e-ISSN 1984-7246  

 


Ecologia humana e antropologia do imaginário: convergências e aproximações

 

 

Zulenilton Sobreira Leal *

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Salvador - BA, Brasil

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Juracy Marques dos Santos **

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Salvador - BA, Brasil

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Geam Karlo Gomes ***

Universidade de Pernambuco (UPE)

Recife - PE, Brasil.

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Ecologia humana e antropologia do imaginário: convergências e aproximações

 

Resumo

Este artigo tem o objetivo de discutir pontos de convergência entre a Antropologia do Imaginário, do antropólogo francês Gilbert Durand, e as concepções da Ecologia Humana. Através de uma pesquisa conceitual comparativa (Niz et al., 2016), foi possível compreender que ambas as correntes de estudo têm como ponto de convergência a existência de um trajeto antropológico, ligado ao equilíbrio biopsicossocial do homo sapiens. Essa perspectiva oferece um debate complexo sobre a relação dos seres humanos com a natureza e seus diversos habitats, em particular, o habitat simbólico. Nesse sentido, esta pesquisa traz como resultado a ideia que não há como dissociar o ser ecologicus do ser simbólicus, pois consideramos as narrativas míticas e simbólicas linguagens essenciais na promoção de um olhar poético e sensível, que traduz a subjetividade e que inclui valores nas condutas dos seres, influenciando suas visões de mundo e das práticas culturais e socioambientais.

 

Palavras-chave: ecologia humana; antropologia do imaginário; natureza; simbólico.

 

 

Human ecology and anthropology of the imaginary: convergences and approximations

 

Abstract

This article aims to discuss points of convergence between Anthropology of the Imaginary, by French anthropologist Gilbert Durand, and the conceptions of Human Ecology. Through a comparative conceptual research (Niz et al., 2016), it was possible to understand that both streams of study have as a point of convergence, the existence of an anthropological trajectory, linked to the biopsychosocial balance of homo sapiens. This perspective offers a complex debate on the relationship between human beings and nature and their diverse habitats, particularly the symbolic habitat. In this sense, this research concludes that it is impossible to dissociate the "ecologicus" being from the "symbolicus" being, as mythical and symbolic narratives are considered essential languages in promoting a poetic and sensitive perspective that translates subjectivity and includes values in the conduct of beings, influencing their worldviews and cultural and socio-environmental practices.

 

Keywords: human ecology; anthropology of the imaginary; nature; symbolic.

 

___________________________

Contribuições de autoria

*  conceituação; investigação; metodologia; administração do projeto; recursos; escrita – rascunho original; escrita – análise e edição.

** administração do projeto; recursos; supervisão; validação; visualização.

*** conceituação; metodologia; administração do projeto; recursos; supervisão; validação; visualização; escrita – análise e edição.

1 Introdução

No cenário contemporâneo, inúmeras são as perspectivas que dão luz à necessidade de discutir o futuro do planeta Terra, estimulando no ser humano uma mudança de pensamento e de atitude que possa contribuir para minimizar os impactos ambientais e trazer ganhos à biodiversidade. Neste texto, abordamos as preocupações com o meio ambiente/natureza a partir de uma ótica empreendida pelo encontro epistemológico entre a Antropologia do Imaginário e a Ecologia Humana. Nessa perspectiva, levantamos questões que dizem respeito à forma como produzimos imagens do/no/sobre o planeta Terra, como nos vemos nele e como é nossa relação com outros humanos em meio aos processos biológicos, culturais e sociais.

Para Leonardo Boff (2021), as questões relacionadas à conservação ambiental e ao cuidado com o Planeta se fazem urgentes e necessitam de um novo “software” mental para pensar e ler a atual realidade. Boff adverte que o pensamento instrumental, científico e racional, que criou toda essa situação “calamitosa”, não pode ser o mesmo que vai nos tirar dela. Segundo o filósofo, “precisamos igualmente da inteligência emocional e com mais intensidade, da inteligência cordial, pois é ela, que nos faz sentir parte de um todo maior, que nos dá a percepção da nossa conexão com os demais seres” (Boff, 2021, p. 15).

Sendo assim, defendemos que as políticas de reintegração entre o ser humano e o meio ambiente, de forma sustentável, são dos principais recursos para tentarmos minimizar os impactos ambientais e os desequilíbrios causados às populações de todos os seres vivos em decorrência da ação humana. Ainda sobre essa questão, Boff (2021) define sustentabilidade como um conjunto dos processos e ações que devem manter a vida e a integridade da “Mãe Terra”, preservando seus ecossistemas com todos os elementos físicos, químicos e ecológicos, que possibilitem a existência e a reprodução da vida.

Compreendemos, então, que os problemas socioambientais podem surgir de uma estrutura política e sociocultural, que procura justificar a destruição da natureza em nome do “progresso”. Com destaque para políticas do agronegócio, hidronegócio, mineração, produção de energia e transição energética, além do mercado imobiliário, entre outros. Diante desse cenário de uma política neoliberal e de opressão, surge a necessidade de compreender a relação humana com a Terra. Não somente nas questões ligadas às lógicas materiais, racionalistas e utilitárias, tão exaustivamente estudadas em várias áreas de conhecimento, mas também em sua dimensão imaterial, mítica e simbólica, o que pode ajudar a entender de forma mais complexa nossa relação com nós mesmos, com os outros e com todo o meio ambiente.

Nesta pesquisa, pressupomos, então, que existe uma atmosfera mítica que une um ser humano aos outros e ao planeta desde o surgimento da espécie humana na Terra. Diante disso, tentamos observar como essa atmosfera mítica/simbólica pode nos ajudar a entender e a melhorar nossa relação com o meio ambiente de modo inclusivo e sustentável. Ou seja, para este estudo, é preciso abrir a mente para uma postura intelectual que não se limite unicamente ao racionalismo, abdicando do medo do transcendente da recusa do imponderável.

Para Duarte (2017), muitas questões ambientais enfrentadas atualmente residem justamente no abandono de nossas raízes. Em outras palavras, essa separação que nós seres humanos promovemos com a natureza, nos afastou dos traços da nossa ancestralidade, e talvez essa divisão e afastamento sejam a principal causa para as crises socioambientais que estamos enfrentando. A visão de Duarte (2017) ajuda a refletir sobre o conceito de arquétipos[1] como princípio da formação humana e de que existe um inconsciente coletivo, que impulsiona o ser humano na tomada de decisões e na construção de valores. Unimos, então, o pensamento de Duarte aos estudos de Carl G. Jung (2000) sobre a psicologia das profundezas, que contribuem decisivamente para o adensamento das bases teóricas da Antropologia do Imaginário, a qual trazemos neste artigo.

Para estudiosos da área do Imaginário, como a professora Danielle Perin Rocha Pitta (2005), o Imaginário é a capacidade de produzir imagens e de nos conectarmos uns aos outros. Ele está ligado ao imponderável; segundo a pesquisadora, o imaginário é “uma das essências do espírito humano, um conhecimento sensível, mas que influencia nosso dia a dia”, “a raiz de tudo aquilo que, para o homem, existe” (Pitta, 2005, p. 15). Assim, pode ser entendido como a raiz de tudo aquilo que o ser humano cria/elabora para dar sentido a sua existência, em meio à passagem do tempo e à certeza da morte. Observa-se, então, que a discussão sobre Ecologia/Ser Humano em relação à terra e a todos os elementos existentes nela pode ser alimentada por imaginários.  

Dessa forma, entendemos a importância de estudar essa dimensão simbólica com o objetivo de compreender como se processa essa condição humana, de elaborar narrativas e sua relação com o meio ambiente, observando que imagens são essas que temos da natureza, como elas surgem, desaparecem ou se consolidam. Em outras palavras, como nós, seres humanos, acionamos esse Imaginário sobre a conservação e o cuidado com a biodiversidade, em meio a contextos históricos, políticos, sociais e simbólicos? Para entendermos melhor essa relação entre a Ecologia Humana e a Antropologia do Imaginário, recorremos a uma pesquisa conceitual comparativa (Niz et al., 2016) que analisa um tema ou conceito em um grupo de autores, que possuem ou não uma afinidade, com o objetivo de apontar a variabilidade entre usos de uma mesma ideia, mostrando os diferentes sentidos atribuídos ao conceito, as diferentes premissas que estruturam uma definição, as virtudes e as fraquezas de cada perspectiva.

Neste estudo, foram selecionados autores fundantes da Antropologia do Imaginário, como Gaston Bachelard, Jung, Mircea Eliade, com destaque para Gilbert Durand (2012) e o seu conceito de trajeto antropológico. Para esse pesquisador, o imaginário se forma dentro de um processo, biológico, psicológico e cultural. No campo da Ecologia Humana, optou-se por incluir pesquisadores exclusivamente brasileiros, especializados na EH, que reconhecem o potencial da área, fundamentados em três pilares: a) Interface Natureza – Ser Humano, ou seja, Cultura – Meio Ambiente; b) Interdisciplinaridade; c) Emancipação Humana.

 Acredita-se que ao utilizar o método conceitual comparativo, será possível explorar mais profundamente as perspectivas de ambos os campos de estudo, proporcionando uma compreensão mais ampla das temáticas abordadas. Após essa introdução, o texto está estruturado em quatro partes: na primeira, apresentamos o papel da Ecologia Humana na construção de um olhar mais complexo entre a relação homem-natureza revelando que os aspectos naturais, sociais e culturais da espécie humana não podem ser dissociados das questões ambientais. Na segunda, visualizamos o Imaginário como um ambiente que se estrutura através da imaginação. Este é responsável por manter um equilíbrio biopsicossocial da espécie humana, no qual a relação com a natureza também pode ser investigada pelos sistemas simbólicos presentes nas culturas humanas e como esses sistemas moldam as práticas sociais.

Na terceira parte, evidenciamos as convergências desses dois campos do conhecimento, EH e AI, revelando que o conceito de Trajeto Antropológico, desenvolvido por Durand, pode ser entendido como a base estruturante da Ecologia Humana. Assim como os estudos do imaginário, esse campo busca a integração entre o ser biológico, psicológico, social e cultural. Na última parte, as considerações finais, revelamos nossa base epistemológica, afirmando que, para tentar resolver as questões ambientais que surgem no século XXI, não podemos dissociar esse ser simbólico do ser ecológico, pois ambos estão interligados e constituem a natureza humana.

 

2 Ecologia Humana: uma discussão para além das ciências naturais

A Ecologia Humana EH, como campo de estudo, foi sistematizada por Robert Park, Ernest Burgess, Donald Pierson, entre outros, na Escola de Chicago, nos Estados Unidos, nas primeiras décadas do século XX, em meio à crescente preocupação com a degradação ambiental e a necessidade de se compreender as interações complexas entre seres humanos e a natureza. Na base desses estudos, está a noção de que é preciso um maior diálogo com outras áreas do conhecimento, além das Ciências Naturais.

Ao reconhecer que o social, o cultural e o natural não podem ser dissociados, a Ecologia Humana promove um olhar sobre a relação do ser humano com o meio ambiente e exige de todos os pesquisadores e pesquisadoras dessa área um diálogo interdisciplinar, ou mesmo transdisciplinar, com campos do saber que precisam ser analisados em conjunto a fim de refletirmos sobre os problemas socioambientais. Essa visão, compartilhada por Gonçalves (2021), evidencia a importância de um olhar mais complexo sobre as questões ambientais:

 

como se vê, a problemática ecológica implica outras questões extremamente complexas. Implica outros valores, o que por si só coloca questões de ordem cultural, filosófica e política. Implica um outro conceito de natureza e, consequentemente, outras formas de relacionamento entre os seres vivos; com o mundo inorgânico; enfim, dos homens entre si (Gonçalves, 2021, p. 22).

 

Sendo assim, a EH é um campo da ciência que se preocupa em compreender o ser humano de forma holística, nas suas diversas dimensões, sejam elas: biológicas, econômicas, políticas e sociais, isto é, nas dimensões da objetividade e da subjetividade. Esse modo sensível e fluido de fazer ciência além dos aspectos naturais/biológicos, aproxima-se da sociologia compreensiva de Max Weber, que diz:

 

A tarefa que concerne à sociologia, então, é a de descobrir o sentido mais profundo de tal motivação e compreendê-la de modo correto, mesmo se esta motivação não tiver participado da ação consciente do indivíduo: torna-se, por conseguinte, um caso limite de interpretação de sentido (Weber, 1971, p. 27).

 

Ao trazer o conceito de sociologia compreensiva, Weber nos oferece uma nova forma de pensar a ciência, sem desmerecer outros elementos até então apagados pelas luzes do iluminismo e pela filosofia racionalista. A sociologia compreensiva prestigia o ser humano nas suas microrrelações cotidianas e entende que ao “desmitologizar” o mundo, a ciência moderna fomentou um “desencantamento” das sociedades e menosprezou outras formas de produzir conhecimento, que não fossem o científico racional e utilitário.

Fugindo a essa lógica positivista/cartesiana, disciplinar, deparamo-nos com a hipótese denominada por Gaia, de Lovelock (1974), que faz referência à deusa da Mitologia Grega de mesmo nome. Essa hipótese enxerga a Terra como um organismo vivo, dotado de sentimentos, sensações e sensibilidades. A obra de Lovelock (1974), embasada em ideias e paradigmas científicos, segundo Leonardo Boff (2021), influi nas opções que determinam o nosso comportamento. De acordo com Boff (2021), após quase quatro séculos de aderência a uma visão da Terra como um conjunto de coisas isoladas, regidas por leis mecânicas e sem valor próprio, percebemos que estamos alcançando os limites do planeta. A Terra revela-se como um planeta antigo de pequeno porte, com imunidade limitada e resiliência enfraquecida. O aumento da temperatura e a ocorrência de eventos naturais extremos sugerem que a Terra não é apenas um objeto inanimado e sem propósito, mas possui reações semelhantes às de um ser vivo.

Com base num pensamento similar ao de Lovelock e Boff, existe o estudo da Ecologia da Alma, proposto pelo professor Juracy Marques (2012). Para esse pesquisador, defensor das políticas socioambientais, ao citar a alma, não estamos totalmente imersos em mares metafísicos, ou religiosos, mas na percepção de uma sensibilidade, que toca o íntimo do ser humano e oferece uma nova forma de enxergar e sentir todos os elementos que estão na natureza, incluindo nós mesmos.

Juracy Marques também exemplifica o conceito de Ecologia da Alma com o pensamento de povos indígenas. Na observação dele, elementos da natureza como árvores, rios e cachoeiras são percebidos pelas tribos/povos tradicionais como algo divino, onde residem os espíritos dos antepassados, e que ao violá-los em seus espaços naturais, estaríamos desrespeitando toda uma ancestralidade e toda a humanidade.  Outra ilustração dessa relação sensível está nas comunidades de matrizes africanas, para as quais, elementos como a água, a terra e o ouro são personificados, vistos como divindades carregadas de sentidos e subjetividades.

Para Emilio Moran, as mitologias e os símbolos sempre estiveram presentes nas relações ser humano – natureza. Segundo o autor, sem essa dimensão simbólica, não teríamos como produzir sentidos sobre o mundo em que vivemos. Essa percepção, que está mais ligada ao poder de criação da humanidade e que intervém tanto em fatores bióticos quanto abióticos, torna os estudos em Ecologia Humana importantes ferramentas para entendermos as relações complexas que perpassam o ser humano com o seu entorno. Dessa maneira, não enxerga o ser humano numa posição privilegiada, mas como qualquer outro organismo vivo do Planeta que interfere e sofre interferência da natureza. Entendemos assim que, para viver, o ser humano busca alternativas de adaptação impostas pelo meio ambiente, e essas imposições são atravessadas tanto pelo campo natural, quanto pelo social, cultural e simbólico.   

Essa reconexão, caracterizada pelo caráter biocêntrico, talvez seja o recurso mais eficaz no entendimento de que somos parte de um todo e que esse todo (ser natureza/meio ambiente) depende de nós, como nós dependemos dele para continuarmos vivendo na Terra. Compreendemos, dentro desse ponto de vista, que o sapiens, como qualquer outro indivíduo, é parte integrante da ecosfera e assim é encarado, o que não distingue a EH da ecologia geral. Porém, não podemos negar que a flexibilidade humana em termos de conduta e capacidade para controlar as respectivas vizinhanças, desenvolvendo cultura independentemente do ambiente, é maior do que a dos outros organismos. Daí a importância de uma ecologia que estude o ser humano em todas as suas dimensões e particularidades nos seus diversos habitats. 

Segundo Marques (2012), a definição de Ecologia Humana foi, por muito tempo, sistematizada de forma fragmentada, e muitos dos pesquisadores não compreendiam a real complexidade humana sobre os fenômenos. Contudo, nos dias atuais, a EH reconheceu suas limitações, e isso, em particular, deve-se à mudança epistemológica que esse campo de estudo atravessa. Um exemplo dessas mudanças está nas pesquisas concentradas mais precisamente no Brasil desde os anos 1980, que não negam a interface ser humano natureza, sendo impossível compreender o fenômeno humano sem perceber e apreender a mútua afetação que o meio ambiente exerce sobre nós e vice-versa.

No seu livro, A História e Epistemologia da Ecologia Humana (2021), o professor Luciano Ventim nos faz refletir sobre a relação do ser humano com os seus diversos ambientes. Afirmando que os ambientes construídos pelo ser humano são, segundo ele, complexos e diversificados, integram elementos tão diferentes como a família, a habitação, os transportes, o trabalho, a organização social, a atividade política, a religião, as emoções e os valores. Nesse ponto, os estudos da Ecologia Humana lançam um olhar sobre essa postura mais complexa do sapiens, fugindo dos cânones puramente técnicos científicos e racionais, e procuram nas microrrelações cotidianas formas de dar sentido ao mundo e às coisas, quebrando uma hegemonia de pensamento, que surge na antiga Grécia. 

Tecendo críticas ao pensamento que exclui e separa, Gonçalves (2021) afirma que Platão e Aristóteles foram os responsáveis por todo o processo de fragmentação do ser humano com a natureza. Isso porque, ambos os filósofos gregos estimularam no pensamento ocidental um certo desprezo pelas pedras, pelas plantas e animais, e um privilégio ao ser humano e ao mundo das ideias. O pensamento de Platão e Aristóteles contribuiu para menosprezar as metáforas contidas nas narrativas míticas, na arte e na poesia, e qualquer outra forma de produzir conhecimento sobre mundo que não fosse baseado na filosofia racionalista. Contrapondo o pensamento platônico aristotélico, o filósofo Gerd Bornheim (1989) nos diz que:

 

tudo está cheio de misteriosas forças vivas; a distinção entre a natureza animada e inanimada não tem fundamento algum; tudo tem uma alma” esta ideia de alma, de forças misteriosas que habitam a physis, transforma algo inteligente empresta-lhe certa espiritualidade, afastando-a do sem sentido anárquico e caótico (Gonçalves, 2021, p. 29).

 

Essa visão, para qual existe um mundo das ideias e outro inferior, é também incorporada à ética e aos valores da cultura Judaico-Cristã. Ou seja, se por um lado Platão falava que só a ideia era perfeita, em oposição à realidade mundana, o Cristianismo vai operar sua própria leitura, opondo a perfeição de Deus à imperfeição do mundo material. Nesse ponto, Gonçalves nos apresenta uma reflexão desse status alcançado pelo homem e como essa condição, apoiada pela narrativa religiosa, fragmenta a nossa relação com toda a biodiversidade do Planeta. Tal ideia, tomada também por questões e interesses econômicos, enxerga a natureza como um recurso, ou seja, um meio para se atingir um fim. Esse caráter materialista, pelo qual os humanos se tornam o centro do mundo, estimula a imagem de que somos possuidores da natureza. Sendo esse humano a imagem e semelhança de Deus, tudo pode, isto é, é o Todo Poderoso. Essa articulação arbitrária, que divide e nos separa da vida em toda sua dimensão natural, limita-nos a uma técnica científica e a uma postura antropocêntrica equivocada, com requisitos para dominar o planeta e tudo que existe nele.

Contrapondo essa visão, Machado (1984) enxerga no campo da Ecologia Humana, principalmente desenvolvida no Brasil, uma ferramenta de emancipação epistemológica, que agrega vários campos de estudo em prol de uma discussão holística entre o ser humano e o meio ambiente. O autor observa que olhar para esse campo do saber não deve ser fixo, mas nos chama atenção quanto ao lugar que estamos percorrendo. Assim, para ele, a Ecologia Humana poderia ser considerada uma ciência, uma disciplina dentro de uma ciência ou uma combinação de partes marginais de diferentes ciências. Além disso, o autor levanta a possibilidade de a Ecologia Humana ser uma nova metodologia ou um novo nível de pensamento.

O questionamento do professor Machado lança luz sobre a EH como um lugar de saberes, no qual o Ecólogo deve caminhar na floresta da interdisciplinaridade, não de modo impositivo, mas sim por querer entender as relações ser humano natureza, assumindo uma atitude reflexiva e correspondente à perspectiva da Ecologia Humana, que tem como finalidade a busca do entendimento e o respeito em todos os aspectos macro e micro da vida na terra. Para isso, segundo Machado (1984), os estudiosos do campo devem ter em mente seu papel de agente emancipador, construtor de conhecimento, e que podem fugir a sua lógica de formação.

Mas, afinal, o que é esse campo interdisciplinar do conhecimento, conhecido como Ecologia Humana? Para Begossi (1993), a EH é essencial para a compreensão das relações humanas com os diversos ecossistemas. Sem se limitar a um cartesianismo que mais exclui do que inclui, a autora nos oferece uma visão dessa ecologia como importante ferramenta para a formação de uma nova consciência. Ao mapear o posicionamento dos Ecólogos Humanos sobre a relação dessa área com a ecologia tradicional, a pesquisadora apresenta o fundamento do posicionamento majoritário de autonomia da Ecologia Humana para com a ecologia.

Segundo Begossi (1993), embora a Ecologia Humana se baseie em conceitos da biologia, ela não é necessariamente considerada uma ramificação da ecologia tradicional. Para muitos estudiosos da EH, a análise da relação do ser humano com o ambiente envolve diversos outros fatores, como aspectos culturais, sociais e psicológicos. Isso faz com que a ecologia humana vá além dos limites das ciências naturais. A mesma articulação de pensamento ganha apoio com o professor Cesário, que enxerga no campo de estudos, objetivos práticos de emancipação humana. Segundo Cesário,

 

como disciplina, a Ecologia Humana é ciência e arte; como disciplina aplicada, procura identificar as forças que melhoram o desenvolvimento humano, atualizam o potencial humano, otimizam o funcionamento humano e melhoram a qualidade de vida das pessoas[2] (Cesário, 2004, p. 42, tradução nossa).

 

O olhar de Cesário traz uma concepção estética e decolonial dos estudos e pesquisas nessa área, fazendo uma aproximação com nossa percepção do papel da EH como uma ciência para a vida em suas dimensões mais profundas. Essa mesma concepção pode estimular a uma transdisciplinaridade para pesquisas nos campos da arte e da estética, reafirmando a importância da interdisciplinaridade da EH e sua penetração nos diversos quadros da vida social.

Nesse contexto, entender as dimensões da Ecologia Humana para além dos aspectos biológicos e naturais é imprescindível para a formação do seu campo de estudo.  Para Marques, “a Ecologia Humana é uma ecologia que coloca gente nos ecossistemas, e estuda suas relações e consequências” (Marques, 2012, p. 14). Fugindo de discursos prontos, herdados da modernidade e de um colonialismo disciplinar/classificatório, o pesquisador brasileiro assume um caráter político e “adisciplinar”, nos provocando a enxergar as pesquisas da EH no Brasil sob uma nova perspectiva.

De acordo com Marques (2015), a EH no Brasil está num contexto das pós-ecologias. Nesse enfoque, o conhecimento sobre as relações entre os grupos humanos e o ambiente é percebido por meio do contato direto com os próprios indivíduos, não sendo passível de ser interpretado apenas por observação científica. Ao tocar em pontos ainda pouco discutidos no meio acadêmico, mas que acreditamos serem necessários, Marques (2015) também estimula uma desconstrução de retóricas eurocêntricas e nos coloca num espaço de interações culturais, a nosso ver, necessárias ao desenvolvimento político e social, e que são atravessadas pelos aspectos materiais e simbólicos que constituem nossa espécie. 

 

3 A Antropologia do Imaginário 

Assim como a Ecologia Humana, a Antropologia do Imaginário se apresenta como um campo interdisciplinar e transdisciplinar de estudos, podendo ser abordado a partir de diferentes teorias. Por isso, optamos por trabalhar o entrecruzamento entre matrizes arquetípicas, e contextos socioambientais – históricos e culturais, pela proposta antropológica de Gilbert Durand (2012), que enxerga o Imaginário como elemento vivo, orgânico, marcado pelas experiências cotidianas. O imaginário é, pois, a forma pulsante, viva e libertadora de conectar as diversas dimensões que fazem os seres humanos serem quem são: sujeitos racionais, com sentimentos, pulsões e sonhos.

Ao compreender o Imaginário como um ambiente vivo e real, que se estrutura por meio da imaginação humana e dos processos biopsicossociais, trazemos à tona a discussão de que a capacidade de criar histórias ou mesmo ficções foi e é responsável por trazer um equilíbrio biopsicossocial à espécie humana. Nesse aspecto, a capacidade de produzir símbolos é, na verdade, segundo essa teoria, uma estratégia de sobrevivência, para driblar a angústia do tempo e da morte, sobre a qual a imaginação tem um papel importante.

Para o filósofo Gaston Bachelard (1996), a imaginação é, justamente, um caminho por meio do qual a nossa espécie consegue se desprender da vida cotidiana e se lançar numa aventura em direção ao novo, ao imprevisto, ao surreal, permitindo, assim que o ser humano se eleve espiritualmente. A imaginação impõe-se, portanto, como um percurso, que tem o propósito de reiterar que razão e imaginação são verdadeiros caminhos e não podem ser dissociados. Assim, Bachelard (1996) inspira Gilbert Durand a perceber que a capacidade imaginativa dos seres humanos, seus processos fisiológicos, e as intimações socioculturais, constituem o que chamamos de Imaginário. Daí o nome original da sua teoria, que explicita as suas bases epistemológicas "Estruturas Antropológicas do Imaginário”. Além de Gaston Bachelard, Durand também se inspirou em outros autores que trouxeram grandes contribuições para a consolidação da sua teoria, a exemplo de Carl G. Jung e Mircea Eliade. Na visão de Durand (2012), o imaginário é uma dimensão ampla que se estende para além do âmbito da psique humana, abrangendo toda a cultura e a sociedade.

3.1 Bases epistemológicas da Escola de Grenoble

As bases para a Antropologia do Imaginário nasceram na Genebra do século 19, tendo a poética como a linha condutora de conhecimento como sugere Gaston Bachelard (1962), sendo mais tarde retomada na França do século XX, por meio de seu discípulo Gilbert Durand (1921 - 2012), que apresenta as estruturas do Imaginário principalmente no viés da antropologia, com bases científicas hermenêutica e heurística próprias aos seus estudos. Dessa forma, para entender o complexo de ideias envolto no imaginário, é preciso explorar algumas concepções dessa teoria formuladas por Durand, entre elas estão: schème, arquétipo, símbolo, mito, estruturas, regime de imagens e trajeto antropológico.

O schème é, segundo Durand (2012), o primeiro esboço do imaginário, uma intenção biopsíquica, que corresponde aos nossos gestos inconscientes da sensório-motricidade, ou seja, o que ele chama de reflexos dominantes[3]: a dominante postural – movimento de subida, para ficar ereto e de divisão manual e visual; a dominante digestiva – movimento de deglutição, de descida do alimento, e a dominante copulativa – movimento cíclico dos ritmos sexuais. Quando esses reflexos entram em contato com o ambiente e a cultura, imprimem no inconsciente – psiquê – sensações e estímulos que vão formar imagens. Em outras palavras, segundo a Antropologia do Imaginário, esses movimentos que a espécie humana executa há milhares de anos, deixam um registro na nossa psiquê. Os schèmes são, então, as simbolizações desses reflexos básicos.

Essas imagens, frutos da interação entre fatores biológicos, pulsão e intimações do meio social, vão originar o que Durand chama de os arquétipos – imagens universais, que a depender dos contextos sociais, ambientais e culturais, vão sofrer influências. Jung (2000) define o arquétipo como a zona matriarcal da ideia – uma forma primordial e inata de caráter universal, presente no inconsciente coletivo da humanidade.  Ele compara os arquétipos às molduras originais desprovidas de substância consciente, determinada quanto à forma e nunca quanto ao conteúdo.

Por sua vez, Durand (2012) recupera a discussão de Jung e diz que o arquétipo é a substantificação dos schèmes e ocorre em fase posterior. O autor ressalta que as matrizes arquetípicas se manifestam como substantivação dos schèmes. Para esse antropólogo, “os arquétipos, então, seriam moldes ocos que devem ser preenchidos pelos símbolos, distribuídos pela sociedade, sua história e situação geográfica” (Durand, 2010, p. 91). O arquétipo é o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais. Por exemplo, a imagem do chefe, do herói, do bem e do mal geram ideias e energias que se encaixam no schéme postural (verticalização e divisão). Isso porque essas ideias estão associadas ao que divide e à elevação. Exemplo, a criança ao ficar em pé, segundo Durand, sente-se melhor, tem mais liberdade, ganha coragem. Logo, o que está no alto é melhor, o que está abaixo gera sentimentos menores, de impotência, a ideia de castigo.

No esquema postural também vão surgir as imagens do paraíso e do inferno.  Já as imagens da noite, de um colo, de algo oco em seu interior, geram ideias de assimilação, inclusão e vão se encaixar no schème da deglutição. A roda e o vórtice conclamam a uma atividade, um processo mental, que exige o schème da copulação. Nesse sentido, os arquétipos são núcleos organizadores das produções culturais dos seres humanos, e os mitos, também, podem ser compreendidos como uma racionalização desse arquétipo.

Para Durand, o símbolo é uma imagem que evoca um significado profundo e transcendente que vai além de sua aparência superficial e imediata. O símbolo pode ser entendido como um mediador entre o consciente e o inconsciente, permitindo que o indivíduo entre em contato com os arquétipos e as estruturas profundas da psique. Já o mito, para a Antropologia do Imaginário, é uma narrativa que representa a expressão coletiva dos valores, crenças e ideias de uma cultura. O mito é uma forma de elaborar e transmitir conhecimentos e significados que são compartilhados por uma comunidade, ajudando a construir identidades e visão de mundo.

Portanto, essa atualização constante do Imaginário, que acontece tanto por questões biopsíquicas, como sociais (culturais, meio, tempo histórico etc.) é o que conhecemos como Trajeto Antropológico. Esse trajeto está diretamente associado à capacidade criativa do ser humano de driblar a angústia do tempo e da certeza da morte. E é através do entendimento do imaginário construído e alimentado por esse trajeto que este estudo se alicerça, pois se compreende que o ato comunicacional dos sapiens não se baseia apenas nos aspectos históricos, culturais, sociológicos, muito menos em questões somente do inconsciente.

Se, para o ser humano, nada que existe no mundo é insignificante e tudo que existe na natureza pode ser transformado, isso significa dizer que essas construções permeiam o plano simbólico através da organização de sistemas de imagens universais (arquétipos). Para isso, essas imagens, segundo Durand (2001), podem ser classificadas por meio de duas categorias: o regime diurno e o regime noturno. Entendem-se essas imagens a partir da identificação de seus significados intrínsecos às próprias imagens, de acordo com o tempo-espaço no qual elas estão inseridas, ou seja, uma mesma imagem sempre será vista de diferentes formas de acordo com a cultura e, principalmente, sofrerá modificações.

Esses regimes, portanto, não são “agrupamentos rígidos de formas imutáveis” (Durand, 2001, p. 64), mas traduzem os sentimentos próprios de cada cultura e as experiências individuais ou de um grupo. O regime diurno é caracterizado pela antítese sombra-luz, pela oposição de palavras e ideias (dualismo), por imagens que privilegiam a luz como forma de conquista, através da luta armada na busca da vitória, de vencer a morte e a treva, de ascensão. O noturno é caracterizado por ser um regime de imagens que trazem o eufemismo, a descida, a união dos opostos. Nas suas pesquisas, Durand (2012) detectou três maneiras de agrupar essas imagens: 1) heroicas ou esquizomorfas, relacionadas ao gesto postural; 2) dramáticas ou sintéticas, relacionadas ao gesto copulativo; 3) místicas ou antifrásicas, relacionadas ao gesto digestivo. Esses agrupamentos tentam dar resposta a uma questão fundamental do ser humano: a sua finitude. Nesse processo, as estruturas estão inseridas dentro dos regimes:

 

o Regime Diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação; o Regime Noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica, a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas astro biológicos (Durand, 2001, p. 58).

 

Em linhas gerais, o Imaginário pode ser compreendido como um ambiente vivo que deve ser entendido como o capital pensado e não pensado do homo sapiens. O “grande denominador fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano” (Durand, 2012, p. 18). Para o sociólogo Michel Maffesoli (1998, p. 78) “o Imaginário está presente em todos os segmentos da vida, conciliando o que aparentemente é inconciliável”. Então, se o imaginário tudo contamina, qual a relação entre a Ecologia Humana e a Antropologia do Imaginário?

De fato, se pensarmos que, desde os primórdios, o homo sapiens e os neandertais   imaginavam, pressupomos então, que todo o processo evolutivo que nos conduziu até os dias atuais só foi possível graças à capacidade de produzir narrativas, mitos. Sendo assim, compreender essas mitologias sobre nossa relação com a natureza e o meio ambiente se torna urgente e necessário. Armstrong (2005) aponta que a alienação moderna em relação ao mito é sem precedentes.

No mundo pré-moderno, a mitologia era considerada indispensável para a humanidade, pois auxiliava as pessoas a encontrarem significado em suas vidas e revelava aspectos da mente humana que, de outra forma, permaneceriam inacessíveis. Longe de alguns preceitos da ciência moderna que não enxergam essa dimensão da imagem como constituinte do real, concordamos com Maffesoli (1998, p. 78), que diz “o Imaginário está presente em todos os seguimentos da vida, conciliando o que aparentemente é inconciliável”. Para ele,

 

na ecologia, por exemplo, com a revalorização da natureza. No desejo de interação, colocando o holismo acima das perspectivas binárias ou do individualismo. Na convicção de que o homem deve negociar com a natureza, não a dominar (Maffesoli, 2001 p. 77).

 

Essa forma de pensar lança luz sobre a contribuição dos estudos da imaginação e do imaginário como necessários para compreender um possível processo de revolução cultural das sociedades sustentáveis. Isso porque pressupomos que esse reencantamento do mundo, ou seja, esse pensamento utópico é carregado de metáforas e afetos. Deixado de lado pela modernidade, é nossa ponte de reconexão com a natureza e, por assim dizer, com nós mesmos.

 

4 Convergências e aproximações entre a Ecologia Humana e a Antropologia do Imaginário

Ao mencionar a relação entre a Ecologia Humana e a Antropologia do Imaginário, evidenciamos que o conceito de Trajeto Antropológico, defendido por Gilbert Durand, tem relação direta com as bases estruturantes da Ecologia Humana, revelando o quanto as questões ambientais não podem estar dissociadas dos aspectos e dimensões simbólicos da espécie humana. Não há como entender o ser ecológico sem conhecer o ser simbólico. A relação se torna ainda mais evidente, quando entendemos que o conceito de trajeto antropológico, nada mais é do que a forma como nós produzimos sentidos sobre o mundo através dos fatores biológicos, sociais e culturais.

Diante disso, este estudo está interessado em oferecer uma maior compreensão desse fluxo entre matrizes arquetípicas e as imagens (próprias do campo da Antropologia do Imaginário) que temos sobre a natureza e toda a biodiversidade. Um recorte específico da Ecologia Humana dentro da Antropologia do Imaginário pode ser a análise de como certas culturas indígenas veem a natureza e desenvolvem um imaginário coletivo sobre o meio ambiente que as cerca. Nesse contexto, os pesquisadores podem examinar como essas sociedades concebem as plantas, os animais, os rios e outras paisagens naturais, atribuindo-lhes significados simbólicos e espirituais. Isso pode influenciar suas práticas de caça e pesca, bem como sua relação com o ecossistema em que vivem.

 É importante reafirmar que as imagens a que estamos nos referindo neste estudo têm base nas pesquisas das estruturas antropológicas do Imaginário em Durand (2012). E são as pulsões resultantes de construções biopsicossociais ligadas aos movimentos internos do organismo humano, e as coerções do mundo social, cultural e natural, que estão diretamente associadas ao poder de imaginação da humanidade.

A ideia é perceber que, ao prestigiar o sensível e o vivencial, tentamos compreender o ser humano nas suas dimensões poéticas/oníricas e afetuosas também. Ou seja, ao estudar as dimensões míticas e simbólicas, não estamos interessados somente num conhecimento utilitário/cartesiano, mas sim numa potência ancestral e criativa do espírito humano, que impulsiona nossas ações.

 Logo, procurar compreender o processo de formação de imagens, para buscar entender: que imaginário temos da conservação ambiental, em quais regimes e estruturas essas imagens estão inseridas, como podem auxiliar os pesquisadores da EH a irem além dos estereótipos e do senso comum, buscando uma maior compreensão das ações humanas frente aos sentidos empreendidos diante das práticas e políticas de conservação ambiental. 

Como exemplo desse processo simbólico natural e social, podemos apresentar a nossa relação com as águas do Velho Chico, o Rio São Francisco[4]. Qual a imagem (símbolos e mitos) que temos desse Rio atualmente? Estaríamos, então, hoje: mais interessados em conservar esse rio para poder “ter”. O que para AI corresponderia a um imaginário utilitário, que divide o ser humano e enxerga a natureza como algo a nos servir e a sanar nossas necessidades e de nossos descendentes, algo visto pela EH como resultado de um pensamento binário, que separou o sapiens da natureza estimulando um senso de superioridade, para o qual o meio ambiente existe somente para nos servir, ou seja, estaríamos vivendo um regime diurno dos símbolos diuréticos e da verticalidade.

Ou deveríamos conservá-lo para “conviver”? Ou seja, uma perspectiva do regime noturno, seja místico, do redobramento e encaixamento, assimilando o meio cósmico ao sociocultural numa essência da harmonia. Ou ainda, conservar o meio ambiente buscando equilibrar o homo consumericus e homo ecologicus? Isso é, uma perspectiva ética da integralidade e equilíbrio dos contrários, que corresponde ao regime noturno disserminatório. Nas duas últimas possibilidades, há a associação com um pensamento harmonioso, buscando essa reconexão e respeito ao meio ambiente e as tradições, um pensamento que coaduna com as bases conceituais da Ecologia Humana que procura essa integração entre os seres humanos e a natureza na solução das crises ambientais.

O que é preciso compreender nesta pesquisa é que a sistematização proposta por Durand auxilia a direcionar a análise das imagens presentes no mundo, criadas pelos seres humanos e ressignificadas por eles a todo o momento. Nesse cenário, não podemos negar a necessidade emergente de um saber, e de uma forma de compreender essa relação com a natureza e com nós mesmos, que passa pelo paradigma da inter e da transdisciplinaridade, pelo pensamento complexo, bem como pelo caminho do diálogo com outros saberes.  

Nessa lógica, ambas as teorias, Antropologia do Imaginário, quanto os estudos da Ecologia Humana, contribuem para uma reconexão, para a qual o respeito a toda natureza, incluindo às tradições, à memória e à cultura, são elementos essenciais para a conservação da biodiversidade. Concordamos com Marques, quando diz que a Ecologia Humana “está para a defesa da vida em todas as suas formas” (Marques, 2012, p. 10), permanecendo, então, presente em toda a dimensão humana. Sob um ponto de vista epistemológico, pressupomos que a Ecologia Humana reforça a ideia de que o ser humano não pode dominar toda dinâmica da vida (devir) e que esse mesmo humano, é e faz parte desse grande ambiente material e subjetivo. Nesse sentido, compreendemos que os ambientes podem estar relacionados ao mundo natural (plantas, animais insetos e bactérias), ou mesmo à realidade construída pelos humanos por meio dos seus valores éticos, políticos, culturais e simbólicos.

Dessa forma, compreendendo a visão dos autores analisados nesta pesquisa e utilizando um método comparativo conceitual, identificamos as seguintes convergências: Interdependência entre a sociedade e a natureza: Tanto a ecologia humana quanto a antropologia do imaginário enxergam a interdependência entre os seres humanos e o ambiente natural. A ecologia humana examina como as atividades humanas causam mudanças no ambiente e como, por sua vez, essas mudanças impactam a sociedade (Marques, 2016). A antropologia do imaginário, através de sua hermenêutica e de métodos específicos, explora como as representações vividas e imaginárias moldam a percepção e a relação dos seres humanos com a natureza. Ambas as abordagens analisadas reconhecem que a forma como a sociedade interpreta e se relaciona com as questões ambientais é influenciada tanto por fatores racionais e psicológicos, quanto por narrativas, símbolos e mitos compartilhados (Gonçalves, 2021).

Construção de significados e valores: a AI analisa como as pessoas produzem sentidos e atribuem valores aos seus ambientes. Isso pode incluir mitos e narrativas que explicam a relação entre os seres humanos e o meio ambiente, bem como símbolos culturais relacionados à natureza (Durand, 2012). A EH converge nesse aspecto e também reconhece a importância dos valores e significados atribuídos à natureza na tomada de decisões relacionadas ao uso dos recursos e à conservação da biodiversidade (Boff, 2001). Ambas as disciplinas se interessam pela forma como esses significados e valores moldam as atitudes e comportamentos em relação à vida.

Influência do biológico, do social e da cultura: tanto a EH quanto a AI reconhecem que a relação dos seres humanos com a natureza é mediada por fatores biológicos, culturais, sociais e até estéticos (Cesário, 2004). A EH humana, a exemplo da Antropologia do Imaginário, considera as estruturas sociais, as normas culturais e os sistemas de crenças como fatores que influenciam os padrões de uso dos recursos e as práticas de gestão ambiental (Marques, 2017). Nos aspectos biológicos, tanto a EH quanto a AI enxergam o ser humano como uma espécie capaz de moldar sua capacidade e limitações físicas e mentais ao ambiente natural e à cultura em que está inserido. Esses fatores biológicos, ou pulsões, desempenham um papel importante em sua capacidade de se adaptar e produzir sentidos sobre a natureza (para a AI, seriam as intimações do meio cósmico, a formação do schèmes, arquétipos e mitos presentes na constituição do sapiens) e como esses fatores influenciam as práticas sociais e culturais relacionadas ao meio ambiente, ou seja, uma formação biopsicosocial ou, na visão de Durand, um Trajeto Antropológico.

Interdisciplinaridade: tanto os autores da Ecologia Humana quanto da Antropologia do Imaginário reconhecem a colaboração e a integração de conhecimentos de diversas áreas, como Antropologia, Sociologia, Economia, Psicologia, Biologia e Ecologia. Em outras palavras, ambos os campos combinam perspectivas epistemológicas de diversas áreas de conhecimento para uma compreensão mais completa das relações entre os seres humanos e a natureza.Parte superior do formulário

 Além disso, é fundamental reconhecer e abordar as desigualdades socioeconômicas e culturais que afetam a capacidade das comunidades de responderem aos desafios ambientais.

Nesse quadro, a Ecologia Humana pode ser compreendida, segundo sugere Tapia (1993), como “uma ética para a vida”, ou simplesmente uma forma de entender e enxergar o cotidiano como um grande espaço de interações, naturais e culturais, o que exige de nós um pouco mais de atenção para esse ambiente constituído pelas imagens, haja vista que é nesse ambiente que está todo o processo de criatividade humana. Pensar não só na nossa relação de produção das coisas, mas, sobretudo, pensar também na nossa relação de produção de símbolos e como ela pode, a nosso ver, estimular estudos mais complexos sobre as inter-relações entre Ecologia Humana e todos os campos do conhecimento.

5 Considerações finais

Considerando as reflexões apresentadas ao longo deste artigo sobre a Ecologia Humana e as convergências com a Antropologia do Imaginário, pressupomos que o principal ponto de convergência entre a EH e AI está relacionado à compreensão de como as representações simbólicas influenciam nossas práticas e percepções com o meio ambiente. Por exemplo, poderíamos estudar como as representações simbólicas e imaginárias das comunidades humanas influenciam suas práticas e relações com o ambiente natural. Ou ainda, como as percepções ecológicas influenciam a construção dos imaginários sociais. Nesse quadro, Durand enfatiza a importância de considerar o homem não apenas como um ser isolado, mas como parte de um ecossistema mais amplo. Essa perspectiva ressoa fortemente com as bases da Ecologia Humana, uma área que busca compreender a relação complexa entre os seres humanos e o ambiente natural em que vivem. Ao adentrar na obra de Durand, somos levados a explorar a simbiose entre cultura e natureza, destacando como os sistemas simbólicos, mitos e rituais humanos se enraízam profundamente na experiência e na percepção da natureza.

A Ecologia Humana, por sua vez, oferece ferramentas teóricas e metodológicas para analisar como essas sensações são estruturadas e como moldam a forma como os seres humanos percebem, interagem e se adaptam ao ambiente ao longo do tempo. A abordagem da AI é enriquecida pela sua busca incessante por arquétipos e padrões centrais presentes nas diversas culturas humanas. Essa busca se alinha com o princípio da Ecologia Humana, que também se dedica a identificar padrões recorrentes de comportamento, adaptação e relação com o ambiente.

Além disso, a trajetória antropológica de Durand nos estimula a refletir sobre a relação entre o imaginário coletivo e o meio ambiente. Ao estudar os mitos e símbolos presentes nas sociedades humanas, o antropólogo francês demonstra como eles são frequentemente reflexos dos cenários naturais e dos desafios enfrentados pelos grupos humanos em seu ambiente específico. Essa perspectiva simbólica também complementa a Ecologia Humana ao enfatizar a importância da cultura na construção de narrativas e estratégias adaptativas em resposta às mudanças ambientais. Em suma, a relação do trajeto antropológico de Gilbert Durand com as bases da Ecologia Humana é uma conexão enriquecedora que nos convida a mergulhar profundamente na complexa interação entre o ser humano e o meio ambiente. Suas abordagens convergentes nos permitem compreender melhor como a cultura e a natureza estão entrelaçadas e como a percepção humana do mundo é moldada por essa relação intrincada.

A partir dessa sinergia, somos instigados a buscar soluções mais harmoniosas para os desafios globais que enfrentamos em nosso planeta. Dessa forma, nosso estudo abre a discussão para pesquisas com foco nas dimensões míticas e simbólicas da espécie humana e suas relações ecológicas e socioculturais, compreendendo que não podemos entender o espírito ecológico contemporâneo sem procurar entender o homo symbolicus que habita em todos nós.

 

Referências

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[1] Jung (1964 - 2000) define o arquétipo como a zona matriarcal da ideia - uma forma primordial e inata de caráter universal, presente no inconsciente coletivo da humanidade.  Ele compara os arquétipos às molduras originais desprovidas de substância consciente, determinada quanto à forma e nunca quanto ao conteúdo.

[2] As a discipline Human Ecology is both science and art; as an applied discipline, it seeks to identify the forces which enhance human development, actualize human potential, optmizing human functioning and improve the quality life of people (Cesário, 2004, p. 42).

[3] Para o desenvolvimento do método de estudo do imaginário, Durand valeu-se dos estudos sobre os “reflexos dominantes” de Betcherev, que foram descobertos na escola russa de reflexologia, ao tempo dos trabalhos de Pavlov (que descobriu o reflexo condicionado). Wladimir Mikhailovitch Betcherev, com sua equipe, que depois seria conhecida como Escola de Leningrado, percebeu existirem três reflexos básicos comuns a alguns animais e aos seres humanos, envolvendo o despertar da sensório-motricidade de cada um (Cavalcante, 2021, p. 23).

[4] O Rio São Francisco tem sua nascente histórica no alto do Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, no município de São Roque de Minas, região considerada um grande berço de rios. Contudo, segundo o Ministério do Meio Ambiente, foi determinado que a nascente geográfica do Rio São Francisco se encontra no município de Medeiros, em Minas Gerais. O rio liga as regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, desaguando no Oceano Atlântico, na divisa dos estados de Alagoas e Sergipe (Souza, 2013).