e-ISSN 1984-7246
Pensamento social brasileiro e (trans) feminismos negros: contribuições
de intelectuais travestis e mulheres negras na interpretação do Brasil*
Victor
de Jesus
Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES)
Vitória - ES, Brasil
lattes.cnpq.br/7209858618735573
Pensamento social brasileiro e (trans) feminismos
negros: contribuições de intelectuais travestis e mulheres negras na
interpretação do Brasil
Resumo
Historicamente, o campo do Pensamento Social
Brasileiro canonizou as interpretações do Brasil desenvolvidas por homens
brancos, cis, héteros, de classe média e alta, ao mesmo tempo em que
negligenciou e/ou silenciou as interpretações desenvolvidas pelas
intelectualidades negras, indígenas, (trans) feministas e de periferia. Por
isso, este artigo resgata as contribuições de travestis e mulheres negras e
suas respectivas interpretações do Brasil. Para tanto, Lélia Gonzalez (1ª
geração), Cida Bento e Sueli Carneiro (2ª geração) e Megg Rayara Gomes de
Oliveira (3ª geração) foram eleitas para discutir as convergências e
especificidades de seus (Trans) Feminismos Negros que as diferenciam frente aos
teóricos “clássicos”. Assim, o debate focou em três pontos principais: 1) a
interpretação interseccional do Brasil com foco nas desigualdades e violências
que o racismo, o sexismo e a homotransfobia causam na aniquilação da
humano-dignidade e cidadania da população negra; 2) os diálogos teóricos com
outras intelectualidades negras; e 3) a consideração das resistências da
população negra, tanto em termos teóricos quanto nas suas próprias práticas,
sem separar intelectualidade e militância. Conclui-se que tais interpretações
expõem as contradições e negações do Brasil oficial, sendo fundamental
considerar a intelectualidade de travestis e mulheres negras, bem como suas
respectivas contribuições ao Pensamento Social Brasileiro, ao Pensamento
(Trans)Feminista e ao Pensamento Social Negro Brasileiro como modo de
complexificar os entendimentos sobre o que é o Brasil.
Palavras-chave: transfeminismo
negro; feminismo negro; pensamento social brasileiro; interpretação do Brasil;
intelectuais negras.
Brazilian social thought and black (trans)feminisms: contributions of black
intellectuals travestis and women in the interpretation of Brazil
Abstract
Traditionally, the field of
Brazilian Social Thought has canonized the interpretations of Brazil developed
by white cis heterosexual men from the middle and upper classes, while
neglecting and/or silencing the interpretations developed by black, indigenous,
(trans) feminist and peripheral intellectualities. Therefore, this article
rescues the contributions of black travestis and women and their respective
interpretations of Brazil. For that, Lélia Gonzalez (1st generation), Cida
Bento and Sueli Carneiro (2nd generation) and Megg Rayara Gomes de Oliveira
(3rd generation) were elected to discuss the convergences and specificities of
their (Trans) Black Feminisms that differentiate them from “classic” theorists.
Thus, the debate focused on 3 main points: 1) the intersectional interpretation
of Brazil with a focus on the inequalities and violence that racism, sexism and
homotransphobia cause in the annihilation of human-dignity and citizenship of
the black population; 2) the theoretical dialogues with other black
intellectuals; and 3) the consideration of the resistances of the black
population, both in theoretical terms and in their own practices, without
separating intellectuality and militancy. It is concluded that such
interpretations expose the contradictions and denials of official Brazil, and
it is essential to consider the intellectuality of black travestis and women,
as well as their respective contributions to Brazilian Social Thought, (Trans)
Feminist Thought and Black Brazilian Social Thought as a way of complexifying
understandings of what Brazil is.
Keywords: black transfeminism; black feminism; Brazilian social
thought; interpretation from Brazil; black intellectuals.
1 Introdução
O campo do
Pensamento Social Brasileiro (PSB) tem uma longa tradição no debate social e
sociológico brasileiro, buscando compreender o projeto brasileiro de nação, o
que é ser brasileiro (povo brasileiro) e sua brasilidade (o que faz do Brasil
único frente à comunidade internacional). Nesse contexto, nomes como Gilberto
Freyre, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de
Holanda, por exemplo, se consolidaram como leituras “clássicas” e como intérpretes
do Brasil. Não por acaso, esses “cânones” são homens brancos, cis, héteros, de
classe média e alta que interpretaram o Brasil a partir desse lugar específico,
enquanto intelectualidades negras têm sido silenciadas e/ou negligenciadas
desse lugar de poder teórico-epistemológico.
Tendo isso em
vista, o presente artigo objetiva destacar a contribuição das travestis e
mulheres negras e suas interpretações do Brasil, buscando responder às
seguintes questões: como travestis e mulheres negras têm interpretado o Brasil?
Qual a contribuição das intelectuais travestis e mulheres negras ao PSB? Para
isso, optou-se pela revisão de literatura narrativa[1]
(Creswell, 2010; Flick, 2013), elegendo a análise da produção teórica de Lélia
Gonzalez, Cida Bento, Sueli Carneiro e Megg Rayara Gomes de Oliveira.
Assim, o artigo
inicia problematizando o lugar de fala e de poder do “cânone” do PSB; segue com
o Pensamento Social Negro Brasileiro como um contraponto; depois discute as
principais contribuições das intelectuais travestis e mulheres negras
brasileiras ao PSB, dividindo-as por geração: Lélia Gonzalez (1ª geração),
Sueli Carneiro e Cida Bento (2ª geração) e Megg Rayara Gomes de Oliveira (3ª
geração).
2 Pensamento social brasileiro: homens brancos, cis, héteros, de
classe média e alta interpretando o Brasil
Na tentativa de responder a essas questões, os
dilemas do presente têm sido considerados como problemas históricos e teóricos
da maior importância. E, a partir disso, realizam-se incursões no passado e
viagens pelo futuro frente à pluralidade de Brasis e de visões do Brasil,
“combinando economia e sociedade, política e cultura, com acentuado sentido de
história e do contraponto entre as nações” (Ianni, 2000, p. 70). Sob esse
olhar, a realidade sociopolítica, econômica e cultural do Brasil tem sido
interpretada a partir de temáticas como: a relação entre Estado e sociedade; a
sociedade patriarcal; as formas de sociabilidade, seus jogos de forças
(incluindo aquelas subalternas) e os arranjos de poder; as implicações de ser
um país católico (cristão); a formação do capitalismo nacional e transnacional;
as ideias de socialismo, as lutas de classes e o desenvolvimento nacional; e o
Brasil brasilianista descritos pelos estrangeiros (Ianni, 2000).
Nesse contexto surge, então, o PSB[2] que expressa
um saber especializado em torno da sociologia, história, ciência política e
cultura na busca em compreender os problemas nacionais e interpretar o Brasil a
partir de uma explicação científico-racional (Tolentino, 2019). Nesse campo,
alguns autores foram estabelecidos como “cânones” e “Intérpretes do Brasil”,
tendo suas obras publicadas, disseminadas e consideradas “clássicas” com suas
esquematizações marxistas, funcionalistas ou estruturalistas, dentre os quais
se destacam: Oliveira Vianna, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr. e Raymundo Faoro, dentre outros
(Britto; Galetti; Neves, 2021; Perruso, 2020; Tavolaro, 2021; Tolentino, 2019).
Desse cenário, dois pontos interessam: i) a
especificidade do lugar de fala desses intelectuais; e ii) a dimensão de poder
que define os “cânones” e “clássicos” de um campo. Assim, Djamila Ribeiro
(2019) nos ajuda a pensar o primeiro ponto, quando ressalta que cada sujeito
enuncia um discurso e vivencia o mundo a partir de um lugar de fala,
isto é, de um lugar social que produz sua forma de vivenciar e enxergar a
“realidade”. Um lugar que molda a sua identidade social pela interseccionalidade,
sendo esta entendida como a sobreposição de marcadores sociais
(histórico-político-culturais) de diferença e desigualdades, como raça/cor,
gênero/sexualidade, classe social e outros (Akotirene, 2019; Assis, 2019; Collins;
Bilge, 2021; Crenshaw, 2002).
No que diz respeito ao segundo ponto, por sua vez,
Rayewn Connell (2012a, 2012b), ao tratar da história da Sociologia, nos alerta
que a seleção sobre quem pertence ou não ao seleto grupo definido como
“clássicos” é uma convenção envolta em disputas de poder, que
assume a produção de homens brancos, cis, héteros, europeus como referência e
métrica de validação do que é teoria social. E, ao mesmo tempo, ignora o poder
imperial-colonial, a diferença global e as questões de raça, gênero e
sexualidade, excluindo da teoria sociológica a experiência histórica que
envolve a maior parcela da população mundial.
Nesse caso específico em análise, portanto,
verifica-se a especificidade do lugar de fala desse “cânone” do PSB, no qual homens,
brancos, cis, héteros, de classe média e alta são responsáveis por teorizar e
interpretar um Brasil desconsiderando a vivência e as narrativas da maior
parcela do povo brasileiro composta de pessoas negras, indígenas, mulheres,
travestis, lésbicas, gays e pobres. Não por acaso, aí reside a dimensão de
poder que define os cânones e clássicos de um campo, uma vez que o lugar de
fala desses intérpretes do Brasil é também um lugar de poder que se
retroalimenta em capitais que legitimam as suas vivências, o seu olhar, as suas
teorias. Isso porque, como ressalta Perruso (2020), o pensamento desses autores
do Pensamento Brasileiro é moldado pela classe, pelos círculos políticos ou
artísticos e pelos grupos sociais ou culturais que eles fazem parte. Ou seja, sua
interpretação é derivada do seu posicionamento social, institucional ou de
classe.
3 Travestis e mulheres negras no pensamento social negro brasileiro
Por outro lado, a
constituição do PSB não se deu sem conflitos e disputas, pelo contrário, nesse
campo podem ser vistas clivagens representativas das desigualdades de gênero,
sexualidade, classe e raça que refletem as tensões da sociedade brasileira
patriarcal, escravista, colonialista e capitalista. Desse modo, olhares
críticos têm questionado as interpretações universalistas e totalizantes que
foram alçadas a “clássicas” e, até mesmo, a ideologia oficial de Estado e a
identidade nacional – de um país cordial, uma democracia racial e afins
(Britto; Galetti; Neves, 2021).
Nesse sentido,
Mario Augusto Medeiros da Silva (2022) nos lembra a importância da
intelectualidade negra no estabelecimento de um Pensamento Social Negro Brasileiro, que contou com Edison Carneiro, Clóvis Moura, Virgínia Leone Bicudo,
Alberto Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Eduardo de Oliveira
e Oliveira e Beatriz Nascimento como principais expoentes entre as décadas de
1930 e 1980. Essa intelectualidade negra foi um importante contraponto aos
intérpretes brancos, apesar da invisibilização e negligência dela no circuito
canônico branco, ao destacar a importância da experiência social negra e,
consequentemente, ao colocar os direitos dos sujeitos e da cidadania negra no
centro do Pensamento Social Brasileiro.
Assim, Silva
(2022) ressalta a relevância da intelectualidade negra na reconfiguração da
percepção pública sobre o racismo brasileiro, tendo construído uma agenda
política e aberto os caminhos para as políticas públicas de ações afirmativas e
para a representação política negra. É nesse enquadramento que elegemos aqui as
contribuições de intelectuais travestis e mulheres negras como intérpretes do
Brasil a serem consideradas pelo PSB, assumindo Lélia Gonzalez como uma
intelectual negra precursora do feminismo negro brasileiro ao se reivindicar
enquanto feminista negra e teorizar a partir desse lugar de fala.
Além disso, com
base na transfeminista negra Letícia Nascimento (2021) e nas feministas negras
Djamila Ribeiro (2018) e bell hooks (2023), consideramos que o (trans) feminismo negro abarca as
experiências de mulheridades e feminilidades negras que, a partir de suas
identidades raciais e de gênero, questionam as discriminações, desigualdades e
opressões racistas, sexistas e misóginas em prol de uma sociedade socialmente
equânime.
Desse modo, o
Feminismo Negro de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Cida Bento, e o
Transfeminismo Negro de Megg Rayara Gomes de Oliveira serão analisados aqui sob
as provocações de Ortiz (2013), que nos convida a pensar o Brasil tematizando a
discussão da representação do nacional, das características da identidade
nacional e das novas imagens do Brasil e dos brasileiros a partir do
Estado-Nação, cultura, diversidade, cidadania e inclusão. Assim como demanda
considerar as representações da identidade, sua construção histórica e seus
contextos e finalidades políticas. Enquanto Octávio Ianni (2000, p. 60), ao
reconhecer “que cada interpretação do país nasce de um dado clima intelectual,
envolvendo questões e tensões que flutuam no ar e desafiam uns e outros”, nos
questiona: “[...] o que tem sido o Brasil no longo de toda a sua história?”
(Ianni, 2000, p. 56).
Em virtude disso,
destacaremos adiante as concepções teórico-políticas dessas (trans) feministas
negras, destacando suas principais diferenças das interpretações “clássicas” do
PSB branco, masculino, cis, hétero, de classe média e alta quanto: a) à
interpretação interseccional do Brasil com foco nas desigualdades e violências
que o racismo, o sexismo e a homotransfobia causam na aniquilação da
humano-dignidade e cidadania da população negra; b) aos diálogos teóricos com
outras intelectualidades negras; e c) à consideração das resistências, tanto em
termos teóricos quanto nas suas próprias práticas, sem separar intelectualidade
e militância.
4 Lélia Gonzalez e o início[3] do pensamento feminista
negro brasileiro: contribuições da 1ª geração (1970-1990)
Assim, Lélia Gonzalez (2020) reconstrói uma linha
do tempo da colonização-escravidão à contemporaneidade situando a formação
socioeconômica e cultural brasileira a partir de diferentes temáticas
anteriormente negligenciadas no PSB, tais como: 1) a discriminação racial como
ponto central; 2) a divisão racial e sexual do trabalho (do subemprego e do
desemprego no capitalismo brasileiro); 3) a proletarização do negro e a
racialidade da pobreza e da fome; 4) as desigualdades raciais de oportunidades
(sobretudo para a juventude negra) e de condições de vida (habitacional,
ambiental, sanitários, educacionais e outros); 5) a violência policial contra a
população negra; 6) os arquétipos racistas e sexistas (mãe preta, mulata e
doméstica) da mulher negra; e 7) a denúncia da miscigenação brasileira como
resultado do estupro colonial e da violência sexual contra as mulheres negras e
indígenas.
Nessa perspectiva, Lélia Gonzalez (2020) discute
dois elementos importantes na construção da identidade nacional: o mito da democracia racial e a ideologia de branqueamento. Com isso,
a autora reflete sobre o racismo por
(de)negação, um racismo disfarçado que opera com o discurso da
democracia racial ao mesmo tempo em que atua politicamente no branqueamento da
cultura brasileira. E, então, por meio da família, da Igreja, da escola, da
mídia e do Estado, produz um racismo
cultural que internaliza e naturaliza a subalternização (inferiorização
e subordinação) dos sujeitos negros, seus estereótipos e suas desigualdades
enquanto distorce, folcloriza e comercializa a cultura negra brasileira, e,
ainda, acusa de “racismo às avessas” quem denuncia esse processo.
Tendo esse cenário em vista, a intelectual reflete
sobre a articulação entre o capitalismo, o processo de desenvolvimento
brasileiro de modo desigual e combinado, as construções simbólicas
discriminatórias e nos atenta para a tripla
discriminação da mulher negra pobre (racismo, sexismo e capitalismo),
que impõem obstáculos às suas possibilidades de ascensão social e afetam a
cidadania negra brasileira.
Desse modo, Lélia Gonzalez (2020) revisita as
teorias sociais explicativas dos problemas do Brasil, especialmente de Gilberto
Freyre e Caio Prado Jr., questionando suas omissões e equívocos diante do racismo e sexismo na cultura brasileira,
um empreendimento que ela faz se utilizando de diferentes abordagens de
pesquisa, desde mergulhos históricos para refletir os papéis socioculturais da
mulher negra na sociedade brasileira até às estatísticas que mensuram as
desigualdades raciais genderificadas, passando ainda por relatos e vivências
nos grupos, coletivos e fóruns de/com mulheres negras.
Assim, a intelectual cria categorias analíticas
para dar conta desse novo entendimento da realidade, sendo a Améfrica um sistema etnogeográfico de
referência que toma a América Africana, enquanto a amefricanidade busca unificar a experiência política e cultural de
ser descendente africano/a na América. Dessa maneira, Lélia Gonzalez (2020)
fornece categorias que possibilitam tanto compreender a similaridade das
manifestações culturais negras por todo o continente americano, evidenciando a
influência negra na formação histórico-cultural da América, quanto discutir a
especificidade do racismo latino-americano – na Améfrica Ladina[4] –, cuja marca
é a subordinação e estratificação racial de negros e indígenas por denegação e
ideologia do branqueamento, sem uma lei formal de segregação racial explícita
(como nos Estados Unidos ou África do Sul).
A intelectual inova também ao promover um giro
epistemológico de diálogo teórico não somente com os homens brancos, cis,
héteros, europeus e brasileiros consolidados como “cânones”, mas também com
intelectuais panafricanistas e/ou feministas da África e da Améfrica, como
Maria Beatriz Nascimento, Lucille Mathurin Mair, Filomina Chioma Steady, Abdias
Nascimento, Frantz Fanon, Cheikh Anta Diop, Almícar Cabral, Kwame Nkrumah, W.
E. B. Du Bois, Walter Rodney e Molefi Asante. Essa é uma virada importante,
pois os intérpretes “clássicos” do Brasil se recusaram a ler e interagir com a
produção intelectual feminista ou amefricana, quiçá africana.
Outra importante ação desse giro epistemológico de
Lélia Gonzalez (2020) foi sua intelectualidade engajada, diferentemente de uma
concepção “neutra, objetiva e imparcial” de ciência compartilhada pelo PSB
canônico. Tendo atuado tanto na vida política como uma intelectual pública, na
articulação de diversos movimentos, coletivos (sobretudo no Rio de Janeiro) e
congressos nacionais e internacionais; quanto no fortalecimento dos movimentos
sociais e na redemocratização do país. Desse modo, ela conciliou suas
atividades de docente universitária e teórica com as atividades de articulação
política e de debate em coletivos negros e feministas na luta contra o racismo,
o sexismo, a ditadura empresarial-militar, o neocolonialismo-imperialismo
europeu na África e as questões amefricanas, incluindo aquelas relativas aos
povos ameríndios.
Além disso, Lélia Gonzalez (2020) retomou
importantes protagonistas negras/os na história do país (como Luiz Gama e Luísa
Mahin) e visibilizou a resistência nos quilombos (quilombismo e República Negra
de Palmares), nas Revoltas (Revolta dos Malês e participação negra na Revolta
dos Alfaiates, na Confederação do Equador, na Sabinada, na Balaiada, na
Revolução Praieira, etc.), nas escolas de samba, nos grêmios recreativos, nos
afoxés, nos blocos afro e no candomblé. E, ainda, destacou a importância do
Movimento Negro Unificado (MNU), da Frente Negra Brasileira (FNB) e do Teatro
Experimental do Negro (TEN), sem perder de vista suas críticas às limitações na
atuação dessas organizações, como o machismo dos homens negros.
A autora também credibilizou personagens e
lideranças negras que fizeram os afrontamentos na vida cotidiana pelo direito à
cidadania, sobretudo as mulheres negras, cujo papel histórico de mãe-preta
possibilitou a africanização da cultura brasileira ao cuidar e educar os filhos
dos senhores brancos, além da atuação religiosa/cultural e política das
ialorixás e mães de santo. E, inovou, mais uma vez, ao demandar um feminismo
afro-latino-americano, ou, mais precisamente, um feminismo amefricano[5].
5 Sueli Carneiro, Cida
Bento e o pensamento feminista negro brasileiro: as contribuições da 2ª geração
(1990-2010)
As décadas de 1990-2000 propiciaram o surgimento de
novas lideranças de mulheres negras, tanto pela esperança e renovação do
período de redemocratização e fortalecimento dos movimentos sociais no Brasil
(incluindo o MNU), quanto pelos diálogos e articulações por uma rede
(inter)nacional de mulheres amefricanas sob influência direta ou indireta de
Lélia Gonzalez. Nesse período, muitas mulheres negras se articularam (sobretudo
em movimentos negros, associações de bairros, movimentos sindicais) e algumas
adentraram as universidades, como o caso das paulistanas Sueli Carneiro [1950]
e Cida Bento [1952], teorizando e interpretando o racismo brasileiro.
Cida Bento
(2022), por exemplo, inaugurou uma perspectiva nos estudos do feminismo negro
brasileiro: olhar para o grupo racial branco (sobretudo a masculinidade
branca), seus privilégios, suas heranças, seus capitais raciais e seu projeto
nacionalista de supremacia branca. A branquitude
– entendida como um conjunto de práticas culturais de opressão e dominação
racial desempenhadas pelo grupo racial branco, mas não nomeadas, não marcadas
enquanto uma identidade racial branca –, então, torna-se fundamental para
entender como um país majoritariamente negro é controlado por uma minoria de
homens brancos.
Assim, a partir do diálogo com a Psicologia, a
Ciência Política, a História, a Filosofia e a Sociologia, sua interpretação do
Brasil passa fundamentalmente por compreender os mecanismos de perpetuação do
poder da branquitude brasileira que se iniciam com a colonização europeia e se
atualizam no tempo presente. A autora reforça que enquanto escravocratas, a
branquitude foi responsável por raptar e submeter a população negra ao trabalho
escravo, à violência física e psicológica, ao estupro e a outras barbaridades.
E, mesmo tendo sustentado todos os períodos
econômicos brasileiros com a sua força de trabalho escravizada, a branquitude
não indenizou a população negra, tampouco garantiu seus direitos e sua
integração econômica. Pelo contrário, promoveu uma política de imigração
europeia para embranquecer o Brasil, dificultou o acesso a terras pela Lei de
Terras, produziu diversos estigmas racistas que compõem o imaginário social
(como do negro preguiçoso, vagabundo, criminoso e violento) e destruiu a identidade
racial negra.
É nesse contexto que se produziu tanto uma
desigualdade e uma violência racial que tem submetido a população negra a
péssimas condições de vida, quanto um reforço da supremacia branca contrária a
políticas de equidade e defensora da meritocracia. Uma branquitude que ocupa os
cargos de poder, que não reconhece a herança escravocrata nas instituições
(racismo institucional) e na história do país, que se mantém moralmente alheia
às desigualdades e violências vivenciadas pela população negra brasileira. Uma
exclusão moral que lhe acompanha desde a infância nas escolas até a vida adulta
nas empresas, no ambiente de trabalho, passando ainda pela mídia, pelo sistema
financeiro, pelo Judiciário, pelo Executivo e pelo Legislativo brasileiro, cuja
posição da branquitude é de omissão diante da discriminação e da desigualdade
racial.
Cida Bento (2022) denomina isso de pacto (narcísico) da branquitude, isto
é, um pacto não dito, que transfere uma série de vantagens, facilidades e
oportunidades entre seus pares brancos, que se ajudam mutuamente para a
ascensão social do seu grupo racial ao mesmo tempo em que elabora mitos
(neutralidade, objetividade e meritocracia) que justificam as precariedades e
vulnerabilidades a que submetem a população negra.
Desse modo, sua interpretação é a de que o Brasil é
um país racista, violento, conservador e leniente com a brutalidade dirigida
contra a população negra como consequência desse pacto narcísico e da
masculinidade branca, que estruturam nossa formação política, econômica, social
e cultural brasileira e nosso pacto civilizatório supremacista branco.
Sueli Carneiro (2023), por sua vez, em diálogo com
a Filosofia, a Educação, a História e a Sociologia, interpreta o Brasil a
partir da desumanização e aniquilação da negritude como fundamento ontológico
da brasilidade. Assumindo Foucault, Boaventura de Sousa Santos e C. W. Mills
como seus principais interlocutores, a intelectual discorre sobre a relação
entre poder, saber e subjetivação no contrato racial da sociedade brasileira
para discutir o que denomina de dispositivo
de racialidade.
Segundo a autora, esse dispositivo consiste no
mecanismo de poder da branquitude construir o outro-negro como não-ser, sendo
isso o fundamento do ser-branco (Eu hegemônico, ideal de Ser e dotado de
razoabilidade, normalidade e vitalidade). Em síntese, um dispositivo que
normaliza a hierarquia racial que desqualifica e institui uma suposta
inferioridade negra e, ainda, valoriza e institui uma suposta superioridade
branca. Consequentemente, um dispositivo biopolítico que legitima a morte do
negro (não-ser, inferior, impuro, anormal, indesejável) enquanto assegura a
vida do branco, considerado um ser sadio e puro.
A partir desse dispositivo, a intelectual teoriza
acerca da produção de uma biopolítica que inscreve a negritude sob o signo da morte articulando raça e gênero, a partir
do qual mulheres negras são mortas por doenças preveníveis e evitáveis,
enquanto os homens negros são sistematicamente submetidos à repressão e
violência policial, sendo mortos pelo Estado e pela violência urbana da guerra
do tráfico de drogas. E, ainda, produz o epistemicídio, isto é, mata as subjetividades e saberes que
compõem a negritude por meio da desumanização, da deseducação e do apagamento
das memórias de resistências negras ao embranquecer as representações sociais
nacionais, anular o negro enquanto sujeito do conhecimento e legitimar a
supremacia intelectual da racialidade branca.
Desse modo, Sueli Carneiro (2023) interpreta o
Brasil a partir das interdições
de poderes, saberes e subjetividades impostos por diversas instituições, como
Igreja, escola e Estado, promovendo um assujeitamento do negro. Isso ocorre
pela negação, pela demarcação do que o negro não é (não humano e não sujeito
moral, político e de direito), que está assentada no imaginário social ao
naturalizar a subalternização dos negros e na supremacia branca resultantes do
colonialismo-imperialismo branco ocidental.
Nessa dinâmica, ao mesmo tempo em que reprime,
precariza e extermina física e simbolicamente a sua população negra,
submetendo-lhe a condições sociais precárias e processos de
eugenia-branqueamento, e tendo sua origem assentada no estupro colonial de
mulheres negras e indígenas, o Brasil se anuncia com a sua grande narrativa de
uma democracia racial, cuja miscigenação racial comprovaria sua “tolerância
racial”. Assim, conclui a autora, tem ocorrido a nacionalização do imigrante
branco europeu e a desnacionalização do negro no período republicano como
projeto de nação eugênica brasileira no pós-abolição.
Apesar das especificidades na interpretação de cada
autora, elas apresentam muitas convergências nos seus pensamentos. A primeira
consiste na interlocução com autoras/es brancas/os, sem
desconsiderar a intelectualidade negra. Nesse sentido, Cida Bento (2022)
dialoga com a produção intelectual negra de Lélia Gonzalez, Nilma Lino Gomes,
Sueli Carneiro, Luiza Bairros, bell hooks, Clóvis Moura, Muniz Sodré, Milton
Santos, Achille Mbembe, Charles W. Mills, W. E. B. Du Bois, Frantz Fanon e
Cedric Robinson. Enquanto Sueli Carneiro (2023) dialoga com Nilma Lino Gomes,
Isildinha Nogueira, Fátima Oliveira, Neuza Santos Souza, Azoilda Loretto da
Trindade, Jurema Werneck, bell hooks, Audre Lorde, Clóvis Moura, Abdias
Nascimento, Guerreiro Ramos, Joel Rufino, Milton Santos, Muniz Sodré, Kabengele
Munanga, Charles Mills, Frantz Fanon e Cornel West.
Além disso, em comum, essas intérpretes da 2ª
geração estão engajadas no ativismo, sem dissociar intelectualidade e
posicionamento político na vida pública, fazendo afrontamentos nos movimentos
sociais, atuando nos debates públicos e sendo idealizadoras de importantes
instituições de combate à discriminação e desigualdades raciais e de gênero
[como o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e o
Geledés - Instituto da Mulher Negra].
Outra concordância diz respeito ao modo como ambas
as intérpretes lidam com as resistências, seja Bento (2022) pontuando o
ocultamento das resistências negras dos quilombos às ações da Coalizão Negra por
Direitos e dos coletivos de mulheres negras como um modo de manter a narrativa
mítica da democracia racial e produzir uma amnésia coletiva e uma ignorância
branca diante dos feitos históricos da resistência indígena e negra; seja
Carneiro (2023) nomeando todo esse processo como epistemicídio, um dispositivo
de racialidade, e realçando as resistências de lideranças e ativistas do MNU na
luta por direitos, pela afirmação positiva da identidade-ancestralidade negra e
por uma educação antirracista para o cuidado de si.
Embora tenham contribuído significativamente para o
Pensamento Feminista Negro Brasileiro, é importante destacar que, ainda que
Lélia Gonzalez tenha assinalado acerca dos irmãos negros homossexuais no MNU de
modo pontual, as abordagens da 1ª e 2ª geração se apoiaram em uma crítica ao
sexismo a partir de uma concepção predominantemente cisheteronormativa. Nesse
contexto, surgem as contribuições da 3ª geração.
6 Megg Gomes de Oliveira e
o pensamento transfeminista negro brasileiro: as contribuições da 3ª geração
(2010)
As décadas de
2010-2020 têm finalmente agenciado novos debates antirracistas, sob a chave
analítica da interseccionalidade e o cruzamento com as teorias de
gênero/sexualidade. Assim, este período marca a consolidação da 3ª geração do
Feminismo Negro Brasileiro, mas também a emergência da 1ª geração de um
Transfeminismo Negro Brasileiro, a partir do qual estão situadas intelectuais
travestis e mulheres transexuais negras[6], como a
paranaense Megg Rayara Gomes de Oliveira [1975], primeira travesti negra
brasileira a receber um título de Doutorado, sendo professora da Universidade
Federal do Paraná (UFPR) atualmente.
Megg Rayara Gomes
de Oliveira (2020) interpreta o Brasil a partir das vivências de bichas,
travestis e mulheres transexuais pretas. Assim, tecendo um diálogo entre Artes,
História, Educação e Antropologia, a intelectual problematiza o lugar de poder
da masculinidade branca, cis, hétero nas relações sociais tanto coloniais
quanto republicanas como um modo de compreender o Brasil a partir das vivências
transvestigêneres pretas.
Nessa perspectiva,
Megg Rayara Gomes de Oliveira (2020) analisa as representações artísticas e as
construções racistas em torno da ideia de masculinidade negra viril e
superdotada, discutindo o afronte da homossexualidade e da travestilidade preta
na desestabilização das concepções coloniais que demarcam suas existências como
anormais, inferiores, imorais, perigosas, patológicas, o outro pelos discursos
(jurídicos, religiosos, educativos, psicológicos). Assim, desde a infância até
a vida adulta, as vivências da bicha preta são submetidas aos dispositivos de
controle e higienização que buscam masculinizar e embranquecer tais corpos.
A partir disso, a
intelectual situa como historicamente a escola, a religião, a família, a
polícia, o Estado, o hospital, o manicômio, a medicina, o direito, o jornal, a
ciência, a literatura, o cinema, as artes plásticas, a publicidade, a
televisão, a música e o teatro têm estigmatizado, invisibilizado e violentado
corpos transvestigêneres, sendo fundamental compreender o Brasil a partir da
análise interseccional entre homotransfobia e racismo. Desse modo, gays
afeminados, viados e bichas pretas têm sido historicamente estereotipados,
normatizados e socialmente representados por dispositivos de poder racistas e
homotransfóbicos enquanto a cis heterossexualidade do homem branco constitui o
marco referencial de poder, de corpo e de humanidade brasileira.
Na sua
interpretação do Brasil, portanto, Megg Oliveira (2020) destaca a construção
histórica da bicha como o outro, e como tal, risível, desprezível, passível da
coerção social (violência) e de ser eliminada (morte) porque carrega em si a
degenerescência do corpo negro e bicha. É desse modo que diversas instituições
são mobilizadas para hierarquizar, coagir, higienizar (eugenia), violentar e
exterminar os corpos de bichas pretas, submetidas à segregação e ao preconceito
do racismo e da homotransfobia. Assim, a marca da sociedade brasileira é
privilegiar a cisgeneridade heterossexual branca enquanto promove o genocídio
da juventude negra masculina e o transfeminicídio negro no Brasil.
Nesse panorama,
Megg Rayara Gomes de Oliveira (2020), diferente das gerações anteriores,
subverte ao não dialogar com o PSB “clássico”, ao invés disso, estabelece a
comunicação com o Pensamento Social Negro como ponto de partida, se articulando
com nomes como Jaqueline Gomes de Jesus, Sueli Carneiro, Neusa Santos Sousa,
Jurema Werneck, Cida Bento, Nilma Lino Gomes, Mara Viveros Vigoya, Kimberlé
Crenshaw, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, Ari Lima, Osmundo Pinho, Alex Ratts, Petrônio
Domingues, Frantz Fanon e Stuart Hall. Incluindo, ainda, a interlocução com
outras/os autoras/es brancas/os do campo das relações étnico-raciais e das
teorias de gênero e sexualidade.
Além disso, outra
subversão da intelectual consiste no modo que coloca o corpo transvestigênere
não como margem, nem como centro, mas como uma transversal que atravessa o
centro e a margem, borrando os limites entre o centro e a margem, a partir da
qual se transmuta e produz outras formas potentes de existir em diferentes
culturas americanas, africanas e asiáticas, além de escapar à normalização e à
normatização dos corpos. A intelectual resgata a importância das resistências
transvestigêneres negras brasileiras, destacando as experiências públicas (que
sai para a rua) e as insurgências de Xica Manicongo, Yaya Mariquinhas, Madame
Satã, Cintura Fina, Tomba Homem, Keila Simpson e Jovanna Baby em diversos
momentos da história do país, desde o Brasil escravocrata aos dias atuais.
Desse modo, a intelectual destaca as resistências e questionamentos que bichas
e travestis pretas têm feito dentro do Movimento Negro, do Movimento Feminista
e do Movimento LGBT+, uma dinâmica que ela mesma faz na sua vida pública.
7 Considerações
finais
Dessa maneira, elas têm interpretado o Brasil de
modo interseccional como um país historicamente violento, desigual e injusto
que nega a humano-dignidade e a cidadania da população negra, sobretudo de
travestis e mulheres negras. A partir de análises históricas e vivências
grupais, revelam um país estruturado no racismo, no sexismo e na
homotransfobia, assumindo a colonização-escravidão como ponto de partida e o
cenário atual como ponto de chegada de um continuum histórico cujas
instituições sociais atuam como dispositivos de manutenção do poder e da
cultura racista, sexista, homotransfóbica, colonialista e capitalista.
Tais interpretações apontam tanto as insuficiências
e limitações do PSB “clássico” quanto as contradições e negações do Brasil
oficial, eugênico e limpo “pra gringo ver”. Suas formulações teóricas dão conta
de responder a diferentes problemáticas brasileiras, desde a fome à violência
política de gênero, desde o encarceramento em massa ao genocídio da juventude
negra, desde a violência doméstica ao (trans)feminicídio, dentre outras
violações de direitos humanos na saúde, na educação, na assistência social e na
habitação da população brasileira, dentre outras áreas.
Além disso, elas têm considerado a resistência da
população negra frente a tais processos, retirando essa população do lugar de
espectadora passiva da história e colocando-a como sujeitos protagonistas da
transformação brasileira, lutando por um Brasil efetivamente independente,
republicano e democrático. Uma trama na qual travestis e mulheres negras têm
denunciado o racismo, o sexismo e a homotransfobia tanto de conservadoras/es
quanto de progressistas – presente nos movimentos sociais dos quais fazem parte
(movimento negro, feminista, LGBT+, trabalhadores e sindicatos).
Desse modo, essas intelectuais travestis e mulheres
negras têm sido também ativistas, atuando em um fazer ciência-pesquisa
politicamente engajado, sem dissociar intelectualidade de militância e,
portanto, não operando com o mito positivista da neutralidade científica.
Assim, elas não apenas interpretam o Brasil, mas também atuam politicamente no
afrontamento das opressões que afetam a humano-dignidade e cidadania de grupos
historicamente estigmatizados, violentados e destituídos de poder no Brasil.
Nesse sentido, ainda, de modo consciente e
político, além dos diálogos com os “cânones”, tais intérpretes negras têm
optado também por ler, dialogar e citar seus pares negros, africanos e latino-americanos.
Assim, elas têm formulado uma nova política de citações, de afrontamento aos
silêncios, epistemicídios e negações instituídos pelo PSB branco, que raramente
cita intelectualidades negras e feministas, menos ainda africanas e transfeministas.
E, ainda, instituem um novo modo de fazer ciência, assumindo o feminismo negro
e a interseccionalidade como ponto de partida teórico-político-analítica.
Dito de outra maneira, é urgente considerar o que
as intelectuais negras brasileiras têm elaborado tanto como teoria e pensamento
social brasileiro, tanto enquanto políticas e transformações da realidade
social de modo a convergir teoria e ativismo, ciência e militância. Travestis e
mulheres negras têm mostrado que a luta se dá em todos os campos, sem a redução
“ou intelectual, ou ativista”, mas com as suas complementaridades. As
urgências, violências e violações que são submetidas imprimem modos não
dicotômicos de fazer e conceber ciência-teoria, ativismo, vida, política e
sociabilidade.
Tendo isso em vista, é fundamental compreender que
o Pensamento (Trans) Feminista Negro institui uma epistemologia que inclui a
interseccionalidade como ferramenta analítica do problema científico e como
práxis ético-política de transformação da “realidade” e da ciência, sem
dissociar intelectualidade, militância, razão e emoção. Uma epistemologia
implicada nas agendas de combates às desigualdades, violências e injustiças de
raça/cor, gênero/sexualidade e classe social, dentre outras, presentes na
sociedade e nas instituições – incluindo as universidades e demais entidades,
órgãos e instituição da educação, que precisam de reformulação.
Por isso, é necessário que tais contribuições
estejam nos currículos da educação básica e do ensino dito superior. É
importante que a diversidade brasileira compareça nos currículos educacionais e
as ações afirmativas sejam efetivadas para promover uma sociedade efetivamente
justa, democrática e solidária na qual todos os grupos historicamente
destituídos de poder, de humano-dignidade e de cidadania sejam de fato
considerados como povo brasileiro e tenham suas identidades grupais respeitadas
e garantidas na identidade nacional. É vital uma nova agenda de pesquisa e
política para compreender e solucionar as injustiças, violências e iniquidades
sociais brasileiras, uma agenda político-científica que considere o povo
brasileiro na sua interseccionalidade e contemple novos lugares de fala na
produção epistemológica do conhecimento.
Urgem novas interpretações do Brasil que pensem a
humano-dignidade e a cidadania da população negra, periférica, travesti, trans,
com deficiência, quilombola, indígena, candomblecista, considerando as
dinâmicas e complexidades interseccionais. Sendo indispensável, ainda, um olhar
para o lugar da violência e do ódio histórico e colonial na cultura
político-afetiva higienista brasileira que aniquila pessoas negras, lgbts,
indígenas, quilombolas e religiosidades afro-brasileiras frente a um projeto de
Estado e Nação branco, cristão, cis, hétero e conservador. Enfim, são fundamentais
teorias e práticas que garantam a diversidade-dignidade de culturas, corpos e
existências dos Brasis que compõem o Brasil.
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* Fonte de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
[1] Esta
modalidade de revisão possui um caráter menos sistemático e, com isso, foi
possível eleger autoras que não são convencionalmente tratadas como Intérpretes
do Brasil.
[2] O conceito de
PSB surge na década de 1930 e se consolida enquanto campo na década de 1960,
lembra Toletino (2019). Ainda que sob uma tradição de essencialização do modo
de ser e da cultura, como se houvesse “o brasileiro” e “o Brasil”, como critica
Ortiz (2013).
[3] Apesar de Virgínia Leone Bicudo ter sido uma mulher negra pioneira nos
estudos raciais na Sociologia dos anos 1940, sua obra “Atitudes raciais entre
pretos e mulatos em São Paulo” reflete sobre o preconceito racial, mas não a
interface entre gênero e raça. Por isso, a autora não foi considerada aqui como
precursora do Feminismo Negro Brasileiro.
[4] Lélia Gonzalez
utiliza “Ladina” por considerar que a influência africana na América ser
anterior à colonização ibérica no século XV e, por isso, não corroborando a
demarcação colonial “Latina”.
[5] Embora ela não
tenha utilizado essa expressão, é coerente com a sua proposta conceitual e
analítica.
[6] Sem desconsiderar a importância de outras intelectuais negras que teorizam a partir de suas vivências transvestigêneres, como Jaqueline Gomes de Jesus, Letícia Nascimento e Thiffany Odara.