Dossiê
Entre
memórias e narrativas de vida desde a Escola de Aprendizes Artífices em Campos
dos Goytacazes (RJ)
AMONG
MEMORIES AND NARRATIVES OF LIFE FROM THE SCHOOL OF APPRENTICE ARTIFICES IN
CAMPOS DOS GOYTACAZES (RJ)
Karina Barra Gomes 1
karina.16005@edu.campos.rj.gov.br
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, URNF , Brasil
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 7, núm.
1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 20 Agosto
2021
Aprovação: 12 Março 2022
URL:https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/2525530407012022e0101
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: Com o
objetivo de abordar o papel das bandas marciais e civis para a educação social
e a memória cultural das cidades, este artigo apresenta narrativas orais de
dois mestres de banda que passaram pela antiga Escola de Aprendizes Artífices
de Campos, hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
cujo campus histórico é denominado Campus Campos Centro. Por meio da
metodologia história oral de vida foi possível coletar narrativas decorrentes
de práticas sociais e vivências com a música, que corroboraram para o enlace de
experiências musicais e a construção de memórias coletivas. Ricardo de Azevedo
e Valmir da Conceição são dois ex-alunos do Instituto cujas trajetórias de vida
são fundamentais para a efetivação de políticas culturais de caráter coletivo.
Apesar de terem trilhado percursos diferentes na música, ambos são oriundos de
bandas civis, tendo se tornado mestres de referência e resistência pela cultura
de bandas na região Norte Fluminense
Palavras-chave: Bandas escolares, Bandas
civis, Memória social, História oral, Políticas culturais.
Abstract: In order to address
the role of martial and community
bands for the social education and cultural memory of the cities, this article presents
oral narratives of two bandleaders who passed through the former School of Handcraft Trainees of Campos, today
Federal Institute of Education,
Science and Technology Fluminense, whose historic campus is called Campos Centro. Through the
oral life history methodology, it was possible to collect
narratives from social practices and experiences with music, which
corroborated the connection of musical experiences and the construction
of collective memories. Ricardo de Azevedo and Valmir
da Conceição are two former
students at the Institute, whose life stories are fundamental for the implementation
of collective cultural policies. Despite
having followed different paths in music, both come from civilian bands, and have become bandleaders of reference and resistance for the
band culture in the North Fluminense Region.
Keywords: School Bands, Community Bands,
Social Memory, Oral History.
Introdução
Este trabalho é resultado de uma das vertentes que tem sido
objeto de estudo, dentro da perspectiva que acompanha o projeto de
pós-doutorado em processo, no qual levamos em consideração as memórias e a
identidade social de mestres de bandas, protagonistas na construção da história
cultural do município de Campos dos Goytacazes. Entendemos que suas trajetórias
de vida podem ser parte de uma devolutiva dessa pesquisa a ser compartilhada
não somente com a comunidade de Campos dos Goytacazes, mas com a comunidade, de
forma geral.
Nesse sentido, buscamos trazer uma reflexão a respeito da
importância de valorizarmos as narrativas orais dos mestres oriundos de
associações musicais, que têm empenhado seus ideais de vida como agentes da
participação, por meio da inclusão social e formação musical de pessoas, nas
conhecidas bandas de música, tanto escolares quanto civis.
Do mesmo modo, objetivamos reforçar que as vivências desses
fazedores de cultura estão imbricadas em suas memórias e identidades que, por
sua vez, são como engrenagens sociais na construção de saberes para a
comunidade. Todavia, essas “estruturas de experiências” ou de sentimentos (WILLIAMS, 1979, p.134) exercem um
fortalecimento da plena atividade dessas bandas, o que vem ocorrendo por mais
de um século em Campos dos Goytacazes (no caso das bandas civis), demonstrando
uma prática sólida e longeva dessas expressões culturais, carregadas de
“táticas”, “maneiras de fazer” (CERTEAU,
2004, p.46) e modos de viver.
Ressaltamos a notoriedade desse tema tanto para a compreensão da
história cultural desse município do Norte Fluminense quanto para a construção
de políticas culturais, incluindo o “modo de vida” (WILLIAMS, 1979, p.19) dos sujeitos
envolvidos com seu patrimônio centenário: as bandas civis, que adquiriram um
sentido de “lugares de memória” (NORA, 1993),
onde transitaram grande parte dos instrumentistas de sopro e mestres de bandas
escolares do município. Com a participação voluntária e criativa de seus
integrantes, as bandas civis vêm se reinventando ao longo dos anos, celebrando
as memórias de seus músicos e contribuindo para a instrução e orientação
musical de crianças, jovens e adultos.
O cotidiano vivenciado e experienciado pelos fazedores dessa
cultura musical corresponde a um modelo de organização autogestionário.
Esse modelo implica uma forma singular de organicidade da cultura, valendo-se
de alguns paradigmas políticos da ação cultural, como o paradigma da
“democracia participativa”, abordado por García-Canclini
(1987), ao qual acrescentamos os conceitos de “educação social” (VENTOSA, 2016, p.18) e “didática da
participação” (VENTOSA, 2016, p.30),
que fortalecem as discussões sobre a dinamicidade da cultura.
Os aspectos da participação, da criatividade e da educação
musical perduram como componentes de uma prática social e cultural
emancipadora. Essa prática se concretiza na democratização do acesso à cultura
e aos direitos culturais, possibilitando um modo de vida que favorece o
desenvolvimento das capacidades da criança, do jovem e até de idosos no ensino
e no envolvimento da banda com a comunidade, por meio de projetos
socioculturais.
Em concordância com Thompson
(1998), consideramos que a narração dos sujeitos encontrada nos relatos de
vida é uma forma artesanal de comunicação, em que a tradição, os costumes e as
práticas estão inscritos no meio no qual se vive e onde a sabedoria é revivida
pelo entrevistado.
Assim, ao terem contato com as narrativas, os demais integrantes
das bandas, os alunos e a comunidade passam a se identificar com as histórias
narradas, sendo despertados para uma apropriação da memória coletiva, do
pertencimento e da adoção de identidades mobilizadoras, o que possibilita o
desdobramento da luta por seus direitos culturais, além de corroborarem e
trazerem a possibilidade de incentivo na construção de políticas culturais de
cunho comunitário.
Nesse sentido, repousam as implicações da afetividade presente
nas narrativas e nos contextos sociais, aos quais Thompson (1998) se refere e por meio dos
quais é rompido o perigo do silêncio ou da ocultação das identidades que sofrem
injustiças sociais, levando-as ao conhecimento da comunidade. Portanto, a
valorização das narrativas orais e das histórias singulares se dá na conexão
dessas experiências, assim como, com outros espaços políticos e sociais, como
destacam Silva e Barros (2010).
A história oral de vida é um procedimento metodológico que se
dispõe a influir no comportamento da cultura, bem como na percepção de
comportamentos e sensibilidades humanas. Ela amplia os debates sobre memória,
identidade e comunidade, auxiliando na compreensão do mundo que caminha entre
palavras, discursos e narrativas, permitindo que certas experiências não
morram; antes, que o passado não acabado (não resolvido) seja evocado, recriado
e reinventado. Portanto, a história de vida se apresenta como um método
significativo e como um meio para manter a experiência do passado “em estado de
presentificação” (MEIHY;
HOLANDA, 2007, p.26).
As percepções da vida social a partir dos registros da história
oral são fontes que nos ajudam a pensar a sociedade contemporânea, favorecendo
os estudos da cultura, da identidade e da memória coletivas, sendo reconhecida
a importância do coletivo para essa escolha, pois como apontam Meihy e Holanda
(2007, p.9), a memória, a identidade e a comunidade são “matérias-primas”
da história oral.
As narrativas dos sujeitos, ao se referirem tanto ao passado
quanto ao presente, os unem como fonte de conhecimento e identidade histórica
vislumbrando o futuro, cujo valor simbólico se vincula à subjetividade, às
emoções e às relações afetivas. Assim, a história oral facilita abordagens de
diferentes dimensões e várias possibilidades de uso, pois são profundos os
estilos de investigação que se assemelham a uma polifonia de oportunidades
diversificadas.
Nesta pesquisa, contribuímos para a construção de uma história
oral de natureza “híbrida”, termo usado por Meihy e Holanda (2007, p.128). Identificamos, para a
análise das narrativas, que as vozes dos narradores se cruzam entre si, podendo
promover uma discussão polifônica entre os sujeitos, uma espécie de “coletânea
de narrativas”, segundo Thompson (1998,
p.303).
Assim, ao considerarmos uma coletânea de narrativas (e não as
narrativas individuais) incluímos, na análise das entrevistas, a ideia de que
todas as narrativas de vida são importantes, além de serem complementares.
Nenhuma delas é tão rica ou tão completa isoladamente, como narrativa única.
Por isso, elas conversam, dialogam e perfazem um todo a ser explorado, um modo
mais eficaz que permite sua utilização na construção de uma interpretação
histórica mais ampliada.
Além disso, há um sentido nas narrativas dos colaboradores que
pode ser usado no diálogo com categorias de análise elencadas a partir de
fontes bibliográficas. Essa análise das entrevistas utiliza um processo em que
a dimensão social é explorada na medida em que reconhecemos pontos de
intercessão nas narrativas, correspondendo à definição de temas importantes,
que se alinham às categorias de análise.
O contato com o maestro Ricardo de Azevedo ocorre desde a
pesquisa de mestrado, que se estendeu até a investigação no doutorado; nesta
última pesquisa, a entrevista se deu pelo método da história oral de vida. Já a
entrevista com o maestro Valmir da Conceição ocorreu durante a pesquisa de
pós-doutorado, o qual gentil e afetivamente oportunizou, para si mesmo,
recordações de sua trajetória profissional, ao participar da entrevista de
história oral de vida. Cada entrevista aconteceu em apenas um encontro, que foi
suficiente para a conclusão de cada uma.
Adiante, apresentamos um breve panorama histórico sobre a antiga
Escola de Aprendizes Artífices de Campos dos Goytacazes, um lugar de construção
de memórias (NORA, 1993), onde se entrecruzaram alunos, mestres e músicos da
banda escolar e fazedores dessa cultura, onde as vivências com sons, ritmos e
instrumentos permitiram que esse lugar se tornasse um lugar do encontro e do
fazer musical coletivo.
A antiga Escola de
Aprendizes Artífices: um lugar de memórias
A antiga Escola de Aprendizes Artífices, fundada em 23 de
setembro de 1909 período em que o estadista Nilo Peçanha acreditava que o
Brasil do amanhã sairia das oficinas tinha como finalidade difundir o ensino
técnico profissional. Ela almejava ser um lugar cujo objetivo fosse promover a
socialização de crianças e jovens por meio do trabalho, para que rompessem a
ociosidade a fim de prover seu sustento. Segundo Chagas (2009), a primeira Escola de
Aprendizes Artífices do estado do Rio de Janeiro foi esta, fundada em Campos
dos Goytacazes, e a nona do país.
Até os anos de 1970, os alunos eram pobres, desprovidos de boas
condições financeiras e a vocação da escola sempre foi formar para o trabalho (O INSTITUTO, 2020). O que fez com que o
ensino desenvolvido dentro dos muros da escola fosse de cunho técnico,
intelectual e profícuo, oportunizando aos alunos a produção do que aprendiam no
ensino dos ofícios de mecânica, marcenaria, tipografia, alfaiataria, sapataria,
trabalhos em vime, modelagem e desenho (DIAS,
1965, p.1). Contudo, a música sempre teve um lugar de destaque no âmbito
escolar e nomes como Olympio Chagas[2], Ricardo
de Azevedo, Newton Ressiguier Figueiredo, Heraldo de
Souza Ferreira e Valmir da Conceição alcançaram destaque na formação de
conjuntos de música ou de bandas marciais.
Para abordar o ambiente musical que preenchia e adornava a vida
escolar da antiga Escola de Aprendizes Artífices (hoje, Instituto Federal
Fluminense Campus Campos Centro), é necessário
retomar uma breve compreensão acerca das bandas militares, por serem estas o
fundamento e o seio de onde se originaram as conhecidas bandas de fanfarra.
Sobre a origem das bandas
marciais e os significados da experiência social
As bandas militares foram consolidadas nos quartéis e nas
cidades, no período que antecedeu a independência do Brasil. A respeito do seu
repertório, Dantas (2017) nos explica
que precisava atender a três tipos de exigência: música para deslocamento,
música para concerto e música para diversão. Essas três possibilidades traziam
a correspondência da banda e sua presença na vida e nas demandas da comunidade.
Esse modelo de banda permitiu o movimento ou o deslocamento dos
músicos durante as apresentações, possibilitando tradições que foram estendidas
em âmbito mundial: na Itália, Alemanha, Reino Unido e França, especialmente
após a Revolução Francesa, quando se iniciou uma tradição de bandas formadas
com mais de 300 componentes. Do Reino Unido, a tradição alcançou a Índia e os
Estados Unidos (DANTAS, 2017). Sem
dúvida, a banda militar compõe parte da história de inúmeras cidades
brasileiras e ocupa, portanto, lugar de destaque na memória de quem vivenciou
momentos proporcionados por ela.
O uso de diversos instrumentos (flautim, flauta, clarinete,
saxofones, trompa, trompete, trombone, oficleide,
tuba e percussão) é parte de sua vida e essência: contudo, foi dentro dos
agrupamentos de músicos militares que ascenderam as bandas marciais (hoje
conhecidas como fanfarras). Estas obtiveram sua gênese apenas com instrumentos
cuja função é a de sinalização militar.
Usados nas cavalarias, cornetas e cornetões
chamavam a atenção quando apenas a série harmônica era suficiente para aquele
tipo de expressão formal em cerimônias e eventos cotidianos. Segundo Dantas (2017), as bandas marciais,
portanto, tiveram sua gênese dentro dos quartéis, e, gradativamente, outros
instrumentos, além das cornetas e dos cornetões,
foram introduzidos nas fanfarras, a fim de aprimorar a execução das peças:
barítonos, tubas, eufônios, flugelhorns e melofones.
A grande novidade da banda marcial é sua relação com a
movimentação ordenada de seus componentes a evolução – alinhada aos toques de
corneta, que trabalham sobre a série harmônica de diversas afinações e timbres,
associada ao uso da arte cênica com movimentos coreografados, pelotão de
bandeiras, espadas e lanças, que enobrecem o espetáculo. Já as bandas de música
civil e militar sempre mantiveram seu repertório sobre a escala cromática e com
base em toda a teoria da música do Ocidente (DANTAS,
2017).
Após esse desenvolvimento a respeito da origem das fanfarras e
sua vinculação com as bandas de música militares, o presente texto colabora
para conhecermos as narrativas orais e trajetórias de vida que valorizam as
memórias de dois ex-alunos do atual Instituto Federal Fluminense campus Campos Centro: Ricardo de Azevedo e Valmir da
Conceição. Hoje, estes mestres de banda se tornaram referência tanto pela sua
dedicação à música e ao seu ensino quanto pela propagação da cultura de bandas
no município e na região o primeiro, na modalidade banda de música civil, e o
outro na modalidade banda de fanfarra.
Ademais, podemos observar que as identidades dos sujeitos que
costumam ter experiências coletivas e vivências em processos de inclusão
social, especialmente no âmbito musical, apontam para a comunidade, para o
acesso da coletividade e são construídas a partir das interações sociais, das
memórias, da afetividade, das “estruturas de sentimento” ou de experiências (WILLIAMS, 1979, p.134), das narrativas
presentes em seu cotidiano, como processos vivos na experiência social.
Seja por meio das bandas marciais que se desenvolveram nos
ambientes escolares do município (a partir da disponibilidade e presteza do
regente Valmir da Conceição), seja por meio das lutas e enfrentamentos pela
preservação da centenária Sociedade Musical Lira de Apolo (com o maestro
Ricardo de Azevedo), esses ex-alunos e suas trajetórias ajudaram a edificar
memórias, em torno de suas experiências, desde a Escola de Aprendizes
Artífices.
Essa tessitura de memórias proporciona um encontro das
narrativas orais com suas histórias de vida, com a história do Instituto
Federal Fluminense, com a inclusão social por meio da educação musical, com as
lembranças, as práticas sociais, os saberes, o aprendizado, os concursos de
banda, o passado, o presente, os ensaios, as festas, as comemorações, a
solidariedade, a experiência e a música, além de abrir caminhos para
perspectivas de políticas culturais de caráter comunitário, criativo e
coletivo.
Os relatos dos maestros se baseiam nas entrevistas de história
oral de vida que nos foram cedidas tanto para a pesquisa de doutorado (no caso
da entrevista com Ricardo de Azevedo) quanto para o pós-doutorado (no caso de
Valmir da Conceição). Informações do maestro Valmir da Conceição
disponibilizadas[3] na página do Facebook do
Centro de Memória Nilo Peçanha, do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Campus Campos também foram pesquisadas.
Vale ressaltar que a memória social também implica a
consideração do passado e daqueles que se tornaram portadores de saberes e
tradições que colaboram com a identidade dos grupos (BOSI, 1994). Assim, entendemos que as
investigações sobre memória são fundamentais para a compreensão da cultura e
para promover o debate sobre políticas culturais.
Seguimos adiante com o relato de vida do maestro Ricardo de
Azevedo, um grande idealizador e militante da sua causa, nos dias atuais: a
vida, o resgate da sede e a preservação da Sociedade Musical Lira de Apolo, que
já apresenta 151 anos de existência.
Memórias do maestro
Ricardo de Azevedo
Ricardo de Azevedo nasceu em 21 de maio de 1939, na antiga rua
do Conselho, nº155, atual rua João Pessoa. Sua mãe era funcionária na casa de
Dr. Thieres Cardoso[4],
onde moravam. Seu pai, o sapateiro Pedro Baptista, era músico e havia se
tornado um professor muito rígido na Associação Musical Lira Guarany: uma das
bandas centenárias de Campos dos Goytacazes. Ele havia aprendido música na
Guarany com um professor italiano, bem como o ofício de sapateiro, também com
um mestre italiano, tendo se tornado um dos melhores sapateiros da marca Luiz
XV, sapataria de grande referência na cidade de Campos dos Goytacazes.
Desde a infância, Ricardo assistia às bandas que se apresentavam,
ainda no colo de sua mãe, assim como as retretas que ocorriam no centro da
cidade. Quando criança, a banda que ele mais frequentou foi a Lira Guarany, por
causa do seu pai. Estudou no colégio particular São José, onde a professora era
musicista e tocava órgão muito bem.
Depois do Colégio São José, foi para o Colégio João Pessoa,
localizado em frente ao Colégio Batista. Chegou a pedir à professora de
Educação Física para ensinar às crianças a tocar o tambor da bandinha da
escola. Segundo Ricardo, como a professora de música era excelente, ele
conseguiu aprender muito no Colégio João Pessoa.
Ricardo foi convidado para ter aula de catecismo e lá aprendeu o
Hino Nacional com padre Rosário, que ensinava as estrofes do Hino Brasileiro e
tocava piano e órgão muito bem.
A avó do maestro morava perto do antigo Fórum, na rua
Conselheiro Tomás Coelho. Próximo da casa de sua avó, havia a escola de samba
Tijuca, e seu pai tocava nos blocos Felisminda e
Prazer das Morenas. Ricardo começou a tocar tamborim na escola de samba. Seu
pai, por ser sapateiro, confeccionava os bombos da banda e o tamborim para ele.
No carnaval, ele organizava grupos de samba e de boneca. Aos sete ou oito anos
de idade, o próprio Ricardo fazia os tambores de saco de cimento e moldava
máscaras de barro para o carnaval.
Aos 13 anos, Ricardo começou a tocar trompete em casa e se
recorda que o centro da cidade tinha música por todas as partes, como nas
portas das confeitarias, desde o horário do almoço até à noite. Ao anoitecer,
havia conjuntos de músicos e bandas tocando, e, aos domingos, as bandas civis
tocavam na praça principal. Apesar de seu pai nunca o ter influenciado para
entrar numa banda, ele mesmo via o instrumento em casa e lia os livros de
música, por curiosidade. Além disso, apreciava o som do piano de Dr. Thieres Cardoso em sua casa.
No início do século XX, havia muitos europeus na cidade. Como as
bandas civis eram os conjuntos de músicos em evidência para bailes, batalhas de
confete e todo tipo de apresentações, os músicos italianos que estavam por aqui
tocavam nas Liras de Apolo e Guarany. Ao mesmo tempo, os teatros da cidade
recebiam artistas franceses, e as confeitarias Colombo, Francesa, Império, Café
Capitania e Café Clube tinham música ao vivo às 11h.
Ricardo cresceu frequentando o Trianon, antigo teatro que ficava
no centro da cidade e que recebia todas as companhias de teatro e orquestras
que vinham de fora. Segundo ele, as grandes produções de teatro e dos musicais
do Rio de Janeiro se apresentavam ali, com periodicidade. Dentre os cantores
que passaram pelo antigo Trianon, estão: Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto e
Vicente Celestino.
Esse foi, portanto, o ambiente musical da cidade em que Ricardo
de Azevedo foi crescendo. Ele iniciou o antigo ginásio na Escola de Aprendizes
Artífices, em 1952, quando a Banda Marcial da escola já havia sido criada, em
1946, por Olympio Chagas.
A Fig. 1, a seguir, chama a atenção para os
três rapazes de blusa branca: o maestro Ricardo de Azevedo (o menor deles),
Rubens Gregório Pinto (ao lado dele) e Olympio Chagas (o maior deles). Os dois
primeiros eram os spallas, e Olympio Chagas, o
percursor da banda, além de instrutor, era o regente da banda marcial da
escola.
Segundo Ricardo de Azevedo, esse registro foi feito em 23 de
setembro de 1956, dia do aniversário da Escola de Aprendizes Artífices, quando
a banda marcial da escola se posicionou na escadaria do antigo Fórum da cidade.
Fig. 1
Acervo pessoal
de Valmir da Conceição e de Ricardo de Azevedo.
Em 1957, Ricardo formou um grupo de músicos na escola e, ao
mesmo tempo, obteve grande influência musical, pois teve a oportunidade de
conviver com professores de música, especialmente com o Olympio Chagas, que era
baterista. Olympio era primo de Juca Chagas, um reconhecido compositor campista
que pertencia à Sociedade Musical Operários Campistas (outra banda centenária
da cidade).
Na Escola de Aprendizes Artífices, Ricardo começou a se
interessar pela banda marcial. Sr. Agmelo, parceiro
do seu pai, tinha sido maestro da Lira Guarany e era da área de fundição da
escola. Na hora do recreio, Ricardo não jogava bola, ia para o setor de
fundição para estudar as lições de solfejo com o Sr. Agmelo.
Por isso, ele deixava para jogar bola na parte da tarde.
Ricardo se tornou presidente do grêmio da escola, chamado Grêmio
Estudantil Nilo Peçanha e instituiu um programa de música na hora do recreio,
no refeitório, para que os alunos pudessem ouvir e conhecer música. Também
formou um conjunto musical e conseguiu aparelhagem de som nova para a escola,
além de ter criado a domingueira dançante, um baile que ocorria no refeitório
da escola, aos domingos à tarde.
Durante o período em que era presidente do Grêmio Estudantil
Nilo Peçanha, Ricardo também foi secretário da Federação de Estudantes de
Campos e sempre meditava sobre como propagar e vivenciar experiências musicais
na escola. Uma nítida lembrança que ele tem é de Olympio Chagas sentado ao seu
lado sob um pé de jamelão, onde pensavam, juntos, em como inovar a banda
marcial. Nessa época, as aulas de música ocorriam aos sábados à tarde.
Dentre as inovações que a banda marcial promoveu está a inserção
de trechos das óperas Fausto . Aída nas marchas tocadas pela banda da Escola de
Aprendizes Artífices, pois se buscava algo que pudesse sair do que era comum
realizar nas bandas marciais. Para tanto, eles começavam a ensaiar desde o mês
de maio, para as apresentações do ano inteiro.
Outra modificação foi a inserção dos bombos na frente da banda.
A banda da Escola de Aprendizes Artífices foi a primeira a fazer evolução
marchando na frente do palanque, foi a primeira a usar os bombos na frente do
grupo de alunos e também foi a primeira a introduzir os pratos na banda
marcial. Até então, eram as bandas civis que usavam prato; as escolares, não.
Segundo Ricardo, depois que a banda escolar fez essa introdução, todas as
bandas marciais das demais escolas também passaram a usar os pratos. Portanto,
todo ano a banda da escola se encarregava de fazer alguma inovação.
Ricardo se lembra de uma excursão para a Escola Técnica de
Vitória, por volta de 1957, no dia de Santo Antônio, para uma festa junina. Ele
e os alunos que formavam um grupo de músicos da escola foram de trem para se
apresentar.
Numa outra oportunidade, a banda marcial da escola foi, junto
com a Lira Guarany, num passeio de trem, para São Fidélis (RJ). A Lira fez a
sua retreta na praça da cidade, e a banda escolar também se apresentou.
Uma outra lembrança do maestro diz respeito às muitas
competições entre as bandas marciais da Escola de Aprendizes Artífices, do
Colégio São Salvador e do Liceu de Humanidades de Campos. A rivalidade era
tanta que os alunos de bandas diferentes não podiam se encontrar nas ruas, pois
traziam para suas relações sociais a competitividade que existia no confronto
entre as duas bandas.
Vale ressaltar que, ao ingressar na escola, Ricardo já tinha
influência da banda civil, por conhecer muitos dobrados e por acompanhar, desde
criança, Prisco de Almeida e João Corta-Frio
nos ensaios da Lira Guarany. Seu pai sempre o recomendava que não pedisse ao
maestro da Guarany para tocar as músicas, mas não tinha jeito, ele sempre
pedia. Além disso, mais tarde, quando passou pela Banda da Polícia, colocou em
prática o aprendizado de canto que teve no grupo escolar (na escola com padre
Rosário.
Ricardo também acompanhava as escolas de samba, as batucadas e
os blocos de carnaval. Para ele, a banda de música representou toda sua
vivência e experiência e tem sido sua atividade durante toda vida, sua razão
para lutar e viver. Sua relação e proximidade com a Lira de Apolo o levaram a
regente e presidente da banda. A Fig. 2 a seguir mostra o
maestro Ricardo à frente, conduzindo a Lira de Apolo, na praça São Salvador, na
década de 1980.
Fig. 2
Acervo pessoal
da autora.
A Fig. 3 mostra o maestro Ricardo, em frente
à Lira de Apolo, com o Prêmio de Cultura que foi concedido a essa banda pela
Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, em 2014.
Fig. 3
Acervo pessoal
de Ricardo de Azevedo.
A Fig. 4 mostra uma das apresentações da
centenária Lira de Apolo, no centro da cidade de Campos dos Goytacazes, próximo
à sede da banda, em 2017, sob a regência do maestro Ricardo de Azevedo.
Fig. 4
Acervo doado
pela sociedade Musical Lira de Apolo.
A Sociedade Musical Lira de Apolo tem sido a vida, a ocupação e
a esperança de Ricardo de Azevedo por dias melhores, bem como sua razão de viver
e de ser músico, maestro e administrador do prédio e da banda, pelos quais
luta, incansavelmente. Seu desejo maior é contribuir para que esse patrimônio
cultural seja respeitado e preservado tanto pelo poder público como pela
sociedade.
A história de vida de Ricardo de Azevedo e sua militância pela
preservação da Lira de Apolo e pela restauração da sede (que sofreu um incêndio
em 1990) inspiram muitos admiradores do maestro e músicos de diversos lugares
do país.
Memórias do regente Valmir
da Conceição
Em 1968, Valmir da Conceição iniciou seus estudos na Escola de
Aprendizes Artífices numa época em que ele ainda não tinha conhecimento
musical. Embora não conhecesse o estudo musical, possuía um interesse latente
por ele, o que o motivou a assistir aos ensaios da banda da escola e o
impulsionou a buscar o estudo da música.
Aos 15 anos de idade, em 1969, Valmir buscou por Chico Trombone[5], mestre e regente da Sociedade Musical Lira
Conspiradora (outra importante banda de música centenária
da cidade), para ter aulas e aprender música. Durante um ano, Valmir permaneceu
na Lira Conspiradora, onde aprendeu teoria musical, solfejo, leitura métrica e
técnica do trompete, seu instrumento.
Nesse período em que fez parte da Lira Conspiradora, Valmir
tocou em inúmeras procissões e retretas, inclusive na paróquia de Santo
Antônio, no bairro Guarus. Com a experiência musical adquirida nessa banda
civil, ele acredita ter conquistado a capacidade de estudar por conta própria.
Após as noções musicais recebidas de Chico Trombone, tornou-se trompetista e
foi aceito na Banda Marcial Olympio Chagas, em 1970, como 1º corneteiro, spalla da
banda.
Valmir reconhece a importância das bandas civis como núcleos
capazes de proporcionar um ambiente musical à cidade, com sua participação em
retretas e apresentações. Ele considera que as bandas civis foram fundamentais
para oportunizar a formação de muitos músicos e ex-alunos do Instituto Federal
Fluminense Campus Campos Centro, inclusive o
maestro Ricardo de Azevedo, por quem tem grande estima, amizade e apreço. Para
o regente, as bandas civis têm função educativa e formativa. Reconhece o valor
de Chico Trombone em sua formação, mas também o de Newton Ressiguier
Figueiredo que, por sua vez, também foi integrante efetivo da Lira
Conspiradora.
Segundo Valmir, os professores da banda marcial eram os
inspetores de alunos da escola. Como eram músicos e se destacavam, puderam
reformular a Banda Marcial Olympio Chagas, na antiga Escola Técnica Federal de
Campos, quando Olympio já havia falecido. Os inspetores Nilton Ressiguier Figueiredo e Heraldo de Souza Ferreira
tornaram-se, então, os instrutores da banda.
As grandes bandas de fanfarra da cidade sempre tiveram uma
significativa participação nos desfiles cívicos de 7 de setembro, e isso
representava um grande boom para a cidade, em
termos educacionais e culturais. As bandas escolares que mais se destacavam
eram as bandas da antiga Escola Técnica Federal de Campos, do Liceu de
Humanidades de Campos, do Colégio São Salvador e da Escola Técnica Estadual
Agrícola Antônio Sarlo. Esta última teve como
instrutor o cantor Osvaldo Américo Ribeiro de Freitas, mais conhecido como Dom
Américo.
Em 1969, ao ingressar na banda da escola como aluno, Valmir já
recebeu a função de liderança, em virtude da experiência musical adquirida na
Lira Conspiradora. Em 1970, obteve, na escola, uma bolsa para treinar a Banda
Marcial Olympio Chagas, função em que ficou até 1972 ou 1973, quando Heraldo de
Souza Ferreira deixou a escola.
Em 1975, o maestro Valmir assumiu a função de prestador de
serviços da escola com o fim específico de auxiliar no trabalho com as duas
bandas de fanfarra que ali havia. Em 1979, nasceu a primeira banda de fanfarra
musical de Campos, criada para uma apresentação em São Paulo, no Ibirapuera.
Essa fanfarra musical tinha os instrumentos de uma banda de música, não era a
fanfara tradicional escolar como conhecemos hoje. Nessa época, o instrumento
lira ainda não fazia parte do corpo da fanfarra e a primeira escola na região a
introduzir as liras na banda escolar foi a Escola Técnica Federal de Campos, a
partir da década de 1980. Valmir tornou-se servidor público na instituição na
mesma década de 1980.
Adquiriu o reconhecimento de Notório Saber como regente da banda
e se tornou o primeiro professor de artes/música do Centro Federal de Educação
Tecnológica de Campos. (CEFET).
Em 1984, no aniversário de 75 anos da escola, foi criada a então
Banda Norberto Ângelo da Silva. Norberto era amigo e colega de turma de Valmir,
também ex-aluno da escola e tinha uma paixão muito grande pela banda marcial.
Depois que se formou, passou no concurso da Petrobras, mas não perdeu o hábito
de trocar as suas folgas de trabalho para que pudesse participar dos desfiles,
todo dia 7 de setembro, com a banda da escola. Aconteceu de Norberto adoecer e,
então, não poder mais desfilar. Com isso, nos dias de desfile, ele passou a se
isolar, triste, no seu sítio, por não poder estar com os músicos nessa data tão
marcante.
Após sua morte, a escola resolveu homenageá-lo. Mas, antes de se
chamar Norberto Ângelo da Silva, outros nomes passaram pela banda: Jubileu de
Diamante (devido ao jubileu da escola) e o apelido Mancha Azul (inspirado nas
cores da escola, que eram branco um azul forte). Essa já era a fanfarra tradicional.
Com o nome de Norberto Ângelo da Silva, ela ainda tinha o codinome de Scorpions.
Para Valmir, o codinome tinha um papel importante nos
campeonatos de bandas e fanfarras. Para a participação das bandas nessas
competições, por todo o Brasil, era comum que elas apresentassem um apelido que
as representasse, além do próprio nome. A Fig. 5 apresenta
um registro fotográfico da Banda Norberto Ângelo da Silva.
Fig. 5
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha[6]
Fig. 6
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha
Fig. 7
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha
Fig. 8
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha
Fig.9
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha
Fig.10
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha
Fig. 11
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha
Valmir chegou a criar a “Big Band Saber Nota Jazz” com os mesmos
alunos das fanfarras, enquanto auxiliava o instrutor Newton Ressiguier
Figueiredo, na década de 1990.
Numa época em que a cidade literalmente parava nas ruas para ver
a banda passar nos desfiles cívicos de 7 de setembro, a banda da escola se destacava
e tinha que se apresentar por último, como estratégia para que o público, que
não ia embora antes de assistir à banda da antiga Escola Técnica, permanecesse
até a finalização do desfile. Isso sempre foi motivo de orgulho para Valmir da
Conceição: a banda marcial da escola sempre foi destaque, pois viajava com
frequência e aprendia muito por onde passava.
A Fig. 12 apresenta o registro da Semana da
Pátria, na rua Princesa Isabel. Valmir é o segundo (de calça de tecido) da
direita para a esquerda:
Fig. 12
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha.
O maestro Valmir foi a “ponte” entre os municípios e as escolas
municipais da região, implantando uma banda de fanfarra em cada uma, não só em
Campos dos Goytacazes, mas em São Fidélis (RJ) e São Francisco do Itabapoana
(RJ). Junto à direção de diversos colégios nessas cidades, orientou, de forma
voluntária e solidária, escolas dando indicações para aquisição de instrumentos
musicais de acordo com a faixa etária dos alunos. Ao dar sua contribuição para
a formação dessas fanfarras, reconhece que colaborou diretamente para a
formação humana e integral do cidadão, para a vivência deste em comunidade,
oportunizada pelas bandas musicais. Também colaborou para a implantação dos
cursos de Licenciatura em Teatro no IFF Campus Centro
e de Licenciatura em Música no IFF Campus Guarus.
Fig. 13
Acervo do
Centro de Memória Nilo Peçanha
A vida do maestro Valmir se confunde com a história do Instituto
Federal Fluminense Campus Campos Centro. Desde a
década de 1960, ele fez parte da Escola de Aprendizes Artífices e permaneceu
até agosto de 2018, ao se aposentar, quando a escola já era Instituto. Esteve,
primeiramente, como aluno; posteriormente, tornou-se bolsista; depois,
conquistou o posto de instrutor de banda; e, por fim, o de funcionário público.
Encerrou sua carreira como coordenador de Arte e Cultura, tendo
em vista o desenvolvimento das artes e a propagação da cultura, no âmbito
escolar. Também foi conselheiro do Conselho Municipal de Cultura na cidade de
Campos dos Goytacazes, por duas gestões, contribuindo para o campo da cultura,
no município.
Considerações finais
À nossa expectativa demonstrada nos objetivos do artigo, soma-se
o desejo de ajudar a impedir o desaparecimento das experiências que decorrem de
práticas musicais, sociais, de vivências e de suas significações. Dar voz aos
sujeitos que transitam pela cultura dita popular ou pela “cultura comum”, que é
a “cultura de todos” (CEVASCO, 2008, p.19-20),
permite que tanto seus anseios quanto a discussão sobre memória, cultura e
identidade encontrem visibilidade nos dias atuais.
As maneiras de fazer correspondentes às táticas (CERTEAU, 2004) de permanência no interior
das bandas civis são narradas pelos sujeitos dessa cultura e dizem respeito ao
passado e ao presente, cujos fenômenos da vida cotidiana são parte integrante
do processo social e das memórias partilhadas nos lugares de memória.
Tanto Ricardo de Azevedo quanto Valmir da Conceição passaram
pelas estantes de bandas civis de tradição centenária da cidade, e esse fato,
por si, se encarrega de lembrar à comunidade acadêmica que a reprodução de
valores e sentidos por meio dessa cultura viva expressa o devido reconhecimento
dessas instituições recheadas com afetividade.
Preservar a memória oral dos músicos de bandas significa
valorizar uma cultura que vive à margem do reconhecimento de governos e do
poder hegemônico, à base dos resíduos, espalhada nos terrenos da ordem
dominante, aproveitando as ocasiões que lhes são oferecidas, sendo hábil na
utilização do tempo e dos jogos de força que emanam dos lugares de poder.
Consideramos que uma das formas de ação cultural, que ao longo
do tempo foi fundamental para permanência e difusão das bandas, relaciona-se ao
seu próprio modo de vida comunitário, onde a educação não formal é inserida
numa pedagogia de sentido contínuo, de participação organizada, envolvendo a
comunidade como agente educativo e tendo em vista o associativismo, a
transmissão de aspectos tradicionais, os costumes e o conhecimento musical que
se vinculam à genealogia, às gerações e ao lugar.
Os músicos não se limitam às ações pontuais em suas bandas
civis, mas se ocupam de ações culturais com um sentido contínuo (que perduram
mais de um século) e em diversos espaços sociais. O tripé social, cultural e
educativo se pauta na ação e intervenção social onde a cultura comum, a cultura
de todos tem a solidariedade como princípio basilar e alternativo.
As ações culturais que se vinculam às bandas civis encontram seu
esteio em processos de associações coletivas ancorados na memória e na
identidade dos músicos. As ações culturais de cunho participativo, iniciadas no
seio da dinâmica comunitária, sempre foram mantenedoras das associações de
músicos por possuírem um caráter orgânico vinculado aos seus autocultivadores, independentemente de patrocínios advindos
de representantes da sociedade com grande poder econômico e do poder público,
seja na forma de cachês, projetos, cursos, subvenções ou doações de
instrumentos.
O legado das histórias de vida e as memórias aqui registradas
nos deixam um fio de esperança para essa geração e nos convidam à reflexão
sobre um passado vivo, dinâmico, que transformou e que continua a transformar
pessoas, vidas e escolas por meio da solidariedade, da ajuda mútua, do respeito
ao próximo, da disciplina, da participação e da coletividade.
Assim, as narrativas agrupadas em torno das categorias de
análise apresentam temas comuns aos relatos colhidos, uma vez que também se
vinculam aos conceitos da pesquisa. Pelo agrupamento das narrativas, os
entrevistados podem representar toda a cultura ou comunidade à qual estão
vinculados.
Isso também se alinha ao fato de que as memórias individuais,
uma vez unidas, formam um todo de memórias coletivas: as memórias do social. E
é desse todo social que emergem as narrativas que demonstram as experiências
coletivas; essas experiências partem do passado e vão até o presente, enquanto
apontam para o futuro.
O mais importante na realização da “história oral híbrida” (Meihy; Holanda, 2007, p.128)
é que a análise dos relatos se suceda com êxito, permitindo expressividade na
coletânea de narrativas, e que essa expressividade, em seus argumentos, possa
ser somada aos dados que encontramos nas outras fontes pesquisadas. Isso
corresponde a levar a cabo a integração entre generalidade e detalhes, entre a
teoria e os fatos, enfatizando a força temática presente nas categorias que,
por sua vez, conduzem a interpretação dos temas.
Ao fazermos uso da “história oral híbrida” (Meihy; Holanda,
2007, p.128), prezamos pelo poder da conversa, dos contatos ou dos diálogos
das narrativas com as categorias colhidas na teoria estudada. Buscamos
valorizar, como técnica de interpretação, a polifonia, reafirmando que a
história oral é, sobretudo, uma investigação do social, na medida em que
associa vozes consonantes ou dissonantes.
A educação musical pelas bandas de música civis ou fanfarras
associa o social ao cultural, além de aprofundar os valores de práticas
educativas não convencionais desenvolvidas pela educação não formal. Assim,
esses valores são transmitidos para uma cultura que passa a ser “de todos” com
valores e significados comuns “a todos” (CEVASCO,
2008, p.20).
O alvo das bandas é a sua própria continuidade, o que podemos
notar nas narrativas de vida que mostram o dinamismo, o vigor e a veemência com
que os músicos se dedicam, seja pela restauração ou pela permanência dos
grupos. Da mesma forma, existe uma consciência prática em relação à valoração
dos músicos antigos e à preservação das memórias.
As narrativas orais de Ricardo de Azevedo e Valmir da Conceição
ajudam a comunidade escolar e a sociedade, como um todo, a conhecerem melhor os
possíveis caminhos que se pode percorrer a partir e por meio da música. Esses
agentes sociais da cultura são autocultivadores de
sua própria cultura e colaboram para a inclusão social, a renovação do
desenvolvimento cultural e o autorrespeito dos indivíduos.
REFERÊNCIAS
BOSI, Eclea. Memória
e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano:
artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre
estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2008.
CHAGAS, Viviane. Nos tempos da Federal. Jornal
O Diário, p.1, 23 abr. 2009.
DANTAS, Fred. Bandas, fanfarras e filarmônicas. In: DANTAS, Fred. Bandas de música:
formações e repertórios: circuito 2017/2018. Rio de Janeiro: Sesc, Departamento
Nacional, p. 12-29, 2017.
DIAS, Jair Duncan Navega. O 23 de setembro. O aprendiz: órgão oficial dos alunos da Escola Técnica de
Campos, Campos, p.1, set. 1965.
GARCÍA-CANCLINI, Nestor. Políticas culturales
y crisis de desarrollo: um
balance latino-americano. In: GARCÍ-CANCLINI,
Nestor. (org). Políticas Culturales en América Latina.
Miguel Hidalgo, México: Grijalbo, 1987, p.13-61.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo:
Contexto, 2007.
NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos
lugares. Projeto História, São Paulo: PUC, n.10,
p.7-28, 1993.
O INSTITUTO. Tempo, Memória e Transformação:
110 anos da criação da Escola de Aprendizes Artífices em Campos. Campos dos
Goytacazes: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Campus Campos Centro, Diretoria de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação,
Coordenação de Cultura, 2020.
SILVA, Valdir Pierote; BARROS, Denise
Dias. Método história oral de vida: contribuições para a pesquisa qualitativa
em terapia ocupacional. Rer. Ter. Ocup. Univ. São Paulo,
v. 21, n.1, p. 68-73, jan./abr. 2010.
THOMPSON, Paul. A voz do passado:
história oral. Rio de Janeiro Paz e Terra, 1998.
VENTOSA, Victor Juan. Didática da
participação: teoria, metodologia e prática. São Paulo: Edições Sesc São
Paulo, 2016.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura.
Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Notas
1 Licenciada em
Educação Artística Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), mestra e doutora (2019) pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas
Sociais (PPGPS/UENF), onde também realizou o seu pós-doutorado (2021).
Professora, musicista e pesquisadora, possui interesse de pesquisa em temas
relacionados à identidade, estudos culturais, práticas musicais, culturais e
saberes da cultura popular, bem como temas que se vinculam à história oral,
memória social e políticas culturais.
2 Olympio Chagas foi o
fundador da Banda Marcial da antiga Escola de Aprendizes Artífices, em 1946.
3 Endereço da
entrevista disponibilizada no Facebook do Centro de Memória Nilo Peçanha:
https://www.facebook.com/centrodememorianilopecanha/videos/498916487145083/?sfnsn=wiwspwa-&extid=UBZ9y5FO99NgWObA&d=w&vh=e.
Os entrevistados Ricardo de Azevedo e Valmir da Conceição nos cederam a plena
propriedade e a totalidade dos direitos patrimoniais de autor sobre o
depoimento oral prestado, o que nos permite a revelação da identidade dos
cedentes ou de dados que possam vir a identificá-los.
4 Dr. Thieres Cardoso era advogado e compositor, autor da
encantadora “Marcha Brasil”, sempre executada pela Sociedade Musical Lira de
Apolo.
5 Conhecido como Chico
Trombone, Francisco das Chagas foi um importante professor de música de Campos
dos Goytacazes, tendo ensinado inúmeras crianças e jovens, dos quais a maior
parte fez da música sua profissão, atuando em orquestras, conjuntos e bandas
militares. Ele chegou a tocar em boas orquestras do Rio de Janeiro e nas barcas
de Niterói antes de retornar a Campos. Dava aulas gratuitas em sua casa pela
Lira Conspiradora. Nomes importantes da música brasileira, como o trompetista
José Carlos Barroso (o Barrosinho) e o trombonista
Roberto Marques, passaram pelas estantes da Lira Conspiradora e pelas mãos de
Chico Trombone.
6 Todas as fotografias
do Centro de Memória Nilo Peçanha aqui apresentadas foram pesquisadas e estão
disponibilizadas na sua página do Facebook: centrodememorianilopecanha
ou Instagram: memoriaiffcentro
Autor notes
1 Licenciada em
Educação Artística Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), mestra e doutora (2019) pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas
Sociais (PPGPS/UENF), onde também realizou o seu pós-doutorado (2021).
Professora, musicista e pesquisadora, possui interesse de pesquisa em temas
relacionados à identidade, estudos culturais, práticas musicais, culturais e
saberes da cultura popular, bem como temas que se vinculam à história oral,
memória social e políticas culturais.