e-ISSN 1984-7246  

Literacias urbanas: diretrizes para qualificar a participação popular em projetos de regularização fundiária[i]

 

 

 

Kelly Lucas Santiago[ii]

Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo (SESA)

Vitória - ES, Brasil

lattes.cnpq.br/0688308747611445

orcid.org/0009-0005-6220-5946

kelly.santiago.as@gmail.com

 

Gilton Luis Ferreira[iii]

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Vitória - ES, Brasil

lattes.cnpq.br/3133702770099083

orcid.org/0000-0002-3201-0380

gilton87@hotmail.com

 

Giovanilton André Carretta Ferreira[iv]

Universidade Vila Velha (UVV)

Vila Velha - ES, Brasil

lattes.cnpq.br/1393675429251087

orcid.org/0000-0002-3136-2966

giovanilton2002@hotmail.com

 

 

 

                     

                     

 

 

 

Literacias urbanas: diretrizes para qualificar a participação popular em projetos de regularização fundiária                          

Resumo

A pesquisa que embasou este artigo está voltada para o reconhecimento dos direitos, visando à efetivação da participação popular nos processos de Regularização Fundiária (REURB). Neste contexto, o artigo tem como objetivo definir princípios para qualificar a participação popular nos projetos de REURB, tendo como ponto de partida o debate sobre a Educação Popular como principal via de condução da formação política do cidadão. A pesquisa contribui para o campo dos estudos sobre processos formativos baseados na proposta pedagógica da Educação Popular no âmbito dos projetos de REURB. Trata-se de uma investigação documental de abordagem qualitativa, realizada por meio da técnica de análise de conteúdo, com auxílio do software MAXQDA. Os dados analisados provêm de 26 cartilhas produzidas por órgãos federais, estaduais e municipais, abrangendo o período entre a aprovação do Estatuto das Cidades, em 2001, e três anos após a promulgação da última legislação que trata da regularização fundiária, em 2020. Os resultados destacam a ausência de uma relação dialética entre os produtores das cartilhas e o público destinatário, evidenciando a necessidade de aprimorar o debate sobre a política habitacional brasileira, enfatizando a relevância dos processos formativos embasados na proposta pedagógica da Educação Popular.

 

Palavras-chave: educação popular; participação popular; regularização fundiária - REURB.

 

 

Urban literacies: guidelines to qualify popular participation in land regularization projects

 

Abstract

The research that underpins this article is focused on the recognition of rights, aiming at the effective participation of the population in Urban Land Regularization (REURB) processes. In this context, the article aims to define principles to qualify popular participation in REURB projects, starting from the debate on Popular Education as the main avenue for the political formation of citizens. The research contributes to the field of studies on formative processes based on the pedagogical proposal of Popular Education within the scope of REURB projects. It is a bibliographical investigation of qualitative approach, carried out through the technique of content analysis, with the aid of the MAXQDA software. The analyzed data come from 26 booklets produced by federal, state, and municipal agencies, covering the period between the approval of the Statute of Cities in 2001 and three years after the promulgation of the last legislation dealing with land regularization in 2020. The results highlight the absence of a dialectical relationship between the producers of the booklets and the target audience, emphasizing the need to improve the debate on Brazilian housing policy, emphasizing the relevance of formative processes based on the pedagogical proposal of Popular Education.

 

Keywords: popular education; popular participation; land regularization - REURB.

 

 

1 Introdução

A palavra “Literacy”, em sua origem inglesa, denota alfabetização/letramento. Atualmente, as literacias são múltiplas e estão direcionadas para o processo de informação, considerando os meios, contextos e ambientes em que se produz o conhecimento (Bonami, 2016). Para a autora, o termo deriva dos estudos de Paulo Freire em seu livro “Pedagogia do Oprimido”. Nessa abordagem, as literacias são um conjunto de competências desenvolvidas pelo sujeito. Nesta pesquisa, as literacias urbanas representam os conhecimentos mínimos que serão construídos a partir do movimento dialógico. A literacia, então, é considerada a capacidade de ler e compreender o mundo urbano, permitindo a reflexão não só de conteúdo, mas também dos contextos socioeconômicos, políticos e históricos nos quais as mensagens são criadas. A pesquisa teve como objetivo definir princípios e conteúdos mínimos para a qualificação da participação popular nos projetos de Regularização Fundiária - REURB.

Na primeira parte deste artigo discute-se a natureza das formas educacionais compreendida a partir de três níveis: educação formal, educação não-formal e educação informal, dando ênfase à não-formal (educação popular) como via fundamental para a condução dos processos formativos voltados para a autonomia do cidadão e compreensão crítica de sua própria existência. No segundo momento descrevem-se os procedimentos de seleção e análise das cartilhas educativas sobre regularização fundiária, que teve auxílio de um software para a realização da análise de conteúdo. Após a seleção, as cartilhas foram identificadas, quantificadas e analisadas as categorias temáticas presentes em seus textos.

Na sequência são apresenatdos os princípios orientadores da prática educativa nos projetos de regularização fundiária, tomando por base o Marco de Referência de Educação Popular para as Políticas Públicas, aprovado em 2014. Por fim, foram identificados os conteúdos mínimos para a qualificação da participação popular nos projetos de Regularização Fundiária – REURB, visando subsidiar a reflexão dos sujeitos. Os resultados apontam a existência de fatores que dificultam a autotransformação dos cidadãos pela ausência de uma relação dialética entre quem produz o material e o público destinatário.

2 Educação Popular: emancipação política e exercício da cidadania

A educação é compreendida neste artigo a partir de três níveis: a educação formal, a não-formal e a informal. Segundo Lucena (2019), a educação formal é estruturada, planejada intencionalmente e realizada em instituições convencionais de ensino; a educação informal ocorre de forma espontânea, com saberes produzidos ao longo da história de vida (Autor, ano). A educação não-formal, conforme Fernandes e Garcia (2019), ocorre fora do sistema formal de ensino, em diversos espaços sociais, mas não possui uma legislação nacional que a regulamente no Brasil. Apesar das diferenças, ambas as formas educacionais podem se beneficiar mutuamente (Simão, 2022).

Gohn (2006) define a educação não formal como um processo de formação para a cidadania, estabelecido por meio da organização comunitária. Simão (2022, p. 52) destaca a existência de “uma concepção dominante que desvaloriza essa modalidade de ensino, como aquelas vindas dos meios de comunicação e do senso comum, já que consideram como não pertencente à área da educação o que não é ‘escolarizável’”. Ainda segundo a autora, os projetos não formais são criados de acordo com as necessidades locais e mantêm a frequência de participantes devido ao interesse e às atividades realizadas.

Toledo (2009, p. 28) explica que, ao contrário do ensino formal, que se baseia em conteúdos pré-estabelecidos, na educação não-formal os participantes se tornam gestores e protagonistas de sua própria ação educativa. Gadotti (2012) argumenta que a educação não-formal engloba experiências da vida, com orientação ética e emancipatória, visando contribuir para a aprendizagem política e o desenvolvimento da consciência cidadã. Carrilo (2013) e Zitkoski (2017) consideram a educação popular como uma forma de educar voltada para as classes populares, com o objetivo de capacitar e empoderar os indivíduos para assumirem um papel ativo na transformação social.

No Brasil, na década de 1950, os educadores começaram a questionar o modelo de educação formal que visava ajustar socialmente as camadas populares por meio da transmissão de conhecimentos para manter a ordem vigente. Esse movimento deu início à defesa de uma educação libertadora, proposta por Paulo Freire, com novas práticas culturais e educacionais (Paiva, 2003). Durante a ditadura militar, as ideias difundidas nos grupos populares, incluindo os movimentos de educação popular, foram silenciadas, e Paulo Freire sofreu perseguição política.

Em 1988, os princípios educacionais foram referendados pela Constituição Federal e a educação passou a ser pensada como um processo capaz de desenvolver a consciência crítica do cidadão. Um marco importante desse novo enfoque, segundo Pereira e Pereira (2012), foi a ampliação das experiências populares e participativas em áreas como saúde, assistência social, cultura e a discussão sobre o orçamento dos municípios com gestões democráticas e populares.

Pereira e Andrade (2009) destacam a importância de uma relação dialógica e horizontal entre educador e educando, por meio da troca de saberes, para despertar o potencial criativo dos grupos e fortalecer a participação popular. Nos estudos de Freire (1994), esse modelo de educação valoriza a cultura e o saber popular, promovendo uma educação dialógica e participativa para a construção compartilhada do conhecimento.

Lucena (2019) discute quatro tipos de aprendizagens resultantes da atuação dos movimentos sociais em espaços de interlocução e diálogo: aprendizagens políticas, sociais, cognitivas e práticas. Gohn (2011), concordando com Lucena (2019), argumenta que a aprendizagem política está relacionada ao reconhecimento dos direitos individuais e coletivos; a aprendizagem social interfere no modo de falar e ouvir em público, modificando hábitos e comportamentos de grupos e pessoas. A aprendizagem cognitiva diz respeito à aquisição de novos conteúdos; enquanto a aprendizagem prática envolve a organização para a participação.

Vargas (2014) afirma que a educação popular está se reinventando, mantendo sua base de sustentação nas práticas contra-hegemônicas. Em 2014, o Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas formalizou a educação popular como política pública, propondo referências fundamentais para a Política Nacional da Educação Popular e apoiando diferentes setores do governo em suas ações educativas e formativas.

A luta pela libertação, promovida por processos emancipatórios baseados na educação popular, visa a construção de um novo projeto de sociedade. Os movimentos sociais e as organizações populares devem se dedicar ao papel formativo e conscientizador, bem como às dimensões pedagógicas e educativas, oferecendo especial atenção à formação de lideranças e representações (Zitkoski, 2017).

Após o impeachment de 2016, mudanças governamentais extinguiram vários espaços de mobilização cidadã. As políticas públicas brasileiras seguem orientações político-ideológicas antagônicas à educação popular, adotando uma abordagem de extrema-direita e de restauração da hegemonia capitalista. No entanto, para Schonardie (2018), a mudança na conjuntura política não impede que a educação popular penetre nas políticas públicas e enfrente o desafio de implementar estratégias e princípios capazes de fortalecer a consciência crítica das pessoas e grupos para a intervenção nos processos decisórios.

 

3 Seleção e análise das cartilhas educativas sobre regularização fundiária

Para realizar a busca, seleção e análise das cartilhas, com o objetivo de conhecer as abordagens utilizadas nos materiais educativos e compreender sua dimensão pedagógica, foi adotado o critério de disponibilidade na plataforma Google. A primeira delimitação (filtro) estipulada foi a busca por cartilhas em formato PDF, cuja temática central fosse a regularização fundiária, devido ao uso do software MAXQDA para auxiliar a análise de conteúdo, que requer o uso desta extensão.

A busca das cartilhas ocorreu em dezembro de 2020, utilizando descritores específicos: "<cartilhas de regularização fundiária voltadas para o cidadão. PDF>". Foram encontrados aproximadamente 151.000 resultados. Por meio do ícone “ferramenta”, foram selecionados os documentos em português, dentro do recorte temporal estabelecido de 2001 a 2020. Esse período foi escolhido por abranger a promulgação do Estatuto da Cidade (2001), a criação das leis federais de regularização fundiária (2009 e 2017), até o ano de 2020, três anos após a edição da última norma. Assim, foi possível chegar a 170 documentos.

Em seguida, realizou-se uma análise preliminar para eliminar documentos que não se enquadravam no escopo da pesquisa, como artigos acadêmicos, sites, apresentações em Power Point e cartilhas em formatos diferentes de PDF. Também foram excluídas cartilhas que continham apenas pequenos diálogos ou histórias em quadrinhos, cujo conteúdo não contribuía para o aprofundamento do tema. Após esses procedimentos, foram selecionadas 26 cartilhas produzidas por órgãos federais, estaduais, municipais e institutos de pesquisa.

Com o uso do software MAXQDA, realizou-se a leitura das cartilhas e a análise temática, marcando unidades relacionadas ao objetivo geral da pesquisa. As informações foram agrupadas e reorganizadas em três categorias principais: "direito à moradia", "conceito de REURB" e "etapas da REURB", com foco na participação popular e suas respectivas subcategorias, conforme a tabela 1.

 

Tabela 1 – Resultados encontrados para cada categoria e subcategorias

CATEGORIA

 

RESULTADOS

SUBCATEGORIAS

RESULTADOS

Direito à moradia

12

Por que regularizar?

10

Formação de assentamentos

irregulares

7

Conceitos de REURB

13

REURB-E

13

REURB-S

13

Etapas da REURB

20

Mobilização Social

15

Instâncias Participativas

03

Capacitação e Formação

02

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

 

De forma geral, as cartilhas apresentam a temática da REURB, abordam o direito à moradia e alguns aspectos socioeducativos relacionados ao tema, sendo destinadas aos atores com maior protagonismo social envolvidos nos projetos de regularização fundiária, como técnicos, gestores públicos e lideranças de movimentos sociais. Elas possuem caráter didático e têm o objetivo de informar o público sobre a aplicabilidade da Lei. No entanto, especificamente, apenas o Guia para as áreas de ocupação consolidadas, do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN, 2007), órgão do Governo do Estado do Espírito Santo, foi produzido a partir de um processo de formação, conforme preconiza a educação popular.

Outro destaque é a linguagem das cartilhas, que em grande parte apresenta formato técnico, mais voltado para profissionais e especialistas no assunto do que para a população em geral. Mesmo estando disponíveis em sites abertos, uma parcela significativa da população, com menor escolaridade e sem acesso às tecnologias de informação e comunicação, não consegue acessar e compreender os conteúdos das cartilhas, evidenciando o desafio de envolver o público prioritário da REURB no debate.

Um dos aspectos fundantes que Simão (2022) observa nos processos de educação popular é a elaboração dos materiais educativos em conjunto com o público a quem se destinam, ou seja, uma construção voltada para a promoção da reflexão crítica dos sujeitos a partir de sua própria realidade. Ao serem elaborados de forma participativa, com linguagem adequada e de fácil leitura, os materiais didáticos podem despertar o interesse dos participantes e alcançar o objetivo proposto.

 

4 Análise das cartilhas por categoria e subcategorias

A categoria "direito à moradia" foi abordada em 12 cartilhas, subdividida em dois tópicos: "formação de assentamentos irregulares", presente em dez cartilhas, e "por que regularizar", presente em sete cartilhas. Além do dever do poder público em prover habitação, as cartilhas tratam do direito à infraestrutura física e social, como serviços de água, saneamento e educação, incluindo conceitos como o direito à cidade formal e à sustentabilidade das cidades.

No Brasil, os problemas relativos à propriedade remontam ao Brasil Colônia, quando a terra não tinha valor econômico. Com a promulgação da Lei de Terras, em 1850, ocorreu uma mudança em sua apropriação, fazendo com que as terras passassem a ser consideradas mercadorias (Tartuce, 2018).

Para Campos (2018), as políticas habitacionais implementadas no Brasil, de 1964 a 1986, impulsionaram o desenvolvimento da indústria da construção civil, mas deixaram de atender à população que mais necessitava de moradia, direcionando os recursos para atender a classe média. A extinção do BNH trouxe novos desafios, e as cidades brasileiras cresceram fora dos marcos da cidade legal, resultando em diversas situações de irregularidade fundiária.

De acordo com Costa e Favarão (2016), as políticas sociais e urbanas ganharam destaque na agenda política após a Constituição Federal de 1988, com a inserção dos artigos 182 e 183 e a regulamentação através da Lei Federal nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, que aprimorou o conceito de função social da propriedade.

O Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), instituído pela Lei Federal 11.977/2009, teve um forte impacto na promoção da indústria da construção civil. Campos (2018) afirma que o programa impulsionou a expansão dos limites das cidades, atendendo às necessidades do capital por infraestrutura. No entanto, mais uma vez, os recursos não foram priorizados para a faixa de renda de até três salários mínimos, que concentra o maior déficit habitacional, resultando em um aumento da demanda por moradia e distanciando, ainda mais, o preço dos imóveis e o salário das pessoas. É essencial que a população esteja atenta ao debate em torno da REURB, especialmente quanto à titulação da propriedade da terra, para evitar que os projetos sejam utilizados como manobras políticas.

Dez documentos discutem o tema "por que regularizar" sob diversos enfoques, ressaltando a recorrência de ocupações irregulares nas periferias das cidades brasileiras, principalmente nas regiões metropolitanas, habitadas em sua maioria por população de baixa renda que, historicamente, não teve acesso à produção formal de habitação, que constrói suas casas por conta própria e enfrenta obstáculos para concretizar plenamente o direito à cidade e de exercer sua cidadania.

As cartilhas afirmam que, após a regularização fundiária, os moradores têm garantia da posse sobre o imóvel, evitando o risco de remoção do local onde residem. Destacam, também, que a regularização integra o bairro à cidade, proporcionando o reconhecimento do endereço das pessoas, permitindo a reivindicação de melhorias e a valorização das moradias.

Fix (2019) e Balbim (2010) dialogam com essa afirmação. O primeiro autor destaca que a regularização fundiária busca efetivar o direito à cidade e a função social da propriedade, conforme previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, por meio de um ordenamento urbano inclusivo e com perspectivas de desenvolvimento socioeconômico. Além disso, o processo de regularização auxilia na gestão dos territórios urbanos, permite uma atuação mais eficiente do poder público nas áreas regularizadas, incluindo os assentamentos nos cadastros municipais. O segundo autor argumenta que a regularização fundiária é uma ação que reconhece os direitos dos ocupantes de terras.

Contudo, esse debate parece insuficiente, pois os direitos associados à moradia dependem da regularização de vários outros aspectos estruturais para serem efetivados plenamente. Soto (1989) ressalta que a ausência de títulos de propriedade da terra é o maior entrave para o desenvolvimento econômico e social de países em desenvolvimento, visto que o título de propriedade aumenta o acesso ao crédito e possibilita investimentos em melhorias habitacionais e em outros negócios. Por outro lado, Fernandes (2011) argumenta que a regularização, apesar de valorizar os imóveis, não aumenta o acesso ao crédito, pois as agências credoras têm como exigência a comprovação de renda fixa, e não a posse de uma propriedade.

Bataller (2012) destaca a importância de se refletir sobre o investimento em determinadas áreas, como melhorias nas moradias, pois isso promove o incentivo ao comércio e impulsiona o mercado imobiliário e habitacional, estimulando os agentes do solo, como proprietários, promotores, governos locais, estaduais e instituições financeiras. Essas "renovações urbanas" são apontadas por Smith (2002) como estratégias capitalistas para garantir o lucro e promover a gentrificação, termo utilizado para descrever os processos neoliberais de segregação da população de uma área urbana devido à especulação imobiliária. O debate em torno da regularização fundiária, com a titulação da propriedade da terra, pode ser usado como um gatilho para promover desenvolvimento econômico e social, mas também levanta questões sobre a mercantilização do espaço urbano (Fernandes, 2002).

Outra questão relevante que não é claramente abordada nas cartilhas é a cobrança de tarifas após a regularização. Os materiais mencionam sutilmente que haverá atualização dos cadastros municipais e da base imobiliária do IPTU. É importante ressaltar que a cobrança de tarifas municipais é um fator que dificulta a permanência da população de baixa renda nas áreas regularizadas.

Sete documentos discutem a formação de assentamentos irregulares. A cartilha da Prefeitura de Canoas (201-?) reflete sobre o rápido crescimento da população urbana, causado pela industrialização do país e pelo consequente aumento do número de trabalhadores nas cidades. Já a cartilha da Confederação Nacional dos Municípios (2014) aponta que o acelerado processo de urbanização e as transformações econômicas condicionaram uma forte alocação da população nas áreas urbanas, e a falta de uma política nacional de trabalho e renda, integrada às políticas urbanas e sociais, resultou na ocupação informal nas cidades.

Para construir um material com objetivo de propiciar uma análise crítica, a problematização da questão social precisa ser ampliada. É necessário considerar o processo de produção do espaço na perspectiva imobiliária, pensando na terra urbana como capital e no processo de acumulação que ocorre na indústria de construção civil. Conforme Abreu (2011), não é possível separar a análise sobre o território da análise mais profunda das relações sociais de produção capitalista.

As 26 cartilhas de regularização fundiária abordam o conceito de REURB, difundido a partir do Estatuto da Cidade - Lei Federal n° 10.257/2001. A Cartilha da Prefeitura de Canoas (201-) destaca que o reconhecimento do direito à moradia garante a posse dos ocupantes das áreas irregulares, sendo um conjunto de medidas para a promoção da cidadania e intervenção pública com melhorias no ambiente urbano e qualidade de vida da população.

Segundo a cartilha do MPRS (2011), a REURB é um processo de transformação de moradias irregulares em moradias legalizadas, com melhorias ambientais e serviços públicos adequados, como água tratada, esgotamento sanitário, pavimentação, iluminação pública, coleta de lixo, entre outros. A política local deve garantir o acesso aos serviços públicos essenciais para a melhoria da qualidade de vida da comunidade e sua integração à cidade.

Gomes e Steinberge (2016) explicam que as medidas jurídicas visam adequar a ocupação existente às normas do ordenamento jurídico; as medidas urbanísticas incluem a infraestrutura essencial, e as medidas ambientais buscam melhorar o ambiente em relação à situação anterior. Além disso, as medidas sociais proporcionam a inclusão social e o acesso aos serviços públicos para a população de baixa renda.

Em 2017, o novo marco legal da regularização fundiária, Lei 13.465/2017, instituiu duas modalidades de REURB:

 

 a) Reurb - S de interesse social, para regularizar núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda; e b) Reurb – E de interesse específico, destinada a populações de maior poder aquisitivo, que podem regularizar áreas irregulares sem o auxílio do poder público (Brasil, 2017, p. 20).

 

A Lei 13.465/2017 estabelece que a REURB seguirá as seguintes fases (art. 28):

 

I. Requerimento dos legitimados; II. Processamento administrativo do requerimento, com prazo para manifestação dos titulares de direitos reais sobre o imóvel e confrontantes; III. Elaboração do projeto de regularização fundiária; IV. Saneamento do processo administrativo; V. Decisão da autoridade competente, com publicidade; VI. Expedição da Certidão de Regularização Fundiária (CRF) pelo Município; e VII. Registro da CRF e do projeto de regularização fundiária aprovado no cartório de registro de imóveis da unidade imobiliária com destinação urbana regularizada (Brasil, 2017, p. 27).

 

Em relação às subcategorias analisadas, dentro da categoria “etapas da REURB”, a mobilização ou comunicação social tem por objetivo prestar informações à população envolvida, além de incentivar e organizar a participação da comunidade no processo de regularização fundiária urbana (FIP, 2019).

As cartilhas da Prefeitura de Canoas [entre 2013 e 2017] e do Programa Morar Legal/ES (IJSN, 2016) apresentam o cadastramento social e as audiências públicas como etapas de envolvimento dos moradores nas áreas a serem regularizadas. No processo descrito pela cartilha de Canoas, a identificação dos lotes contou com o apoio de líderes comunitários e de delegados do Orçamento Participativo, um desenho participativo considerado democrático por Avritzer (2008).

A cartilha da Universidade Federal de Tocantins (PROEXT, 2014) destaca a importância da ampla divulgação das audiências e debates para permitir a participação comunitária. Além disso, menciona que referendos e plebiscitos são espaços em que a população é consultada sobre a elaboração de uma determinada lei. Informam também a existência do Conselho de Habitação e Desenvolvimento Urbano, formado por representantes da sociedade civil e do poder público, que tem a função de acompanhar e fiscalizar o cumprimento do Plano Diretor Municipal.

O Guia de Regularização Fundiária do IJSN destaca a importância da gestão compartilhada e da pactuação com os moradores para garantir a participação das comunidades nas decisões e a sustentabilidade do processo (IJSN, 2007). Já a Cartilha de Regularização Fundiária Urbana – MP/SP (2017) destaca que os beneficiários devem ser os atores principais do processo de regularização e enfatiza a importância da capacitação desses representantes para atuar e disseminar informações. É relevante notar que, entre as cartilhas analisadas, este é o único material que aborda a formação dos representantes da comunidade como meio de aprimorar a participação.

Dentre as cartilhas analisadas, apenas três mencionam as instâncias participativas, como Audiências Públicas e Conselhos de Habitação e Desenvolvimento Urbano, e apenas duas abordam a formação da sociedade civil para atuar nos espaços coletivos. As cartilhas de regularização fundiária do IJSN (2007) e IJSN (2016) enfatizam a necessidade de capacitação dos representantes da comunidade selecionados para lidar com questões relacionadas à regularização fundiária. Destaca-se que cartilhas ilustradas podem auxiliar no aprendizado de forma simples e prática.

Jesus (2012) afirma que a relevância da capacitação está menos no passo a passo e mais na importância da luta e busca por direitos de cidadania e liberdades, a fim de evitar que a sociedade civil se torne mero "fantoche" da máquina pública.

5 Princípios orientadores da prática educativa nos projetos de REURB

Para aprimorar a participação dos envolvidos nos projetos de REURB, os princípios foram elaborados com base nas diretrizes epistemológicas do Marco de Referência de Educação Popular para as Políticas Públicas, aprovado em 2014. Seguindo o ideário freiriano, a Educação Popular abrange princípios como: dialogicidade, amorosidade, conscientização, transformação da realidade e do mundo, partir da realidade concreta, construção do conhecimento, pesquisa participante e sistematização de experiências e conhecimentos (Brasil, 2014).

Dessa forma, os princípios estabelecidos neste estudo possibilitam que os indivíduos exerçam o direito à participação com autonomia para superar limitações, garantindo uma atuação mais consciente e crítica nos projetos de REURB (Tabela 2).

 

Tabela 2 – Princípios orientadores da prática educativa em projetos de REURB

PRINCÍPIOS

 

DESCRIÇÃO

 

1

Reconhecimento do cidadão como sujeito portador de direitos.

Os direitos são conquistas humanas firmados na Constituição Federal e somente estarão garantidos quando diminuírem as desigualdades sociais (LEAL, 1997).

2

Defesa de processos educativos que tenham por base a educação popular.

A ação educativa não se caracteriza por um saber pronto, desvinculado do cotidiano das pessoas que serão beneficiárias das ações. Tem como eixo orientador o empoderamento dos sujeitos a partir do desvelar de sua realidade social (SESC, 2005).

3

Garantia da construção compartilhada do conhecimento a partir da pesquisa participante.

Nos espaços educativos, onde não há a imposição técnica do conhecimento, todos podem ser protagonistas. Seguindo essa metodologia, o conhecimento é construído respeitando a diversidade e a heterogeneidade dos grupos (SESC, 2005).

4

Garantia de que os profissionais responsáveis por facilitar o trabalho formativo tenham competência técnica para a função.

É fundamental que o educador tenha uma postura ético-política, identificação com o trabalho social e capacidade de articulação para implementar o seu trabalho, contribuindo tecnicamente para o rompimento de barreiras culturais (SESC, 2005).

5

Zelo pela qualidade do planejamento das ações educativas, partindo da realidade concreta dos educandos.

Para ser eficaz, o planejamento precisa se aproximar das reais necessidades dos envolvidos na formação. A partir desse conhecimento prévio, selecionam-se os materiais norteadores, para definir junto aos sujeitos, os objetivos, conteúdos, formular metas a serem alçadas e os indicadores de avaliação de todo o processo formativo (SESC, 2005).

6

Atuação pautada no fortalecimento de habilidades e emancipação das pessoas.

 

 

A prática educativa deve priorizar o desenvolvimento de habilidades e competências dos indivíduos para a atuação coletiva. Um material didático pautado nos princípios e fundamentos da educação popular não dá espaço para o engessamento das práticas (SESC, 2005).

7

Adoção de critérios para o monitoramento e a avaliação da prática educativa.

A avaliação corresponde à análise dos resultados, possibilitando a adequação do planejamento; nele, é importante adotar critérios para a efetividade dos resultados (BAPTISTA, 2003).

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

 

A partir dos princípios apresentados, entende-se que é possível subsidiar a elaboração de um material de formação para os projetos de REURB como um instrumento norteador do empoderamento da sociedade civil, contribuindo para a formação de atores ativos e conscientes de seus direitos e deveres. Entretanto, esse material requer análise da equipe técnica para avaliar sua efetividade junto ao público estratégico, uma vez que os perfis, necessidades e cenários de atuação são diferenciados.

 

6 Conteúdos mínimos para a educação popular em projetos REURB

Toda prática educativa deve ser orientada por uma análise da realidade para que as ações tenham efetividade. Deve também ser estruturada por uma programação condizente com os objetivos que se pretende alcançar. A proposta dos conteúdos aqui desenvolvidos deverá ser confrontada a partir das experiências que os sujeitos forem trazendo. Serviram de base para a definição dos conteúdos, os apontamentos de Paulo Freire (1993), que definem que o papel do educador democrático não é dar respostas, mas socializar o conhecimento e ajudar a formular perguntas, instigando os indivíduos a refletir, inquietando-os para o debate consciente de sua ação política em uma relação dialógica.

Toda prática educativa deve ser orientada pela análise da realidade e ter uma programação adequada aos objetivos pretendidos. Os conteúdos propostos a seguir têm como base os apontamentos de Paulo Freire (1993), que enfatizam a importância do educador democrático em socializar conhecimentos e estimular a reflexão e o debate consciente dos sujeitos em relação à sua ação política.

Para Freire (2004), é a partir dos conteúdos propostos que ocorre a investigação dos sujeitos em relação à realidade concreta da qual fazem parte. Portanto, compreende-se que uma visão integral do processo de REURB requer a abordagem de temas que permitam a construção do conhecimento sobre fatores econômicos, culturais e sociais relacionados à temática da Regularização Fundiária. Assim, foram elencados oito conteúdos que servirão como orientação para a definição da bibliografia de apoio, acompanhados de uma breve indicação da abordagem a ser trabalhada.

a)  Processo de acumulação capitalista e questão social

O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a 'questão social'. Por essa razão, é importante eleger uma teoria consistente que permita compreender a história do espaço urbano e seu movimento, uma vez que a questão urbana é indissociável da lógica de rentabilidade do capital e obedece à lógica mercadológica.

b) O direito à cidade

Para compreender o direito à cidade, é importante considerar o conceito formulado pelo filósofo marxista francês Henri Lefebvre em seu livro "Direito à Cidade", publicado em 1968, e os escritos de David Harvey. A proposta desses autores sobre o direito à cidade consiste na desconfiança da democracia da forma como ela está posta. Outra dimensão relevante, segundo Cavallazzi (2011), é o debate sobre o significado de "direitos". Harvey (2018) destaca que o direito à cidade vai além de um direito de acesso individual ou grupal aos recursos urbanos; é o direito de mudar e reinventar a cidade de acordo com nossos mais profundos desejos.

c) Processo de apropriação da terra

No Brasil, assim como em outras partes do mundo, a propriedade sempre foi alvo de tensões. Desde os primórdios da colonização, especialmente com o sistema clientelista das sesmarias, a distribuição de terra foi desigual. A Lei de Terras de 1850 determinou que a aquisição da propriedade ocorreria por compra e venda com pagamento em dinheiro, excluindo assim grande parcela da população e resultando na proliferação de habitações precárias em muitos municípios brasileiros, hoje conhecidas como comunidades (Tartuce, 2018).

d)  Formação de assentamentos irregulares

O crescimento urbano acelerado resultou na proliferação de aglomerações precárias, que se tornaram a única opção de moradia para milhões de pessoas, tanto no centro quanto na periferia das cidades (Gomes; Steinberger, 2016). É importante compreender que a pobreza e a desigualdade social são fatores fundamentais para o surgimento e agravamento da crise habitacional e para a formação dos assentamentos humanos.

e)  Programas habitacionais implantados no Brasil

Abordar os programas habitacionais é de suma importância para a compreensão histórica de como o problema do déficit habitacional foi tratado no país. Dentre as principais abordagens, destacam-se o Banco Nacional da Habitação (BNH), o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e, em 2009, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). 

f)  Movimento Nacional da Reforma Urbana

Nos anos 1990, segundo Rolnik (2009), ocorreram muitos avanços com debates surgindo da sociedade civil sobre o papel dos cidadãos na gestão pública, com a reestruturação de um movimento pela reforma urbana e pela constituição de um fórum. Ao abordar esse conteúdo, é importante refletir sobre a importância da participação da população de periferias e favelas nos projetos de urbanização.

g)  Estatuto da Cidade

A formação deve favorecer a reflexão sobre a instituição do Estatuto da Cidade - Lei Federal nº 10.257/2001, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal a respeito da política urbana, que ratificou o princípio da gestão democrática da cidade, tornando o Plano Diretor Municipal o principal instrumento da política urbana.

h)  Participação no processo de democratização do Estado

A participação popular e social tem se manifestado, de forma institucional, como uma espécie de complemento à democracia formal, por meio dos Conselhos e das Conferências de direitos e políticas, abordando diversas áreas das políticas públicas nas três esferas de governo (Kruger, 2018). Contudo, não é um processo estático. Como toda construção social, pode passar por períodos de avanços e retrocessos, exigindo vigilância e luta constantes.

i)   Legislações específicas sobre regularização fundiária

A regularização fundiária até o ano de 2009 era regida pela Lei 11.977/2009, mas em 2016 sofreu alterações por meio da medida provisória nº 759/2016 e passou a ser regulada pela Lei 13.465/2017. Ao abordar os marcos legais da REURB, o educador poderá dialogar com o grupo e formular estratégias para uma análise crítica dos processos de regularização fundiária como forma de consagração do direito à moradia.

 

7 Considerações finais

As reflexões apresentadas destacam que a educação voltada às classes populares tem como propósito formar cidadãos críticos e participativos na sociedade, sendo uma proposta de resistência para ampliar o conhecimento dos educandos no processo de produção do saber. A análise das cartilhas evidenciou a necessidade de impulsionar o debate para fortalecer a participação cidadã não apenas nos projetos da REURB, mas em todas as políticas públicas. Para superar as limitações da sociedade civil em relação à reflexão crítica, é essencial promover a formação contínua dos ocupantes dos núcleos informais, com processos educativos alinhados aos princípios e diretrizes da Educação Popular.

As cartilhas servem principalmente como materiais informativos e não trazem orientações para conduzir o processo de REURB de forma participativa, considerando uma abordagem dialética com conteúdos sistematizados a partir do trabalho de campo e de questões geradoras. Embora abordem o contexto histórico da política habitacional no Brasil, ainda falta ampliar e aprofundar questões relevantes relacionadas à REURB, como o processo de acumulação capitalista e problemas relacionados à propriedade urbana, incluindo programas habitacionais com prioridades invertidas, beneficiando a classe média.

É necessário ampliar a discussão sobre fenômenos como a gentrificação urbana para promover o pensamento crítico. Além disso, as cartilhas pouco mencionam o terceiro eixo de mobilização social e participação popular nas etapas da REURB, demonstrando uma falta de diálogo com a comunidade para fortalecer a participação popular e alinhar-se com a proposta de educação popular.

Para efetivar processos formativos na política de Regularização Fundiária, é relevante utilizar os princípios elencados neste trabalho como base para conduzir as ações e atividades. É pertinente que os conteúdos apontados sejam levados aos sujeitos por meio de atividades que envolvam pesquisa participante, permitindo que eles tragam elementos de sua realidade e confrontem com a teoria, assegurando o movimento dialético do processo e a autonomia dos envolvidos.

 

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[i] Artigo recebido em: 30/07/2024

 Artigo aprovado em: 02/05/2024

 

[ii] Contribuições da autora: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; administração do projeto; recursos; supervisão; validação; visualização; escrita – rascunho original; análise e edição.

[iii] Contribuições do autor: conceituação; metodologia; administração do projeto; recursos; supervisão; validação; visualização; escrita – rascunho original; análise e edição.

[iv] Contribuições do autor: recursos; supervisão; validação; visualização; escrita – rascunho original; análise e edição.