e-ISSN 1984-7246  

 


Escrevivência: sentidos na obra evaristiana e modos de viver a pesquisa em educação*

 

Dandara Rodrigues Dorneles**

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Porto Alegre – RS, Brasil

lattes.cnpq.br/8251053729434715

orcid.org/0000-0003-2761-6983

dandararodrigues.d@gmail.com

 

 

Carla Beatriz Meinerz***

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Porto Alegre – RS, Brasil

lattes.cnpq.br/9741624321390195

orcid.org/0000-0002-9270-8705

carlameinerz@gmail.com

 

 

Russel Teresinha Dutra da Rosa****

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Porto Alegre – RS, Brasil

lattes.cnpq.br/9160396252323696

orcid.org/0000-0001-5017-0460

russeltdr@gmail.com

 

 

 

 

Escrevivência: sentidos na obra evaristiana e modos de viver a pesquisa em educação

 

Resumo

Este artigo discute os resultados da análise de dimensões da experiência textual da Escrevivência no conjunto da obra de Conceição Evaristo, cotejando a sua presença em produções de pessoas pesquisadoras negras da primeira turma que ingressou pela política de ações afirmativas em um programa de pós-graduação em Educação de universidade da região sul do Brasil. A experiência textual evaristiana é profundamente marcada pelas vivências e corporalidades de mulheres negras. Funde a escrita com a vida, relacionando temas como religiosidade afro-brasileira e ancestralidade. A Escrevivência incorporada à pesquisa em Educação é um modo diverso de indagar a realidade e de viver a intelectualidade, a partir de um pertencimento negro capaz de reivindicar o direito à diferença na escrita e nas práticas acadêmicas. Escrevivência entendida como palavra germinante, mais do que como conceito, configura o que se nomeia tradicionalmente como método ou metodologia nos estudos analisados. A partir da análise de produções acadêmicas, argumenta-se que a Escrevivência é uma palavra viva, que possui trajetória e que germina práticas de pesquisa e de formas de escrita em que a autoria é resultado da experiência negra compartilhada e de conhecimentos herdados de comunidades tradicionais.

 

Palavras-chave: práticas de pesquisa; pessoas pesquisadoras negras; intelectualidades negras; palavra germinante; Conceição Evaristo.

 

Escrevivência: senses in conceição evaristo’s work and ways of living the research in education

 

Abstract

This article discusses the results of the analysis of the dimensions of the textual experience of Escrevivência in Conceição Evaristo’s body of work, comparing its presence in the productions of different Black researchers from the first class that entered a graduate program in Education at a university in the southern region of Brazil by the affirmative action policy. The Evaristian textual experience is deeply marked by the experiences and corporeality of Black women. It blends writing with life, relating themes such as Afro-Brazilian religiosity and ancestry. Incorporated into educational research, Escrevivência is a different way of questioning reality and experiencing intellectuality, based on a sense of Black belonging capable of claiming the right to difference in writing and academic practices. Escrevivência, understood as a germinating word rather than a concept, configures what is traditionally called a method or methodology in the studies analyzed. Based on the analysis of academic productions, it is argued that Escrevivência is a living word that has a trajectory and germinates research practices and forms of writing in which authorship is the result of shared Black experience and knowledge inherited from traditional communities.

 

Keywords: research practices; black researchers; black intellectualities; germinating word; Conceição Evaristo.

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* Fonte de fomento: Bolsa de Doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (CNPq).

Contribuições de autoria:

** conceituação, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, visualização e escrita – rascunho original.

*** conceituação, análise formal e escrita – análise e edição.

**** análise formal, aquisição de financiamento e escrita – análise e edição.

Escrevivência, antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma busca por se inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas, que o mundo desconsidera. Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida.

Conceição Evaristo, Escrevivência e seus subtextos (2020a).

 

1 Introdução

O presente texto resulta de uma escrita conjunta entre uma doutoranda negra, protagonista de sua ideia seminal já por ela desenvolvida em trajetórias de pesquisa, e duas docentes brancas atuantes na Pós-Graduação, interlocutoras na onstrução das análises e da fundamentação sobre a palavra Escrevivência[1] germinada por Conceição Evaristo (2005, 2016a, 2017a). No artigo, é analisado o sentido da Escrevivência na obra de Conceição Evaristo e sua incorporação à pesquisa em Educação por intelectuais negros. A escrita, resultante da pesquisa, é forjada por mãos femininas, duas pretas e quatro brancas, expressando pensamentos e sentimentos distintos numa busca de movimento dialógico em aliança pela transformação das estruturas racistas que operam nos indivíduos e na sociedade, especificamente nas instituições acadêmicas[2].

Maria Beatriz Nascimento, historiadora que, em 1974, reivindica uma “história do homem negro”, expõe algumas características de uma pesquisa realizada por mãos pretas quando afirma que não aceita “mais nenhuma forma de paternalismo, especialmente intelectual” (2021, p. 46). Nessa direção, afirma-se sobremaneira que as escritas e os saberes produzidos estão em conexão com os pertencimentos étnicos e raciais, o que implica numa ciência cada vez mais intencionalmente identificada e situada no combate ao racismo. No caso das mãos pretas, a escrita é situada na perspectiva de Nascimento (2021, p. 46), ao afirmar que as coisas por ela refletidas “já existiam no ventre de minha mãe, num quilombo qualquer [...], na África, onde já não quero nem posso mais voltar.” Este é o complexo pertencimento e contexto que nos cabe observar ao construir conhecimentos acadêmicos.

No caso das mãos brancas, destaca-se que a análise e a escrita da obra de Conceição Evaristo são experimentadas pelo marcador da experiência branca, capaz de se focar mais na dor das injustiças relatadas do que no gozo e no deleite da identificação com vidas negras registradas e expressas em sua complexidade em narrativas literárias. Logo, é com foco nas experiências e nas trajetórias negras incorporadas pela primeira autora que dialogamos com as obras evaristianas a partir da Educação. Assim, a voz autoral é negra, sendo as duas outras participantes brancas aprendizes a partir da escuta atenta. Cabe ainda ressaltar que as duas primeiras autoras têm trajetórias de estudos reconhecidas no campo. Já a terceira autora, embora em uma posição acadêmica privilegiada, vem se aproximando da área e participou como uma caixa de ressonância para as elaborações das primeiras, recebendo os ensinamentos e os devolvendo e, nesse diálogo, tentando contribuir para o seu fortalecimento e para a estabilização de sentidos.

Conceição Evaristo, que conviveu com Beatriz Nascimento, exprime, através da literatura, a reivindicação por uma escrita que traz a experiência, a vivência, a condição do sujeito negro na realidade brasileira, mencionando que a Escrevivência “[...] é uma busca por se inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas [...]” (Evaristo, 2020a, p. 35). Em confluência, Beatriz Nascimento (2021) também traduz com potência a ideia de uma intelectualidade feminina própria relacionada com a ancestralidade negra, no que tange à produção historiográfica. Para a autora, devemos fazer a nossa história, reivindicar um lugar e uma escrita que reflita a experiência vivida e sentida do negro no contexto brasileiro, pois, em suas palavras, “[...] somos a história viva do preto, não números [...]” (Nascimento, 2021, p. 45).

Através dos pensamentos e das produções intelectuais dessas mulheres negras, observa-se a elaboração de uma reflexão profunda e densa, que reivindica lugares e experiências singulares e coletivas, ao passo que teorizam e compõem saberes a partir dos pertencimentos. Saberes/conhecimentos (Gomes, 2017) que tensionam as análises científicas problematizando dicotomias e hierarquizações, e que, da mesma maneira, fundamentam o questionamento de temas, paradigmas e metodologias do academicismo tradicional próprio da cultura dominante.

É com base nessas questões políticas e éticas, que envolvem produções literárias e intelectuais como um todo, sobretudo as produções de pessoas negras, que Conceição Evaristo vem defendendo uma escrita singular em cruzo com as heranças da diáspora africana. Uma escrita criada desde os ventres maternos e expressa em processos de Escrevivência como um júbilo à vida que “[...] permite embaralhar tudo: vivência e criação, vivência e escrita. Escrevivência” (Evaristo, 2022, p. 3). Trata-se, assim, de um modo de inserção no mundo, de uma maneira de existir, bem como de escrever histórias para a composição de um mundo-vida (Evaristo, 2020a).

Nessa direção, o artigo discorre acerca da análise da obra evaristiana e reflete teoricamente a possibilidade de a Escrevivência atuar como palavra germinante, conforme proposto por Nego Bispo (Santos; Dorneles, 2021), mais do que como categoria, para a configuração de pesquisas e produções acadêmicas em Educação, inclusive no que se nomeia tradicionalmente como método ou metodologia. Além da análise documental da obra de Conceição Evaristo, foi examinada a produção de jovens pesquisadoras/es negras/os, em investigações de mestrado e doutorado em Educação. Assim, o artigo apresenta os resultados de um estudo sobre os modos como a Escrevivência vem sendo mobilizada nesse campo, sobretudo em pesquisas realizadas junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Para tanto, inicialmente, foi realizada uma análise dos sentidos da Escrevivência na obra literária e nos textos teóricos de Conceição Evaristo, na direção de apresentar a sua literatura, os aspectos sociais, os temas que aborda, a dimensão das religiosidades afro-brasileiras, da ancestralidade e da experiência partilhada por mulheres negras. Posteriormente, são apresentados os resultados teórico-metodológicos da análise da experiência textual da Escrevivência incorporada em pesquisas acadêmicas no âmbito da Educação, compondo abordagens que consideram as múltiplas vivências de negros no Brasil, historicamente e na contemporaneidade, ao passo que ponderam criticamente as discussões acadêmicas e éticas provenientes dos estudos de, sobre e junto a pessoas negras – que são comumente objetificadas em construções teórico-metodológicas.

Argumenta-se que a Escrevivência, mais do que um conceito, uma categoria ou uma metodologia, é uma palavra germinante, pois é uma palavra viva, que possui trajetória e possibilita que novas ideias e fazeres brotem e confluam (Santos; Dorneles, 2021). Do mesmo modo, é uma experiência textual profundamente marcada pelas vivências e corporalidades de mulheres negras (Evaristo, 2020b), que funde a escrita com a vida e, assim, vem inspirando diversas pesquisas no campo da Educação. É, portanto, um modo diverso de viver a pesquisa e a intelectualidade, uma tomada de posição negra e feminina, capaz de reivindicar o direito à diferença na escrita acadêmica. Sobretudo, no caso da análise aqui empreendida, trata-se de uma forma inédita de compreender e escrever o Brasil através das mãos de intelectuais negras, capaz de nos convidar a pensar e a agir por meio da profunda escrita literária, inspirando modos de pesquisar em Educação.

Considera-se o fato de que compartilhamos práticas de pesquisa numa cultura investigativa baseada em critérios escritocêntricos, universalistas e meritocráticos – portanto, ainda pouco dialógicas com saberes associados a pertencimentos construídos em comunidades outras que não as acadêmicas. Afirma-se que a pluralidade de saberes e de pertencimentos garante a excelência de qualquer instituição produtora de conhecimentos, destacadamente a universitária (Mato, 2008). Amplia-se tal afirmação ao propor a Escrevivência como uma maneira de desestabilizar as convenções acadêmicas, notadamente ao questionar os modos de expressão do saber na escrita vinculada ao pertencimento racial e perpassada por conhecimentos construídos a partir de uma forma intensiva de existência (Sodré, 2017) em que filosofias e epistemologias não estão separadas do “espiritual”.

 

2 A Escrevivência na obra literária de Conceição Evaristo

Maria da Conceição Evaristo de Brito, mais conhecida como Conceição Evaristo, cresceu na extinta favela Pindura Saia em Belo Horizonte, Minas Gerais. Graduada em Letras pela UFRJ, Mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela UFF, Evaristo tem a escrita marcada pela sua vivência como mulher negra, pautando a discriminação racial, de gênero e de classe. Sua obra literária possui como foco a população negra brasileira, abordando os desejos e as experiências de liberdade, ao mesmo tempo retratando a pobreza e a violência que acometem esse segmento[3]. Trata-se de um modo peculiar de nos fazer compreender o nosso país e a própria forma de realizar pesquisas em nosso contexto específico.

A literatura de Conceição Evaristo versa sobre a complexidade de ser uma pessoa negra, trazendo o cotidiano de choro e gozo das protagonistas majoritariamente femininas. Suas personagens principais, dotadas de conhecimentos, habilidades e sonhos, são meninas, jovens, adultas, anciãs que representam as múltiplas formas de ser mulher em distintas realidades: com deficiência, prostitutas, mães, filhas, esposas, amantes, trabalhadoras. Portanto, a questão de gênero é bem marcada através da cumplicidade, da irmandade e do afeto de mulheres cujos corpos vertem águas e lágrimas insubmissas. Lágrimas de força, resistência e ressignificação. Insubmissas lágrimas de mulheres que não desistem da vida, da luta, das histórias, dos filhos e dos sonhos, mesmo em uma sociedade machista, patriarcal, racista, sexista, classista (Evaristo, 2016a, 2016b, 2017c, 2017d, 2022).

Ademais, ainda que as personagens sejam predominantemente negras, Evaristo também retrata algumas vivências de mulheres brancas que estão, de um modo ou de outro, representadas nos textos como aquelas que ocupam espaços e posições de poder, refletindo a realidade em uma dimensão relacional (Evaristo, 2020a). É o caso da personagem Dona Laura, patroa de Ditinha em Becos da Memória (2017a), assim como da personagem Dalva Amorato, em Canção para ninar menino grande (Evaristo, 2022). Desse modo, as obras apresentam uma riqueza de identidades e subjetividades, além de retratar com profundidade as distintas experiências de vida e os atravessamentos sociais.

Personagens masculinos também estão presentes na obra evaristiana, destacando as experiências do processo de tornar-se homem em uma sociedade machista, a violência patriarcal e as opressões de gênero. Em Canção para ninar menino grande, Conceição Evaristo (2022) narra algumas vivências de Fio Jasmin, homem, negro, jovem, cativante, belo, de porte físico alto e forte, que provocam reflexões sobre a infantilização, a sexualização e a educação de homens negros. Além disso, são proporcionadas discussões acerca das contradições e das complexidades em torno da masculinidade de homens negros e as suas relações afetivas. Porém, de maneira magistral, a obra foca nas experiências de mulheres negras no amor, no relacionamento, no estabelecimento de famílias; rompendo estereótipos e noções preconcebidas a respeito da vida e dos propósitos dessas mulheres (Evaristo, 2022).

Em suma, através de poemas, contos, novelas e romances, Conceição Evaristo aborda questões sociais como injustiça, cultura, religião e supressão dos direitos humanos presentes nas múltiplas e densas histórias dos seus personagens[4]. Observa-se que a leitura dessas obras é entrecruzada pela experiência de cada leitora/leitor e que o pertencimento racial atravessa a relação do pensar e sentir cada experiência narrada e cada personagem apresentado.

Dentre tantas características e aspectos sociais relevantes nas obras de Conceição Evaristo se destaca a Escrevivência, experiência textual iniciada pela autora durante a produção do livro Becos da Memória (Evaristo, 2017a). Através da Escrevivência, ela elabora imagens e cenas (con)fundindo a escrita e a vida, confundindo e fundindo a escrita e a vivência (Evaristo, 2017a). Contudo, para a intelectual, a Escrevivência é mais do que relatar experiências pessoais e individuais, pois trata de vivências sempre coletivas.

Como a autora menciona: “Ouço pela partição da experiência de quem conta comigo e comigo conta. [...] escrevo o que a vida me fala, o que capto de muitas vivências. Escrevivências.” (Evaristo, 2017b, p.17). Assim, a Escrevivência é baseada nas lembranças da escritora junto aos seus familiares, nas experiências de comunidades negras e nas histórias de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social, abordando realidades de sujeitos e grupos sociais dos quais faz parte.

São os pontos basilares da Escrevivência a memoração à história de negras e negros, a importância da oralidade, a identidade, as heranças escravocratas construídas por famílias brancas ainda hoje privilegiadas, o protagonismo feminino e negro em comunidades, além da evocação à ancestralidade. Abordando a lembrança, a memória, a recordação e outros termos correlatos, as obras compõem noções de tempo e presentificam o passado, os ancestrais, as heranças dos antepassados e as corporalidades africanas[5].

Através da oralidade, da memória e dos aprendizados, os personagens trazem lembranças e sentimentos que marcaram a vida dos seus antepassados e, assim, também as suas vidas. São acontecimentos vivenciados e sentidos de forma coletiva, em que o pesar daqueles que vieram antes se atualiza nos de agora. Como a autora menciona: “De muitas histórias já sei, pois vieram das entranhas do meu povo. O que está guardado na minha gente, em mim dorme um leve sonho” (Evaristo, 2017b, p.17). Trata-se de tudo aquilo que historicamente aconteceu e acontece com o segmento negro na sociedade, acabando por se atualizar em corpos e experiências.

Uma dimensão presente na obra de Conceição Evaristo e na Escrevivência a ser destacada é a espiritualidade e a religiosidade afro-brasileira, e esse aspecto passa despercebido a uma pessoa leitora sem conhecimentos acerca do mundo dos terreiros, dos orixás, das entidades e dos seus rituais. São referências que requerem de uma formação mais imersa nesse modo de existência para o entendimento dos múltiplos sentidos das experiências narradas e também para a fruição plena da beleza poética da obra. Essa dimensão espiritual e religiosa, como os próprios rituais afro-religiosos, incluindo os momentos festivos de celebração e de alimentos compartilhados, cria ao leitor iniciado nas religiosidades e na cultura afro-brasileira um espaço-tempo de conforto e acolhimento. A dimensão espiritual da obra parece conferir um sentido de proteção ao leitor, uma atmosfera de quilombo com saberes e fazeres secretos (Nascimento, 2021), que passam despercebidos pelo opressor e seus descendentes.

É o caso, por exemplo, da influição das águas presentes nas produções literárias da escritora: águas de mamãe Oxum, águas de Iemanjá, águas tempestuosas de Santa Bárbara, águas que vertem dos olhos de sua mãe, as insubmissas lágrimas de mulheres, águas de gozo, águas do parto. Desse modo, as águas exprimem as relações entre as mulheres e as Yabás, assim como desvelam os encadeamentos do movimento das águas e o fluxo das lembranças e recordações (Evaristo, 2016a, 2016b, 2017c, 2017d). É o que se evidencia de forma veemente no seguinte excerto:

 

Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum (Evaristo, 2016b, p. 18-19).

 

Outra dimensão presente na obra evaristiana é a própria noção de pertencimento que a Escrevivência proporciona na experiência e na vivência compartilhada entre pessoas negras da diáspora africana. Tal compartilhamento gera na pessoa leitora, para além de uma identificação com a dor, sentimentos de pertença a um grupo e a uma comunidade; sentimentos de pertença que foram violados pelos processos de separação de famílias e entes próximos pela escravização, por exemplo. Nas palavras da autora:

 

Nossa escrevivência traz a experiência, a vivência de nossa condição de pessoa brasileira de origem africana, uma nacionalidade hifenizada, na qual me coloco e me pronuncio para afirmar a minha origem de povos africanos e celebrar a minha ancestralidade e me conectar tanto com os povos africanos, como com a diáspora africana (Evaristo, 2020a, p. 30).

 

Estão em jogo, portanto, noções de identidade, pertencimento, heranças culturais, ressignificação e compartilhamento dessa “vida que eu experimento, que nós experimentamos em nosso lugar ou vivendo con(fundido) com outra pessoa ou com o coletivo, originalmente de nossa pertença” (Evaristo, 2020a, p. 31).

Assim, a obra de Evaristo produz rupturas na cultura hegemonizada a partir da branquitude (Bento, 2002), participando de processos de reparação histórica muitas vezes imperceptíveis para o outro não negro. É uma escrita que registra e testemunha dores, muitas delas vividas no espaço privado, aquele que pode produzir o adoecimento quando a experiência não é considerada, narrada, reconhecida como violadora de direitos humanos, em uma sociedade que dissimula o racismo. Evaristo, portanto, oferece em livros esses espaços de proteção que produzem também o desejo de viver e de escreviver entre os seus e para os seus, constituindo uma subjetividade com o potencial de transformar realidades desiguais como as das instituições educativas e, assim acolher estudantes e docentes que se reconhecem na riqueza cultural à qual pertencem. É o caso da escrita na forma da Escrevivência que estamos tematizando neste artigo, capaz de fazer pensar a brasilidade através de olhares e mãos de intelectuais negras.

 

3 A incorporação da Escrevivência ao fazer acadêmico

Com a difusão e o reconhecimento nacional e internacional da obra evaristiana ao longo dos anos, cresce o contingente de textos e de pesquisas, em diversas áreas do conhecimento, que incorporam a Escrevivência. O movimento criativo e disruptivo impulsionado pela literatura de Conceição Evaristo problematiza a cultura hegemonizada no espaço acadêmico, intensificando a elaboração de escritas, perspectivas teórico-metodológicas e ferramentas investigativas em diálogo com a Escrevivência para a compreensão do Brasil. Como a própria escritora menciona, devido à receptividade e ao uso feito por parte das pessoas que a leem, o termo Escrevivência vem cada vez mais ganhando novos contornos e significados que potencializam as escritas de negras e negros, seja no campo literário, seja no campo científico (Evaristo, 2020a).

Em consonância com a expansão de espaços e de temas de estudo, de acordo com Felisberto (2020), a Escrevivência vem a cada dia adquirindo múltiplos sentidos em diferentes áreas, seja no campo historiográfico, literário ou sociológico, e

 

[...] encena uma possibilidade de escrita com mais autonomia autoral, de interferência e participação na narrativa, além de fluidez, com ritmo e sentidos sem tantos enquadramentos de formato, pois existe a premissa da aproximação do fazer acadêmico com uma realidade vivida em suas práticas cotidianas, dando um sentido de aproveitamento e utilização, que, de certa maneira, tem diminuído a distância entre os diferentes saberes produzidos dentro e fora da universidade (Felisberto, 2020, p. 170-171).

 

Tais considerações apontam, assim, algumas possibilidades e potencialidades que os textos literários de Conceição Evaristo, junto com todas as discussões e pautas sociais que envolvem, vêm oportunizando para a elaboração de perguntas de pesquisa, reflexões e investigações conduzidas por intelectuais negros que anseiam por outras formas de narrar, escrever e pesquisar.

No campo da Educação, este cenário não é diferente, pelo contrário, parece se ampliar em virtude dos artigos, projetos, dissertações e teses que tematizam ou incorporam a Escrevivência. Com o propósito de indagar sobre como a Escrevivência vem sendo incorporada à pesquisa em Educação foram analisadas produções recentes, que articulam vivências de pessoas e comunidades negras a epistemologias, teorias, metodologias e pedagogias que buscam romper com abordagens eurocentradas, ao passo que questionam os saberes a partir dos pertencimentos. Elaborações que versam sobre modos de educar, de realizar práticas pedagógicas, ensinar e aprender em diferentes espaços educativos. Do mesmo modo, tais abordagens buscam problematizar a escrita acadêmica e o escritocentrismo, tramando importantes debates acerca da relevância da oralidade, basilar para a Escrevivência.

Há possibilidade de a Escrevivência atuar como palavra germinante mais do que como categoria, na configuração de pesquisas e produções acadêmicas em Educação? A partir da análise de produções de intelectuais negros, entendemos que a Escrevivência não precisa ser incorporada apenas sob a forma de inspiração, nem tampouco ser engessada como método. A Escrevivência nas produções analisadas compõe uma fundamentação teórico-metodológica sem necessariamente estar coadunada com outros métodos. Ela é germinante de práticas de pesquisa e de formas de escrita em que a autoria é resultado da experiência compartilhada e de conhecimentos herdados de famílias e de comunidades negras. Os estudos analisados não se restringem a um recorte espaço-temporal que tem início com a entrada em campo, ou com a realização de observações e de entrevistas circunscritas ao tempo do projeto de pesquisa. Referem-se, isso sim, a vivências inscritas no corpo pelo pertencimento étnico-racial e que são registradas em produções acadêmicas por intelectuais negros.

Na pesquisa em Educação, como evidenciamos pelos resultados das análises a seguir, há vários exercícios de Escrevivência, todos inspirados em Conceição Evaristo, os quais tensionam os modos costumeiros de produzir indagação e delimitar objetos de estudo. A Escrevivência tem sido colocada em diálogo com ferramentas teórico-metodológicas hegemônicas, mas neste artigo perguntamos se ela pode se configurar como uma palavra germinante, uma abordagem teórico-metodológica alargada por epistemologias negras.

Algumas das produções analisadas desestabilizam o escritocentrismo (Mato, 2008) como demarcador de excelência científica, a partir de convenções e normativas técnicas e teórico-metodológicas. As produções analisadas buscam romper com a deslegitimação de escritas que advêm de pertencimento comunitário em contraste com a dominada por grupos corporativos e institucionalizados. Assim, problematizam a ideia de que toda explicação intelectual é expressa pela escrita e somente pela escrita regulamentada por fórmulas e normas restritivas. As produções analisadas indicam as possibilidades de reformulação das convenções que limitam a linguagem acadêmica, considerando que tais convenções se estabelecem a partir de disputas em uma colonialidade de saber e de poder (Quijano, 2005). Assim, a Escrevivência nos estudos analisados é disruptiva do saber supostamente universal consolidado cientificamente.

As pesquisas analisadas indicam que a linguagem acadêmica pode, na medida da disputa das relações de poder que se estabelecem, ser transformada em suas convenções. E a Escrevivência, na qualidade de desestabilizadora das convenções da escrita literária, também cria novos parâmetros de cientificidade que expandem regramentos de escritas científicas – no campo da Educação, ao menos, isso já está em andamento.

Ademais, a análise das produções que incorporam a Escrevivência indica que ela é uma maneira de viver a pesquisa e a produção intelectual de forma singular, questionando a própria ideia do que seja pesquisar. Viver a pesquisa indica o rompimento com a ideia de separação entre corpo, mente e espírito no ato de produzir saber, assim como o rompimento com a da ideia de que o conhecimento é produzido unicamente na universidade. Do mesmo modo, rompe-se com a ideia de que cognição é apenas razão, uma concepção moderna ocidentalizada que ainda se impõe sobre nossos imaginários. Como ocorre essa desestabilização? Por um lado, ela desestabiliza o referencial relativo ao lugar de fala, ao evocar a mulher negra como aquela que enuncia conhecimentos e escreve, como uma intelectual. Igualmente, aporta um pertencimento étnico-racial que se compõe pela ancestralidade, construído na diáspora negra e africana no Brasil, associado ao engajamento em movimentos e lutas sociais de combate ao racismo. Nilma Lino Gomes (2017) destaca que os movimentos sociais negros constroem saberes desestabilizadores inclusive para a própria forma de construir conhecimentos na academia.

Do mesmo modo, segundo Gomes (2020), a presença de estudantes negras e negros nas universidades, assim como quilombolas e indígenas, vem iluminando o campo acadêmico devido às Políticas de Ação Afirmativa. Seja na graduação ou na pós-graduação, com a instituição de reserva de vagas para os referidos segmentos, a presença desses estudantes cotistas têm conferido à Universidade uma produção de conhecimento mais engajada com as suas causas sociais, reconhecendo outras epistemologias, culturas e corporeidades a partir dos pertencimentos. Logo, ao romperem com a ideia de estudante acadêmico padrão, negras e negros, na universidade, deixam de ser apenas objetificados em desenhos de investigação pela produção científica e passam a ser pesquisadores, desenvolvendo outras formas de interpretar, analisar e problematizar a realidade brasileira, alargando as formas de produção intelectual e a noção de excelência (Gomes, 2020; Silva, 2011; Silva, 2020).

Nessa direção, é inegável a pluralidade de conceitos, teorias e problematizações que emergem de debates, artigos e estudos atinentes às questões negras na universidade. Analogamente, são perceptíveis os inúmeros grupos de pesquisa, escolas de pensamento e vertentes teóricas acerca do próprio Pensamento Negro na esfera da produção do conhecimento, como Pensamento Negro em Educação, Radical, Decolonial, Contracolonial, Estudos Críticos Negros, Estudos Culturais Negros, Afrocentricidade, Afropessimismo[6] etc. Também estão mais frequentes teorias e discussões sobre a escravização, os movimentos, as vivências diaspóricas e os direitos da população negra que incidem na Educação. Há, pois, um conjunto diverso de debates e discussões que expressam a multiplicidade dos sujeitos negros e dos seus pensamentos. No entanto, quando a questão é a respeito das formas de narrar, escrever e pesquisar, ou seja, sobre os modos de fazer e de conduzir a pesquisa, ainda existem dificuldades que limitam e cerceiam a elaboração de novos pressupostos investigativos, teóricos e metodológicos.

Algumas problematizações acerca dos métodos e das metodologias comumente utilizadas nas Ciências Humanas e Sociais estão sendo ampliadas nas pesquisas analisadas e que se dedicaram a estudar outras realidades, como aquelas presentes em comunidades tradicionais e periféricas. Nas produções analisadas, destacamos as seguintes problematizações: 1) ruptura com as metodologias que implicam em posturas autoritárias do pesquisador frente aos interlocutores; 2) relação com os participantes da pesquisa como interlocutores produtores de conhecimento superando abordagens em que são considerados como parte de objetos de pesquisa; 3) abordagens teórico-metodológicas  que buscam pressupostos teóricos negros; 4) uma dimensão ética que desestabiliza epistemologias ocidentalizadas; 5) o pesquisador participa das comunidades que estuda questionando o princípio do afastamento e da necessidade de estranhamento do pesquisador com relação ao núcleo de pessoas com quem aprende; 6) práticas de pesquisa orientadas por epistemologias que buscam superar a experiência de pesquisador-colonizador – aquele que seria o detentor dos conhecimentos, que analisa determinados espaços e grupos aquém da sua realidade e que seria capaz de explicar a vida dos sujeitos-objetos melhor do que eles mesmos. São modos de pesquisar distintos que apontam formas de pensar a realidade da educação brasileira, cruzando passado e presente.

Os estudos analisados contestam a noção de modelos canônicos de pesquisa que são impalatáveis para pesquisadoras e pesquisadores que percebem a forma desrespeitosa como são descritos sujeitos e saberes negros, silenciando a agência desses sujeitos e tratando seus conhecimentos de maneira assimétrica perante as concepções teóricas hegemônicas. Diferentemente de abordagens coloniais supostamente redentoras, que afirmam dar voz às pessoas negras, como concessão, que emprestam temporariamente seus espaços de poder, alimentando noções de dependência e subserviência da população negra diante de pesquisadores brancos, nas pesquisas analisadas os autores narram, em primeira pessoa, experiências das quais participam.

Em resumo, os estudos analisados produzem rupturas em relação às metodologias replicadas há anos, fundadas em experiências centradas no eu (branco, cristão, cis, heteronormativo...), que expressam inúmeras relações de poder e que foram repercutidas, sobretudo, por pesquisadores que se utilizam de teorias e conceitos elaborados em países ocidentalizados ou a partir de teóricos europeus e estadunidenses. Interessa, neste momento, destacar que determinados pressupostos teóricos e metodológicos ocidentalizados não dialogam com a forma de condução das pesquisas realizadas por estudantes negros da primeira turma de cotistas do PPGEDU da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que desenvolveram os seus estudos com comunidades negras, ou ainda junto a pessoas negras e mais, participando desde o seu nascimento das práticas socioculturais que estudaram, em diferenciação às pesquisas realizadas sobre pessoas negras que são tratadas como objetos.

O referencial teórico-metodológico das pesquisas buscou considerar vivências e pensamentos de pessoas negras brasileiras, da diáspora ou africanas, realizando esforços para a consolidação de outras formas de fazer pesquisa em Educação[7]. Os estudos analisados enfocam as possibilidades da pesquisa como forma de colaboração e compartilhamento com os participantes, através do desenvolvimento da ‘pesquisa ação-colaborativa’, da ‘pesquisa-ativista’ e das ‘forjas pedagógicas’ que problematizam os instrumentos metodológicos ao compor dissertações realizadas pelos primeiros estudantes cotistas negros do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e que são apresentadas na obra Reafirmando direitos: cotas, trajetórias e epistemologias negras e quilombolas na pós-graduação (Dorneles et al., 2020).

A Mestra em Educação Dandara Rodrigues Dorneles, bióloga e especialista em História e Cultura Afro-Brasileira, defendeu em 2019 a dissertação intitulada Saberes, Fazeres e Educação na Terreira: os Barquinhos de Iemanjá e os discursos ecológicos. Nesse estudo, realizou uma pesquisa etnográfica inspirada na Escrevivência de Conceição Evaristo, a partir da qual experienciou o “campo” (con)fundindo escrita/pesquisa e vivência junto a uma terreira no Rio Grande do Sul. Logo, buscando extrair estratégias teórico-metodológicas, apresentou a realização de uma etnografia enquanto escrevivência configurando uma experiência que se afasta daquelas reportadas em bibliografias mais “tradicionais”, nas quais seria importante o distanciamento relacional e cultural da etnógrafa com o contexto a ser estudado (Dorneles, 2019).

Em consonância, em 2019, o Mestre em Educação Thiago Pirajira, bacharel em teatro e ator, defendeu a dissertação intitulada Forjas Pedagógicas: rupturas e reinvenções nas corporeidades negras em um bloco de carnaval (Porto Alegre, Brasil). Como instrumento metodológico, Pirajira (2019) incorporou as Escrevivências junto à noção de Forjas pedagógicas como aporte na análise das entrevistas realizadas com atores negros durante a sua pesquisa. Para o autor, as Escrevivências de Conceição Evaristo significaram “a possibilidade de narrar conjuntamente com o outro [...], propôs uma desobediência à forma hegemônica de pensar/compor a própria metodologia de pesquisa”. E ainda significou a possibilidade de compreender, na prática, que “descolonizar a metodologia desloca os lugares de fala, escuta e escrita” (Pirajira, 2020, p. 183).

Posteriormente, em 2020, foi a vez da Mestra em Educação Rita de Cássia dos Santos Camisolão, que é graduada em Letras, especialista em Projetos Sociais e Culturais e militante do Movimento Negro no Rio Grande do Sul (RS). Ao defender a dissertação intitulada Cartografia do acolhimento: escrevivências do estudante negro na UFRGS, a pesquisadora mapeou ações de acolhimento voltadas aos estudantes negros na universidade, buscando compreender e analisar o quanto tais iniciativas implicavam nas Escrevivências negras no espaço acadêmico. Além disso, ao utilizar a cartografia como método de pesquisa, Camisolão (2020) estabeleceu pontos de conexão entre esse método e as Escrevivências durante seu processo investigativo. Segundo a autora, as Escrevivências do negro na UFRGS constituem um dos principais resultados das ações de acolhimento, na perspectiva da representatividade e do empoderamento dos estudantes na Universidade (Camisolão, 2020).

Essas três pesquisas, desenvolvidas em simultaneidade no mesmo Programa de Pós-Graduação em Educação, evidenciam uma convergência de pensamentos, leituras e necessidades acadêmicas identificadas, as quais encontram na literatura de Conceição Evaristo uma possibilidade para forjar caminhos investigativos em consonância com um projeto de sociedade que respeite, preze e valorize as inúmeras vivências negras. Reverbera na análise desses estudos o pertencimento étnico-racial como elemento que entrecruza a Escrevivência e a produção científica, questionando o saber acadêmico em sua forma, ou seja, propondo viver a pesquisa e a intelectualidade de uma maneira mais orgânica. Do mesmo modo, as pesquisas evidenciam uma proposta coletiva construída entre colegas de mestrado, que fizeram parte do grupo dos primeiros cotistas negros do Programa, no qual o diálogo e a movimentação para a abertura do debate vêm consolidando novos pressupostos teóricos e metodológicos que consideram a experiência e o Pensamento Negro.

Estudos como os analisados vêm contribuindo para a produção de novas abordagens pedagógicas em espaços de formação inicial e continuada de professores e em práticas curriculares na Educação Básica. Os conhecimentos produzidos, disseminados em publicações e ações de extensão, começam a penetrar escolas e currículos, possibilitando que estudantes negras e negros se reconheçam em práticas culturais que passam a ser valorizadas nessas instituições.

Além de estudos no âmbito da Educação da UFRGS, que incorporaram a Escrevivência no rearranjo dos métodos e das metodologias empregadas nas pesquisas (Camisolão, 2020; Dorneles, 2019; Pirajira, 2019), há, notoriamente, um crescente número de artigos, dissertações e teses que mobilizam a Escrevivência em outras áreas. Soares e Machado (2017), por exemplo, dialogam com esse experimento textual de Conceição Evaristo no contexto da produção de conhecimento na Psicologia Social no RS. Tais autoras, investindo em uma estratégia que desse conta das experiências e vivências de mulheres negras, defendem a Escrevivência como um método de investigação, mencionando que ela desponta “[...] como uma metodologia e uma ética de pesquisa que aposta na escrita como forma de resistência” (Soares; Machado, 2017, p. 217).

Ademais, nas palavras das autoras, o diálogo entre o fazer acadêmico na Psicologia Social e as Escrevivências “emergiu como uma escolha analítico-metodológica para apresentar as histórias de vida de mulheres que se articulam entre si, bem como à trajetória de mulher negra da primeira autora” (Soares; Machado, 2017, p. 216). Logo, observamos também esse aspecto da Escrevivência, qual seja, o de valorização da vida de mulheres negras como protagonistas de suas próprias histórias.

Em direção semelhante, Felisberto (2020) também menciona a Escrevivência como aporte metodológico que marca a trajetória e a escrita de mulheres negras, porém a partir da Geografia, das Letras e da Pedagogia em um texto ensaístico. Para a autora, ao trazermos a discussão da escrita de mulheres negras a partir da Escrevivência para outras áreas, além dos estudos literários, estamos “decodificando elementos de sua práxis textual, como um elemento de empoderamento frente ao texto convencional” (Felisberto, 2020, p. 172). E mais, conforme a autora pontua, “estamos vivendo um momento em que a ebulição de experimentos escritos já não pode mais ser amputada para caber dentro da roupa justa que um texto acadêmico pode se tornar” (Felisberto, 2020, p. 179). Assim, olhando para um conjunto de pesquisas conduzidas por estudantes negras na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Felisberto (2020) defende a Escrevivência como um operador teórico emergente.

Com base no que foi apresentado até aqui, a Escrevivência tem ganhado novos contornos, sobretudo nas discussões acerca do fazer acadêmico, ou seja, nas formas como pesquisadores e estudantes negros estão pensando, organizando e fazendo as suas pesquisas nas mais diferentes áreas. O conjunto de pesquisas analisadas configuram um cenário de reivindicação pelo reconhecimento da produção e do pensamento de pessoas negras por meio da construção de outros caminhos investigativos. Está em jogo, desse modo, a defesa da Escrevivência como parte de um processo de virada epistêmica na produção do conhecimento, a qual reposiciona e problematiza tanto a teoria quanto o método. Portanto, levando em consideração os objetivos e as reflexões de tais pesquisas apresentadas e as suas respectivas incorporações da Escrevivência, considera-se que este experimento textual de Conceição Evaristo tem a potencialidade de ensejar modos negros de viver a pesquisa, capazes de dialogar com as propostas emergentes na Educação e, do mesmo modo, capazes de oportunizar outras compreensões sobre o Brasil.

 

4 Conclusão

A partir das análises realizadas da obra evaristiana e de produções acadêmicas que empregam a Escrevivência à pesquisa em Educação, entendemos a sua incorporação como forma de legitimar o saber construído a partir do pertencimento étnico-racial, vinculado à ancestralidade negra da diáspora africana no Brasil, marcada pela religiosidade afro-brasileira que configura modos de viver, ser e estar no mundo. A Escrevivência como escrita traz interrogações, exprime dores, provoca desconfortos, questiona epistemologias ocidentalizadas, ao passo que constitui uma grafia com outras letras e marcas. Incorporar e realizar Escrevivência é fazer histórias por mãos pretas, fundir e confundir vivências negras, ensejar maneiras de viver junto e construir mundo-vida. É, portanto, forjar através do pensamento de mulheres negras potentes modos de abordar e compreender o Brasil e suas histórias plurais, destacadamente no campo que entrecruza História e Educação.

Consideramos a possibilidade de compreender a Escrevivência como uma palavra germinante nascida na narrativa literária e capaz de evocar o desejo da sua incorporação na pesquisa e escrita acadêmica. A Escrevivência germina práticas de pesquisa e formas de escrita em que a autoria é resultado da experiência compartilhada e de conhecimentos herdados de comunidades negras. Assim, mais do que um conceito, uma categoria ou uma metodologia, a Escrevivência, nas pesquisas em Educação analisadas, é uma palavra germinante, pois é viva e possui trajetória, possibilitando reedições e confluências.

Neste artigo, a Escrevivência germinou como uma maneira de viver a pesquisa e a intelectualidade, a partir de um pertencimento negro. Tal maneira de viver a pesquisa entrecruza fazer o desenho teórico e metodológico, pensar, produzir dados, conviver, escrever, oferecer e oferecer-se à comunidade. Nessa direção, a Escrevivência possui uma originalidade que anuncia a própria consecução de como conduzir pesquisas de modo distinto dos métodos convencionados pela ciência de hegemonia branca, por vezes rompendo com a relação de estranhamento ou distanciamento das fontes, criando outros parâmetros para pensar arquivos e testemunhos. A incorporação da Escrevivência na prática acadêmica busca superar dificuldades decorrentes da limitação de técnicas e de estratégias de pesquisa canônicas, às quais não fazem jus nem sentido às vivências e éticas de pessoas negras pesquisadoras.

Além de analisar resultados de práticas de pesquisa que oportunizam reflexões teóricas e metodológicas, consideramos que ensejar discussões junto à Escrevivência e à Conceição Evaristo é também divulgar e valorizar a sua produção intelectual como mulher negra, ao passo que apresentar parte de um compromisso político-social e educativo em reconhecer e reverberar o Pensamento de Mulheres Negras. Assim, os resultados deste estudo são teóricos e metodológicos e, do mesmo modo, políticos e éticos, pois possibilitam dialogar com autoras negras que discutem as questões raciais e as distintas formas de vivências como eixo central de suas produções, seja no campo da Educação ou da Literatura.

Por fim, cabe mencionar que a Escrevivência, do mesmo modo, responde a uma demanda surgida com as políticas de ações afirmativas que vêm modificando o perfil de estudantes e de pesquisadores nas universidades, uma demanda por perspectivas teórico-metodológicas apropriadas à realização de estudos de pessoas negras junto às suas comunidades educadoras (periféricas, tradicionais, artísticas, intelectuais). Perspectivas que proporcionam elaborações que versam sobre modos de educar, de realizar práticas pedagógicas, ensinar e aprender em diferentes espaços educativos. Assim, escreviver evoca demarcar a diferença pela narrativa, cuja palavra escrita não resume tudo e alcançar o todo é um dilema, um desafio, um convite, uma incerteza. A encruzilhada aponta muitos caminhos.

Logo, seja como uma maneira de viver a pesquisa e a intelectualidade, seja como palavra germinante, a Escrevivência se presentifica em distintos cursos acadêmicos e áreas do conhecimento. Ela vem possibilitando a legitimação do pensamento, da autonomia e da existência de autoras/es negras/os, bem como de pesquisadoras/es, sem deixar de reconhecer as múltiplas vivências negras e a condição da mulher negra na sociedade brasileira. A Escrevivência marca um lugar de ruptura com a escrita hegemônica que se quer universalista e imparcial, ensejando uma escrita que potencializa e valoriza a oralidade das comunidades. É uma escrita de nós, por nós, que traz experiências, singularidades, multiplicidades e, sobretudo, faz coletividade.

 

Referências

 

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DORNELES, Dandara Rodrigues. Saberes, Fazeres e Educação na terreira: os Barquinhos de Iemanjá e os discursos ecológicos. 2019. 166 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2019.

 

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EVARISTO, Conceição. Conceição Evaristo: Escrevivência. [S.l.], 2020. Publicado pelo canal Leituras Brasileiras. 1 vídeo (24 min). 2020b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QXopKuvxevY&t=1s. Acesso em: 22 jul. 2022.

 

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017a.

 

EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017b.

 

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017c.

 

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017d.

 

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016a.

 

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FELISBERTO, Fernanda. Escrevivência como rota de escrita acadêmica. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado (orgs.). Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 164-181.

 

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SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2021.

 



[1] Utiliza-se a palavra Escrevivência com letra maiúscula para destacar que o termo cunhado por Conceição Evaristo é elemento fundamental da escrita do artigo.

[2] Tal movimento dialógico resultou na atividade acadêmica “Seminário Pesquisa em Educação e Escrevivência”, com a temática teoricamente reflexionada neste texto, igualmente compartilhado pelos distintos pertencimentos e experiências raciais aqui identificadas.

[3] Para maiores informações ver:

EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2022.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017a.

EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017b.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017c.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017d.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016a.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016b.

[4] Para maiores informações ver:

EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2022.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017a.

EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017b.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017c.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017d.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016a.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016b.

[5] Para maiores informações ver:

EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2022.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017a.

EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017b.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017c.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017d.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016a.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016b.

[6] Para maiores informações ver:

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NOGUERA, Renato. Afrocentricidade e educação: os princípios gerais para um currículo afrocentrado. Revista África e africanidades, [s.l.], v. 3, n. 11, p. 1-16, 2010.

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WILDERSON III, Frank B. Afropessimismo. São Paulo: Todavia, 1. ed. 2021.

[7] A consolidação de um estudo em que a Escrevivência é considerada o próprio modo de viver a pesquisa e a intelectualidade está sendo elaborada pela primeira autora, em sua tese em Educação a ser defendida em 2024 no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS.