Dossiê

Funções e perspectivas históricas de transcrições e arranjos para violão no Brasil: o caso de Melchior Cortez (1882-1947)

Functions and historical perspectives of guitar transcriptions and arrangements in Brazil: the case of Melchior Cortez (1882-1947)

 Humberto Amorim 1

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil

 Paulo Martelli 2

Movimento Violão, Brasil

 

Revista Orfeu

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2525-5304

Periodicidade: Semestral

vol. 7, núm. 2, 2022

revistaorfeu@gmail.com

 

Recepção: 22 Outubro 2022

Aprovação: 27 Novembro 2022

 

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Resumo: Transcrever ou arranjar peças de outros instrumentos e/ou formações foi uma prática violonística muito comum, no Brasil, desde meados do século XIX. Em diálogo com parte da bibliografia disponível e apresentando fontes primárias, o presente artigo traça um breve panorama histórico das transcrições e arranjos para violão, buscando compreender algumas das funções socioculturais que esse repertório adaptado teve no caso brasileiro, especialmente na passagem entre os anos oitocentos e novecentos. Tomando como objeto de estudo duas transcrições de autores românticos (Chopin e Massenet) realizadas por Melchior Cortez (1882-1947), os resultados sugerem que houve um empenho para que cânones da música de concerto fossem incorporados à literatura do violão, com o intuito de revelar as suas potencialidades e demonstrar que o instrumento poderia servir a qualquer repertório, incluindo “os grandes clássicos […] interpretados nas suas seis simples cordas” (O VIOLÃO, 1928, p.3).

Palavras-chave: Transcrições para violão, Arranjos para violão, Pioneiros do violão no Brasil, Melchior Cortez, Repertório para violão.

Abstract: Transcribing or arranging pieces from other instruments and/or formations has been a very common guitar practice in Brazil since the 19th century. In dialogue with part of the available bibliography and presenting primary sources, this article traces a brief historical overview of transcriptions and arrangements for guitar, seeking to understand some of the sociocultural functions that this adapted repertoire had in the Brazilian case, especially in the passage between the 19th and 20th centuries. Taking as an object of study two transcriptions of romantic authors (Chopin and Massenet) made by Melchior Cortez (1882-1947), the results suggest that there was an effort to incorporate concert music canons into the guitar literature, with the aim of reveal its potential and demonstrate that the instrument could serve any repertoire, includingthe great classics performed on its six simple strings.” (O VIOLÃO, 1928, p. 3).

Keywords: Guitar transcriptions, Arrangements for guitar, Guitar pioneers in Brazil, Melchior Cortez, Guitar repertoire.

1. Transcrição ou arranjo? Uma introdução

Em sua dissertação de mestrado, Diogo Salmeron Carvalho pontua que “o violão tem em sua história profunda ligação com o ato de transcrever” (2012, p.9). Por sua vez, depois de consultar tratados e livros antigos de interpretação musical, Luciano Cesar Morais, em pesquisa de mestrado que analisou as transcrições de obras de Johann Sebastian Bach (1685-1750) realizadas pelo lendário violonista e luthier Sérgio Abreu (1948), sugere “que a história da prática da transcrição é tão antiga quanto a própria história moderna dos instrumentos musicais” (2007, p.19), ou seja, um modus operandi que permeou largamente a música produzida entre o Renascimento (séc. XVI) e as décadas iniciais dos anos novecentos. Gustavo Costa (2006, p.1) vai ainda mais longe ao indicar que

[…] as práticas de transcrições e adaptações de composições musicais para outros meios de expressão, quer sejam instrumentais ou vocais, camerísticas ou sinfônicas, remontam aos primórdios da música instrumental, ou seja, pelo menos desde a Idade Média, senão antes.

Na síntese do que apresentam os três pesquisadores, podemos inferir que, sob as mais variadas terminologias, um número considerável de repertório adaptado tem sido historicamente incorporado à literatura do violão. A prática foi e é tão comum que, muitas vezes, os diversos termos que a denominam se confundem e se atravessam nos estudos sobre o tema, conforme expõe Morais (2007, p.10):

Essas obras tornaram-se parte de nosso repertório em diversos níveis de estudo e nos diversos ambientes que abrigam a produção musical do violão, seja no ensino ou nas salas de concerto. Os termos correntes nos quais essas obras são referidas são variados e tratados mais ou menos como sinônimos: arranjo, versão, adaptação e transcrição estão entre os mais comuns. No uso cotidiano, esses termos referem-se indiscriminadamente ao procedimento de abordar uma obra não escrita para o instrumento em questão.

Dentre esta plêiade de termos, dois despontam mais recorrentemente nas pesquisas dedicadas ao violão: transcrição e arranjo. Ambos são utilizados ora com sentido próximo (quase sinônimos), ora marcando uma distinção entre o que seria uma abordagem teoricamente mais fiel à partitura (transcrição) e outra na qual desponta um processo de manipulação mais livre do conteúdo original (arranjo). André Luiz Jesus, em um mestrado que analisou os processos de transcrição para violão de cinco peças do pianista Ernesto Nazareth (1863-1934), indica esta oscilação conceitual entre os dois termos, baseando-se, para tanto, na análise de verbetes de reconhecidos dicionários (Oxford e Grove):

Como se sabe, existem certas divergências quanto ao uso das palavras “transcrição” e “arranjo”. Esses dois termos têm sido os mais utilizados por músicos em geral (PEREIRA, 2011). Outros termos, como “adaptação” e “redução”, têm sido também utilizados com fins semelhantes. No verbete do Oxford, as palavras “arranjo” e “transcrição” aparecem como sinônimos e são definidas como uma adaptação de uma peça de música para um meio diferente do qual foi originalmente escrita. Esse verbete nos informa também que nos EUA há uma tendência de usar o termo “arranjo” para um tratamento mais livre, enquanto a palavra “transcrição” é usada em ocasiões mais formais, mais ortodoxas. O dicionário Grove mostra duas definições distintas da palavra transcrição: 1) um “arranjo”, especialmente envolvendo uma mudança de meio, por exemplo, de orquestra para piano; 2) uma cópia de um trabalho musical usualmente com alguma mudança na notação, por exemplo, da tablatura para pentagrama. Já as “transcrições” são normalmente feitas a partir do manuscrito original (usualmente antes de 1800). (JESUS, 2016, p.17).

Nesta mesma linha, e após analisar diversos dicionários e exemplos de adaptações para violão de obras de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), Franz Lizst (1811-1886), Carlos Gomes (1836-1896), dentre outros, Morais (2007, p.18) sugere que o conceito de arranjo “abriga um conjunto consideravelmente maior de significados e uma área maior de aplicações” em virtude das opções mais amplas do músico na abordagem da obra, enquanto a transcrição teria uma linha de “significados mais restritos”, em função da “atitude do arranjador diante do material original”, um tanto mais compromissada com o “grau de fidelidade à versão” original.

Ainda sobre a questão, o pesquisador apresenta a análise de Jodacil Damaceno (1929-2010), decisivo violonista e professor carioca cuja atuação principiou na década de 1940:

Ele [Jodacil Damaceno] refletiu que a diferença entre transcrição e arranjo reside no grau de fidelidade ao texto original, sendo “transcrição” o termo que mais se aproxima deste, tratando a partitura com mais fidelidade. Para Damaceno, o arranjo é um processo de tratamento livre da obra original que dá mais liberdade ao arranjador em relação à versão original da obra. (MORAIS, 2007, p.12).

Por outro lado, o próprio Morais (2007) evidencia de que maneira, tanto no senso comum quanto em dicionários da língua portuguesa, os dois termos muitas vezes são utilizados sem distinção, predominando uma correspondência linguística em relação ao sentido que é empregado a ambos3.

Se os vocábulos suscitam dúvidas conceituais ainda hoje, ora sendo tomados como sinônimos, ora sendo distintos em virtude do grau de fidelidade (ou não) à versão original, é possível imaginar que esta oscilação fora ainda mais marcante ao longo do século XIX e início do século XX, quando o português Melchior Cortez (1882-1947) realizou uma série de transcrições e/ou arranjos que abriu caminhos para o instrumento no mercado editorial de partituras do Rio de Janeiro. Da produção do violonista que foi possível levantar (30 obras), em boa parte delas (11 obras) o músico se vale de um dos termos: “transcrição” é utilizado em cinco ocasiões; “arranjo”, por sua vez, em seis.

2. Perspectivas históricas das transcrições e arranjos para violão

Historicamente, as transcrições e arranjos para violão são associados aos mais diversos gêneros, estilos e formações. Basicamente, os repertórios adaptados que compõem o substrato da literatura integrada ao instrumento podem ser divididos em dois amplos grupos:

1) obras vocais ou instrumentais, sejam elas adaptações de músicas solo, camerísticas ou mesmo orquestrais;

2) repertório tanto da “música de concerto” quanto de tradições “populares” ou folclóricas.

Desde os instrumentos de cordas dedilhadas antigos, cuja literatura foi herdada pelo violão (alaúde, vihuela, guitarras renascentista e barroca), constituiu-se, por exemplo, uma significativa tradição de se adaptar obras vocais aos seus respectivos repertórios: seja na Espanha, com Luys de Narváez (fl. 1526-1549), Alonso Mudarra (c. 1510-1580), Enríquez de Valderrábano (fl. 1547), Miguel de Fuenllana (fl. 1553-1578), entre outros; seja na França, com Robert Ballard (?1525/30-1588) ou Adrian le Roy (c. 1520-1598); ou ainda na Inglaterra elisabetana, onde o caso de John Dowland (1563-1626) é o mais expressivo. Em maior ou menor grau, todos esses compositores adaptaram obras cantadas à literatura de seus instrumentos, indicando uma práxis que, longe de ser ocasional, era integrada ao processo de criação/recriação de materiais musicais.4

Ainda em relação à música antiga, transcrições de obras instrumentais de um meio para outro também foram recorrentes. No repertório incorporado ao violão, o exemplo mais ilustre é o de Johann Sebastian Bach (1685-1750), que realizou versões para alaúde de algumas de suas obras escritas para violoncelo, violino ou teclado (HOPPSTOCK, 2005, 2009, 2012).

Neste sentido, pontue-se como o repertório do violão assimilou uma literatura duplamente transcrita: primeiro, entre os séculos XVI e XVIII, quando uma série de obras vocais ou instrumentais é adaptada para os cordofones de cordas dedilhadas antigos (alaúde, vihuela, guitarras renascentista e barroca); depois, no século XIX, quando o violão se torna um receptáculo do repertório destes instrumentos.

Tome-se como exemplo a famosa obra La Canción del Emperador del quarto tono de Josquin, transcrita para vihuela pelo espanhol Luys de Narváez a partir da obra vocal Mille Regretz, do compositor renascentista franco-flamengo Josquin des Prés (c. 1440-1521). Seu percurso inicialmente atravessou a adaptação de uma canção a quatro vozes para a vihuela (1ª transcrição) e, a partir das primeiras décadas do século XX, da vihuela para o violão (2ª transcrição), quando a peça é incorporada na literatura deste instrumento por meio de “diversas gravações, edições e transcrições” (MORAIS, 2007, p.20). O caso não é isolado e ocorreu sobremaneira com repertórios renascentistas, barrocos e clássicos.

Entre meados do século XVIII e princípios do XIX, essa “dupla transcrição” para o violão se intensifica, sendo particularmente impulsionada por alguns fatores:

1) no fim dos anos setecentos, a inclusão de uma sexta corda à guitarra barroca de cinco ordens duplas, que também teve as cordas paulatinamente substituídas por ordens simples (DUDEQUE, 1994, p.51-54);

2) já nos anos oitocentos, como desdobramento do item anterior, o violão conhece as suas dimensões “modernas” por meio do trabalho do luthier espanhol Antonio de Torres Jurado (1817-1892), responsável por estabelecer “o comprimento da corda vibrante em 650 mm”; pelo “uso da cravelha mecânica”, o que assegurava aos instrumentos uma afinação mais precisa; e, sobretudo, pela inserção do “leque” na construção do tampo, um conjunto de sete tiras de madeira coladas internamente para conferir ao instrumento “uma melhor distribuição dos harmônicos e um equilíbrio sonoro maior”, um parâmetro inescapável “para quase todos os construtores do século XX” (DUDEQUE, 1994, p.78);

3) para além disso, na transição entre os séculos XVIII e XIX, surge uma série de violonistas (sobretudo espanhóis, italianos, franceses, ingleses, alemães e austro-húngaros) que dinamiza e amplia as práticas em torno do instrumento por meio de métodos, concertos, tournées, aulas, composições, transcrições etc., gerando um exitoso movimento que buscava não somente ampliar o público e o conhecimento sobre o violão, mas também inseri-lo em ambientes socioculturais nos quais, antes, sua atuação era limitada. A definição básica de seus parâmetros estruturais e metodológicos permite que um repertório mais consistente para o instrumento comece a ser delineado, intensificando, também, o processo de sua aceitação prática e simbólica nos mais diversos espaços e grupos sociais.

Para Morais, “os dois grandes centros europeus que abrigaram a produção violonística desse período [fins do século XVIII e primeira metade do século XIX] foram Paris e Viena”, acrescentando ainda alguns dos nomes destacáveis que transitaram entre essas duas cidades:

Na capital do império Austro-Húngaro temos que registrar as presenças de Mauro Giuliani (1781-1829), Anton Diabelli (1781-1858), Wenzel Matiegka (17731830) e, um pouco posteriormente, Johann Kaspar Mertz (1806-1856). Já em Paris, podemos mencionar os italianos Ferdinando Carulli (1770-1841), Matteo Carcassi (1792-1853), Luigi Legnani (1790-1877) e os espanhóis Fernando Sor (1778-1839), Dionísio Aguado (1784-1849), o italiano Julio Regondi (1820-1827), garoto prodígio para quem Sor dedicou uma obra, Souvenir d’Amitié op. 46, e o francês Napoleón Coste (1803-1886). (MORAIS, 2007, p.24).

A descrição deste movimento em torno do violão é importante porque ela reverbera significativamente já no Brasil da primeira metade do século XIX. A produção de todos esses autores, por exemplo, aparece nos periódicos brasileiros oitocentistas sendo comercializada em bazares e lojas de música de diferentes províncias brasileiras, especialmente do Rio de Janeiro (mas não exclusivamente). Métodos e/ou obras de Carcassi, Carulli, Aguado, Sor, Legnani, Diabelli, Coste, Regondi, mas também de nomes menos conhecidos no Brasil, tais como o do italiano Francesco Molino (1775-1847), do francês Pierre-Joseph Plouvier (17501826) ou do alemão Joseph Küffner (1776-1856), dentre outros não mencionados na lista acima, são recorrentes nesses jornais a partir da década de 1820, conforme demonstram os exemplos a seguir.

1) Em 19 de janeiro de 1829, na edição 391 do Jornal do Commercio, métodos de viola francesa e um catálogo contendo “nomes dos autores” são anunciados, no Rio de Janeiro, pelo livreiro e tipógrafo J. Cremiére:

Ha para vender na livraria de J. Cremière, rua dos Ourives n. 86, novos methodos de piano, ditos de flauta, ditos de viola Franceza, (guitare) […]. Tem hum catalogo dos nomes dos Autores do sortimento da musica para todos os Instrumentos, e cordas de prata, e de tripa para viola Francesa, e rebeca em porção ou avulsa, algumas modinhas e 4 himnos para piano e viola. J. Crèmiere tem a honra de prevenir ao Publico que a melhor parte da dita musica chega agora para o navio la Claudino. (JORNAL DO COMMERCIO, 1829, p.2).

2) Em 18 de novembro de 1830, no Diário do Rio de Janeiro, o próprio Cremiére indica nominalmente alguns dos métodos que comercializava, dentre eles os de Aguado, Giuliani e Plouvier:

Na rua dos Ourives n. 86, acaba-se de receber hum novo sortimento de musica de pianno, flauta, viola Franceza, todas simphonias de Rossini para rebeca, flauta, pianno e viola Francesa, os methodos seguintes: […] para viola Franceza, Aguado, Plouvier, Giulani [Giuliani], Dubouley; […], todos estes methodos, são de huma boa encadernação Franceza, e doirada, novas contradanças, e valças para pianno, avulças e encadernadas. (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1830, p.2, grifo nosso).

3) Em 12 de maio de 1834, também no Diário do Rio de Janeiro, a loja de Eduardo Laemmert anuncia não somente o método de Carulli, mas também peças para violão de outros três compositores, um alemão (Küffner), um italiano (Giuliani) e um espanhol (Aguado):

LIVROS À VENDA – Em casa d’Eduardo Laemmert, rua da Quitanda n. 139, acha-se a seguinte muzica novamente chegada, a saber: […] Para Violão Francez: Peças de Kuffner, Giuliani, Aguado, e Methodos de Carulli. (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1834).

A partir da década de 1830, essa circulação se acentua em território brasileiro, alcançando outras províncias e revelando o nome de diversos compositores europeus que tiveram suas peças e métodos para violão sendo comercializados no país já durante a primeira metade do século XIX (movimento que analisaremos em outro estudo especificamente dedicado ao tema).

Por ora, ater-nos-emos ao papel desempenhado pelas transcrições no processo de legitimação e ampliação do repertório do instrumento tanto na Europa quanto no Brasil, razão pela qual destacamos a seguinte passagem de um dos exemplos recolhidos no Diário do Rio de Janeiro (1830): “todas as simphonias de Rossini para rebeca, flauta, piano e viola Francesa”. Nos anos seguintes, este dado é reiterado por uma série de anúncios similares, demonstrando que o repertório das árias operísticas mais famosas foi tradicionalmente transcrito e comercializado em versões para diversos instrumentos, incluindo o violão.

3. Quando Rossini encontra o violão: adaptações de trechos operísticos para o instrumento

Longe de ser fortuito, o movimento de adaptação/recriação de trechos operísticos para violão encontra uma primeira ressonância na própria atuação dos compositores-violonistas europeus mais ilustres dos oitocentos. Tomemos os casos do italiano Mauro Giuliani (1781-1829) e do espanhol Fernando Sor (1778-1839) como exemplos. Ambos foram responsáveis por adaptar para o violão temas de dois dos compositores operísticos mais badalados nos teatros europeus e brasileiros oitocentistas: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Gioachino Antonio Rossini (1792-1868), este último detentor do maior número de reclames anunciando trechos de suas óperas transcritas para outros instrumentos nos jornais brasileiros do século XIX.

Giuliani, que atuou primordialmente na capital austríaca (Viena), aproveitou e reelaborou temas operísticos em suas seis Rossinianas op. 119, nas quais o próprio título já expressa a procedência do material. Segundo Morais, eles foram aproveitados “no contexto de um pot-pourri, consistindo em arranjos bastante livres, elaborados e virtuosísticos de vários trechos de óperas [de Rossini] famosas na época”, acrescentando ainda que o violonista italiano apresenta as composições “encadeadas, ligadas umas às outras, variadas e exploradas em suas possibilidades musicais e violonísticas” (2007, p.26).

Sor, por sua vez, também não passou incólume à efervescência operística que reinava na Paris de seu tempo, adaptando, entre 1823 e 1825, Seis Árias da Ópera ‘A Flauta Mágica’ Op. 19, de Mozart, transcrições que, de acordo com Morais, são “bastante próximas ao original” (2007, p.24). O pesquisador também indica que o espanhol já havia tomado uma dessas árias, Das Klinget so Herrlich, como matéria-prima daquela “que se tornou a sua obra mais tocada e conhecida, as Variações sobre um tema de A Flauta Mágica, op. 9 (1821)” (2007, p.25).

Ainda sobre Sor, vale destacar que outra dentre as suas mais famosas peças, Introduction et Variations sur l’AirMarlborough s’en va t’en Guerre’ op. 28, é baseada na manipulação do tema de uma das mais tradicionais canções francesas, o que indica que a utilização dos materiais vocais adaptados não somente reverberava o forte movimento operístico, mas também transcendia as barreiras entre as tradições musicais ditas “eruditas” ou “populares”. Como veremos adiante, Fernando Martinez Hidalgo foi, no Rio de Janeiro oitocentista, o exemplo mais contundente de como esse repertório operático e de canções de salão não passou incólume à trajetória do instrumento no país.

Especificamente no Brasil, esta prática de transcrever trechos operísticos e canções populares (em nosso caso, inicialmente as modinhas) foi recorrente desde a primeira metade do século XIX. Este foi, inclusive, um dos expedientes mais utilizados pelos violonistas brasileiros (ou estrangeiros radicados no Brasil) para alargar os espaços socioculturais de atuação do violão. Não por acaso, como instrumento solista, as primeiras aparições documentadas pelos periódicos oitocentistas nos revelam que o repertório adaptado de árias de óperas configurou-se em uma espécie de abre-alas para o violão nos teatros brasileiros do período.

No Rio de Janeiro, por exemplo, três dos mais assíduos músicos que frequentaram os palcos teatrais cariocas na primeira metade dos anos oitocentos utilizaram largamente transcrições de árias operísticas para pautar seus números empunhando o violão: Heliodoro Norberto Florival, Vicente Ayala e Marciano Brunni, com incidências abundantes tanto em números solos quanto em duos. Por razões espaciais, analisaremos esses casos e autores em um estudo específico, mas deixamos aqui um exemplo para ilustrar como esse fenômeno (que transcendia o violão, inclusive) reverberou no Brasil de forma intensa.

Em 2 de outubro de 1841, a edição 252 do Jornal do Commercio nos informa que a introdução, ária e coro da famosa ópera Il Barbieri di Siviglia (O Barbeiro de Sevilha), de Rossini, e um dueto adaptado do melodrama Chiara di Rosemberg, de Luigi Ricci, foram executados no Theatro de São Pedro de Alcântara em “dois violões pelo professor Heliodoro Norberto Florival e o beneficiado [Vicente Ayala]” (JORNAL DO COMMERCIO, 1841, p.3).

THEATROS

DE S. PEDRO DE ALCANTARA.

[…]

Sexta feira 15 de outubro de 1841. Academia de musica vocal e instrumental, em beneficio de Vicente Ayala.

PRIMEIRA PARTE.

Symphonia da opera Capuletti ed il montecchi, do mestre Bellini

2º Cavatina da opera L’Esule di Roma, do mestre Donizetti, cantada pelo beneficiado.

3º Fantasia de rabeca executada pelo Sr. J. V. Ribas.

4º Cavatina da opera Anna Bolena, do mestre Donizetti, cantada pelo Sr. Fernando Tornet, recentemente chegado.

5º Introdução, aria e coro, da opera Il Barbiere di Siviglia, do mestre Rossini, executado em dous violões pelo professor Heliodoro Norberto Florivat e o beneficiado.

6º Dueto da opera Helena da Feltro, do mestre Mercadante, cantado pelo Sr. Antonio Tormaghi [Tornagui], recetenmente chegado, e o beneficiado.

SEGUNDA PARTE

Symphonia da opera Zanneta, do mestre Auber.

2º Dueto da opera Norma, do mestre Bellini, canto pela Sra. Margarida Lemos e o beneficiado.

3º Variações de trompa, executadas pelo professor Luiz José da Cunha.

4º Dueto da opera Chiara di Rosemberg, executado em dous violões pelo professor Heliodoro Norberto Florival e o beneficiado.

(JORNAL DO COMMERCIO, 1841, p.3, grifos nossos)

 

Note-se como, excluindo os dois números protagonizados pela rabeca (3º n. da 1ª parte) e a trompa (3º n. da 2ª parte), todo o repertório remete a trechos operísticos de autores italianos já em voga no período: Vincenzo Bellini (1801-1835), Gaetano Donizetti (1797-1848), Giochino Rossini (1792-1868), Saverio Mercadante (1795-1870) e Luigi Ricci (1805-1859). A ópera cômica Zanetta (1840), do francês Daniel François Esprit Auber (1782-1871), é a exceção que confirma a regra.

Tal fato indica não somente o tamanho da reverberação que a escola operística italiana detinha na programação artística dos teatros brasileiros já na primeira metade do século XIX, mas também o quanto esta significativa influência afetou a dinâmica constitutiva do repertório dos instrumentos musicais, incluindo o violão e os personagens que lutavam para incluí-lo nos espaços e eventos teatrais de maior repercussão no tecido sociocultural da época.

A prática foi comum e é recorrentemente anotada nos periódicos oitocentistas, corroborando a tese de que transcrições e/ou arranjos de material operístico se tornaram, para o violão praticado no Brasil oitocentista, um dos caminhos possíveis para a abertura e/ou consolidação de algumas perspectivas profissionais:

1) primeiro, como um dos eixos constitutivos de repertório, atravessando uma li-teratura que, naquele momento, demandava peças que pudessem ser aceitas em espaços socioculturais associados à tradição clássica, instilando a ideia de que o instrumento também poderia servir aos paradigmas estéticos da música de concerto;

2) como consequência, este repertório transcrito também serviu como atalho para o alargamento das possibilidades de atuação do violão e de seus personagens em um cenário cultural mais amplo, diversificando as suas práticas e abrindo portas em teatros, salões, associações, clubes e saraus;

3) além disso, o massivo material operístico adaptado foi de tal modo se trans-formando em uma influência no repertório do violão que seus caracteres paula-tinamente acabaram sendo incorporados no entendimento da linguagem com-posicional do instrumento (por meio da criação de autores estrangeiros, brasi-leiros ou radicados no Brasil), e, não menos importante, também no jeito de to-cá-lo (interpretações “cantadas”), um fenômeno que, por razões espaciais, de-senvolveremos em estudo específico.

Os casos já mencionados de peças de Fernando Sor e Mauro Giuliani, na Europa, e Fernando Martinez Hidalgo, no Brasil, são apenas alguns dos muitos exemplos possíveis desta decodificação da matéria-prima das óperas em material transcrito ou original para violão. O fato é que os instrumentos musicais e seus personagens não escaparam à febre operística que tomou conta da Europa e do Brasil em meados do século XIX. Hoje, no senso comum, costuma-se frisar o quanto o violão brasileiro é “cantado”, “chorado”, pulsante e/ou cheio de vibração. Na maioria das vezes, tais características são atribuídas à influência – de fato, decisiva – dos gêneros populares (especialmente a modinha e o choro) aqui gerados ou remodelados e que tiveram no violão, ao mesmo tempo, um objeto propulsor e receptor.

Contudo, parece-nos plausível aventar a possibilidade de que a ascendência da ópera (especialmente a italiana) teve alguma importância no bojo do processo que tornaria o violão brasileiro “cantado”, afinal, nos anos oitocentos, o instrumento adentra os teatros brasileiros tocando majoritariamente transcrições e/ou arranjos de trechos operísticos. Em eventos profissionais ou amadores, públicos ou domésticos, fosse em teatros, salões, associações ou salas de estar, as árias de Rossini e outros autores também foram largamente “cantadas” nas diversas adaptações que receberam para as seis cordas do instrumento.

Além disso, faz-se necessário ressaltar um outro aspecto decisivo que este repertório transcrito assumiu: a disseminação da prática do instrumento entre um público-alvo mais amplo, incluindo amadores, professores, semiprofissionais e os raros casos de violonistas, que, ainda na primeira metade do século XIX, tentava pautar o instrumento como solista e criar espaços de atuação profissional nos teatros, sobretudo através dos concertos em “benefício”, que geravam algum retorno financeiro.

Esses concertos eram organizados pelos próprios músicos e possibilitavam, além do ganho material, a conquista de um espaço simbólico. Participar de um benefício de um renomado artista era uma maneira de ser reconhecido como músico de valor. De igual maneira, conseguir agregar músicos de destaque em um benefício próprio era uma forma de demonstrar seu prestígio entre seus pares. Antonio Gonçalves [2011, p.28], em sua pesquisa sobre as transformações das práticas musicais do século XVIII para o século XIX, afirma que a maioria dos concertos de benefício não foi realizada por músicos mais necessitados, nem necessariamente pelos mais empreendedores, mas sim pelos principais intérpretes, por artistas que gozavam de prestígio e destaque por suas atuações nos teatros públicos e em concertos privados. (AUGUSTO, 2014, p.18).

No campo dos diletantes, por sua vez, um emergente e crescente mercado editorial visava, antes de tudo, atingir o maior número possível de clientes, o que instigou uma proliferação de transcrições e arranjos facilitados destas árias operísticas (durante todo o século XIX) e de canções populares (primeiro com as modinhas do século XIX e, a partir das décadas iniciais do século XX, com as canções que se difundiam amplamente através do rádio). Com isso, não somente os violonistas mais preparados puderam usufruir deste repertório, mas também os amadores, gozando do material adaptado às suas eventuais limitações técnicas e musicais.

Nos anos oitocentos, os dois anúncios seguintes exemplificam como a perspectiva de disseminação do repertório operístico alcançava o público violonístico tanto pela ação das principais lojas que comercializavam música no período (como foi o caso da livraria de J. Cremiére) quanto pela atividade dos professores particulares do instrumento, muitos dos quais estrangeiros recém-estabelecidos na corte do Rio de Janeiro (como foi o caso do italiano Mr. Joubert).

Vendas: J.Crémière, Livreiro, rua dos Ourives, n. 86, tem a honra de participar ao respeitável Publico, que elle acaba de receber um grande e rico Deposito de musica para viola franceza, rebecca, flauta e piano, de todos os differentes auctores, particularmente de Rossini, Moessard, Paer, Gretry, Latour, etc.; segundo o tracto que tem feito com huma casa de Paris, receberá por todos os navios as musicas novas; elle se encarrega de copiar toda a espécie de musica, com a maior exactidão, e os preços os mais moderados: como tal se encarregada de todas as encomendas d’este gênero […]. (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1827, p.1).

23 Mr. Joubert Italliano, Professor de guitarra Franceza, chegado proximamente a esta Corte, tem a honra de annunciar ao respeitável Publico, que se ofertou a dar lições do dito instrumento, e juntamente tem hum grande sortimento de Muzica dos melhores Authores, e principalmente do celebre Rossini; quem quizer utilizar se do seu préstimo pode dirigir-se á rua do Cano casa n. 52 de manhã até às 12 [? Ilegível] horas, e de tarde até as 5. (JORNAL DO COMMERCIO, 1828, p.3, grifos nossos).

Este movimento foi intenso ao longo de todo o século XIX, período no qual a busca por ampliação do repertório e legitimação do instrumento, aliada à franca disseminação do repertório operístico no cenário musical, instigou a realização massiva de transcrições e arranjos do gênero. No início do século XX, a prática começa a alcançar a produção e o repertório de alguns dos principais violonistas da época de forma mais diversa, seja em função de alguns traços operísticos (de criação e/ou interpretação) terem sido possivelmente incorporados durante as décadas seguidas em que a prática foi recorrente, seja pela continuidade da elaboração e execução (ainda que menos frequentes) de novos materiais adaptados.

A primeira apresentação pública do violonista Melchior Cortez registrada na imprensa brasileira, por exemplo, atesta que, integrando um trio de bandolim e duas violetas (termo que na época nomeava um pequeno violão, geralmente com menos cordas do que as seis habituais), o violonista tocou, na ocasião, transcrições de trechos operísticos de quatro diferentes autores: Il Guarany (1870), do brasileiro Carlos Gomes (1836-1896); a Gran Jota Aragonesa da ópera La Dolores (1895), do espanhol Tomás Bretón (1850-1923); La Bohème (1895), do italiano Giacomo Puccini (1858-1924); além de Il Trovatore (1853) e a Marcha Triunfal da ópera Aida (1871), dois números do também italiano Giuseppe Verdi (1813-1901).


Fig. 1
Parte do repertório executado pelo trio de bandolim e duas violetas durante um reisado organizado pelo memorialista Mello Moraes Filho, ocasião que marca a primeira apresentação pública de Melchior Cortez registrada na imprensa brasileira.
Os reisados… (1907)

O fato indica que as transcrições de material operístico atravessaram o século XIX e tiveram ainda alguma reverberação na vida musical dos violonistas brasileiros das primeiras décadas do século XX, o que indica a força da prática nos anos oitocentos. Embora hoje este repertório raramente subsista nos programas de formação, estudo ou performance dos violonistas contemporâneos, sua importância foi capital na constituição de uma literatura para o instrumento no Brasil ao longo, sobretudo, dos anos oitocentos.

Ao lado das modinhas e canções (muitas vezes também adaptadas para violão solo), do choro, de uma série de peças oriundas dos gêneros de salão (valsas, mazurcas, polcas, schottisches, gavotas etc.), de obras de caráter mais livre (fantasias, prelúdios, variações sobre um tema qualquer) e da produção original para violão vinculada à tradição da música de concerto que circulava no país (estrangeira ou nacional), o material operístico adaptado tornou-se não somente um dos eixos constitutivos de nosso repertório solista no século XIX, mas também contribuiu decisivamente para a aceitação prática e simbólica do instrumento em espaços socioculturais diversos, alargando as atividades em torno do instrumento e colaborando para que a sua disseminação alcançasse um público maior.

4. Funções socioculturais das transcrições e arranjos para o repertório do violão: o caso de Melchior Cortez

Para além da amplitude e diversidade das adaptações que historicamente foram incorporadas à literatura do violão, talvez os aspectos mais decisivos diante do tema digam respeito às variadas funções que esse repertório cumpriu em diferentes momentos da trajetória do instrumento. No caso de Melchior Cortez, suas transcrições e arranjos ilustram com propriedade os principais propósitos que essas peças desempenharam, no Brasil, desde meados do século XIX.

Durante o século XIX, já vimos o quanto o repertório transcrito foi decisivo para o alargamento das possibilidades de atuação do violão em espaços socioculturais mais vinculados à tradição da música de concerto, como os teatros, conservatórios e sociedades musicais. Tal fato perpassou pelas gerações de diferentes tendências estilísticas: ainda nas décadas iniciais dos oitocentos, com a produção de autores que permaneciam atrelados à estética do período clássico; depois com os personagens cujas obras já apontavam para uma transição do estilo clássico para o romântico; ou finalmente com os que atuaram majoritariamente durante a segunda metade do século, assumindo caracteres criativos mais confessadamente “românticos” (Tárrega é o caso mais emblemático).

Apesar das diferenças estilísticas, Morais pontua que duas buscas fundamentais tornaram o exercício da transcrição uma prática comum para estes autores de produções tão distintas: primeiro, a necessidade e o desejo de aproximação com o repertório de concerto já canonizado, difundido e aceito entre o público musical do período. De acordo com Morais (2007, p.63),

Os arranjos das gerações de Sor, Giuliani e Tárrega parecem estar todos no contexto de um diálogo do violão com o repertório de obras famosas na época. Eram arranjadas obras ou compostos temas com variações baseados em melodias que estivessem no repertório de referências musicais do público burguês de então e que tinham, por isso, maior chance de provocar uma reação favorável desse público.

Esse processo de aceitação do violão dentro do establishment apresentava ainda um segundo aspecto: o de provar que o instrumento era capaz de cumprir um repertório canônico e de tradição clássica sem eventualmente diminuí-lo e, por vezes, até acrescentando interesse musical em relação à versão original: “Nas gerações referidas, principalmente na de Tárrega, existe ainda o imperativo de comprovar a viabilidade musical do violão, que era cultivado fora dos círculos musicais da música de concerto, e por isso, pouco conhecido.” (MORAIS, 2007, p.63).

É deste contexto mais amplo que abundam, na trajetória do instrumento do século XIX às primeiras décadas do século XX, as transcrições de autores canônicos do Renascimento ao Romantismo. De Bach a Chopin (dois dos compositores mais transcritos), um extenso repertório foi adaptado para violão com o propósito de atender a algumas demandas históricas:

1) Primeiro, aproximá-lo do público burguês consumidor de música do período, fosse por meio de sua inclusão nos espaços tradicionais de concerto protagonizando um repertório canonizado ou pela ampla disseminação de versões facilitadas dessas peças que também ajudaram a popularizá-lo entre esse público, o que ocorreu sobretudo nos anos oitocentos. Segundo Morais (2007, p.63),

Que o violão pudesse mencionar, através de seu repertório essas referências musicais da alta burguesia, era uma situação possível pela prática do arranjo e da transcrição. Ao lado das composições, a transcrição torna-se então uma espécie de tour de force sustentando e dando impulso às carreiras dos concertistas do século XIX.

2) Depois, em uma segunda etapa, instá-lo ao patamar de instrumento solista com o potencial não somente de ser depositário dos “grandes clássicos”, mas o de eventualmente agregar valor e interesse musical às peças transcritas. Parte significativa dos trabalhos pioneiros de Francisco Tárrega (1852-1909), Miguel Llobet (1878-1938) e, mais dentro do século XX, de Emilio Pujol (1886-1980) e Andrés Segovia (1893-1987), só para ficar nos casos mais conhecidos, alinham-se a essa perspectiva. No Brasil dos anos novecentos, arranjadores e/ou transcritores, como Carlos Barbosa Lima (1944), Sérgio Abreu (1948) e Sérgio Assad (1952), cada qual à sua maneira, levaram esse desafio às últimas consequências.

Radicado no Rio de Janeiro a partir de 1891, veremos a seguir como o trabalho de transcritor/arranjador de Melchior Cortez se coaduna a estas perspectivas: aproximar o violão do público consumidor burguês; viabilizá-lo como depositário do repertório “canonizado”; e agregar às peças transcritas um valor musical oriundo dos próprios idiomatismos, mecanismos e/ou recursos técnicos do instrumento.

5. Chopin e Massenet: o repertório romântico canonizado nas transcrições de Cortez

Conforme observamos, um dos objetivos das adaptações concebidas para violão desde o século XIX foi o de demonstrar que o violão era também capaz de absorver um repertório já canonizado na tradição da música de concerto, balanceando o estigma de instrumento sem recursos musicais, volume sonoro ou restrito à condição de acompanhador, muitas vezes vinculado aos capadócios, capoeiras e boêmios que, desde meados dos oitocentos, ocupavam as ruas e demais espaços públicos das cidades com suas serenatas e cantorias, rendendo à cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o epíteto de “serenatópolis”.

Os ecos desta cidade estão cheios de serenatas. Não há violão que não tenha violado o silêncio da noite, cavaquinho que não faça encavacar à quem principia a conciliar o sono, e flauta que não flaute a vizinhança.

Os capadócios cantam modinhas.

Das cocheiras de vacas, que já vão se tornando uma praga, saem retumbantes as rabecas e clarinetas da cana verde.

É impossível dormir nesta serenatópolis!

(JORNAL DA TARDE, 1871, p.2).

Nas décadas iniciais do século XX, seguindo os passos de alguns de seus pares estrangeiros mais ilustres, Cortez se soma ao movimento de criar e/ou sedimentar narrativas alternativas a esta condição, fosse por meio de seus trabalhos como compositor, instrumentista e professor, fosse arranjando ou transcrevendo diversas peças do cânone para violão, dentre as quais despontam três obras de autores românticos:

1) Élégie op. 10 n. 5, de Jules Massenet (1842-1912);

2) Valsa op. 69 n. 2, de Frédéric Chopin (1810-1949);

3) Mazurca op. 67 n. 3, também de Frédéric Chopin (1810-1949).

Em manuscritos ou em edições publicadas na Argentina pela Casa Romero y Fernandez, conseguimos localizar exemplares dessas três transcrições. Por razões espaciais, analisaremos sucintamente duas delas (Élégie op. 10 n. 5 e Valsa op. 69 n. 2), uma de cada um dos compositores (Massenet e Chopin), com o objetivo de vislumbrar como Cortez tenta posicionar o violão como receptor dos “grandes clássicos”, ao mesmo tempo em que procura somar ao repertório uma riqueza musical que parte do seu próprio arcabouço de possibilidades e particularidades.

5.1 Élégie op. 10 n. 5, de Jules Massenet (1842-1912)

Esta famosa obra do compositor francês Jules Massenet foi composta originalmente em 1867, como parte de um ciclo de peças para piano solo reunido sob o título de 10 Pièces de genre. Poucos depois, na década de 1870, foi adaptada para violoncelo e integrada como trilha sonora do drama Les Érinnyes, do poeta francês Leconte de Lisle (1818-1894). Adaptada em versões para canto ou instrumentos solistas, a “triste melodia” circulou a tal ponto que, segundo o violonista e editor Matanya Ophee (1932-2017), “foi talvez uma das mais populares melodias na Europa do fin de siècle, as últimas décadas do século XIX, frequentemente referidas como Belle Epoque, […] arranjada muitas vezes para diversos instrumentos e conjuntos camerísticos” (OPHEE, 2006, n.p., tradução nossa).5

Ainda de acordo com Ophee, a primeira transcrição para violão publicada foi a do violonista catalão Jaime Bosch (1826-1895), conhecido na França como Jacques Bosch, em edição da Vve E. Girod (n. 6203), de 18916. A repercussão da obra não tardou a alcançar os violonistas latino-americanos já nos primeiros decênios do século XX. Em 1938, por exemplo, o uruguaio Julio Martínez Oyanguren (1901-1973) publica a peça dentro de sua coleção Composiciones e Transcripciones para Guitarra, veiculada pela editora Vicente Tatay & Company:


Fig. 2 e 3
Excerto da capa e primeiras pautas da transcrição para violão da Elegia, de Massenet, realizada por Julio Martínez Oyanguren.
Oyanguren (1938). Acervo pessoal dos autores.

Contudo, antes disso, violonistas brasileiros e/ou radicados no Brasil já tinham se debruçado em suas próprias transcrições da obra. Somente no Rio de Janeiro, a peça recebeu adaptações de alguns dos personagens mais atuantes do violão carioca nas primeiras décadas dos novecentos, dentre os quais despontam Joaquim Francisco dos Santos, o Quincas Laranjeiras (1873-1935), Antonio Rebello (1902-1965) e o próprio Melchior Cortez, ratificando que a ampla circularidade da peça conquistada na Europa cruzou o oceano e alcançou decisivamente o labor dos violonistas brasileiros que, inspirados pelo exemplo de Tárrega, tratavam de trazer para o repertório do instrumento os nomes canonizados da música romântica.


Fig. 4
Arranjo para violão em Bm (Si menor) da Elegia Op. 10 n. 5, de J. Massenet, realizado por Antonio Rebello.
Acervo pessoal dos autores.


Fig. 5
Elegia de Massenet na versão para violão (em Mi menor) de Joaquim Francisco dos Santos, o Quincas Laranjeiras.
O Violão (1929a, p.12).

Note-se que, das três versões apresentadas, uma está na tonalidade de Si menor (Rebello) e duas na de Mi menor (Oyanguren e Quincas), estas últimas preservando no violão o tom da versão original para piano, publicada pela editora parisiense E et A. Girod no ano de 1866.


Fig. 6 e 7
Versão original da Elegia, de J. Massenet.
Acervo pessoal dos autores.

Das três versões para violão apresentadas, de Quincas, Rebello e Oyanguren, apenas este último inclui a indicação de caráter do original (Lent ma non troppo), mas sem reproduzir a indicação metronômica (colcheia = 84). Oyanguren foi ainda o único a incluir linhas dinâmicas na adaptação (embora diferentes das originais), mas também ignora as linhas fraseológicas (retiradas por todos). Outra diferença é que as versões de Quincas e Oyanguren apresentam digitação de mão esquerda, enquanto a versão manuscrita de Rebello se limita a indicar as casas de pestana.

Em comparação ao trio de pares ilustres, a transcrição de Cortez tem uma diferença significativa, uma vez que o músico não se baseou na versão original de piano solo (1867), mas sim na versão para violoncelo com acompanhamento de piano da década de 1870, quando a obra ganha uma introdução de dois compassos articulada pelo piano antes do ingresso da melodia no cello, conforme demonstra o manuscrito autógrafo que localizamos no The Morgan Library & Museum, de Nova York.


Fig. 8
Manuscrito de Jules Massenet (1875?) com a inclusão de uma introdução de dois compassos no acompanhamento de piano.
Massenet (1875?).

Portanto, dentre as transcrições para violão apresentadas, a de Cortez é a única que inclui os dois compassos introdutórios iniciais. Em uma edição de autor, o trabalho foi publicado em meados da década de 1920. O título também aparece, neste período, mencionado na contracapa de outras peças de Cortez publicadas pela Casa Romero y Fernandez, da Argentina.


Fig. 9
Contracapa da edição de Colibri, de Melchior Cortez, publicada na Argentina pela Casa Romero y Fernandez.
Acervo pessoal dos autores.

Uma edição da Elegia arranjada por Cortez foi localizada na Coleção Ronoel Simões, em São Paulo, em meio a partituras e álbuns ainda não catalogados. Também encontramos três manuscritos que, no cabeçalho, indicam que se trata da adaptação para violão concebida por ele:

1 e 2) dois deles no arquivo passivo (ou seja, ainda não catalogado) da Coleção Ronoel Simões (abrigada na Discoteca Oneyda Alvarenga/CCSP), uma à caneta preta e outra a lápis, ambas sem mencionar copista ou data – não têm a caligrafia musical de Cortez – ou eventuais datas de realização;7

3) a terceira no Acervo Jacob do Bandolim (abrigado no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro), à tinta preta, como parte de um caderno de músicas para violão de autores diversos.


Fig. 10
Manuscrito da transcrição para violão de Cortez para a Elegia Op. 10 n. 5, de Massenet, sem indicação de copista ou data.
Acervo Jacob do Bandolim (PM 1660)/MIS-RJ.

Cumpre destacar que o material musical da edição e das três versões manuscritas é praticamente similar (inclusive nas indicações de digitação de mão esquerda), com raríssimas discrepâncias que, quando ocorrem, parecem ser mais lapsos do copista do que eventuais diferenças de conteúdo (como a ausência de uma ou outra ligadura que consta no original). Nitidamente, trata-se da mesma transcrição em três cópias de caligrafias distintas e localizadas em dois acervos diversos, o que reforça, para além da indicação de autoria expressa nos três documentos, a hipótese de que se trate, de fato, da adaptação concebida por Melchior Cortez.

A disposição das notas, por exemplo, só tem uma alteração nas três versões: no ms. encontrado no Acervo Jacob do Bandolim, um acorde de três notas (Mi, Sol, Lá) é articulado no terceiro tempo do compasso 11, enquanto nas duas versões do Acervo Ronoel são articuladas apenas duas notas (Mi e Sol), tal qual ocorre na versão original de 1866.


Fig. 11 e 12
Original para piano (linha de cima à esquerda); transcr. de Cortez no ms. 1 da Coleção Ronoel Simões (linha de cima à direita); transcr. de Cortez no ms. 2 da Coleção Ronoel Simões (linha de baixo à esquerda); transcr. de Cortez no ms. do Acervo Jacob do Bandolim/MIS-RJ.
Elaboração dos autores.

Não há indícios do ano preciso em que Melchior concebeu esta transcrição, apenas a constatação de que, nos anos finais da década de 1920, a peça já era anunciada nos catálogos de sua produção publicados nas contracapas das edições da Casa Romero y Fernandez. Sabe-se também que sua filha, Aurea Cortez, tocou a adaptação em um concerto realizado no Studio Nicolas, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1933 (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1933).

O fato de Cortez transcrever e publicar obras canonizadas do repertório de concerto revela que o músico se coadunava ao movimento de habilitar o violão como depositário definitivo das “grandes criações clássicas”, um propósito global que os praticantes do instrumento, em terras estrangeiras ou brasileiras, tentavam firmar desde o século XIX, mas que se acentuou de forma particular no Brasil da década de 1920 (justamente o período em que Melchior realiza e publica suas transcrições), conforme demonstra o editorial do primeiro número da revista O Violão, dado à luz em dezembro de 1928.

[…] Chega-se mesmo a achar impossível que Bach, Beethoven, Chopin, Schumann e todos os grandes clássicos possam ser interpretados nas suas seis simples cordas.

Mas a realidade aí está para comprovar que o Violão, como nenhum outro instrumento de sua categoria, tanto é companheiro inseparável do cancioneiro apaixonado, como o mavioso repositório das manifestações da alma humana, quer na simplicidade da valsa dolente dos nossos inúmeros amadores, quer na excentricidade das músicas comunicativas de característicos regional, seja espanhol, italiano, argentino ou brasileiro e quer na suntuosidade das grandes cria-ções clássicas. (O VIOLÃO, 1928, p.3).

Mas não é tudo. Cortez busca colocar o violão nesta condição não apenas como mero receptáculo, mas evidenciando os idiomatismos, mecanismos e peculiaridades do instrumento. Ou seja, para abrigar os “grandes clássicos”, Melchior não apaga o violão; antes, o pronuncia, agregando às obras transcritas alguma particularidade, técnica ou musical, que somente o violão poderia oferecer.

Neste sentido, dois aspectos poderiam ser destacados em sua transcrição da Elegia de Massenet:

1) A busca pela timbragem oriunda de uma determinada corda (as graves ou a terceira, por exemplo) e/ou de uma região específica do braço do instrumento (a partir da V casa, por exemplo), gerando sonoridades e contornos melódicos mais característicos no (e do) violão. Logo nas duas primeiras pautas da transcrição, notamos como Cortez procura desenhar a melodia usando majoritariamente a terceira corda do instrumento (articulada da IX até a II casa), intercalando, quando necessário, algumas notas nas cordas graves para evitar saltos grandes ou comprometer a duração do acompanhamento.


Fig. 13
Duas primeiras pautas da transcrição de Cortez da Elegia, de Massenet, com a melodia desenhada nos graves e na terceira corda do violão.
Acervo Jacob do Bandolim (PM 1660)/MIS-RJ
.

No violão, tais cordas (graves e terceira), especialmente se articuladas depois da V casa, são mais suscetíveis tanto ao recurso do vibrato quanto a um leque maior de variáveis timbrísticas. O resultado sonoro é muito particular no instrumento, aproximando-o, talvez, da sonoridade “caudalosa” do violoncelo, justamente o instrumento solista da versão que Melchior parece ter utilizado para embasar a sua transcrição.

2) Mescla de cordas soltas e presas em um mesmo acorde ou bicorde, um recurso que também cria ressonâncias e/ou timbres específicos no (e do) violão. No instrumento, o timbre das cordas soltas costuma ter uma sonoridade mais “aberta” em relação às cordas presas, ou seja, aquelas articuladas com os dedos da mão esquerda (especialmente se as notas estão em casas altas, nas quais é mais fácil conseguir timbragem “doce”). Em uma articulação simultânea, a mesclagem dos dois timbres (de cordas soltas e presas) cria um efeito sonoro particular, utilizado largamente por Cortez em muitas de suas peças originais, arranjos ou transcrições, incluindo a adaptação da Elegia de Massenet.


Fig. 14
Exemplos de cordas soltas e presas articuladas simultaneamente em acordes ou bicordes.
Elaboração dos autores.

Importante observar que as transcrições realizadas por Melchior Cortez, Quincas Laranjeiras e Antonio Rebello têm datas próximas, e é possível notar uma significativa correspondência entre elas, especialmente nos dois aspectos destacados (melodia na região grave e acordes mesclados), o que não somente ratifica os intercâmbios que de fato existiram (afinal, foram personagens que conviveram), mas sobretudo sugere que estes recursos já faziam parte do vocabulário idiomático comum compartilhado por essa geração de pioneiros. Ademais, já neste primeiro exemplo da Elegia, é possível vislumbrar como Cortez se alinha ao empenho de consolidar a imagem do violão como receptor dos “grandes clássicos”, ao mesmo tempo em que instila no repertório transcrito recursos idiomáticos próprios do instrumento. São facetas também nítidas nas transcrições que realizou de duas peças do polonês Frédéric Chopin, conforme veremos a seguir.

5.2Valsa op. 69 n. 2, de Frédéric Chopin (1810-1849)

De acordo com o The Fryderyk Chopin Institute, a Valsa em Si menor op. 69 n. 2 foi composta em 1829, quando Chopin tinha 19 anos. Apesar disso, a peça só foi publicada postumamente, na década de 1850, alguns poucos anos depois da morte do compositor (1849). Há dois manuscritos conhecidos: um pertencente ao departamento de música da Biblioteque Nationale de France, em Paris (FRA), sem identificação de data ou copista;8 e outro pertencente ao departamento de coleções musicais da Biblioteka Jagiellońska, em Cracóvia (POL).

A cópia deste último é atribuída a Wojciech Żywny e guarda a seguinte anotação manuscrita de Oskar Kolberg: “O original da Valsa foi apresentado ao meu irmão Wilhelm em 1829, eu o ofereci à Biblioteca Jagiellonian em 29 de março de 1881. O. Kolberg” (tradução nossa)9. É a partir deste documento que a obra é datada, já que não há nenhum registro autógrafo do próprio Chopin indicando a data da composição.


Fig. 15
Manuscrito da Valse op. 69 n. 2, de Chopin, em cópia de Wojciech Żywny.
Biblioteka Jagiellońska, BJ Muz. Rkp. 2201 I/NDIGMUZ017140.

As primeiras edições desta valsa foram publicadas entre os anos de 1852 e 1855:

1) 1852, sob o título de Deux Valses Mélancoliques (B minor op. 69 n. 2 e F minor op. 70 n. 2),10 em seis páginas, editada por I. Wildt e veiculada pelas casas C. A. Spina (Cracóvia e Viena) e L. A. Kittler (Leipzig);

2) 1853 (julho), sob o título de Une soirée a Cracovie en 1844. Deux Valses mélancoliques pour le piano forte, basicamente a mesma edição do ano anterior, mas veiculada pela casa Wessel & Co., em Londres (ING);

3) 1855 (maio), sob o título de Deux Valses op. 69 No. 1-2 Op. 69 (Valsa em Lá maior op. 69 n. 1 e Valsa em Si menor Op. 69 n. 2), editada em 12 páginas pela casa A. M. Schlesinger (S. 4395), na Alemanha.

4) 1855 (julho), sob o título de 2 Valses Nº 1 à 2 des oeuvres posthumes (Valsa em Lá maior op. 69 n. 1 e Valsa em Si menor Op. 69 n. 2), editada em 10 páginas pela casa J. Meissonier (J.M. 3526), em Paris (FRA).11


Fig. 16 e 17
Capa e primeira página da Valsa em Si menor Op. 69 n. 2, de Chopin, em edição da casa J. Meissonier (1855). Note-se a ratificação da suposta data de composição (1829) e a indicação de caráter e andamento: Moderato, semínima 152.
IMSLP, a partir do exemplar pertencente à Biblioteque Nacionale de France.12

A produção de Chopin não tardou a alcançar o violão. Desde meados do século XIX, autores como o polonês Jan Nepomucen de Bobrowicz (1805-1881) já transcreviam e publicavam versões bem resolvidas de algumas de suas peças. Entretanto, foi somente com Francisco Tárrega (1852-1909), a partir das décadas finais dos oitocentos, que o repertório chopiniano entrou definitivamente na pauta do instrumento de seis cordas. Além da famosa versão do Noturno op. 9 n. 2, o espanhol transcreveu para violão uma sequência de peças de Chopin, dentre as quais despontam duas Mazurcas (op. 33 n. 4 e op. 33 n. 4), quatro Prelúdios (6, 7, 15 e 20) e a Valsa op. 34 n. 2.


Fig. 18
Cabeçalho e primeiras pautas da transcrição para violão de Tárrega para a Valsa op. 34 n. 2, de Chopin.
Acervo pessoal dos autores.

Nas primeiras décadas do século XX, é importante frisar que a difusão da “Escola de Tárrega”, por meio dos ensinamentos de alguns de seus alunos diretos e indiretos, passou a ser um dos propósitos dos cultores do violão no Brasil (AMORIM, 2020, p.1-32), especialmente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Quando a revista O Violão (1928, p.4) publica o editorial de seu primeiro número, expressa que o seu terceiro e maior objetivo era o de justamente promover o aprendizado do instrumento tal “como o ensinou o imortal reformador de sua difícil técnica – o maestro Francisco Tárrega”. Naturalmente, um objetivo que incluía demonstrar o quanto o violão era capaz de absorver as “culminâncias clássicas” por meio, sobretudo, da realização de transcrições. Portanto, não foi por acaso que o repertório transcrito para violão dominou as propagandas da Casa Arthur Napoleão, importante editora do período e que seguidamente anunciou o seu catálogo de obras para o instrumento nas páginas da revista O Violão.


Fig. 19
Catálogo das músicas para violão da Casa Arthur Napoleão anunciado na revista O Violão. Note-se que, dos 28 itens listas, 18 são transcrições, 15 delas assinadas por Francisco Tárrega, incluindo o Noturno op. 9 n. 2, de Chopin.
O Violão (1929b, p.23).

Esta febre foi potencializada pela atuação de duas figuras capitais para o violão no Brasil do período: Agustín Barrios (1885-1944) e Josefina Robledo (1897-1972), personagens cuja importância já foi devidamente contextualizada em estudos referenciais da área13. Para este estudo, o importante é destacar não somente o quanto a atuação de ambos em terras brasileiras, desde o início (Barrios em 1915, Robledo em 1917), colaborou para remodelar alguns dos estigmas que pairavam sobre o instrumento, mas sobretudo como as transcrições dos “grandes clássicos” – exploradas significativamente pelos dois – se tornaram componentes decisivos nesse processo.

Desde os concertos inaugurais de sua primeira turnê brasileira (1915-1920), por exemplo, Barrios já incluía no programa peças de Chopin transcritas por Tárrega, incluindo prelúdios, valsas, mazurcas e, por diversas vezes, o famoso Noturno op. 9 n. 2 (DELVIZIO, 2015, p.303-311). Esta última peça, aliás, foi amplamente tocada por violonistas brasileiros desde o início da década de 1920, pelo menos, possivelmente reverberando o sucesso, em terras brasileiras, do repertório transcrito apresentado por Barrios, Josefina e outros virtuoses estrangeiros.14

Em São Paulo, por exemplo, Benedicto Soares Capelo deu, em 14 de fevereiro de 1921, um concerto na redação da revista A Cigarra no qual o programa de duas partes finalizava com o “Noturno nº 2 op. 9, arranjo de Tárrega” (ANTUNES, 2002, p.24); já Aristodemo Pistoresi realizou na mesma cidade, em janeiro e fevereiro de 1925, concertos radiofônicos nos quais tocou peças de Tárrega (Marietta e Recuerdos de Alhambra) e um Noturno de Chopin, provavelmente o mesmo op. 9 nº 2 arranjado para violão pelo violonista espanhol (ANTUNES, 2002, p.28).

Ainda na década de 1920, um dos exemplos mais expressivos da presença massiva de Chopin (e outros autores barrocos, clássicos ou românticos) no repertório dos violonistas brasileiros foi o programa de concerto realizado por Heddy Cajueiro, uma das mais importantes personagens do violão baiano no século XX, noticiado pela revista O Violão em sua última edição (nov./dez. 1929), ocasião em que a concertista, então com 21 anos, foi apresentada como uma “virtuose do instrumento”.


Fig. 20
Programa apresentado por Heddy Cajueiro, em 1929, na Bahia.
O Violão (1929d, p.23).

A divisão do programa sugere que a intenção de firmar um repertório de concerto para o violão passava, naquele momento, por uma tríplice perspectiva: 1) apresentar transcrições de um repertório canonizado, incluindo sobretudo autores barrocos, clássicos e românticos (com ampla presença de Chopin); 2) apresentar peças originais compostas por violonistas-compositores europeus dos períodos clássico e romântico (dentre os quais Tárrega já ocupava um lugar de destaque); 3) apresentar produções de compositores brasileiros ou latino-americanos cujo conteúdo ora dialogasse com esta produção universal ora conferisse ao programa certa ambiência ou caráter típicos da música local (daí resulta um tango brasileiro ou um choro no repertório de Heddy). Essas dimensões nem sempre caminhavam juntas, mas indicam que, diante das condições de possibilidades do período, já era factível integrar transcrições, peças originais universais e produções brasileiras em um único programa.

Dentro de tais perspectivas, o papel de Josefina Robledo também foi decisivo, sobretudo no que tange à legitimação das transcrições como canal de acesso do violão ao repertório canonizado de concerto. Não à toa as transcrições compunham quase sempre a maior parte de seus programas, algumas vezes integralmente, incluindo recorrentemente peças de autores como Bach, Albéniz e Chopin. Ainda em agosto de 1917, quando a imprensa brasileira festejava as suas primeiras apresentações no país, a intérprete escolhe apresentar um repertório quase que exclusivamente transcrito (basicamente o mesmo que havia conferido a ela a denominação, em Buenos Aires, de “primeira violonista do mundo”), incluindo o famoso Noturno op. 9 n. 2 do compositor polonês:


Fig. 21
Repertório protagonizado por Josefina Robledo no Salão do Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, em 30 de agosto de 1917.
O Paiz (1917, p.3).

Em terras brasileiras, Josefina colaborou não somente legitimando tal repertório em apresentações que foram aclamadas pela crítica de diversos estados, mas também realizando e publicando transcrições que, sobretudo por meio das edições da Casa Romero y Fernandez, logo se difundiram amplamente no continente.


Fig. 22
Foto de Josefina Robledo na capa da edição de Romanza sin palavras nº 12, de Mendelssohn, com a indicação de que se tratava de sua coleção de transcrições para violão.
Acervo pessoal dos autores.

O fato de uma das mais importantes editoras musicais latino-americanas abrigar uma coleção exclusiva de transcrições (com ao menos 13 peças de nove compositores distintos) dá uma dimensão de como tal prática havia se tornado um componente decisivo para a afirmação do repertório violonístico e sua respectiva entrada no mercado editorial. Josefina, na condição de virtuose e discípula direta de Tárrega, somava o seu prestígio pessoal ao propósito de trazer para o instrumento o repertório canonizado da música de concerto, perspectiva que, na Espanha ou na Argentina, se coadunava aos esforços de alguns de seus pares mais ilustres do período. Reverberando e aprofundando o trabalho transcricional promovido por Tárrega, personagens como Andrés Segovia, Miguel Llobet, Emilio Pujol, Maria Luísa Anido, Antonio Sinópoli, dentre outros, empenharam-se para que, por meio das transcrições, o violão encontrasse um caminho – dentre outros possíveis – para se viabilizar em espaços socioculturais nos quais ainda enfrentava resistência. Paulatinamente, esse movimento também concorreu para que compositores não violonistas passassem a considerar o violão com outros olhos e começassem a lhe dedicar obras originais, alargando as possibilidades de criação em torno do instrumento para além do nicho.

Tal fato não acarreta necessariamente um juízo de valor qualitativo, inclusive porque acreditamos que parte significativa dos recursos mais criativos para violão desse período não foi engendrada em espaços oficiais ou pelas mãos de personagens escolásticos, demonstrando que parte da comunidade violonística desejava que o instrumento não ficasse à margem da tradição da música de concerto, atuando para que o violão não fosse visto com ressalvas nos espaços socioculturais correspondentes. Nesse sentido, os personagens estrangeiros que passaram pelo Brasil em princípios do século XX tiveram, sim, uma importância capital, influenciando decisivamente a concepção, a produção e o estudo de uma parcela significativa dos praticantes brasileiros(as) que buscavam instrução “formal” (ou, como se dizia no período, instrução “por música”). Esta possível influência – que, aliás, já existia desde meados do século XIX – ganha contornos práticos quando, em fins da década de 1920, observamos que violonistas brasileiros publicaram diversas transcrições ou arranjos para violão deste repertório canonizado na revista O Violão (1928-1929).


Fig. 23 e 24
À esquerda, Romance sem palavras op. 38 n. 3, de Mendelssohn, em arranjo de Alberto Baltar; à direita, Valsa em Lá op. 39 n. 15, de Brahms, em arranjo de Lourival de Souza Lima.
O Violão (1928, p.16; 1929d, p.16)

Até aqui, não há grandes novidades: são violonistas brasileiros reverberando uma prática – a de transcrever para violão um repertório canonizado da música de concerto – já recorrente no Brasil desde meados do século XIX e que possivelmente se potencializou com a atuação de personagens estrangeiros no início do século XX, quando esta perspectiva se coaduna à disseminação, em terras brasileiras, dos preceitos da “Escola Moderna” de Tárrega. Para tanto, Josefina Robledo foi duplamente decisiva: tanto por ter sido discípula direta de Tárrega quanto por ter se dedicado febrilmente ao ato de realizar e publicar transcrições de autores canonizados. Se resgatarmos a lista de sua coleção publicada pela Casa Romero y Fernandez, por exemplo, notaremos que Chopin consta nela com duas obras: a Marcha fúnebre e a Valsa op. 69 n. 1.


Fig. 25
Excerto da edição de Romanza sin palavras nº 12, de Mendelssohn, com uma lista das transcrições de Josefina Robledo publicadas pela Romero y Fernandez.
Acervo pessoal dos autores

O que não se sabia até o momento é que, já na década de 1920 (ou mesmo antes), personagens brasileiros ou radicados no Brasil também participaram deste movimento publicando transcrições de autores canônicos não somente em revistas especializadas, mas também em editoras brasileiras e argentinas de destaque, incluindo as casas Arthur Napoleão e Romero y Fernandez. Neste sentido, Melchior Cortez cumpriu um papel determinante, dando luz a versões revisadas de peças barrocas e clássicas, além de transcrições de autores românticos, dentre as quais despontam duas peças de Chopin: a Mazurca op. 67 n. 3 e a Valsa op. 69 n. 2, esta última par daquela que já havia sido publicada pela mesma editora na coleção de Josefina Robledo (a Valsa op. 69 n. 1), um indício do prestígio que o músico alcançara perante os editores argentinos.

Uma cópia digital desta edição se encontra disponível na Biblioteca Della Chitarra e del Mandolino15. Nela, pudemos constatar que a transcrição foi, de fato, publicada pela Casa Romero y Fernandez, em 1928, ao preço de $1.00 na Argentina e 3$500 réis no Brasil. Melchior dedicou o trabalho à sua aluna Maria de Lourdes Cristófaro (em detalhe na foto da capa), mais uma de suas discípulas integrantes da Academia Brasileira de Violão.


Fig. 26 e 27
Capa e primeira página da transcrição de Melchior Cortez para a Valsa op. 69 n. 2, de Frédéric Chopin.
Biblioteca Della Chitarra e del Mandolino.

Do ponto de vista da concepção, a transcrição de Cortez não se limita a viabilizar a valsa de Chopin ao violão, mas também agrega idiomatismos próprios do instrumento à escrita original da peça. São abundantes os usos de recursos como ligados técnicos (que conferem uma articulação musical própria a um conjunto de duas ou mais notas), glissandos, timbragens de casas e/ou cordas específicas, além da pulsão simultânea entre cordas soltas e presas (gesto recorrente dentre os idiomatismos explorados pelo violonista), conjunto de fatores que aproximam a sonoridade originalmente pianística a uma ambiência sonora mais próxima do violão.

Cumpre destacar, finalmente, que esta foi a primeira adaptação da Valse op. 69 n. 2, de Chopin, realizada e publicada por um personagem brasileiro ou radicado no Brasil. Apenas na década de 1950, o uruguaio Isaías Savio (1900-1977) publicaria a sua transcrição da mesma peça, pela editora Ricordi, trabalho que dedicou ao “bom amigo Sócrates Coutinho” (SAVIO, 1959, p.1). Conforme observamos, o pioneirismo de Melchior Cortez se deu tanto no sentido de adaptar primeiramente a obra quanto no de tentar realizar a tarefa pronunciando as eventuais contribuições que o violão poderia somar ao conteúdo original da música.

6. Considerações finais

Ao longo do século XIX, em terras estrangeiras e no Brasil, um fator contribuiu decisivamente para que os arranjos e transcrições para violão (e, de forma geral, para outros instrumentos harmônicos) proliferassem: a possibilidade de reprodução de um repertório que somente era passível de ser escutado em apresentações ao vivo, fosse nas salas de concerto ou em ambientes domésticos. Apesar de Thomas Edison (1847-1931) ter concebido o fonógrafo de cilindro ainda em 1877, a reprodução fonográfica em larga escala através de meios físicos não foi uma realidade tangível na segunda metade dos anos oitocentos, mas um advento que ganhou contornos definitivos apenas nas primeiras décadas do século XX.

Em parte, tal fato justifica o enorme interesse por arranjos, transcrições e/ou reduções de obras sinfônicas, operísticas, camerísticas ou de outros instrumentos, muitas vezes facilitadas para que a reprodução pudesse atingir um público consumidor maior. As transcrições, neste sentido, atendiam simultaneamente a dois propósitos no Brasil: por um lado, as mais elaboradas compunham o repertório apresentado nos teatros, sociedades e salões de concerto, abrindo caminhos para que os primeiros concertistas do violão revelassem o potencial do instrumento como solista e o aproximassem do público que frequentava estes espaços; por outro, as mais acessíveis eram tocadas em âmbito doméstico, amadoristicamente, cumprindo uma dupla função (performance e escuta) que só era possível de ser realizada, até então, indo a locais públicos ou privados de apresentação. Em suma, para se escutar uma determinada peça no período, era necessário ir a apresentações ao vivo ou aprender a tocá-la, ainda que em versões facilitadas em relação à original.

Entretanto, é preciso salientar que as fronteiras entre uma prática e outra não são nítidas ao longo do século XIX, especialmente no Brasil: muitas vezes versões facilitadas estiveram no palco dos grandes teatros em eventos amadores ou semiprofissionais que incluíam o violão; em outras ocasiões, as transcrições mais elaboradas também marcaram presença no programa de reuniões e/ou saraus particulares. A prerrogativa de se estabelecer em espaços sociais diversos conferia ao instrumento uma multiplicidade de usos que não pode ser encerrada em quaisquer categorias fechadas ou análises dicotômicas. O violão transitava entre ambientes e personagens de diferentes estratos sociais, tornando-se um privilegiado estuário de matrizes culturais heterogêneas.

Observando o século XIX em perspectiva, constatamos que grande parte deste material facilitado que foi transcrito para violão não sobreviveu no repertório, uma vez que cumpria uma função histórica muito determinada e específica: preencher uma lacuna de fruição que, a partir dos anos novecentos, não mais se sustentava diante da ampla disseminação dos meios físicos e digitais de reprodução sonora. Nas primeiras décadas do século XX, estas adaptações mais facilitadas passam a atender um nicho específico de praticantes, dividindo espaço com o número crescente de transcrições que buscavam agregar algum interesse musical novo, a partir do violão, ao material adaptado.

O exemplo de Andrés Segovia (1893-1987) ilustra bem esse movimento de transição (ou melhor, de superposição). Nos anos iniciais de sua carreira, o violonista espanhol se empenhou em realizar transcrições variadas cujo objetivo maior era demonstrar que o violão tinha a capacidade de sustentar qualquer repertório. Vencida essa etapa, o músico transcreveu massivamente de autores barrocos (incluindo Bach) a compositores espanhóis que brilharam na transição entre os séculos XIX e XX, tais como Isaac Albéniz (1860-1909) e Enrique Granados (1867-1916), em adaptações particularmente reconhecidas como idiomáticas e com um resultado musical igualmente satisfatório no violão (ou mesmo melhor) quando comparado à versão original. Nesse sentido, o caso da peça Asturias, de Albéniz, é apenas um dos exemplos emblemáticos que podem ser suscitados.

No Brasil, o caso de Melchior Cortez exemplifica de forma quase didática os universos de possibilidades e as variadas funções que as transcrições ou arranjos para violão poderiam assumir entre fins do século XIX e as primeiras décadas do XX:

1) Inclusão na emergente indústria cultural. O violão não foi alheio à força com a qual os então emergentes mercados fonográficos e editoriais reconfiguraram o panorama cultural brasileiro, sobretudo a partir do início dos anos novecentos. O crescente cenário de produção e consumo em torno da música propiciou o surgimento dos primeiros ídolos e faixas de sucesso, potencializados inicialmente por fonógrafos e gramofones, posteriormente também nas ondas dos rádios. Antenado a este processo, Melchior Cortez foi capaz de adaptar para violão algumas das músicas mais difundidas por meio desses novos canais e tecnologias, como nos casos do Fado Liró, canção portuguesa (composta por um brasileiro, o Maestro Nicolino Milano) que se popularizou no Brasil como marcha carnavalesca; e da canção Único Amor, sucesso do compositor e violonista pernambucano Alfredo Medeiros (1893-1961), atuante personagem musical em Recife e no Rio de Janeiro ao longo da primeira metade do século XX (sobretudo) e que chegou a compor peças para violão em parceria com João Pernambuco (1883-1947).

2) Revelar as potencialidades do instrumento. A partir de meados do século XIX e princípios do XX, autores brasileiros ou radicados no Brasil começam a explorar os idiomatismos e particularidades do violão em peças originais ou transcrições (sobretudo), trazendo à tona uma série de recursos que o instrumento poderia potencializar também na condição de solista: harmônicos, tremolos, rasgueados, scordaturas, efeitos percussivos (especialmente tamboras), ataques específicos com determinados dedos, paralelismos verticais ou horizontais, movimentações por blocos, uso ostensivo de cordas soltas (inclusive como pedal), busca por timbragens específicas de cordas e/ou casas (mesclando recorrentemente a sonoridade de cordas soltas e “presas”), dentre outros.

Todos esses elementos, sem exceção, foram amplamente utilizados por Cortez, que transformou a sua produção em uma viva demonstração dos recursos idiomáticos do violão. Nas transcrições e/ou arranjos, são exemplos: Souvenir du Pará (tremolo e exploração da região sobreaguda); Peteneras Sevillanas (rasgueados, piparotes, ornamentos); Dores d’Alma (cordas cruzadas, glissandos, exploração das timbragens do baixo); e a Marche Louis XVI, o caso mais emblemático, em que praticamente todos os itens ora listados são largamente empregados, incluindo uma scordatura que interfere na altura de quatro das seis cordas do violão.

3) Incorporação do repertório canônico de concerto. Desde o século XIX até as décadas iniciais do século XX, parte da comunidade violonística, no Brasil e no exterior, esteve empenhada na tarefa de viabilizar o violão como um instrumento que poderia abrigar, sem prejuízo artístico, o repertório canônico da música de concerto. Nos espaços “oficiais” desta tradição (teatros, conservatórios, escolas, editoras etc.), o violão, de fato, enfrentou décadas de resistência, reiteradamente associado à condição de instrumento acompanhador e/ou objeto próprio de ambientes e personagens sociais quase sempre lidos sob uma ótica severa e depreciativa por quem detinha o controle do capital e dos meios de produção.

Para reverter tais estigmas, o ato de transcrever peças já incorporadas na “tradição clássica” se tornou uma prática comum para uma parcela dos violonistas do período, que aspiravam “naturalizar” a presença do violão nos espaços e ambientes relacionados à música de concerto. Nesse sentido, Melchior Cortez revisou, digitou e adaptou para violão peças barrocas originais para alaúde do francês Robert de Visée (1650-1725) e transcreveu e publicou ao menos três obras canônicas de autores românticos: a Elegia op. 10 n. 5, de Jules Massenet; além da Mazurca op. 67 n. 3 e da Valsa op. 69 n. 2, ambas de Frédéric Chopin.

Contudo, ao apontar este esforço de inclusão do violão como parte desta tradição, não se pode cair na armadilha dicotômica que divide as práticas e os usos do instrumento em duas categorias estanques – clássica e popular – sem considerar que o imbricamento de matrizes culturais heterogêneas, desde o século XIX, constitui o tronco fundante (e fundamental) do violão no Brasil. É igualmente limitador imaginar que a progressiva ocupação de determinados espaços socioculturais (como aqueles vinculados à música de concerto), por si, constitua-se em uma espécie de “evolução” do status do instrumento, o que acaba por valorizar determinadas práticas em detrimento de outras, como se o thelos do violão, no Brasil, estivesse fadado a sair das ruas, passar pelos salões e chegar aos teatros ou universidades, finalmente aceito por uma parcela ínfima da sociedade. Na verdade, essas práticas e usos heterogêneos do violão, como objeto social, sempre ocorreram e se amalgamaram em nosso território, o que torna inapropriada a tarefa de transformar esta ou aquela matriz cultural como uma força subjugadora de outra(s).

O caso de Melchior Cortez demonstra como estas linhas dicotômicas são, na verdade, frágeis diante da realidade: tomado (por si próprio e pela crítica de seu tempo) como um personagem vinculado à tradição da música de concerto, o violonista não deixou de compor, arranjar, transcrever, copiar e publicar modinhas, sambas, polcas, choros, fados e canções populares, ao mesmo tempo em que se esforçava para demonstrar que o instrumento poderia abrigar, sem dever artisticamente, peças canônicas de autores barrocos, clássicos e românticos. Uma prática não exclui a outra, tampouco a diminui: são apenas manifestações diversas que refletem as condições de possibilidades e os universos criativos que, naquele momento, eram oferecidos aos personagens do instrumento.

O violão brasileiro é, na essência, a soma de diversos violões brasileiros. E Melchior Cortez, um português radicado no Rio de Janeiro e com forte ascendência do violão argentino, foi um dos primeiros a compreender e sintetizar – por meio de uma produção diversa e multifacetada de originais, transcrições e arranjos – esta genealogia embaralhada.

Referências

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TABORDA, Marcia. Violão e Identidade Nacional: Rio de Janeiro 1830/1930. Tese(Doutorado) – IFCS, UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.

Notas

3 “Finalmente, para uma correspondência aos termos em outros idiomas, mencionamos uma consulta ao ‘Dicionário de termos musicais’ de Henrique de Oliveira Marques (Referência Editorial Estampa, Lisboa 1985, p. 96), segundo o qual os termos Arranjo e Transcrição são tratados como sinônimos e se correlacionam com o Francês: Arrangement, Transcription e Adaptation; com o Italiano: Transcrizione e Riduzione; com o Inglês: as mesmas palavras francesas com a mesma grafia; e com o Alemão: Einrichtung, Bearbeitung, Transkription, Arrangement, Auszug e Übertragung. Sendo este um dicionário auxiliar de traduções, não há uma discussão sobre o significado dos termos, apenas a demonstração de sua correspondência linguística que registramos aqui” (MORAIS, 2007, p.18).

4 As datas de nascimento/morte aqui expressas foram retiradas dos verbetes contidos no Dicionário Grove de Música (1994). As abreviações indicam: c = cerca de; fl. = datas em que há registros concretos de ações dos personagens (não indicam ano de nascimento ou morte); ? = quando não há certeza entre duas datas. Exemplos de obras vocais adaptadas por estes compositores podem ser conferidos em Morais (2007, p.19-23).

5 Original: “The Élégie by Jules Massenet (1842-1912) was perhaps one of the most popular melodies in Europe of the fin de siècle, the last decades of the nineteenth century, often referred to as the Belle Epoque. […] The sorrowful melody for muted cello became a solo piece entitled Mélodie-Elégie and was arranged numerous times for many instruments and instrumental ensembles”.

6 O próprio Matanya Ophee reeditou este arranjo de Bosch (Editions Orphée, 2006) adicionando dedilhados, dinâmicas e a introdução de dois compassos que fora suprimida da versão original para violoncelo e piano de 1872. Por questões autorais, não podemos reproduzir o conteúdo, mas indicamos um dos links de venda da partitura: https://www.stringsbymail.com/massenet-melodie-elegie-op-10-no-5-for-solo-guitar-5578.html. Acesso em: 18 jul. 2022.

7 Tivemos autorização para acessar e realizar uma cópia das partituras, mas a permissão para reproduzi-las ainda não foi deliberada enquanto este estudo está sendo escrito (o trâmite demora alguns meses). Se o artigo for aprovado e a autorização já tiver sido dada, incorporaremos as imagens da edição e dos dois manuscritos em questão.

9 Original: “Oryginał Walca ofiarowanego memu bratu Wilhelmowi w r. 1829 ofiaruję Bibliotece Jagiellońskiej d. 29 marca 1881. O. Kolberg”. Fonte: https://www.jbc.bj.uj.edu.pl/dlibra/publication/1737/edition/939/content. Acesso em 20 jul. 2022.

10 Original: “Pour le piano-forte et écrites sur l’album de Mme. La Comtesse Pxxx em 1844 par Frédéric Chopin. Oeuvre posthume”.

11 As informações aqui apresentadas foram compiladas a partir do conteúdo das edições pioneiras e dos dados coligidos no site do The Fryderyk Chopin Institute. Fonte: https://en.chopin.nifc.pl/chopin/composition/detail/page/7/id/25. Acesso em 21 jul. 2022.

12 Fonte: https://imslp.org/wiki/Waltzes,_Op.69_(Chopin,_Fr%C3%A9d%C3%A9ric). Acesso em: 20 jul. 2022.

13 Antunes (2002, p.34-50), Taborda (2004, p.63-69), Delvizio (2015), Prando (2021, subtópicos 7.2 e 7.3).

14 Em meados da década de 1920, por exemplo, os programas dos concertos realizados pelo argentino Juan Rodriguez, no Brasil, apresentaram transcrições de Tárrega para obras de Chopin (O VIOLÃO, 1929c, p.23).

15 Disponível em: http://vpmusicmedia.com/. Acesso em: 21 jul. 2022.

Autor notes

1 Violonista, professor e pesquisador, leciona violão na UFRJ desde 2007. Doutor em Musicologia pela UNIRIO, mestre em violão pela Universidade de Alicante (Espanha), com uma formação acadêmica que compreende sete diplomas (1 doutorado, 2 mestrados e 4 graduações). Publicou dezenas de artigos em revistas científicas e é autor de dois livros publicados pela Academia Brasileira de Música.

2 Concertista de carreira internacional e com diversos prêmios em concursos, Paulo Martelli é doutor em música pela UNESP, com mestrados e formações na Manhattan School of Music e na Julliard School (Nova York) e pós-doc na UFRN. Seus trabalhos incluem publicações de livros, CD’s e apresentações em alguns dos palcos mais importantes do mundo (incluindo o Carneggie Hall). É o idealizador e diretor da série Movimento Violão.