e-ISSN 1984-7246
Maria Nicolas (1906-1938):
mulher negra, uma “forasteira de dentro” no ensino público primário do Paraná
Silvana
Mendes Schuindt*
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Curitiba, PR - Brasil
lattes.cnpq.br/0649790074542690
Adriana
Vaz**
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Curitiba, PR - Brasil
lattes.cnpq.br/2037918966512896
Maria Nicolas (1906-1938):
mulher negra, uma “forasteira de dentro” no ensino público primário do Paraná
Resumo
Este artigo delineia aspectos da trajetória da
normalista Maria Nicolas, que residiu em Curitiba/PR e ministrou aulas no
ensino primário nas primeiras décadas do século XX, no Paraná. Orecorte
temporal abrange o período entre 1906 e 1938. Reconstrói-se parte do seu
percurso pelo prisma da interseccionalidade, o qual foi marcado por episódios
de discriminação racial, de gênero e de classe. Igualmente problematiza-se a
categoria “outsider within” de Collins (2016) e adotam-se como base teórica os
conceitos de trajetória, habitus e capital de Bourdieu (1996, 2017). Nicolas
formou-se na Escola Normal de Curitiba entre 1913 e 1916 e itinerou por várias
escolas em Curitiba e no interior do Paraná, justamente porque a sociedade
republicana respondia ao ideário de civilidade perpassado pela tese eugênica e
de progresso nos moldes patriarcais. A população negra, em especial as
mulheres, ainda eram vistas ligadas ao trabalho doméstico e servil; havia
também uma resistência por parte das mulheres brancas, de elite, em superar as
diferenças raciais. Então, por diferentes formas de opressão, a normalista
deste estudo viveu à margem, como alude bell hooks (2019), mesmo sendo
pertencente e tendo conhecimento de todo sistema.
Palavras-chave: história da
educação; escola normal; ensino público; população negra.
Maria Nicolas (1906-1938): Black woman, an "outsider within" in
the primary public education of Paraná
Abstract
This article outlines aspects
of the life trajectory of Maria Nicolas, a primary school teacher based in
Curitiba, Paraná, and who conducted classes in primary school in the early
decades of the 20th century, covering the period from 1906 to 1938. Employing
the lens of intersectionality, the narrative explores various dimensions of her
journey, highlighting instances of racial, gender, and class discrimination.
The "outsider within", as articulated by Collins (2016) is also
examined. The theoretical basis includes Bourdieu's (1996, 2017) concepts of
trajectory, habitus, and capital. Nicolas, an alumna of the Escola Normal de
Curitiba (Curitiba’s Teacher-Training School) from 1913 to 1916, taught at
multiple schools in both metropolitan Curitiba and Paraná’s countryside cities.
This professional mobility was intricately linked to the prevailing societal
ethos that embraced notions of civility entwined with eugenic and patriarchal
ideas of progress. In this context, individuals of the black community, especially
women, found themselves in roles still associated with domestic and servile
labor. The resistance from white elite women further hindered efforts to
transcend racial disparities. As a result, the primary school teacher in focus
experienced marginalization, echoing bell hooks’ (2019) notion of living on the
margins despite being an integral part of and possessing insight into the
larger societal structure.
Keywords: history of education; teacher-training college;
public education; black population.
___________________________
Contribuições de
autoria
* conceituação; curadoria dos dados; análise formal;
investigação; metodologia; visualização; escrita – rascunho original; administração
do projeto; e validação.
** escrita- análise e edição; supervisão; administração
do projeto; e validação.
1 Introdução
Este artigo
apresenta aspectos sobre a trajetória escolar e profissional de Maria Nicolas,
que nasceu em 1899 e faleceu em 1988, em Curitiba/PR. O recorte temporal
envolve o período entre 1906 e 1938, que demarca sua entrada no universo
escolar e a reconversão para o campo literário. Em 1917, Maria Nicolas iniciou
no magistério público paranaense como professora voluntária da Escola de
Aplicação, após ter concluído a Escola Normal. No decurso de sua carreira atuou
em diversos munícipios paranaenses, ministrando aulas no ensino público e
particular. Em 1951, por um
ensurdecimento, trabalhou na biblioteca da Assembleia Legislativa do Paraná e
foi exonerada do magistério público.
A dissertação de
Silvana M. Schuindt (2022) tem sintonia com as pesquisas realizadas por Maria
L. R. Müller (2016); Eliseu Pinheiro da Cruz et al. (2021); Giane E. S. de Almeida e Claúdia M. C. Alves (2011);
Eliane Peres (2022). Nesse sentido, o
texto contribui para ampliar os estudos sobre a atuação de mulheres negras no
período da Primeira República, e em outros recortes temporais, ao tratar sobre
o acesso à escolarização e o processo de feminização que perpassa o ensino
primário no Paraná, nas primeiras três décadas do século XX.
Müller (2016)
menciona que no final da década de 1990 existiam poucas pesquisas de cunho
historiográfico que abordassem as formas de inserção profissional de mulheres
negras, em posições nas quais iriam exercer funções intelectuais, em especial
no ensino público. Em artigo publicado em 2016, a autora apresenta o processo
de branqueamento que estrutura o magistério público no final da década de 10,
do século XX, no Rio de Janeiro, que, em certa medida, resulta na negação do
corpo negro. Negação que simboliza a autoimagem que Nicolas tinha sobre si
mesma, ao comparar o seu tom de pele com o da sua irmã Thereza: “Acontece que
tenho (sic) irmã chamada Thereza e, por sorte, sou mais feia do que ela!”
(Nicolas, [19--]a, p. 9).
A discussão
apresentada por Cruz e demais autoras (2021) aborda a presença das mulheres
negras na Escola Normal de Caetité, na Bahia, entre os anos de 1898 e 1943,
mostrando que essas mulheres não eram submissas e não obedeciam às tarefas
prescritas pelos homens. O artigo traz como problemática o apagamento da
atuação das mulheres negras como sujeitos históricos no magistério e, em parte,
esse ocultamento deriva da carência de fontes e do modelo patriarcal da
sociedade.
Assim como em
Caetité, o atributo gênero também modelou o ensino público primário no contexto
paranaense, resultante de uma hierarquização de funções distribuídas entre
homens e mulheres, dentre outras camadas de discriminação que atravessam a
atuação das mulheres nas primeiras décadas do século XX, como a de classe
social e a de raça.
Almeida
e Alves (2011) mobilizam diferentes fontes em sua pesquisa sobre a trajetória
de mulheres negras no âmbito da educação, dentre elas, as pesquisadoras
utilizam a metodologia da história oral ancorada nos fragmentos de memórias. O
grupo estudado era composto por 10 mulheres que residiam na cidade de Juiz de
Fora/MG, que viveram sua infância e juventude entre os anos de 1950 e 1970. Dos
aspectos em comum que marcaram as memórias dessas mulheres, de um lado, tem-se
o não acesso à escola em seus diferentes níveis de ensino; de outro, o desejo
de estudar e a busca em superar os obstáculos. As mulheres que seguiam seus
percursos escolares enunciavam os desconfortos e os esforços despendidos por
elas, que incluíam desde a dificuldade com o transporte até o local, assim como
a complexidade em adaptar-se à cultura escolar marcada pelos fenótipos brancos
em seus aspectos simbólicos e prescritivos (Almeida; Alves, 2011). Tendo em
vista que,
se foi dada
uma oportunidade para o ingresso, o esforço de permanecer na escola vinha
investido de um caráter de travessia insalubre, em que a menina negra nunca se
via contemplada nos elementos da cultura escolar com os quais convivia. As
memórias surgem marcadas pelas dores de se sentir à margem, deslocada do centro
da cena, interditada para os papéis principais (Almeida; Alves, 2011, p. 93).
As autoras
destacam que duas mulheres do grupo analisado finalizaram o ensino superior,
fato que demonstra que o problema de deslocamento, a ausência de apoio familiar
e a fragilidade das políticas públicas do Estado eram fatores que restringiam o
acesso e a permanência da população pobre brasileira a outros níveis escolares.
A operação
historiográfica sobre a educação da população negra no âmbito da história da
educação implica na mobilização de fontes históricas, uma multiplicidade de
vestígios deixados no passado, e que os/as historiadores/as os/as reconstroem
no tempo presente, indagando-as em resposta a uma problemática de pesquisa.
Dentre as fontes que compõem este estudo, destacam-se diários, obras e
documentos pessoais de Nicolas, relatórios dos secretários de governo,
legislações educacionais e periódicos jornalísticos.
As
pesquisas sobre a população negra incluem diferentes temas e abordagens
teórico-metodológicas, dentre as quais pode-se destacar a história da educação
do negro. Para Jeruse Romão (2005, p. 12):
A história
da educação do negro é a história de um conjunto de fenômenos. Parte da
concepção do veto ao negro; percorre os caminhos da articulação de consciências
dos seus direitos; ressignifica a função social da escola; recupera os
movimentos, no sentido de organizar suas experiências educativas e escrever uma
história social da educação do negro; e revela imagens que não conhecemos,
embora os indicadores sociais e educacionais nos deem muitas pistas acerca da
moldura do quadro.
No começo de 1990,
o artigo Raça e Educação: uma relação incipiente, escrito por Regina
Pahim Pinto (1992), apontava que a categoria raça não era utilizada pela
maioria dos pesquisadores da área da educação. Ao problematizar as maneiras que
a história da educação aborda os negros em seu rol de estudos, Marcus Fonseca
(2009) defende que independente de uma modalidade específica da historiografia
educacional para o tratamento desse tema, o ponto central é incorporar a
questão racial nos debates educacionais, reconhecendo e percebendo seu nível de
participação na sociedade brasileira (Fonseca, 2009).
Em acordo com as
proposições de Fonseca (2009), um dos objetivos deste artigo é analisar como as
questões de raça, classe social e gênero permearam parte da trajetória de
Nicolas, e elucidar as estratégias mobilizadas por essa mulher negra para
avançar nas primeiras letras e diplomar-se como normalista, tendo em mente a
“[...] construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ela próprio
um devir, estando a incessantes transformações” (Bourdieu, 1996, p. 189). Tanto
que, a busca por reconhecimento que marca o percurso docente de Nicolas
evidencia que as ações de cada pessoa no espaço social não são decorrentes de
uma vontade individual, do habitus; mas, se conectam às diferentes
posições ocupadas no campo (Bourdieu, 2003).
A partir da
metáfora com o teatro, Nicolas, ao se inserir no campo educacional, não agiu
sozinha e suas ações no espaço social respondiam ao ideário republicano, isto
é, a vocação da mulher como esposa e mãe foi transferida para educadora da
nação.
2 Nos palcos, a vida não é como
uma peça de teatro
A socialização primária de Nicolas ocorreu na
cidade de Curitiba. Seus progenitores, Alyr Léon Nicolas
(1865-1958) e Josepha Tomasina Nicolas (18?-19?), tiveram influência no desenvolvimento educacional e
cultural de suas/seus filhas/os. A profissão do pai, a valorização do acesso e
da permanência na escola por parte da mãe, e o local de moradia da família que
era no porão do Teatro Guaíra, situado onde hoje é a Biblioteca Pública do
Paraná, na região central da capital paranaense, foram fatores importantes na
constituição da trajetória de Nicolas e de seus irmãos e sua irmã.
Em 1976, com seus 77 anos de idade, Nicolas
rememora o racismo vivenciado no âmbito familiar:
[...] ‘Fiz
os estudos primários na Escola Republicana, do professor Moreira. Fui, por
sinal, muito burra, porque não entendia o processo de soletração. Para mim, ve
e i não era vi, mas vei. Ve e o era véo, e assim por diante’. Maria Nicolas
relembra a raiva que sentiu quando ocorreu o fato que a forçou a aprender, de
qualquer jeito, a ler e escrever: ‘Um primo que se educava lá em casa diante
dos pedidos insistentes de minha mãe para que alguém me ensinasse a soletrar,
disse a ela: - Tia Josefa, deixe que a Maria fique burra. Ela é mais feia e
mais preta do que a Santa. Deixe que a Santa estude e se forme professora.
Depois a Maria vai de tamanco, com a cesta a carregar as roupas da Santa - Isto
me deixou arrasada. Como não queria ser criada de ninguém, apelei para os
colegas, [...] (Nicolas, 1976).
A infância e a juventude de Nicolas foram marcadas
pelo ideário higiênico, o qual integrava as discussões a respeito da formação
da identidade nacional, que considerava a saúde, a força e a beleza física como
atributos essenciais para o progresso da nação, em resposta a um projeto de
modernização e civilidade, que reforçava o ideal do branqueamento (Munanga,
1999).
Modelo de nação que repercutiu na autopercepção que
Nicolas tinha em relação às suas características físicas, uma vez que, os
mestiços eram vistos como “plasticamente feios”. Pela superação ao método de
alfabetização ministrado na escola pública primária, pelo progresso escolar, e
pela conquista do diploma de normalista, Nicolas vislumbrou na educação a
possibilidade de romper com o estigma das mulheres negras. Estigmas que, em
1950, permaneciam associados ao trabalho doméstico e à sexualização do corpo,
como alude Lélia Gonzalez (2020). O Censo de 1950 forneceu indicadores sociais
básicos relativos à educação e ao setor da atividade econômica da mulher negra.
A partir daí, pode-se constatar: seu nível de
educação é muito baixo (a escolaridade atinge, no máximo, o segundo ano
primário ou fundamental) e o analfabetismo é o fator predominante. Do ponto de
vista da atividade econômica, apenas cerca de 10% atuam na agricultura e/ou na
indústria (sobretudo têxtil, e em termos de Sudeste-Sul); os 90% restantes
estão concentrados no setor de serviços pessoais (Gonzalez, 2020, p. 40).
Nicolas rompe com as estatísticas enunciadas acima.
Em 1949, formou-se em Pedagogia pela Universidade do Paraná, atual Universidade
Federal do Paraná (UFPR), na modalidade bacharel, e, em 1950, na modalidade de
licenciatura. No campo educacional, cursar a Escola Normal foi a opção trilhada
por Nicolas e que incidiu sobre sua trajetória profissional como professora da
escola primária, e posteriormente, em uma fase madura, em seus escritos na área
da literatura.
Na primeira década do século XX, em Curitiba/PR, as
únicas instituições que ofertavam o ensino secundário eram o Ginásio Paranaense
e a Escola Normal. Assim, aquelas/es que optavam em estudar no Ginásio
Paranaense visavam à realização de um curso superior; em outra direção, as/os
que seguiam seus estudos pela Escola Normal vislumbravam o início das
atividades profissionais direcionadas à atuação docente. Pelo Regulamento da
Instrucção Publica do Estado do Paraná: “Art. 216º - A Escola Normal é
destinada a preparar professores para o ensino primário no Estado” (Paraná,
1901, p. 134).
Os fins e os objetivos prescritos ao ensino do
Ginásio Paranaense e da Escola Normal citados no Código de Ensino de 1917 pouco
diferem do ano de 1901. Sobre o plano de estudos do Ginásio Paranaense, este é:
“Art. 185 - Destinado a ministrar aos estudantes solida instrucção fundamental
habilitando-os a prestar, em qualquer escola superior, rigoroso exame
vestibular, o curso do Gymnasio Paranaense será de cinco annos” (Paraná, 1917,
p. 53). Enquanto “o curso da Escola Normal, [é] destinado à formação de
professores para as escolas infantis, primarias e intermediarias do Estado, e
dividido em quatro annos [...]” (Paraná, 1917, p. 54 apud Schuindt, 2022, p. 106). Sendo assim, em geral, a Escola
Normal estava reservada às mulheres e o Ginásio aos homens. Tal fato se explica
pelo aumento da presença feminina no magistério público, especialmente, no
ensino primário.
A atuação masculina no magistério paranaense não
era ausente, contudo, ocorreu em menor proporção do que a feminina. A diferença
foi constante entre os anos de 1890 e 1917. De acordo com o relatório elaborado
pelo inspetor de ensino Raul Gomes, emitido em 1917, o qual apresentava dados
sobre o total de professores normalistas e não normalistas nas escolas
providas, vê-se que a proporção entre homens e mulheres variava: de 127
docentes (43 homens e 84 mulheres) em 1890, para 426 docentes (133 homens e 293
mulheres) em 1917. Além de tudo, ministrar aulas nos anos iniciais do ensino
primário era uma função desprezada pelos homens, porque objetivavam os cargos
de comando.
O lente catedrático da Escola Normal, Hugo Simas,
em seu artigo sobre a educação na escola primária menciona: “Qualquer moça
receosa do seo futuro, qualquer rapaz sem recursos para seguir carreira menos
penosa, atira-se à Escola Normal, muitas vezes com incapacidade e falta de
vocação pelo professorado, e sahe dalli armado em professor publico ...”
(Simas, 1912, p. 37 apud Schuindt, 2022, p. 106). As palavras de Simas
revelam que, excetuando o gênero, havia outra diferenciação entre as/os
alunas/os da Escola Normal e do Ginásio Paranaense. Em grande medida, os
meninos que se matriculavam na Escola Normal possuíam poucos recursos
financeiros. Por outro lado, as mulheres abastadas e brancas eram incentivadas
a cursar a Escola Normal.
A nota no Diário da Tarde que trata sobre a
matrícula na Escola Normal anuncia qual era o segmento feminino que deveria
frequentar aquele espaço: “Sabemos que este anno o curso da Escola Normal terá
desusada frequencia, pois numerosas são as moças das melhores famílias que
pretendem inscrever-se para aquele concurso” (Diario da Tarde, 1903, p. 2 apud
Schuindt, 2022, p. 106-107). Diferentemente dos estudantes homens, “as moças
das melhores famílias” que se matriculariam na Escola Normal eram rotuladas
pela condição de classe e pelo pertencimento racial, ideário prescrito para a
época. Assim, quando uma mulher negra cursava a Escola Normal trazia consigo
insígnias contrárias ao que se desejava de uma professora das primeiras letras,
o que gerava inadequações em sua atuação e interação com seus pares.
No início de sua jornada profissional, Nicolas
substituiu a professora Júlia Wanderley (1874-1918) em suas atividades docentes
na Escola Intermediária (anexa ao Grupo Escolar Tiradentes). Em 05 de setembro
de 1917, de acordo com o título de nomeação, começou suas atividades no Grupo
Escolar Tiradentes que estava localizado no centro de Curitiba. Atuar nessa
instituição tinha um poder simbólico que assentava a mulher negra em uma
posição de prestígio social; tanto que, em seus diários, Nicolas registra os
conflitos que teve com outras pessoas em seu ambiente de trabalho, o que
denominava “olho mau”.
O termo “olho mau” é um eufemismo para designar o
racismo vivenciado por Nicolas em seu cotidiano. Os conflitos eram marcados por
uma violência simbólica, no que tangia ao sexismo e racismo enfrentados por ela
no âmbito educacional, expressando-se nas relações de subordinação entre homens
e mulheres (Bourdieu; Passeron, 1982), isto é, uma violência simbólica que
permeava a ordem social, que refletia em homens intermediando, deliberando,
mandando e definindo os impasses profissionais de Nicolas.
Para Audre Lorde (2019), muitas vezes, as
diferenças entre as mulheres são usadas como uma ferramenta patriarcal para que
elas continuem desunidas. Por isso, ainda é necessária uma diferenciação
específica entre quais mulheres estamos versando, sobretudo quando se trata de
mulheres negras e brancas.
Como mulheres, compartilhamos alguns problemas;
outros, não. Vocês temem que seus filhos cresçam, se unam ao patriarcado e
deponham contra vocês; nós tememos que nossos filhos sejam arrancados de dentro
de um carro e sejam alvejados no meio da rua, e vocês darão as costas para os
motivos pelos quais eles estão morrendo (Lorde, 2019, p. 150).
O reconhecimento das diferenças existentes entre as
mulheres corrobora para a visibilização das desigualdades intrínsecas de gênero
e para o fortalecimento das lutas comuns; porquanto, o caminho para uma
transformação social advém do reconhecimento das distinções existentes dentro
do próprio grupo feminino (Lorde, 2019). De modo velado, a maneira com a qual
as pessoas se relacionavam e interagiam com Nicolas em seu convívio diário
repercutia um racismo estrutural nos termos de Almeida (2021), comportamentos
sociais que não isentavam a rivalidade entre as mulheres.
Na Escola Normal existia uma discriminação e uma
concorrência entre as mulheres, tanto pela condição de classe quanto pela
aquisição do diploma na separação entre professoras leigas e normalistas; visto
que, ser uma professora normalista era ocupar um espaço de projeção social e de
reconhecimento simbólico. Para Bourdieu (2013), o diploma se configura como um
passaporte ao acesso da cultura legítima, pois o documento designa a adoção de
certas condições de existência pela aquisição de uma disposição estética de um
determinado grupo. A formação na Escola Normal foi um aspecto substantivo na
trajetória de Nicolas. Contudo, ela constatou que a conquista do diploma não
foi suficiente para garantir uma aceitação entre os pares, tanto pelo modelo de
racismo da sociedade no período, quanto pela própria desvalorização do diploma
ao longo do tempo. O menor peso simbólico atribuído ao título de normalista
derivou da ampliação da rede do ensino primário e da feminização do magistério.
Sobre a ampliação da rede de ensino, entre 1900 e
1910, criaram-se mais escolas do que a quantidade de professores/as para suprir
as vagas. Se, em 1900, havia 20,1% de escolas vagas em relação ao total de
escolas criadas, já em 1910, essa proporção aumenta para 43,9% do total.
Portanto, mesmo com o aumento de normalistas e com a contratação de
professoras/es não diplomadas/os (leigas), as ações ensejadas no âmbito
educacional não foram suficientes para atendimento da demanda das crianças em
fase escolar, do período. Em valores absolutos, por exemplo, em 1910,
considerando o preenchimento de vagas nas escolas públicas primárias, havia:
226 escolas vagas (sem leigas ou normalistas) e 228 escolas providas (com
leigas ou normalistas), totalizando 514 escolas (Schuindt, 2022, p. 80).
A construção das escolas é decorrente de um aumento
demográfico na cidade de Curitiba, a qual passava por uma remodelação em seu
quadro urbano. A cidade, em 1890, contava com 24.553 habitantes. Uma década
mais tarde, esse número saltou para 49.755, e na década de 1920 correspondia a
78.989 habitantes. Afora as necessidades oriundas pelo aumento populacional, o
primeiro vintênio do século XX nas capitais brasileiras corresponde ao período
em que os administradores visavam tornar a urbe moderna e civilizada (Mocellin,
2020).
No que se refere à feminização do magistério, ao
comparar o número de diretores/as e professores/as em Curitiba (11 Grupos
Escolares) e no interior do Paraná (18 Grupos Escolares), no decurso de 1922,
constatou-se que: o cargo de diretor/a era uma prerrogativa dada ao gênero
masculino (10 diretores para 01 diretora); em contraponto, o gênero feminino
compunha o quadro de professoras/es (02 homens para 80 mulheres) (Schuindt,
2022, p. 179).
Tanto pelas funções de trabalho distribuídas entre
homens e mulheres nas escolas públicas primárias, e mesmo pelo perfil do
alunado que frequentaria a Escola Normal ou o Ginásio Paranaense, o conceito de
interseccionalidade permitiu intercruzar o fator classe social, com o racial e
de gênero. Fatores que, de modo horizontal, elucidaram os percalços vivenciados
por Nicolas, uma mulher negra, de origem pobre, que transita pelos espaços
destinados a uma elite branca.
Akotirene (2019) traz a contribuição de Kimberlé
Crenshaw (2002) na definição de interseccionalidade, como:
A conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, as opressões de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras (Crenshaw, 2002, p. 175 apud Akotirene, 2019, p. 42).
Os estigmas denotados à população negra incutiram
em Nicolas os modos de agir e de estar no mundo. Nas palavras de Akotirene
(2019, p. 29):
A interseccionalidade é sobre a identidade da qual
participa o racismo interceptado por outras estruturas. [...] É imprescindível,
insisto, utilizar analiticamente todos os sentidos para compreendermos as
mulheres negras e ‘mulheres de cor’ na diversidade de gênero, sexualidade,
classe, geografias corporificadas e marcações subjetivas.
O racismo, o sexismo e as desigualdades sociais
estiveram presentes no seu percurso, que, de acordo com os seus diários, se
somatizavam fisicamente nesse corpo considerado “fora do lugar”, um corpo
impróprio que se materializava na sensação de “olho mau”.
Mas o ‘olho mau’ continuou a me perseguir, pois
após uns 20 dias de estada na nova terra, tendo matriculados cinquenta e tantos
alunos, saiu-me nos pés umas bolhas de um líquido branco. Coçava muito e esse
líquido se transformava em pus. Do tornozelo para baixo era uma só chaga. Sofri
sem contar com recurso algum. Mesmo assim, amparada em minha mãe, me sentava no
fundo sala para lecionar. Meu sofrimento não era só físico, mas moral também.
Enquanto pude me manter em movimento à frente da cátedra, era muito feliz,
[...] (Nicolas, [19--]a, p. 52).
No início do ano letivo de 1919, Nicolas deparou-se
com a publicação de sua remoção do Grupo Escolar Tiradentes para o Grupo
Escolar Carvalho. O Decreto n. 36, de 21 de janeiro de 1919, mencionava que
haveria uma permuta entre ela e a professora Adelia Gonçalves da Motta, colega
da Escola Normal (Paraná, 1919, p. 14). O decreto havia sido realizado sem a
sua anuência, em virtude dos desentendimentos com a nova direção e com colegas
professoras do Grupo Escolar Tiradentes. Ao conversar com Enéas Marques dos
Santos, o Secretário do Interior de Justiça e Instrução Pública, em seu diário
relembrou o momento:
Suas
palavras foram mais ou menos estas: A atual diretora, impôs-me: Não podemos
continuar trabalhando com Maria Nicolas (que injustiça) Uma de nós terá de sair
do Grupo! ela ou eu? Disse-me o Dr. Enéas – eu desejava que você permanecesse
no grupo como uma lembrança da D. Julia, mas mediante a imposição da
diretora... - Devo sair ou não? lhe interrompi. Ele afirmou que sim, com um
gesto de cabeça (Nicolas, [19--]a, p. 51).
Os diretores dos grupos escolares podiam fazer nomeações
e remoções em seu quadro de professores. Nicolas foi trabalhar no Grupo Escolar
Carvalho e permaneceu na nova escola por um mês; em 21 de fevereiro de 1919, o
Decreto n. 127 cancelou a troca entre as professoras (Paraná, 1919, p. 41-42).
Na ocasião, em virtude dos desajustes com as colegas de trabalho e com a
direção do Grupo Escolar Tiradentes, Nicolas pediu transferência para outra
instituição fora de Curitiba. As circunstâncias de sua ida para o Grupo Escolar
Carvalho devem ter pesado em sua decisão. Então, declarou ao Secretário da
Instrução, Dr. Enéas Marques, que preferia ir trabalhar em alguma escola do
interior do Paraná e foi nomeada para atuar na vila de Fernandes Pinheiro. A
localidade era pouco desenvolvida pela sua percepção: “Fernandes Pinheiro era
muito atrazada; não havia açougue, padaria, farmácia, médico. O trem para a
Capital passava dia sim, dia não e sempre atrazado” (Nicolas, [19--]a, p. 52).
Nesses episódios apreendem-se as diferenças entre
as mulheres em função do pertencimento de raça e classe, o que corrobora para a
visibilização das desigualdades que ultrapassam o quesito gênero; por outro
lado, alerta para o fortalecimento das lutas comuns, pois o caminho para uma
transformação social advém do reconhecimento das distinções existentes dentro
do próprio grupo feminino (Lorde, 2019).
Quando as
mulheres brancas ignoram os privilégios inerentes à sua branquitude e definem
mulher apenas de acordo com suas experiências, as mulheres de cor se tornam
‘outras’, outsiders cuja experiência e tradição são ‘alheias’, demais para
serem compreendidas (Lorde, 2019, p. 147).
Na diferenciação entre mulheres brancas e negras,
Cida Bento (2022) menciona que o pacto da branquitude se manifesta nas mulheres
brancas por se perceberem como um ser humano universal, em que o fator racial
não marcava suas identidades ou não afetava suas relações sociais; já as
mulheres negras “[...] reconheciam que havia uma diferença no tratamento que a
sociedade lhes dispensava, [...]” (Bento, 2022, p. 91). Representação de si
construída em resposta à pergunta: “O que significa ser uma pessoa branca ou
negra no Brasil?” (Bento, 2022, p. 91).
A atuação nos Grupos Escolares da capital
simbolizava uma posição privilegiada no campo educacional e era um cargo
ambicionado pela categoria de professores que residiam no espaço de
circunscrição urbana de Curitiba. Por isso, quando uma professora era nomeada
para lecionar em uma Escola Isolada, muitas desistiam do magistério, pois, se
sentiam à margem do ensino público ou mesmo discriminadas. Lecionar em Escolas
Isoladas foi um espaço de potência para Nicolas,no qual ela converteu o
distanciamento geográfico em momentos de reflexão sobre sua prática pedagógica,
possibilitando o desenvolvimento de sua criatividade e maior liberdade de ação.
As colegas designadas para escolas isoladas
sentiam-se humilhadas, queijando-se, eu, não. Nesse ambiente julgava-me maior,
senhora das minhas ações, dando asas à imaginação, quando surgiram vários
trabalhos, como Ensino de verbos, [livro publicado] e outros ainda inéditos,
infelizmente (Nicolas, [19--]b, p. 8).
Depois de Fernandes Pinheiro, Nicolas lecionou na
Escola Isolada de Pirai do Sul e na Escola Isolada de São Mateus do Sul. A
estrutura física e a organização pedagógica das Escolas Isoladas não se
assemelhavam a dos Grupos Escolares da capital. As Escolas Isoladas existiam
antes dos Grupos Escolares e precisaram ser reorganizadas com a República, assim
como eram a estrutura escolar vigente também no Estado de Santa Catarina:
elas eram caracterizadas por se localizarem em
zonas rurais ou suburbanas, e por terem somente um professor que lecionava para
o 1º, 2º e 3º anos, ao mesmo tempo, em uma casa, que podia ser do próprio
docente, ou no salão da igreja, ou em alguma casa cedida pela comunidade
(Ferber, 2014, p. 3).
A ida para o interior do Paraná balizou o
deslocamento de um Grupo Escolar para uma Escola Isolada. Acrescido à mudança
da organização escolar e de município, o matrimônio e a maternidade incidiram
sobre a trajetória profissional de Nicolas. A mulher que adentrasse ao espaço
público era aceita desde que o tempo destinado ao trabalho não interferisse em
sua função de esposa e mãe. A própria escola era uma extensão do universo
doméstico pelo caráter missionário prescrito às professoras primárias. Diante
disso, ser professora primária permitia essa mobilidade social, tanto que, com
o nascimento de seus dois filhos: Antonio Lourdes Zotto (1922-2001) e Lucy
Zotto Ferreira (1923-1996), Nicolas optou por ministrar aulas particulares afastando-se
temporariamente do ensino público no final da primeira gravidez.
Traçando um panorama pelas escolas que lecionou, em
Curitiba e no interior do Paraná, observam-se três situações: 1) a lotação em
Grupos Escolares da capital foi sempre temporária; 2) as mudanças de
instituições eram uma rotina, ocasionando idas e vindas entre a capital e os
diversos municípios do interior paranaense; 3) nas intuições de ensino público
que lecionou, a duração do contrato não perdurou mais de 12 meses. Conjunturas que
denotam um sentimento de não pertencimento e um impedimento para criar raízes
sociais (Schuindt, 2022).
Durante sua atuação no ensino primário, Nicolas não
foi bem-vista na vaga de Julia Wanderley e não se sentia pertencente ao grupo
de professoras formadas pela Escola Normal, em Curitiba. Nesse aspecto, a
teoria bourdieusiana, pelo seu viés analítico sociológico, foi essencial para
compreender como ocorre a distinção e a apropriação cultural entre os
diferentes grupos e classes sociais; porém, no contexto brasileiro, essas
distinções se agravaram pelo fator racial e de gênero. A classe social, o
gênero e a raça combinados pelo poder de dominação se interseccionam como
descreve Collins e Bilge (2021). Já que,
[...] em determinada sociedade, em determinado
período, as relações de poder que envolvem raça, classe e gênero, por exemplo,
não se manifestam como entidades distintas e mutuamente excludentes. De fato,
essas categorias se sobrepõem e funcionam de maneira unificada. Além disso,
apesar de geralmente invisíveis, essas relações interseccionais de poder afetam
todos os aspectos do convívio social (Collins; Bilge, 2021, p. 16).
Enfim, o acesso à escolarização era o primeiro
passo para uma melhoria social e não uma garantia de sucesso, que no caso de Nicolas
resultou em uma trajetória marcada por opressões. A associação das pessoas
negras ao escravismo e da mulher ao espaço doméstico incutiu no imaginário do
senso comum que a escola não era o lugar a ser ocupado por esse perfil
populacional; em consequência disso, mesmo Nicolas transitando neste espaço
como estudante, e/ou professora, a maneira que os outros a viam era como uma Outsider
Within (Collins, 2016). Ademais, nascida e crescida no centro geográfico e
vivendo à margem do centro social e cultural, o olhar de Nicolas se enquadrava
na posição vivenciada por bell hooks (2019, p. 23), cujo ponto de vista era
“tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora”, um modo de olhar que
fazia com que Nicolas contestasse as imposições que lhe eram feitas durante sua
atuação docente.
3 Nha Maria
(...), as sutilezas de uma sociedade racista e de classe
Durante
a infância, ela foi apelidada de “Maria do teatro” ou “Maria da Nha Josepha”,
termos que a remetiam ao seu local de moradia e à proximidade dos traços
fenotípicos de sua mãe. As vivências de Maria Nicolas no Teatro Guaíra fizeram
com que ela adquirisse um nível cultural diferenciado de outras crianças que
tinham capital econômico similar ao seu e que haviam nascido em uma classe
ordinária.
[...] Guayra,
para onde eu vim com três meses e meio, só saindo definitivamente aos 36 anos,
depois de meu pai aposentado e o teatro foi condenado. Aí me casei. Aí tive
dois filhos. Desde os 2 anos e meio assisti apresentações teatrais; na coxia do
teatro, sentada ao lado de meu pai que era quem subia e descia o pano de boca,
além de executar os demais afazeres. Ele era o que se chama ‘sete ofícios’
(Nicolas, [19--]a, p. 59).
Ao mesmo tempo em
que seu pai trabalhava nas coxias da edificação, ela apreciava as apresentações
realizadas no local. Em vários episódios da vida de Nicolas é perceptível a
ligação com a produção de peças teatrais. Em 1972, ao assumir a cadeira n. 24
da Academia Feminina de Letras do Paraná, ela realizou o lançamento do livro Teatro
Infantil. Essas rotinas, por conseguinte, lhe propiciaram a composição de
um patrimônio cognitivo essencial ao seu desenvolvimento futuro. Assim: “[...]
a aquisição da cultura legítima pela familiarização insensível no âmago da
família tende a favorecer, de fato, uma experiência encantada da cultura que
implica o esquecimento e a ignorância dos instrumentos da apropriação”
(Bourdieu, 2013, p. 10).
Outro
fator importante para sua permanência no mundo letrado era o apoio emocional
advindo de sua mãe, que esteve presente em vários momentos da sua trajetória.
Uma dessas situações ocorreu quando Nicolas assumiu a vaga de Julia Wanderley,
em 1917:
Achava-me
tratando de minha nomeação efetiva nessa classe, quando de passagem pela casa
de d. Julia Wanderley, mamãe foi por ela intimada a voltar, pois precisava
falar comigo. Para tanto, fez mamãe deixar a cesta que levava para trazer
verduras e voltar à casa para me chamar. Relutei em atendê-la porque eu tinha
um grande respeito e medo, por sua atitude militar, embora jamais tivesse
sofrido injustiça, quando sua aluna, em 1912, o meu temperamento de humildade e
de chorona, me faziam ter lhe medo, apesar de ela só me desejar o bem, pondo-me
ao nível das demais colegas, muitas delas de alta sociedade. Aconteceu, porém,
que mamãe me convenceu e eu fui falar-lhe. Achava-se presente o Dr. Victor do
Amaral. Ela me disse: ‘Maria Nicolas, vou me licenciar, você será a minha
substituta’. Resmunguei um protesto, mas o Dr. Victor disse: ‘Aceite, D. Julia
sabe o que faz.’ Então ela continuou: ‘Depois que sarar ficarei somente como
diretora, minha classe da Intermediária será sua, vá para a casa e leia os
jornais para saber quando deve assumir’ (Nicolas, [19--]a, p. 48-49).
A Sra. Josepha não
era alfabetizada e há controvérsias em relação à data de seu nascimento e
morte, mesmo a escrita do seu nome aparece com várias grafias nas fontes
consultadas. Antonio Nicolas, filho de João Nicolas (irmão de Maria Nicolas),
em uma entrevista concedida à sua neta Nicole Louise Capote Nicolas, menciona sobre
as origens familiares de sua avó paterna: “Sua mãe era negra e trabalhava como
dona de casa fritando pastéis para fora, tendo a ajuda dos filhos para
vendê-los. Josepha não tinha estudos, mas fez questão de que os filhos tivessem
uma boa formação” (Nicolas, 2013, p. 34).
A condição modesta
da família fazia com que Alyr Léon e Josepha se preocupassem com o futuro
das/os filhas/os, projetando na educação uma melhoria de vida. Ainda que seus
pais incutissem aspirações às/aos filhas/os para progredirem socialmente, pelo
acesso à formação escolar, pelas amizades cultivadas, ou por meio da ampliação
de seu repertório cultural, nota-se que, o estigma da escravidão perpassava as
relações interpessoais nas primeiras décadas do século XX.
Nicolas,
em seus registros, se identificava como negra e desde a infância conviveu com
episódios de racismo. Recordava-se que um dos seus vizinhos a discriminava e,
ao caminhar pela rua, ouviu a seguinte récita: “O pintor que pintou Maria,
Pintou Thereza também, Que culpa tem o pintor, Se Maria não saiu bem” (Nicolas,
[19--]a, p. 9). Seu corpo carregava insígnias de subordinação ao branco, que
Nogueira (2006) denominou de preconceito de marca.
Quanto à
reação do grupo discriminado: onde o preconceito é de marca, a reação tende a
ser individual, procurando o indivíduo ‘compensar’ suas marcas pela ostentação
de aptidões e característicos que impliquem aprovação social tanto pelos de sua
própria condição racial (cor) como pelos componentes do grupo dominante e por
indivíduos de marcas mais ‘leves’ que as suas; [...] (Nogueira, 2006, p. 301).
A
comparação com a irmã de pele mais clara elucida que a reação ao grupo
discriminado foi de cunho individual (Nogueira, 2006), sendo que, o preconceito
também se camufla pela estrutura social como um atributo de classe. As
características enunciadas por Nogueira (2006) em meados da década de 1950
sobre o preconceito de marca remetem ao debate de Alessandra Devulsky (2021) acerca
do colorismo. O colorismo é um desdobramento do racismo, ambos se constituem
como uma ideologia que se pauta na superioridade do fenótipo branco. Nesse
processo social complexo há uma hierarquia entre os que se aproximam ou se
distanciam dos traços culturais e morfológicos do colonizador.
O
colonizador é a régua e a regra. O colonizado é o espaço a ser invadido; o
sujeito a ser escrutinado por critérios construídos algures; aquele que por
definição é o negativo do outro, a exceção. Ele deve ser expurgado para dar
espaço aos valores intrínsecos à europeinidade. Assim, o branco se firma como
parâmetro etnocêntrico (Devulsky, 2021, p. 30).
Em analogia às
colocações de Devulsky (2021), Lorde (2019), ao se referir ao contexto dos
Estados Unidos, assevera que há uma norma mítica nas relações sociais de poder.
Participam dessa norma aqueles que são caracterizados como: “[...] branco,
magro, homem, jovem, heterossexual, cristão e financeiramente estável” (Lorde,
2019, p. 145). Os demais, que não se enquadram nessa descrição, estão à margem.
No
caso de Nicolas, a antipatia pelo seu vizinho é uma reação natural da
discriminação por ela vivida, já que os versos representam a ideologia racista
entre brancos e negros. Se, por um lado, Nicolas destacava o acervo cultural
herdado de seu pai, por outro, percebia que o capital cultural assimilado não
era suficiente para neutralizar o estigma de ser negra, ou para mudar a força
do capital social. O capital social partilhado e preservado entre os grupos nos
quais conviveu era um elo de coesão social, nos termos de Bourdieu (2017, p.
75):
[...] o
volume do capital social que um agente individual possui depende então da
extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do
capital (econômico, cultural ou simbólico) que é posse exclusiva de cada um
daqueles a quem está ligado.
Conservar uma rede
de relações era essencial para a manutenção do capital social, que no caso de
Nicolas se fragilizava pela mudança constante de escolas e municípios: “[...] o
‘olho mau’ continuava seguindo as minhas pegadas” (Nicolas, [19- -], p. 54).
Em Piraí do Sul
ocorreu uma desavença entre Nicolas e Raul Santos, que era o inspetor local,
justamente pelo fato de Nicolas ter sido nomeada para uma vaga que já estava
prometida para outra pessoa. As divergências entre eles se refletiram nos trâmites
burocráticos do ensino, por exemplo, na insatisfação do inspetor em relação à
organização do resumo mensal de desempenho dos alunos escrito por Nicolas. Na
ocasião, o inspetor impôs-lhe que o documento deveria seguir um modelo
semelhante ao de outra professora que não era normalista, e caso a ordem não
fosse acatada, isso poderia incidir em prejuízos no recebimento do seu ordenado
mensal. Nicolas, valendo-se de seu título de normalista e do capital simbólico
da professora Julia Wanderley, não concordou com a situação. “Senti me
ofendida, pois depois de ser considerada pela bondosa D. Julia, que revia todos
os meses o resumo mensal, revoltei-me declarando não copiar qualquer documento,
porquanto tinha capacidade para redigi-los. Para ser autêntico eu havia me
diplomado. [...]” (Nicolas, [19--]a, p. 54).
Ainda assim,
Nicolas dispunha de capital social e o mobilizava quando necessário. Diante do
conflito, ela recorreu ao Dr. Alcebíades Correa Bittencourt (1882-1952), juiz
de direito de Piraí do Sul, filho do casal Cristina de Moura Britto (1861-1921)
e Damásio Correia de Bittencourt (1844-1895). O Dr. Alcebíades, que era filho
da madrinha de Nicolas, procurou o inspetor e realizou um acordo de vistar os
relatórios mensais, que passariam primeiramente pelo seu endosso antes de serem
entregues ao inspetor. A figura do inspetor escolar no controle das ações
escolares aparece desde o período provincial paranaense, especialmente nas
Escolas Isoladas, nas quais não havia a função do diretor escolar. A inspeção consistia
em verificação das atividades pedagógicas, desde o controle dos livros de
escrituração, até uma análise do trabalho realizado pelo professor.
O relacionamento
com o inspetor Raul Santos não melhorou e outras situações adversas acarretaram
a suspensão do salário de Nicolas, fazendo-a desistir das aulas em Piraí do
Sul; igualmente, o seu estado frágil de saúde cooperou para tal decisão.
Em várias passagens destacadas por Nicolas em
suas memórias, vemos que ela dispunha de capital social pedindo auxílio às
pessoas com quem mantinha laços sociais, provindos de seus vínculos familiares;
por outro lado, após a morte de Julia Wanderley, sua estada na capital
paranaense tornou-se um problema para as colegas de trabalho.
Nicolas
vivenciou um contexto histórico marcado pelo “racismo científico” e pelo “mito
da democracia racial”. O racismo científico defendia a não mistura entre as
raças no sentido biológico, conduta que se estendia aos ambientes de
sociabilidade. Para ilustrar esse tabu entre as raças, destaca-se um trecho
escrito por Annete Macedo no período em que cursou a Escola Normal, entre 1909
e 1911. Com o título “Chega-te aos bons”, a autora expõe o seguinte
diálogo:
- Zélita -Para matrícula da Escola Normal devia haver uma seleção.
Admitidas somente moças de boa família. Infelizmente há muita mistura.
- Guida -Mistura. Moças de boa família. Não sei bem o que você quer
dizer com essas expressões. Si se refere à posição social, está em grave erro.
Pois conheço muitas mocinhas de família humilde e honrada tão dignas, ou mais,
(conforme o caso) de que outras descendentes de famílias de posição de destaque
na sociedade. Não direi que na classe alta não haja dignidade. A dignidade
existe em qualquer classe social. Isto é, tanto entre ricos como entre os
pobres.
- Zélita -Não me refiro somente às classes sociais. Refiro-me à
influência do meio, à influência perniciosa das más companhias. (Macedo, 1953,
p. 140 apud Schuindt, 2022, p. 107).
Ao
ampliar o olhar para os aspectos filosóficos que envolviam o diálogo, as
diferenças humanas no início do século XX sob a pauta do racismo tornaram-se
objeto de estudo dos pensadores da época, cujas explicações científicas
justificavam a supremacia branca. De acordo com Silvio Almeida (2021, p. 29):
A biologia
e a física serviram como modelos explicativos da diversidade humana: nasce a
ideia de que características biológicas – determinismo biológico – ou condições
climáticas e/ou ambientais – determinismo geográfico – seriam capazes de
explicar as diferenças morais, psicológicas e intelectuais entre as diferentes
raças.
Nessa percepção, a
pele não branca e o clima tropical brasileiro eram vistos como ingredientes que
justificavam nos mestiços os “comportamentos imorais, lascivos, violentos e de
pouca inteligência” (Almeida, 2021, p. 29). Sendo assim, no pensamento
identificado como racismo científico, baseado nos pressupostos de Arthur de
Gobineau, o imperativo era evitar a mistura de raças (Almeida, 2021). O racismo
científico presente nos anos iniciais do século XX, seja no comportamento
individual ou no âmbito institucional, recebeu uma nova roupagem a partir da
década 1930, caracterizado pelo que se denomina de mito da democracia racial.
Para Sales Junior (2006), o mito da democracia racial estava alicerçado na cordialidade
racial, ou seja, “a cordialidade, por meio do não-dito racista, faz com que a
discriminação social não seja atribuída à ‘raça’ e, caso isso ocorra, a
discriminação seja vista como episódica e marginal, subjetiva e
idiossincrática” (Sales Junior, 2006, p. 232).
Em
ambos os processos, no racismo científico e no mito da democracia racial, a
mulher negra não participa socialmente em espaços relevantes de atuação
pública, principalmente aqueles associados à cultura e ao poder. Lélia Gonzalez
(2020, p. 44), assinala que:
O processo
de exclusão da mulher negra é patenteado, em termos de sociedade brasileira,
pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos: ‘domésticas’ e ‘mulatas’. O
termo ‘doméstica’ abrange uma série de atividades que marcam seu ‘lugar
natural’: empregada doméstica, merendeira na rede escolar, servente nos
supermercados, na rede hospitalar etc. Já o termo ‘mulata’ implica a forma mais
sofisticada de reificação: ela é nomeada ‘produto de exportação’, ou seja,
objeto a ser consumido pelos turistas e pelos burgueses nacionais.
Para a autora, ao
se referir ao contexto brasileiro da década de 1950 e que ainda era vigente nas
duas décadas seguintes, os termos boa aparência ou ótima aparência comunicados
nos anúncios dos jornais alude ao fato de que a mulher negra não tem espaço em
trabalhos que exigia contato com o público (Gonzalez, 2020). Ser professora
normalista na década de 1920 e 1930 implicava em ter contato com o público e
exercer uma função letrada.
Collins e Bilge
(2021) lembram, por meio da ferramenta analítica da interseccionalidade, que a
autopercepção das diferentes formas de preconceito é diferenciada entre as
pessoas, porque estas possuem identidades complexas que se moldam pelas suas
relações sociais; isto é, “[...] homens e mulheres frequentemente sofrem o
racismo de maneiras diferentes, assim como mulheres de diferentes raças podem
vivenciar o sexismo de maneira bastante distintas, e assim por diante”
(Collins; Bilge, 2021, p. 29). Portanto, Nicolas, ao adentrar a Escola Normal e
durante a sua trajetória docente, vivenciou uma tripla concorrência: de classe,
de raça e de gênero.
4 Considerações finais
Ao caracterizar a
organização familiar de Maria Nicolas, com o intuito de observar sua primeira
formação educacional, e ao delinear o percurso escolar de cada membro de sua
família, percebe-se que os pais de Nicolas compreendiam que o acesso e a
permanência na escola era um modo de integração e ascensão social (Schuindt,
2022). Vivendo dentro de uma sociedade racista, patriarcal e sexista, Nicolas
foi direcionada a lecionar em escolas afastadas da capital. Estava dentro do
grupo das normalistas, no entanto era vista como alguém de fora (Collins, 2016;
bell hooks, 2019). Além disso, mesmo ocorrendo um processo de feminização nos espaços
hierárquicos concernentes às instituições escolares, Nicolas não ascendeu a
nenhum cargo de direção e, ao ocupar a posição indicada por Julia Wanderley,
sentiu o desconforto de estar em um lugar onde não era bem-vista – termo que
Collins (2016) define como Outsider Within
ou Forasteira de Dentro.
A origem racial e
a classe social de Nicolas não condiziam com o que era esperado para as
mulheres que tinham a incumbência de promover a instrução pública aos futuros
cidadãos da nação republicana por meio da educação primária; por isso, era
vista como uma forasteira. Enfim, as questões de raça, classe e gênero se
interseccionam ao longo de sua trajetória operando para que Nicolas se
mantivesse em posições periféricas, apartada do centro e segregada dos domínios
de poder; uma vez que, a conquista do diploma de normalista não foi suficiente
para romper com o racismo, o classismo e o sexismo da época.
Diante desse
cenário, observa-se que as mudanças constantes de escolas marcam a caminhada
pedagógica de Nicolas pelas escolas públicas do Paraná. Essa itinerância
totalizou treze escolas diferentes, entre 1917 e 1937. Incluindo seis escolas
em Curitiba: Grupo Escolar Tiradentes, Grupo Escolar Carvalho, Escolas Reunidas
do Prado, Escola Mista Barreirinha do Ahú, Escola Maternal da Sociedade de
Socorro aos Necessitados, Escola Mista de Mattão das Laranjeiras. E sete
escolas no interior do Paraná: Escola Isolada em Fernandes Pinheiro, Escola
Isolada em Piraí do Sul, Escola Isolada em São Mateus do Sul, Grupo Escolar Serapião
em União da Vitória, Escola de Aplicação anexa à Escola Normal em Paranaguá,
Escola para o sexo feminino Papagaios Novos em Palmeira, e Escola Complementar
Primária anexa ao Grupo Escolar Jesuíno Marcondes, também em Palmeira.
Constata-se que, a
sinuosidade do percurso trilhado por Nicolas, entre altos e baixos, nos
quilômetros percorridos, revelou pistas de uma sociedade civilizada e racista,
cujos processos educacionais da população negra tinham regras tácitas de
funcionamento; tanto que ao movimentar-se de um lugar para o outro Nicolas
estava em busca de um espaço de pertencimento, o que não ocorria. Traduzido
pela expressão o “olho mau”, o racismo estrutural esteve presente em seu
trajeto escolar e profissional.
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