e-ISSN 1984-7246  

“Empretecendo os caminhos”: o Coletivo Mapinduzi e a promoção de intelectualidades negras[i]

 

Juliana Silva Santana[ii]

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Fortaleza, CE - Brasil

lattes.cnpq.br/7218143551127362

orcid.org/0000-0002-5234-4521 

juliana.santana@uece.br

 

 

Mar Silva[iii]

Prefeitura Municipal de Fortaleza

Fortaleza, CE - Brasil

lattes.cnpq.br/1489832295920561

orcid.org/0000-0002-3463-5034   

marsilvx@icloud.com

 

 

Davison da Silva Souza[iv]

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Fortaleza, CE - Brasil

lattes.cnpq.br/5879358723019951  

orcid.org/0000-0002-8597-4933    

davison.souza@aluno.uece.br

 

 

Gabriele da Silva Antunes[v]

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia

Afro-Brasileira (UNILAB)

Redenção, CE - Brasil

lattes.cnpq.br/5193924085316983     

orcid.org/0000-0003-1389-6785      

gaabsantunes33@gmail.com 

 

 

 

“Empretecendo os caminhos”: o Coletivo Mapinduzi e a promoção de intelectualidades negras

 

Resumo

Diante das históricas lutas dos povos negros no Brasil, ampliam-se as políticas afirmativas e as discussões sobre a urgência de uma sociedade/educação antirracista. Esse movimento encontra barreiras sistemáticas provenientes da branquitude e do racismo e, nas universidades, especificamente, elas impactam negativamente na formação de professores e profissionais da educação. Insurgindo a essa lógica, estudantes universitários do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (UECE) aquilombaram-se em 2021, fundando o “Coletivo Mapinduzi”: um grupo de leitura de intelectuais negras, um lugar de afetos, diálogos e resistência. Assim, esse artigo tem como objetivo geral refletir sobre a construção de lugares de promoção da intelectualidade negra a partir da experiência no Coletivo Mapinduzi/ UECE. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, um relato dessa experiência de aquilombamento estudantil que se fortalece na perspectiva interseccional para discutir a formação docente. Os principais achados confirmam a ausência de estudos de intelectuais negras durante a formação em Pedagogia que denunciam um currículo institucionalmente embranquecido. Destaca-se, ainda, a autonomia, ousadia, poder e experiência de vanguarda escrevivida pelo Coletivo Mapinduzi, ao criar e abrir espaço permanente para apresentar, discutir e construir o pensamento negro dentro da Universidade, acolhendo estudantes, em sua maioria, negras/os/es, desejosas/os/es por conhecer e ser intelectualidades negras.

 

Palavras-chave: intelectualidades negras; educação antirracista; pedagogia UECE; Coletivo Mapinduzi.

 

"Blackening the ways": the Mapinduzi Collective and the promotion of black intellectuality

 

Abstract

In the face of the historic struggles of black people in Brazil, affirmative policies and discussions about the urgency of an anti-racist society/education are expanding. This movement encounters systematic barriers arising from whiteness and racism and, in universities, specifically, they negatively impact the training of teachers and education professionals. In response to this logic, university students from the Pedagogy course at the State University of Ceará (UECE) took action in 2021, founding the “Mapinduzi Collective”: a reading group of black intellectuals, a place of affection, dialogue and resistance. Thus, this article's general objective is to reflect on the construction of places to promote black intellectuality based on the experience at the Mapinduzi Collective/UECE. This is a qualitative research, a report of this experience of student "aquilombamento" that is strengthened by the intersectional perspective to discuss teacher education. The main discoveries confirm the absence of studies of black intellectuals during Pedagogy training, which report an institutionally whitened curriculum. Also noteworthy is the autonomy, boldness, power and avant-garde experience written by the Mapinduzi Collective, by creating and opening a permanent space to present, discuss and construct black thought within the University, welcoming students, the majority of whom are black, eager to meet and be black intellectuals.

 

Keywords: black intellectuals; anti-racist education; UECE pedagogy; Mapinduzi Collective.

 

1 Primeiras palavras

A princípio, saudamos as que vieram antes de nós e pedimos licença para iniciar nossos trabalhos. Reconhecemos, desde aqui e até o final, que nossas ancestrais foram escudo e guia em meio a batalha que vem sendo travada, protegendo e guiando nossos passos. Antes de anunciar nosso preto conhecimento, queremos fazer menção às “Letras Pretas” da poeta Odailta Alves, que coadunam perfeitamente com o que nos propomos aqui:

 

A sociedade só compreende a vida

Clara, muito claramente

Minhas letras vagam

Pela negritude que sou eu

Empretecem os meus caminhos

São canivetes afiados

Que denunciam os negros finados

O racismo velado

E sei que cada vocábulo

Não está sozinho

Tem o axé dos meus ancestrais

É banto, jeje, nagô

Palavras que ecoarão

Ressignificando a escuridão

Pois as letras pretas fazem percursos próprios

Nunca foram claras,

Nem nunca serão (Alves, 2022, p. 7).

 

Assim como nós, a poeta parte de um movimento de denúncia-anúncio, escancarando a epistemologia branca que só entende a vida, o mundo e as coisas que nele há a partir de sua ótica branca-racista. Mas nossas letras pretas vagam, criando rupturas, desfazendo barreiras e construindo caminhos. Nossa palavra é ancestral, tem força e provoca mudança. Com nosso preto discurso, anunciamos possibilidades para os nossos e as nossas, falamos de nossas pretas vivências e relatamos o bem-viver que temos, em comunidade, construído.

Diante disso, neste trabalho, objetivamos refletir sobre a construção de lugares de promoção da intelectualidade negra a partir da experiência no Coletivo Mapinduzi /UECE, que é um grupo de estudos e vivências sobre e a partir da intelectualidade de mulheres negras. Esse coletivo foi fundado diante da indignação de estudantes negros e negras da Universidade Estadual do Ceará (UECE) acerca do que o currículo acadêmico do curso de Pedagogia da instituição deixou “passar em branco”.

Para tanto, neste trabalho de abordagem qualitativa, apresentamos nossa vivência enquanto Coletivo Mapinduzi, lócus de promoção da intelectualidade de mulheres negras e, também, de construção e disseminação de saberes negros de forma circular e dialogada. Para tanto, além de nosso Relato de Experiência, apresentamos intelectuais negras (Collins, 2019; Gomes, 2017; Gonzales, 2020; Hooks, 2021a, 2021b; Nascimento, 2021) que fundamentam nossas proposições na militância junto à comunidade amorosa que é o Coletivo Mapinduzi.

A partir desse objetivo, reconhecemos a interseccionalidade como guia teórico-metodológico tanto nas obras estudadas, como na forma de dialogar sobre elas. Seguindo a tradição feminista negra, entrelaçamos a teoria trabalhada com situações e sentimentos que atravessam as populações negras e como tais acontecimentos se interseccionam com análises de gênero, raça, classe, orientação sexual, práticas religiosas, dentre outras.

Nossas descobertas e reflexões não surgem da atmosfera abstrata ou, como nos acusam os reacionários, identitárias: analisar interseccionalmente a existência e experiência de pessoas negras é um exercício de compromisso teórico e científico, uma vez que essa população sofre efeitos coletivos de opressões de gênero, raça, classe (Akotirene, 2022). Porém, para além das dores, nossos diálogos no Mapinduzi apontam, desde o início, desejos e sonhos de bem-viver coletivo: possibilidades de transformação, resistências territoriais, políticas, alternativas afetivas e teóricas. Guiadas pelo pensamento de mulheres negras, fundamentamos concepções de educações (sim, no plural) libertadoras, antirracistas, feministas, críticas, engajadas e comprometidas coletivamente com a transformação social.

Em todo nosso trabalho, preocupamo-nos em entrelaçar teoria e vivência, pensando que uma não se distancia da outra, antes, são um continuum: teoria-vivência-teoria, semelhante à práxis freireana (Freire, 2020). Assim, nosso trabalho se organiza a partir da elaboração de três seções teórico-vivenciais: (1) “Letramento racial e escrevivência: anunciando o lugar da intelectualidade negra”, onde apresentamos a proposta do Coletivo Mapinduzi a partir da apreciação das noções de Letramento racial e Escrevivência; (2) “Coletividades Negras: o eu encontrando o nós”, onde discutimos, a partir da problematização de um currículo eurocêntrico e branco, sobre identidades negras e processo de aquilombamento; e, por fim, (3) “Coletivo Mapinduzi: a revolução de afetos na construção da intelectualidade negra”, onde escrevivemos a relevância das “redes de afetos” tecidas por nós nesse processo de construção de um coletivo acolhedor, amoroso e radicalmente aberto ao diálogo.

 

2 Letramento racial e escrevivência: anunciando o lugar da intelectualidade negra

Sendo a coletividade um fator importante para a construção de nossas subjetividades e afirmação de uma identidade positiva, um olhar amoroso sobre nossos corpos e um toque caloroso sobre nossa pele, destacamos que, nesse processo de reconhecer-se enquanto corpo negro, o letramento racial foi uma ferramenta de suma importância, pois nos permitiu ler e agir contra o racismo estrutural.

Braúna, Souza e Sobrinha (2022) destacam que o letramento racial é um continuum-ação, um compromisso de enfrentamento ao racismo. Nessa definição, as autoras pensam a branquitude como um grupo racial, que detém privilégios por meio do racismo, ocupando espaços sociais de poder e decisão na sociedade brasileira.

A partir dessa leitura de mundo racializada, refletida através do espelho de Yemanjá e Oxum, enxergamos a raça como um fator determinante nas relações sociais. Foi a partir do Letramento racial que questionamos a intelectualidade nos apresentada dentro da universidade. Pois, assim como Beatriz Nascimento (2021), percebemos que o conceito de intelectualidade construído pela academia não nos representava. Principalmente porque essa intelectualidade falava/escrevia sobre si (a experiência branca) ou nos silenciava, falando/escrevendo sobre nós (negros/as) sem nós; havendo sempre uma imposição, nos negando o direito a enunciação.

Nascimento (2021, p. 41) destaca que

 

O branco brasileiro de um modo geral, e o intelectual em particular, recusa-se a abordar as discussões sobre o negro do ponto de vista da raça. Abomina a realidade racial por comodismo, medo ou mesmo racismo. Assim, perpetua teorias sem nenhuma ligação com nossa realidade racial. Mais grave ainda, cria novas teorias mistificadoras, distanciadas dessa mesma realidade.

 

Portanto, essa intelectualidade, que por meio de um silêncio estrondoso se nega a discutir as questões raciais ou, quando discute, adota um texto paternalista, nega nossa existência. Em meio aos dois casos, nos é negado o direito de falar/escrever sobre nossas experiências. Dentro da universidade, a escrita na terceira pessoa nos chega por imposição, pois a ciência cartesiana, detentora da verdade absolutista, não aceita que a nossa subjetividade se manifeste nos textos acadêmicos.

Essa lógica colonial se quebra quando encontramos, em nosso percurso, intelectuais negros e negras que narram em seus textos a experiência de quem tem a pele negra como a nossa. Sendo uma ruptura desbravadora das veredas postas e impostas pelo colonialismo, a intelectual negra Conceição Evaristo nos apresenta maneiras outras de escrever sobre nosso existir e intervir no mundo. Denomina de escrevivência “a palavra-ação de um sujeito que a sua escrita narra a memória de sua pele[1]”. Portanto, esse corpo que se utilizava da tradição oral (Hampté Bá, 2021) agora é um corpo-pronúncia, pois anuncia sua existência por meio da palavra escrita.

Essas escritas, pensadas pela intelectualidade negra hoje, “[...] já existiam no ventre de minha mãe, num quilombo qualquer do nordeste, na África, aonde já não quero nem posso mais voltar” (Nascimento, 2021, p. 46). Sistematizando atualmente os saberes passados, em um movimento circular de valorização da nossa ancestralidade, a escrevivência tem a possibilidade de transformar a nossa carne em navalha (Racionais, 2014), cortadora do tecido eurocristão-colonial.

Tendo em vista todo esse percurso, e pensando transgressivamente, decidimos, de forma intencional e política, estudar intelectuais negras, mulheres produtoras de conhecimentos, saberes e epistemologias. Mulheres que a partir de suas escrevivências, nos atravessassem o pensamento, o corpo e o espírito. Mediante isso, constituímos o Mapinduzi como um lugar de construção coletiva, de compartilhamento e de diálogos sobre intelectuais negras.

O primeiro ciclo começou em meados de maio de 2021. Dialogamos com a obra “Ensinando a transgredir” da afro estadunidense bell hooks. Para algumas das participantes, a discussão não era nova, para outras, no entanto, era uma primeira reflexão sobre raça – especialmente em uma perspectiva pedagógica e interseccional. Além disso, boa parte das 15 pessoas presentes (média de participantes por ciclo) estava se graduando ou era graduada na área da educação, em sua maioria, alunas/os/es egressas/os/es do curso de pedagogia.

Portanto, as reflexões tecidas ao longo dos anos de 2021 e 2022 se desenvolveram a partir de um ponto chave: a ausência – ou baixíssima presença – de intelectuais negras da educação nas referências teóricas do referido curso de formação inicial. Tal ausência não é acidental: os saberes teóricos, políticos, afetivos, científicos, culturais e históricos de mulheres negras sofrem processos de apagamento e subordinação (Collins, 2019). Apesar de normalizado, nos choca e violenta adentrar espaços de formação docente e não refletir a partir do pensamento de mulheres, em especial as negras. É desse movimento de denúncia e anúncio, característica da escrita e engajamento político de mulheres como bell hooks, Marielle Franco e Nilma Lino Gomes, que nos dedicamos a fundamentar nossos saberes e práticas docentes nas contribuições de intelectuais negras.

Os primeiros conceitos da Pedagogia Engajada de bell hooks foram sendo apresentados e discutidos pelo coletivo. Assim como a escrita de bell, nossas discussões eram sempre abertas às subjetividades. Era possível, se fosse de nosso interesse e nos sentíssemos à vontade, compartilhar coisas da vida cotidiana, fossem elas sobre a experiência na escola ou não. A educação era discutida na sua plenitude, como fenômeno social e multifacetado, que está presente em diferentes contextos.

O exposto revela a construção coletiva do Mapinduzi, ressaltando a motivação primeira para a criação do coletivo como grupo de estudos, a organização dos primeiros encontros e nossa primeira referência teórica. Na próxima seção, a partir da noção de aquilombamento, discutiremos como nossas individualidades foram encontradas no coletivo.

 

 

3 Coletividades negras: o eu encontrando o nós

Completados 20 anos da sanção da Lei 10.639/2003 (Brasil, 2003), que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afrobrasileira como uma das medidas institucionais de combate ao racismo, de formação e fortalecimento de identidades negras acontecerem de forma institucionalizada e democrática através do ensino, a construção da educação antirracista avança, principalmente sob esforços de pessoas negras, ao mesmo tempo em que continua encontrando barreiras para se estabelecer em decorrência dos efeitos da branquitude enquanto sistema de opressão.

Na universidade, nesse espaço de formação de professoras/es ainda tão embranquecido, a presença do Coletivo Mapinduzi e das intelectualidades negras – as já reconhecidas nacional e internacionalmente e aquelas que estão se constituindo ali mesmo – gera novos caminhos, reflexões outras sobre a educação, as escolas, as/os estudantes e o fazer docente, abrindo mentes para que consigam vislumbrar práticas pedagógicas antirracistas, afrorreferenciadas, amorosas e engajadas (Hooks, 2013).

Através das leituras indicadas ao coletivo em diálogo com as leituras individuais (da palavra e do mundo) de cada componente, nossos encontros são semeadura de ideias para efetivar o combate ao racismo e o fortalecimento das identidades negras na universidade e nas escolas. É lugar de afetos para futuras/os/es professoras/es negras/os/es, ainda em formação inicial, que não se veem representadas/os/es diante do branco-saber-científico compulsoriamente apresentado. Afetar-se, então, é fundamental para a construção das aprendizagens; afetada/o/e aprendendo para, com isso, conseguir ensinar.

Circulam no Coletivo saberes científicos, saberes-práticas, saberes-sentidos, saberes-populares e tantos outros saberes-resistência. A adesão de discentes, sobretudo da pedagogia, confirma a importância dessa iniciativa, denuncia as ausências de espaços e intelectualidades negras na universidade e anuncia o forte movimento antirracista que permanece se construindo – em quilombos, por pessoas negras e não negras aliadas, inquietas por liberdades e estrategicamente montadas para pressionar a branquitude, enquanto acolhe os afrossaberes, os afrossentidos, as afropercepções de vida.     

Para a intelectual negra Cida Bento (2022), branquitude é um sistema de poder e privilégio que constitui um fenômeno de transmissão de hierarquias das relações de dominação que atravessa gerações. A autora nomeia, ainda, de “pacto narcísico da branquitude” a perpetuação das desigualdades raciais, de forma não-verbalizada, entre pessoas brancas, a fim de manterem seus privilégios. Dessa forma, consideramos importante ressaltar que no cenário educacional brasileiro, a educação antirracista representa um avanço socioeducacional, enquanto a educação eurocentrada (fortemente vigente nos currículos nacionais) representa um retrocesso socioeducacional.  Portanto, é urgente que aprendamos a racializar pessoas brancas, assim como aprendemos a racializar negros e indígenas. Ao não ser racializado, o branco assume o lugar de “padrão”, lógica supremacista que o permite estar sempre no poder, superior aos “demais”.

No caso do corpo negro, o processo de racialização é um tanto solitário. Utilizando o critério de autodeclaração, no último dado levantado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), de 2021, “43,0% dos brasileiros se declararam como brancos, 47,0% como pardos e 9,1% como pretos” (IBGE, 2022). Autodeclarar-se passa, especialmente, por um processo de identificação e reconhecimento – não só de sua cor ou raça, mas de um conjunto de outras características que estão diretamente atreladas a isso.

Dentro da sociedade supremacista branca patriarcal capitalista e imperialista (Hooks, 2021a), as pessoas negras são ensinadas, a partir da lógica do opressor (homem branco cis-hétero), que sua beleza, história, valores e cultura são inferiores. A intelectual Beatriz Nascimento (2021, p. 49) nos diz que:

 

Ser negro é enfrentar uma história de quase quinhentos anos de resistência à dor, ao sofrimento físico e moral, à sensação de não existir, à prática de ainda não pertencer a uma sociedade à qual consagrou tudo o que possuía, oferecendo ainda hoje o resto de si mesmo.

 

Essa sensação de não existência que é constantemente transmitida pela educação, pois na escola institucional, que é um espaço de compartilhamento e introjeção da hegemonia branca (Hooks, 2021a), somos levadas/os/es, por meio de uma história falaciosa, a enxergar a identidade negra de forma negativa, de modo que o reconhecimento do “eu” enquanto sujeito histórico não é fomentado pela instituição escolar.

Lélia Gonzalez (2020, p. 160) nos diz que é por meio da educação na escola institucional que as “[...] nossas crianças são induzidas a acreditar que ser um homem branco e burguês constitui o grande ideal a ser conquistado. Em contraste, elas são também induzidas a considerar que ser uma mulher negra e pobre é um dos piores males”. Nessa relação hierárquica, típica do pensamento e opressão colonial, temos, de um lado, uma raça (branca) considerada como o grande ideal a ser alcançado, portanto, humana; e, do outro, uma raça (negra) estereotipada e imposta como não humana.

Lélia Gonzalez (2020) ainda pontua que as populações negras, ao se inserirem nesse ideal “humano”, sofrem um processo denominado de branqueamento, onde as pessoas negras assumem os valores, as histórias e a cultura branca como suas. Desconectando-se de si, naturalizam esse processo e se distanciam do ser negro, buscando “tornar-se gente” (Souza, 2021).

É muito comum, em diversos ambientes sociais, que algumas pessoas negras digam: “eu me descobri negra muito tarde”, e essa afirmação parece óbvia, afinal, para se descobrir negra/o/e não basta se olhar no espelho. A intelectual Neusa Santos Souza (2021, p. 46) nos diz que, neste caso, o óbvio não é óbvio, pois, “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas”. Consoante Souza (2021), pontuamos que a alienação de si é um projeto intencional promovido como política de um estado racista, continuamente reforçada na escola institucional que não se alinha a uma política radicalmente antirracista.

A escola, que tanto pode ser modelo de transformação social quanto modelo da sociedade, longe da promoção de uma educação como prática de liberdade (Freire, 2022), robustece o status quo. A música “Falsa abolição”, de Preta Rara (2014), tensiona a política de branqueamento que, ecoando como grito de uma sociedade racista, nos é introjetada na escola:

Tô cansada do embranquecimento do Brasil

Preconceito, racismo como nunca se viu

Meninas negras não brincam com bonecas pretas

Foi a barbie que carreguei até chegar na minha adolescência

Porque não posso andar no estilo da minha raiz

Sempre riam do meu cabelo e do meu nariz

Na novela sou empregada

Da globo sou escrava

A identidade negra é constantemente posta em contexto de desterritorialização de si, onde seja sempre latente e presente o não se reconhecer enquanto negra/o/e. Como contexto oportunizado pela supremacia branca, a identidade negra é entendida de forma negativa, atrelada ao ruim, ao sujo, ao feio. Segundo Conceição Evaristo, a branquitude nos apresenta o espelho de Narciso, onde nossa imagem não é refletida e não podemos enxergar nossa negritude. Nesse espelho é refletido apenas o branco como única identidade possível a ser aceita em uma sociedade racialmente tencionada.

Profeticamente, Conceição Evaristo nos diz que “nossa beleza não cabe no espelho Narcísico”, pois esse espelho nos mostra rostos outros que não são os nossos. Diante disso, a intelectual nos convida a pensar nossa identidade a partir do Espelho de Oxum e Yemanjá, espelhos que contemplam nossa subjetividade e promovem uma identidade positiva de “nós”.

Entendemos que foi enxergando através do espelho das Orixás que o Movimento Negro Educador (Gomes, 2017) inverteu a lógica e politizou a palavra “negro” como um afirmador de uma identidade positiva, construída historicamente. Acrescendo a discussão, Souza (2021, p. 115) pontua que

 

Ser negro é, além disso, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse dessa consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que afirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.

 

Portanto, nossa identidade é fruto de uma construção histórica e cultural, e não se constitui apenas na individualidade, ela é um processo coletivo (Gomes, 2002). Tornar-se negra/o/e é uma construção que perpassa o encontro do “Eu” e o “nós”, encontro do social com o coletivo.

Partindo dessa rica e inspiradora linhagem de intelectuais negras, suas reflexões acerca dos aspectos históricos, sociais, individuais e coletivos, compartilhamos a experiência do Coletivo Mapinduzi. Ele acontece por um movimento de identificação e reconhecimento de nossa raça, de nosso povo e de uma comunidade que, naquele momento, dentro da Universidade Estadual do Ceará (UECE), não era só possível, como igualmente necessária. Não queremos dizer, por exemplo, que não houvesse outras motivações, tal como a necessidade de uma formação crítica e antirracista, por exemplo. Mas o Mapinduzi foi onde nosso “eu” solitário se enlaçou nos “nós” que eram necessários.

Frente à necessária ruptura com um currículo embranquecido e uma realidade de formação sistematicamente racista, ao desconsiderar as intelectualidades negras, o Mapinduzi surge como um quilombo, espaço-tempo em que, rompendo com uma pedagogia eurocêntrica, decidimos nos reunir para dialogar, estudar e amar intelectuais negras. A escolha desse segmento de estudos, deu-se por conta da nossa trajetória enquanto corpos-pronúncia em um lugar que, por meio de silêncios e ausências, negava nossa intelectualidade.

Enquanto estudantes do Curso de Pedagogia da Uece, durante as disciplinas, leitura dos textos acadêmicos ou durante o processo de Iniciação Científica (encruzilhada que atravessa as autoras deste texto), não estudamos nenhuma intelectual negra. A ausência de corpos como os nossos que se ocupavam da produção de saber, causava incômodo constante. De forma individual, fomos desbravando espaços outros, dentro e fora da academia, em busca de referências que entendessem nossa vivência. Enquanto corpos-negros-periféricos, tecendo diálogos com a literatura, encontramos importantes autoras/es que nos ajudaram a entender o racismo no Brasil e nos apresentam processos de resistência frente a alienação colonial.

A indignação, frente a intencionalidade de um currículo que, por meio de uma opção política e racista, não trabalha com referências negras, foi o sentimento que nos moveu em direção a ruptura com as pedagogias coloniais. Nossa ânsia de um saber negro, nos levou a coletividade, espaço-tempo em que nossas subjetividades são respeitadas, em que nosso corpo-voz é ouvido, em que nossa fala-navalha é escutada. O Mapinduzi, então, nasceu em meio às rupturas epistemológicas que nos envolvemos. Tais rupturas consideram criticamente a experiência escolar – tanto na educação básica quanto no ensino superior – de pessoas negras, de modo que “o diálogo a respeito do racismo presente na educação está em constante debate no grupo e, dessa forma, a discussão de teorias antirracistas nos ajudam a compreender como o racismo funciona e, a partir disso, construir meios de combatê-l0” (Sobrinha et al., 2023, p. 03).

A primeira vez que nos reunimos foi para partilhar a leitura coletiva do livro “Ensinando a transgredir”, de autoria de bell hooks (2013). A decisão pela leitura desse livro foi coletiva, visto que houve uma comunicação via redes sociais antes com algumas interessadas/os/es. A opção por ler uma intelectual negra não foi deliberada, também surgiu de um interesse coletivo em conhecer a escrevivência de mulheres negras – naquele momento primeiro, foi cogitado, inclusive, a leitura de um romance literário.

Nesse momento preambular, quando lemos a obra supracitada, o grupo era composto, majoritariamente, por alunas/os/es egressas/os/es do curso de Pedagogia da UECE — com exceção de algumas pessoas de outros cursos, como Enfermagem, Psicologia, Filosofia, História e Letras. Salvo as pessoas que eram da área da saúde, as demais integrantes desse primeiro ciclo eram vinculadas, de uma forma ou outra, à educação. Aliás, uma preocupação em comum, naquele momento, era como poderíamos pensar práticas educativas que tivessem a influência e a orientação da intelectualidade de mulheres negras, a exemplo de bell hooks, que foi a primeira intelectual estudada.

Naquela ambiência, a obra de bell hooks nos auxiliou na perspectiva de “[…] um ensino[aprendizagem] que permita as transgressões – um movimento contra as fronteiras e para além delas” (Hooks, 2013, p. 23-24, grifo nosso). Do estudo dessa obra, destacam-se as aprendizagens em relação à Pedagogia Engajada, que muito nos influenciou na construção de uma prática educativa comprometida com o fim de todos os sistemas de opressão. Reconhecemos, consoante bell hooks, que a educação como prática da liberdade é, essencialmente, um jeito de ensinar em que todas as pessoas possam aprender.

Grosso modo, a pedagogia engajada, inspirada em Paulo Freire, prevê “estratégias para o que ele chamava de ‘conscientização’ em sala de aula” (Hooks, 2013, p. 26). Que se traduz, na leitura de hooks, enquanto consciência e engajamento crítico, entendendo que tanto nós, professoras, “quanto todos os alunos tínhamos de ser participantes ativos, não consumidores passivos” (Hooks, 2013, p. 26).

A pedagogia engajada, portanto, exige uma compreensão crítica acerca da integralidade do ser, não acreditando na cisão entre mente e corpo. Nesse sentido, saberes da mente e saberes do corpo se encontram, criando um saber simbiótico, em que “práticas de vida, os hábitos de ser e os papéis professorais” (Hooks, 2013, p. 29) se confluem na construção de uma prática educativa crítica.

Isso é o que bell hooks chama de “experiência global de vida” que, nos caminhos trilhados no Coletivo, influenciou e fomentou a construção coletiva de saberes circulares e afetuosos. E essa construção de conhecimento que afeta, chega a alunas/os/es e professoras/es, favorecendo o desenvolvimento integral de todas as pessoas participantes do processo pedagógico. Ou seja, esses percursos, acreditamos, contribuem numa formação pedagógica que prevê não só o desenvolvimento integral das/os/es discentes, mas também das/os/es docentes, pois, segundo bell hooks (2013, p. 15),

 

A pedagogia engajada não busca simplesmente fortalecer e capacitar os alunos. Toda sala de aula em que for aplicado um modelo holístico de aprendizado será também um local de crescimento para o professor, que será fortalecido e capacitado por esse processo.

 

A maioria das integrantes, já naquele começo, eram leitoras assíduas, professoras-pesquisadoras e intelectuais. Ademais, o interesse era tanto acadêmico quanto pessoal – pessoalíssimo, diríamos. Em meio ao distanciamento social ocasionado pela pandemia global do Covid-19, nos reuníamos quinzenalmente aos sábados como quem sonha e, por isso, sobrevive. Diante de muito temores e, por isso, sensíveis, inteiramente humanas, nos reunimos para falar da leitura, mas também da vida: dos temores, das coragens, da vergonha e do medo, da intrepidez e ousadia, dos sonhos, anseios, das vontades e dos prazeres. Estávamos lá, encarnadas/os/es, negros corpos e almas presentes. Éramos “eu”, “tu”, “ela”, “ele” e “elu”... éramos “nós”.

 

4 Coletivo Mapinduzi: a revolução de afetos na construção da intelectualidade negra

Conforme já elucidado, o Coletivo Mapinduzi surgiu como uma forma de denunciar as ausências de perspectivas e intelectualidades negras femininas em nossa formação inicial, e anunciar caminhos possíveis para evidenciar os saberes de intelectuais negras no campo da educação e sua importância como fundamento para nossa prática docente em construção. Refletindo sobre os materiais propostos para diálogo em sala de aula, atravessamos a fronteira e fomos buscar outras intelectualidades que partissem de outro viés para pensar a educação – principalmente com análises e contribuições que considerassem a questão racial como fundamental, não como mero recorte.

Assim, passamos a nos reunir para ler e dialogar fundamentadas/os/es em obras de intelectuais negras. Nossos encontros e partilhas acontecem de forma dialogada, sempre buscando respeitar as vozes, saberes e contribuições de todas as pessoas presentes no grupo.  Acerca do modo como a partilha das leituras e conhecimentos ocorre no Coletivo Mapinduzi, Sobrinha et al. (2023, p. 03) destacam que

 

A escuta sensível, um dos pilares do processo, assume uma posição de destaque. Ela não é meramente passiva, mas ativa e intencional. Os membros do coletivo se engajam em ouvir/sentir não apenas as palavras, mas também as nuances, as emoções e as entrelinhas das narrativas compartilhadas. Essa abordagem de escuta transcende as fronteiras da audição física e se estende para a compreensão genuína do que está sendo comunicado, criando um ambiente de aprendizado enriquecedor.

 

 Tecendo aprendizados coletivos, evidenciamos que esse movimento se torna cada vez mais prazeroso na medida em que percebemos que rompemos com a ideia de conhecimento e aprendizagem individualizada que impera nas concepções de educação bancária (Freire, 2022) e na pedagogia das competências (Ramos, 2001). Não há, entre nós, alguém que sabe ou ensina mais: partimos do pressuposto de reconhecer – e nos afirmar – enquanto intelectuais negras/os/es em formação, com contribuições, reflexões e práticas valiosas e dignas de reconhecimento.

Feitosa et al. (2023) anunciam o Coletivo Mapinduzi como um lugar de afetos, fala e escuta sensível, pontuando a importância desse movimento de aprendizado para o reconhecimento atencioso das contribuições de cada pessoa presente durante os encontros. Além disso, as autoras consideram que a abordagem adotada no Coletivo, cujo pilar é o diálogo, possibilita o exercício do pensamento crítico acerca da obra estudada. Segundo elas,

 

O espaço de afetos, fala e escuta sensível age como um prisma, dividindo a luz das palavras e ideias, permitindo que cada membro perceba a diversidade de reflexões e interpretações que emergem. Essa abordagem coletiva à leitura oferece um terreno fértil para uma análise crítica e autêntica da obra (Feitosa et al., 2023, p. 03).

 

Esse movimento de leitura, partilha, diálogo e construção de saberes, partindo dos conhecimentos de intelectuais negras, como bell hooks, tem, também, um caráter de fortalecimento e resistência nas e nos integrantes do coletivo como um todo. Além de denunciar a ausência de mulheres negras enquanto referência em nosso processo de ensino-aprendizado, a construção e institucionalização do Mapinduzi ressaltam uma necessária e urgente tecitura de redes afro-afetivas (Quintiliano, 2022) para a permanência universitária dos corpos e mentes que, a cada sábado, se reúnem para circular ideias e feitos de mulheres negras. Esse aspecto afetivo é fundamental, uma vez que “a educação superior esteve e está estruturada para o estudante branco ou para aqueles que se embranquecem no meio do processo” (Quintiliano, 2022, p. 13). Tensionar o fazer científico e pedagógico na universidade, descobrindo e construindo perspectivas que consideram os saberes plurais que existem em nós, é revelar que “não somos apenas corpos presentes, somos corpos pensantes” (Quintiliano, 2022, p. 13).

Em meio a políticas, práticas, espaços e pedagogias de exclusão, fazer parte do Coletivo Mapinduzi é, também, valorizar a importância da amorosidade e da construção da autoestima positiva de cada pessoa negra ali presente. Essa concepção ficou mais latente em nós após a leitura dialogada da obra “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” (Hooks, 2021b), também escrita pela intelectual bell hooks.

Começar a pensar o amor como ação social transformadora é também se defrontar e combater as variadas formas de opressão social. Nesse sentido, o amor pode ser visto como um movimento importante para uma práxis educacional que visa a libertação de todas as pessoas e o fim da sociedade patriarcal supremacista branca capitalista imperialista (Hooks, 2021a). Promover um espaço radicalmente aberto ao diálogo sobre o amor foi uma das formas que encontramos para pensar de forma sensível e crítica sobre as suposições sobre o amor, propondo delimitações práticas e úteis, num ambiente favorável para que o amor florisse (Hooks, 2021b).

Essas discussões sobre o amor foram importantes tanto para o fortalecimento do coletivo quanto para o desenho das propostas do projeto para institucionalização. Pensar sobre o amor como ação nos fez questionar como poderíamos contribuir para o fim das opressões no ambiente acadêmico. As ações que estamos desenvolvendo e que temos como proposta para o futuro são todas orientadas por uma perspectiva amorosa – que, não sendo somente do campo do sentimental, almeja uma política do amor como garantia de direitos e, como já foi dito, que preza pelo fim das opressões de toda natureza.

Falar sobre o amor na vida das pessoas negras é um exercício complexo, uma vez que até esse sentimento nos é negado. Uma das peças que sustenta a estrutura do racismo que nos atravessa é a concepção eurocêntrica de que pessoas negras não são dignas de dar ou receber amor, cuidado, gentileza ou justiça social plena (Hooks, 2021a). E essa prática racista de desamor para com pessoas negras – bem como quilombolas, indígenas, comunidade LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, comunidade de terreiro – mantém e sustenta a permanência da branquitude nos espaços de poder e de construção de ciência e conhecimento, como a universidade.

Concordamos com bell hooks e sua concepção do amor como um guia nas lutas contra as opressões de raça, classe, gênero, sexualidade, capacitismo e em busca da justiça social e do bem-viver para todas as pessoas (Hooks, 2021a). Ao mesmo tempo, relatamos que desconstruir a ideia do amor como um sentimento supérfluo, vazio e desnecessário em nossas vidas é um exercício de resistência constante, e isso só é possível quando nos fortalecemos coletivamente.

Quando nos aproximamos plenamente e nos fundamentamos no pensamento político, científico, afetivo e cultural produzido por mulheres negras, somos tomadas/os/es por uma espécie de êxtase ancestral, puxadas/os/es e sustentadas/os/es por fios fortes costurados por corpos e mentes negras. Lembramos que somos tudo, tudo podemos: amar, ser vulneráveis, felizes, sentir prazer, expressar nossas dúvidas, incômodos, receios e vontades. E tudo isso faz parte do pensar e fazer das intelectuais negras, que dialoga diretamente com a não dicotomização entre corpo/mente, ação/reflexão, sentir/fazer ciência, ensinados a nós por intelectuais como Patricia Hill Collins, Sueli Carneiro, Vera Rodrigues, bell hooks e Sandra Petit. 

Longe do achismo ou do esvaziamento conceitual, esse exercício de afirmação, encorajamento e valorização da amorosidade é fundamentado nas concepções da pedagogia feminista negra (Hooks, 2021a; Moraes, 2021; Pinho, 2022) de construção de autoestima positiva do coletivo. Praticando a fala ativa e a escuta sensível, nos constituímos – dia após dia, obra após obra, encontro após encontro – enquanto intelectuais negras engajadas, críticas e preocupadas com nossas comunidades, conjecturando práticas educativas – e de vida – transformadoras.

A atuação do Coletivo Mapinduzi tem, ainda, se expandido: conquistar o reconhecimento enquanto grupo de estudos pelo colegiado do curso de Pedagogia e uma sala física e confortável na Universidade Estadual do Ceará (UECE) para a realização de nossos encontros foi importante e nos trouxe a certeza de que juntas/os/es podemos disputar outros espaços. Dessa forma, temos dialogado sobre a importância da redação científica de demais membros do grupo de estudos, atuando com orientações, escritas coletivas, acolhimento mútuo e incentivo à participação em eventos para que os saberes que temos construído e as intelectualidades que temos testemunhado sejam reconhecidas por cada vez mais pessoas.

Além disso, nosso contato com o colegiado, com a coordenação e a direção do curso não se encerram na institucionalização, pois um corpo dissidente e pensante na universidade não é atravessado somente por meras burocracias acadêmicas. Assim, promovemos campanhas de arrecadação de fundos para custear inscrições em eventos para membros que não podem pagar, dialogamos com docentes para a inclusão de referências estudadas pelo grupo nas disciplinas, buscamos, em diversos acervos, produções acadêmicas produzidas por intelectuais negras em diferentes temáticas, tais como letramento e alfabetização, avaliação da aprendizagem, ensino de história e geografia, didática, dentre outras.

Aproximamo-nos, também, da direção do Centro Acadêmico de Pedagogia para propor parcerias, momentos de diálogo e compreender as atuais demandas de estudantes com deficiência, negras/os/es, indígenas, LGBTQIA+, mães, sempre entendendo nosso limite de atuação, mas nos negando a dissociar construção de intelectualidade e permanência na universidade. Essas e outras ações acontecem a partir do entendimento de que sem a perspectiva racial crítica não há incômodo nas estruturas educacionais brasileiras.

Foi através do reconhecimento de que somente o amor como prática transformadora pode libertar nosso corpo e mente (Hooks, 2022) que nos mobilizamos para denunciar aquilo que literalmente “passou em branco”, bem como para anunciar a vivência coletiva de uma educação como prática de liberdade. Sob orientação de bell hooks (2022, p. 301), acreditamos que “engajar-se na prática do amor é se opor à dominação em todas as suas formas.” Igualmente, reconhecendo que “a dominação nunca terminará enquanto formos ensinados a desvalorizar o amor” (idem), construímos e temos mantido um coletivo onde a abertura radical ao amor e ao diálogo são pilares importantes, isso porque visamos uma revolução que já vem acontecendo antes e através de nós: a revolução de afetos na construção da intelectualidade negra.

 

5 Um falatório como nossas “últimas palavras” (por enquanto)

Por enquanto, nesse contexto de escrita de nossas vivências coletivas e amorosas, consideramos o Coletivo Mapinduzi aquilo que, desde o princípio, ele se propôs a ser: um espaço-tempo de promoção da intelectualidade negra a partir da troca de saberes circulares de intelectuais negras, negros e negres.

Ao refletir sobre a construção de lugares de promoção da intelectualidade negra a partir da experiência no Coletivo Mapinduzi /UECE, relatamos a ausência de referências de intelectuais negras durante a formação no curso de Pedagogia na UECE. As raras experiências de leituras afro-referenciadas provieram de outras vivências, buscas individuais, diálogos entre pares e outras. Ademais, com o relato de nossas vivências no coletivo, queremos enfatizar o desenvolvimento de nossa autonomia, ousadia e potência ao criar e promover espaço legítimo para construção, discussão e vivência de intelectualidades negras dentro da universidade – sendo, nós mesmas, também essas intelectuais.

Nessas últimas palavras, não podemos deixar de pontuar a felicidade de ver e viver o florescimento desse coletivo, que não tem se dado de outra forma que não a partir da abertura radical ao amor que nos ensina bell hooks. No Coletivo Mapinduzi, ao tornar-se negras, negros e negres, ao descobrir e aprender a valorizar nossas potencialidades, os saberes construídos por nós e por nossas ancestrais africanas e afro-brasileiras, compreendemos sobre identidade negra, letramento racial, educação engajada e entre outros saberes-viveres. Diante de tudo que fora dito até aqui, concluímos que nesse processo de aquilombamento, encontramos “nós” e tecemos coletivamente esse laço que enlaça, mas não prende, que, por isso, agora chamamos de bem-viver.

 

Referências

 

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[1] Fala dita durante o Curso “Ler o Brasil”, promovido pela Casa Sueli Carneiro entre os meses de novembro de 2022 e maio de 2023.



[i] Artigo recebido em 13/09/2023

  Artigo aprovado em 01/07/2024

 

Fontes de fomento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior–Brasil (CAPES), a partir do projeto Formação de Professores para o desenvolvimento social do Ceará (CAPES/FUNCAP).

 

[ii] Contribuições da autora: conceituação; análise formal; escrita – rascunho original e escrita – análise e edição.

[iii] Contribuições da autora: conceituação; análise formal; escrita – rascunho original e escrita – análise e edição.

[iv] Contribuições do autor: conceituação; análise formal; escrita – rascunho original e escrita – análise e edição.

[v] Contribuições da autora: conceituação; análise formal; escrita – rascunho original e escrita – análise e edição.