhas e filhos de santo no interior do barracão [...], bem como na saída dos
mesmos deste local ao fim da cerimônia pública. Na chegada ou partida de um ou
vários Orixás, Inquices ou Voduns, a depender da nação. Neste texto, vamos
entender a Avamunha, como um toque que abre a roda de discussão e aprendizagem
sobre saberes e fazeres outros.
[6] De
acordo com Santos e Depelchin (2019) Cheikh Anta Diop foi um historiador e
filósofo senegalês. “[...] Cheikh Anta Diop incomodou e abalou os alicerces da
Historiografia Ocidental na segunda metade do século XX. Ele era um intelectual
de sólida formação acadêmica e, instrumentalizado com um rigor metodológico,
seus argumentos e teses eram difíceis de serem ignorados. Todavia isso não
significa que eles tiveram ampla divulgação e pesa ainda hoje sobre seu legado
a reação indignada das academias eurocêntricas – anglófona e francófona. Há um
desconhecimento generalizado de sua obra em virtude de um alheamento proposital
das políticas editoriais. O tom duro nas conclusões das pesquisas dificulta a
conversão de seus trabalhos em produtos consumíveis de fácil acolhimento no
mercado editorial e, também, por vezes, no âmbito acadêmico” (Santos,
Depelchin, 2019. p. 9).
[7] Para
compreender melhor a discussão entre branquitude crítica e acrítica,
recomendamos a leitura de: CARDOSO, Lourenço. A branquitude acrítica revisitada
e as críticas. In: MÜLLER, Tânia Mara
Pedroso; CARDOSO, Lourenço (org.). Branquitude:
estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris, 2017. Cap. 2. p.
33-52. (Ciências Sociais).
[8] O livro
supracitado foi publicado no Brasil em 2021.
[9] De
acordo com Teixeira (2017, p. 14-15), “[...] os abiãs – constituem os postulantes
ao rito de passagem denominado feitura.
Mas cabe destacar também que, mesmo na condição de pré-iniciandos, os abiãs
já fazem parte de um grupo religioso específico, com o qual estabelecem laços
morais incipientes.”
[10] Para compreender melhor o
contexto exposto acima, leia a nota de rodapé de número 64 leia na integra o
texto na dissertação: CARDOSO, Flavio Fortunato. O voo da Sankofa:
percursos e participação de negras e negros afrodiaspóricos e desenvolvimento
no alto vale do Itajaí. 2022. 293 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado
em Desenvolvimento Regional, Departamento de Ciências Sociais e Filosofia,
Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2022. Disponível em: https://bu.furb.br/docs/DS/2022/368230_1_1.pdf
[11] Para
saber mais sobre o lugar da porteira, indicamos a leitura de: PÓVOAS, Ruy do
Carmo. Da porteira para fora: mundo de preto em terra de
branco. Ilhéus: EDITUS, 2007. 482 p.
[12] Pensamos
aqui não apenas na utilização do corpo negro como corpo-mercadoria (Mbembe,
2018), e mercadoria no sentido amplo da palavra, mercadoria serviçal,
mercadoria sexual etc., mas também nos múltiplos silenciamentos, desde o
imposto pela máscara de flandres, que impede a fala, passando pelo
silenciamento que impõe o que falar e a quem falar, chegando ao silenciamento
que impõe a tradução do seu próprio sagrado, que impõe uma quebra no contato,
que (pró)põe a separação sagrado/profano (Eliade, 1992).
[i] Fonte de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES)
Artigo recebido em:
15/09/23
Artigo aprovado em: 12/06/24
[ii] Contribuições de autor: conceituação;
investigação; metodologia; visualização; escrita – rascunho original; escrita –
análise e edição.
[iii] Contribuições da autora: administração do projeto; supervisão; escrita – análise e edição.