Dossiê
Leda
Maffioletti: conhecimentos e significados de uma
professora de música formadora de pedagogas
Leda
Maffioletti: Knowledge and meanings of
a music teacher educating pedagogues
Silani Pedrollo 1 profsilani@hotmail.com
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil
Leda de Albuquerque Maffioletti 2 leda.maffioletti@gmail.com
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Revista Orfeu
Universidade
do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN:
2525-5304
Periodicidade:
Contínua
vol. 7,
núm.
1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção:
19 Setembro 2022
Aprovação:
08 Novembro 2022
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: O
objetivo deste artigo é apreender e desvendar os significados atribuídos pela
professora Leda Maffioletti às atividades de canto e
apreciação desenvolvidas na disciplina de educação musical no curso de
Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
mais especificamente as orientações didáticas musicais dessas atividades no que
concerne à articulação dos seus conhecimentos práticos e teóricos para a
elaboração de suas aulas e dos planos de aulas de suas estudantes. Esta
investigação situa-se no campo da pesquisa (auto)biográfica e do método
biográfico, a qual se fundamenta em autoras da abordagem (auto)biográfica e
educação musical que abordam questões sobre o(s) conhecimento(s) e experiências
de professoras. Reconhece-se que as narrativas de experiências vividas por Leda
Maffioletti contribuem para a produção de
conhecimento e para o fortalecimento da área de educação e dos campos da
educação musical e de pesquisas (auto)biográficas, na discussão sobre formação
profissional e humana de pedagogas.
Palavras-chave: Conhecimento profissional,
Educação musical e pedagogia, Narrativas de experiências vividas, Professora
formadora, Canto e apreciação.
Abstract: The objective of this
article is to apprehend and
unveil the meanings attributed by the teacher
Leda Maffioletti to the singing and
appreciation activities developed in the discipline of music education
in the Pedagogy Degree Course at
the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS) more specifically
the musical didactic orientations of these activities regarding the articulation
of her practical
and theoretical knowledge for the elaboration of her classes and her students’ lesson
plans. This research is situated
in the field of (auto)biographical research and biographical
method, which is based on
authors from the (auto) biographical approach and music education
who address questions about the knowledge(s) and experiences of female teachers.
It is recognized that the narratives
of experiences lived by Leda Maffioletti
contribute to the production of knowledge and
strengthening of the area of
education and the fields of
music education and (auto)biographical research, in the discussion about professional and human formation
of pedagogues.
Keywords: professional knowledge, music education and pedagogy,
narratives of lived experiences, teacher educator, singing and appreciating.
Introdução
O objetivo deste artigo é apreender e desvendar os significados
atribuídos pela professora Leda Maffioletti às
atividades de canto e apreciação desenvolvidas na disciplina de Educação
Musical no curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), mais especificamente as orientações didáticas musicais
dessas atividades no que concerne à articulação dos seus conhecimentos práticos
e teóricos para a elaboração de suas aulas e dos planos de aulas de suas
estudantes. É importante destacar que este artigo é um recorte de uma pesquisa3mais ampla que teve como objeto de estudo as narrativas
de experiências vividas por Leda como professora de música e formadora de
pedagogas. Este trabalho investigativo situa-se no campo da pesquisa
(auto)biográfica e do método biográfico, tendo como aporte teórico autoras4 como Passeggi (2011, 2016a,
2016b), Souza (2007), Delory-Momberger
(2012) e Abrahão (2018). No campo da
Educação Musical, fundamenta-se em Souza
(2020), Georgii-Hemming
(2013), Bellochio
(2000) e Burnard
(2013), que abordam questões sobre o(s) conhecimento(s) e as experiências
de professoras na interface entre Educação e educação musical.
Ressaltamos que a pesquisa de doutorado realizada por Maria
Cecília Torres em 2003 é considerada como o primeiro trabalho em Educação
Musical na perspectiva (auto)biográfica. Destacamos que, além de Maria Cecília,
outras pesquisadoras, como Ana Lucia de Marques e Louro Hettwer,
Cláudia Ribeiro Bellochio, Delmary
Vasconcellos de Abreu, Inês Rocha, Jéssica de Almeida, Leda de Albuquerque Maffioletti, Tamar Genz Gaulke, Teresa Mateiro e Ziliane Teixeira, desenvolvem pesquisas com essas temáticas
na perspectiva (auto)biográfica e, desde 2021, coordenam o Movimento
(Auto)biográfico em Educação Musical no Brasil. Este artigo também se vale das
contribuições dessas pesquisadoras e de seus estudos, a fim de fomentar e
fortalecer o campo da Educação Musical e da pesquisa (auto)biográfica.
Consideramos que legitimar o conhecimento empírico de profissionais e
estudantes da Educação Musical, assim como de outras áreas, é colaborar para os
aspectos educacionais, políticos, sociais e culturais do próprio sujeito e da
sociedade.
Sob essa visão, a experiência de professoras como uma forma de
conhecimento foi reconhecida como prática de formação, a partir do movimento
socioeducativo das histórias de vida em formação, em contexto de educação de
adultos, ocorrido em meados de 1980. O movimento socioeducativo, segundo Passeggi (2011),
teve como pioneiros pesquisadores como Gaston Pineau,
Pierre Dominicé, Marie-Christine Josso,
Mathias Finger, Guy de Villers,
Bernadette Bovalot e
António Nóvoa. De acordo com Passeggi (2011)
e Souza (2007), o retorno do
sujeito-ator-autor nas pesquisas em ciências humanas e sociais corroborou a
mudança paradigmática sobre a noção de cientificidade e conhecimento válidos em
contestação ao positivismo.
A Sociologia enfrentou enormes problemas decorrentes da
tendência de muitos sociólogos em descobrir as leis sociais que fariam da
Sociologia uma ciência reconhecida no meio científico. Nesse posicionamento, o
sujeito individual não é priorizado. Ferrarotti posicionou-se contra, alegando
que a renovação do método biográfico passa pela “inversão dessa tendência”.
Para ele, a subjetividade e a historicidade são o valor heurístico do método
biográfico e não pode ser relegado, o que significa trazer o sujeito para
dentro do método, com suas histórias narradas e sua subjetividade inerente (FERRAROTTI, 2010, p.43). O famoso “retorno
do sujeito” diz respeito aos esforços da Sociologia para desvincular-se dos
métodos objetivos que buscavam descobrir as leis sociais às custas do
afastamento do sujeito singular das investigações (GAULEJAC, 2005, p.60).
Esta mudança foi denominada “giro linguístico”5
ou “giro discursivo” (PASSEGGI;
SOUZA, 2017; PASSEGGI, 2016a), que
considera a narrativa dos atores sociais “que, ao narrarem suas próprias
experiências, se constituem na e pela ação da linguagem, agindo no mundo e
sobre o mundo” (PASSEGGI, 2016a, p.305).
Assim sendo, as narrativas se tornam um “objeto de estudo potencialmente
legítimo para se ter acesso aos modos como o sujeito, ou uma comunidade, dá
sentido à existência, organizando suas memórias, justificando suas ações,
silenciando ou evidenciando outras, projetando-se em permanente devir” (PASSEGGI, 2016a, p.306). Como método de investigação
ou como prática pedagógica de formação, a (auto)biografia se estabelece no
Brasil, na área de Educação, a partir do ano 2000 (PASSEGGI, 2011).
A experiência como conhecimento é apontada na pesquisa de Nóvoa (2019). O
autor ressalta que há dois tipos de conhecimento na formação de professores: o
conhecimento das disciplinas científicas, como “a Matemática, a História etc.”,
e o conhecimento pedagógico e das ciências da educação, como as “questões
históricas e sociológicas, políticas educativas, metodologias e didáticas etc.”
(p.205). Porém, afirma que é necessário
agregar um terceiro gênero, o qual chama de conhecimento profissional docente,
que se desdobra na capacidade de apropriação de uma experiência refletida.
Segundo ele, “Formar-se como professor é compreender a importância deste
conhecimento terceiro, […] que faz parte do património da profissão e que necessita
de ser devidamente reconhecido, trabalhado, escrito e transmitido de geração em
geração” (NÓVOA, 2019, p.205).
Shulman
(1987) elaborou um corpo de conhecimentos para o ensino constituído em sete
categorias: conhecimentos de conteúdo, conhecimento pedagógico geral,
conhecimento curricular, conhecimento de conteúdo pedagógico, conhecimento dos
alunos e suas características, conhecimento de contextos educativos e
conhecimento de fins, propósitos e valores educativos. Segundo Mateiro e Westvall
(2013), o quarto conhecimento, sobre conteúdo pedagógico, é o que distingue
a profissão de professor – de música – de outras profissões. Enquanto Shulman, na década de 1980, reforça a necessidade de o
conteúdo e a pedagogia serem elementos inseparáveis, Nóvoa,
mais tarde, enfatiza a capacidade de o professor refletir sobre suas
experiências docentes.
Em acordo com Burnard (2013), é importante reconhecer que a qualidade
e a compreensão dos conhecimentos de professores de música influenciam direta e
indiretamente a aprendizagem dos estudantes que atenderão. Amparada nas sete
categorias de conhecimentos de Shulman, a autora
afirma que os professores de música, por meio desses conhecimentos, são capazes
de motivar e influenciar seus alunos. Para ela, os conhecimentos profissional e
pessoal, ou seja, suas experiências, são importantes para a profissão professor
de música. Considerando as ideias de Burnard,
compreendo que aliar o conhecimento teórico e prático é o que o torna um
professor reflexivo.
O conhecimento deve ser vitalício, pressupondo interesse e curiosidade
ao longo da vida. Para Georgii-Hemming
(2013, p.33), “Qualquer forma de conhecimento que inclua compreensão inclui
também a imaginação”. A autora afirma que a imaginação nos possibilita mudar de
perspectiva e oportuniza reflexões, consequentemente, uma chance maior de o
professor tomar boas decisões. Com base em Gadamer,
ela defende que o conhecimento se amplia entre o familiar e o desconhecido. Ou
seja, uma transformação em potencial ocorre quando nossa compreensão de mundo,
o significado que lhe damos e as experiências que trazemos são ressignificadas
no encontro com o outro, nesse mesmo movimento.
Com base no exposto, considero relevante apreender e desvendar
os significados atribuídos pela professora Leda Maffioletti
às atividades de canto e apreciação, a partir de suas narrativas de
experiências vividas dentro de um contexto espaço/tempo, ao compartilhar seus
conhecimentos com as futuras pedagogas em relação aos seus planos de aula e de
suas estudantes. É, também, um dos modos de conhecermos como se constitui uma
professora de música nessa área. Corroboramos as ideias de Abreu (2019, p.152), a qual coloca que “As
aproximações epistemológicas das áreas da educação musical com a pesquisa
(auto) biográfica são condições essenciais para que, como pesquisadora, possa
contribuir com o fazer científico”. Ademais, segundo Nóvoa (2019, p. 205),
[…] é fundamental
valorizar os professores e o seu papel nas dinâmicas de pesquisa. Não se trata
apenas de os considerar “colaboradores” das pesquisas universitárias. Não se
trata de colocar uma nota de rodapé nos nossos escritos agradecendo a
colaboração dos professores que aceitaram responder aos nossos inquéritos e às
nossas entrevistas. Trata-se de reconhecer a sua autoridade própria enquanto
autores, enquanto pesquisadores. Trata-se de compreender que é neles que reside
o potencial para a construção do terceiro género de conhecimento.
Por essas razões e apoiada nas palavras das pesquisadoras,
reconheço e reitero as narrativas de experiências vividas pela professora Leda Maffioletti, coautora deste artigo, como legitimamente
científicas e parte importante na história e na construção de conhecimentos
para o campo da Educação Musical.
Educação Musical no curso
de Pedagogia
O curso de Pedagogia da UFRGS apresenta carga horária total de
3.255 horas, organizadas em nove etapas6, e
capacita estudantes para o exercício da docência nas modalidades de Educação
Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental e gestão pedagógica nos espaços
escolares e não escolares. A Educação Musical é oferecida como disciplina
obrigatória em três créditos, no total de 45 horas, e está em acordo com a
Resolução n.º 2 do Conselho Nacional de Educação – Câmara de Educação Básica,
que define as Diretrizes Nacionais para a operacionalização do ensino de Música
na Educação Básica (BRASIL, 2016a).
Nesse documento, inciso 3.º, parágrafo III, as instituições de Ensino Superior
(IES) e Educação Profissional devem “incluir nos currículos dos cursos de
Pedagogia o ensino de Música, visando o atendimento aos estudantes da Educação
Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental” (BRASIL, 2016a, p.2). O recorte temporal
desta pesquisa situou-se a partir do ano de 2007, quando a Educação Musical
passou a fazer parte da grade curricular como disciplina obrigatória do
referido curso. Assim, considerando que Leda esteve inserida no âmbito desse
curso superior e que conectou duas áreas de conhecimento em suas experiências,
é importante ressaltar o que se compreende, neste texto, como educação musical
e sua relação com a Licenciatura em Pedagogia.
Claudia Bellochio, professora
pesquisadora com mais de 20 anos de experiência dedicados à Educação Musical,
tem muito a dizer sobre os conhecimentos musicais e pedagógico-musicais aos
professores unidocentes, a começar pela compreensão
de que a docência desses professores se constitui a partir de diferentes áreas
do conhecimento. De modo especial, é preciso considerar que esse profissional
tem “a tarefa de ser um mediador ativo e conhecedor crítico dos percursos epistemológicos
que orientam os aprendizados iniciais de seus alunos nos vários campos do
conhecimento” (BELLOCHIO, 2000, p.120).
Em texto posterior, Bellochio e Soares (2017) dedicam-se aos “modos de ser
professor unidocente”, explorando o sentido
filosófico do “ser” como substantivo, ou ente, e ser como “verbo ser” vinculado
à vida, à existência. A partir desses vínculos, as autoras entendem que os
“modos de ser” podem ser aliados ao pertencimento, identidade e relação, ou ser
como existência em si. A essa reflexão, as autoras agregam o significado de
docência como “ensinar” e sua complementação com o “aprender”, de onde obtêm a
compreensão de “modos de ser professor unidocente”,
cuja especificidade é ser “único”, “uno”, responsável pelo processo que envolve
várias áreas do conhecimento. É desse modo que a expressão “modos de ser
professor unidocente” assume um significado singular
relacionado à vida e à existência em si.
Outrossim, Souza (2020, p.9)
salienta que o conceito de educação musical é compreendido ao menos em dois
sentidos: um referente “às práticas de ensinar-aprender músicas e à didática da
música exercida em diferentes contextos; e outro que remete a uma área do
conhecimento que, como outras áreas, tem sua história e está em constante
desenvolvimento”. Neste trabalho, o contexto refere-se ao ensino e aprendizagem
formal, particularmente, ao ensino superior.
O diálogo entre a Música e a Educação que se torna educação
musical, em nossa maneira de compreender, é resultado dos dois sentidos
apontados pela autora. A Música é uma área de conhecimento autônoma e suas
especificidades estão nas práticas de aprender-ensinar música. Por isso, sua
presença na vida escolar e cotidiana de crianças e adultos é indispensável.
Assim, se a professora de referência não tem formação musical como um
especialista em Música, e, igualmente, a professora de música não tem formação
pedagógica como uma pedagoga, uma das formas de ambas as profissionais se
sentirem seguras é por via da formação, não apenas técnica, mas humana, no
contato com formadoras das referidas áreas.
Kater
(2012) destaca que o ensino da música na escola deve oferecer “condições a
crianças e jovens de tomarem contato prazeroso e efetivo com sua própria
musicalidade, desenvolvê-la e vivenciá-la, mediante experiências criativas, a
música em seu fazer humanamente integrador e transformador […]” (p.42-43). Aproximando as ideias do autor
no pensar a formação musical de pedagogas, é pertinente que elas desenvolvam
suas musicalidades para que, dessa forma, se sintam confiantes nos momentos de
proporcionar atividades aos estudantes que atenderão. Nesse sentido, Bellochio, Weber e
Souza (2017, p.210) salientam que, “para [que] esse profissional tenha
maiores possibilidades de inserir conhecimentos musicais em sua prática
pedagógica[,] é necessário que ele tenha vivenciado experiências musicais e
pedagógico-musicais em sua formação”.
Vale mencionar o mapeamento de teses e dissertações defendidas
no período de 2000 a 2020, realizado por Natera e Mateiro (2021). As autoras olharam para a
interface entre pedagogia e educação musical selecionando, apresentando e
analisando pesquisas que tratam sobre a formação acadêmico-profissional no
contexto dos cursos de Licenciatura em Pedagogia. São trabalhos que investigam
a estrutura desses cursos, as identidades das licenciadas, os processos da
docência e o lugar da música na prática das futuras pedagogas. Esta última
temática se aproxima do que pretendemos discutir neste artigo.
Entrelaçar escuta atenta e
palavras narradas
A escolha pelo método biográfico foi motivada por pesquisas que
desenvolvi sobre formação de professoras, discutindo Música e Pedagogia ao
longo da Graduação em Música, principalmente, porque a questão da presença da
música na Educação Infantil foi a linha condutora desses estudos. Como forma de
aprofundar as pesquisas, senti necessidade de conhecer quem eram as professoras
formadoras de pedagogas e a relevância das suas experiências como sujeitos
reflexivos de suas atuações. Ademais, vislumbrei uma rede entre comunidade e
universidade, pois considerei que essas professoras estão em contato direto com
as estudantes de pedagogia, que, por sua vez, estão desenvolvendo atividades
musicais em contextos escolares. Nesse caminhar, deparei-me com a possibilidade
de desenvolver uma pesquisa com a abordagem (auto)biográfica.
Uma pesquisadora francesa que tem contribuído com a pesquisa
(auto) biográfica no Brasil é Delory-Momberger.
Segundo a autora, “o espaço da pesquisa biográfica consistiria então em
perceber a relação singular que o indivíduo mantém, pela sua atividade
biográfica, com o mundo histórico e social e em estudar as formas construídas
que ele dá à sua experiência” (DELORY-MOMBERGER,
2012, p.524). É nesse sentido que a pesquisa biográfica se difere de outras
abordagens disciplinares, pois o indivíduo, como ser social e singular,
contribui para a existência, a reprodução e a produção da realidade social.
Assim, o intuito do convite à professora de música foi de fazê-la rememorar
suas experiências vividas na constituição do seu ser, por sua narrativa,
objetivando o potencial epistêmico e humano, no qual suas narrativas estão
voltadas à construção de conhecimento, isto é, à pesquisa. Compreendo que o
cerne da pesquisa se situou entre dois campos, o da formação de formadores e o
do ensino superior.
Ao utilizar o método biográfico, as experiências formadoras são
acompanhadas por um processo de reflexividade sobre o percurso vivido,
inferidas a partir da narrativa da professora, transfigurando-se em produção de
conhecimento. Para Passeggi
(2016b, p.70-71), há uma fusão entre “o sujeito epistêmico (sujeito do
conhecimento), capaz de conhecer, de refletir, de sistematizar; e o sujeito
biográfico (sujeito do autoconhecimento), capaz de conhecer-se, de refletir
sobre sua própria natureza, o que o faz humano”, destacando-se as diferenças e
semelhanças entre ele e outros seres, para depois inferir teorias.
O encontro desses dois sujeitos, epistêmico e biográfico,
demonstra a relevância no sentido dado às experiências pelo próprio sujeito
que, ao apreender sua trajetória, se emancipa, se (trans)forma,
toma as rédeas da sua existência. No caso da pesquisa realizada, Leda Maffioletti é o sujeito epistêmico e biográfico que inferiu
por meio das narrativas de experiências vividas, dando forma e sentido às suas
práticas como professora de música no ensino superior. A partir dessa
perspectiva, meu papel como pesquisadora foi o de compreender e sistematizar os
aspectos das experiências – vividas e narradas – pela professora.
Nesse sentido, a pesquisa (auto)biográfica e o método biográfico
possibilitam um diálogo entre pesquisadora e colaboradora, no qual pesquisadora
se forma nos momentos de conversas durante as entrevistas. Abrahão (2018) coloca que o diálogo
(auto)biográfico se constitui na prática da escuta atenta que incita a palavra
dada implicada na relação entre pessoas promovendo ou não a formação. Para a
autora, o que se almeja é que “as narrativas possam ser suscitadoras de
compreensão mais elaboradas da vida pessoal/social e formativo/profissional dos
sujeitos em processo formativo” (ABRAHÃO,
2018, p.26).
Segundo Marinas (2007)a escuta atenta e a palavra dada não se limitam ao
sentido comum de ouvir alguém que fala, mas significa que aquele que escuta se
torna depositário da história, que seguirá consigo mesmo na ausência do
protagonista do relato; a escuta faz a história de vida. A palavra dada tem valor moral e rigor metodológico, é
assistir, contribuir, não impedir o processo de apropriação que ocorre no
circuito de transmissão. Nesse processo, eu, como pesquisadora em formação, sou
a que vislumbra o elemento formativo a partir das narrativas de experiências
vividas rememoradas e depreendidas pela colaboradora, coautora deste artigo.
A entrevista dentro do método biográfico torna-se uma ferramenta
essencial no que concerne à palavra dada (ABRAHÃO,
2018) e ao cunho subjetivo da pesquisa (auto)biográfica, pois o foco está
centrado no sujeito e nos modos pelos quais dá sentido à sua existência e às
suas experiências de vida como potencial e legitimidade científica. Nessa mesma
perspectiva, Delory-Momberger ressalta que
[…] o que a
entrevista de pesquisa biográfica procura apreender e compreender é justamente
a configuração singular de fatos, de situações, de relacionamentos, de
significações, de interpretações que cada um dá à sua própria existência e que
funda o sentimento que tem de si próprio como ser singular. (DELORY-MOMBERGER, 2012, p.526).
As entrevistas narrativas com a professora Leda foram as
principais fontes de informação, ou seja, constituíram o material primário, e
os artigos, materiais e documentos recolhidos antes e durante as entrevistas
constituíram as fontes secundárias, conforme sugere Jovchelovitch e
Bauer (2008). Devido ao distanciamento social causado pela pandemia da
Covid-19, realizamos quatro encontros via plataforma Zoom, os quais tiveram
duração total de aproximadamente sete horas. Como propõe o método biográfico,
priorizei a subjetividade da colaboradora. Importante ressaltar que foram
cumpridas todas as orientações para procedimentos em pesquisas em ambiente
virtual em tempos de pandemia, estabelecidas pela Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa7, a Resolução do Conselho Nacional de
Saúde (CNS) n.º 466 de 2012 e a de n.º 510 de 2016 (BRASIL, 2013, 2016b).
Os encontros foram gravados em áudio e vídeo, sendo todos os
procedimentos – transcrição, preservação, proteção, segurança e direitos –
informados à professora no primeiro encontro. Para referenciar as narrativas da
professora, optei por um modo de abreviação para diferenciá-las das demais
citações bibliográficas, como, por exemplo, “EN1, 2021, p.3”, respectivamente,
Entrevista Narrativa número 1, concedida no ano de 2021, da página 3, do
caderno de transcrição. Após os procedimentos de transcrição, as informações
foram organizadas, categorizadas e analisadas sob a perspectiva hermenêutica, a
qual abrange o processo interpretativo de textos escritos, formas verbais e não
verbais. Todas as informações foram organizadas em um documento no software Word, e cada entrevista foi enviada para a
conferência e consentimento da professora.
As análises foram embasadas em Ricoeur (1994).
O autor trabalha sob o prisma de tríplice mimeses-prefiguração, configuração e refiguração, compreendendo a possibilidade de que o tempo
se torna tempo humano ao ser articulado pela narrativa, a ação de narrar, e
essa alcança o seu significado ao se tornar condição da existência temporal. Na
prefiguração, Mimese I, a construção de um enredo está alicerçada “numa pré-compreensão do mundo e da ação” em seu caráter
estrutural, simbólico e temporal (RICOEUR,
1994, p.88). Dito de outra forma, a construção de um enredo na prefiguração
exige que identifiquemos as ações nas quais estão imbricadas questões como: o
que, por que, quem, como, com ou contra quem, empregando-as de modo
significativo para dominar o todo da trama conceitual e cada termo que a
compõe.
A Mimese II, configuração, opera como mediadora, sua posição é
intermediária entre a prefiguração e a refiguração. Ricoeur (1994)
coloca que essa função mediadora procede do dinamismo da operação de
configuração. O caráter dinâmico que o enredo tem em seu campo textual permite
que opere fora dele em uma mediação maior entre “a pré-compreensão
e […] a pós-compreensão da ordem da ação e de seus traços temporais” (p.103). Dessa forma, a composição de um
enredo tem uma função de extrair um significado de uma sucessão de
acontecimentos, nos quais estão contidas duas dimensões temporais: a
cronológica, os episódios da narrativa, e a não cronológica, configurante, a significação que transforma os
acontecimentos em história. Segundo o autor, há o encontro entre o mundo do
texto e o mundo onde a ação e a temporalidade acontecem, então configura-se a
narrativa.
A refiguração é o resultado, a
consequência ou o efeito causado na pessoa mediante o encontro entre os dois
mundos. Nas palavras de Ricoeur: “diria que mimese
III marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do
leitor” (1994, p.110). Sucintamente, o
autor refere-se às metáforas utilizadas nos textos poéticos, de aspecto não
descritivo, para falar de mundo e que intensificam o elo com o ser no mundo, o
sujeito e o outro. Entendemos que acontece uma modificação no mundo do próprio
sujeito, de projetá-lo para novas percepções de vida, a partir da interpretação
e compreensão de uma história, um enredo, um texto. Ricoeur (1994,
p.123) acrescenta que “[...] sustentar que o que é interpretado num texto é
a proposta de um mundo que eu poderia habitar e no qual poderia projetar meus
poderes mais próprios”. Para ele, “O fazer narrativo re-significa
o mundo na sua dimensão temporal, na medida em que contar, recitar, é refazer a
ação segundo o convite do poema” (RICOEUR,
1994, p.124). Ocorre, dessa forma, um círculo hermenêutico entre a
narrativa e o tempo pelo movimento de tríplice mimese. Por meio desse círculo,
o sujeito observa, interpreta e compreende qual é a narrativa que o constitui,
questões fundamentais para chegar ao conhecimento de si e do mundo. Ao narrar,
trazemos para o presente, por meio da memória, aquilo que fomos, somos e a
perspectiva de ser.
Palavra dada
Escolhi apresentar as narrativas da professora Leda relacionadas
às experiências vividas como formadora de pedagogas. No entanto, devido ao
grande volume do material coletado e às restrições do formato de artigo, apenas
dois tópicos de suas orientações didáticas foram abordados: as atividades de
canto e percepção, as quais considerei abranger os modos de dar sentido às suas
ações, reflexões e conhecimentos compartilhados com as futuras pedagogas. Para
compreender o contexto, Leda ingressou como professora orientadora na
disciplina de Estágio de Docência 0-3 anos e Estágio de Docência 4-7 anos, no
Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da UFRGS, no
ano de 1998. Isso significa dizer que a professora, em um primeiro momento, não
ministrou disciplinas específicas de Música, mas, sim, atuou como orientadora
de estágio. Seus estudos anteriores e durante o ingresso na referida
universidade, lhes davam respaldo para assumir tais funções.
Além da Graduação em Licenciatura em Música e do Mestrado em
Educação, também realizou cursos na área de Educação, como Especialização em
Fundamentos Teóricos e Práticos da Alfabetização, fez Especialização em
Orientação Educacional e, na área de psicopedagogia, cursou Especialização em
Psicopedagogia Clínica. Ademais, também contava com suas experiências
anteriores como coordenadora de Educação Musical na Secretaria Municipal de
Educação de Porto Alegre, entre os anos de 1989 e 1994, e prestando assessorias
nas escolas de Educação Infantil (Fig. 1), como ela
ressaltou:
O que eu fiz muito
nesse meio tempo, década de 1980, 1990 e mais adiante, foi assessoria às
escolas particulares de Educação Infantil, mas principalmente assessoria às
escolas da rede pública municipal de Porto Alegre […]. Eu era supervisora de
música e, como parte do meu trabalho, visitei todas as creches e escolas de
Educação Infantil da rede. Juntamente com Rose Marie Reis Garcia e outras
colegas da equipe, fizemos oficinas de brincadeiras cantadas, cirandas e
passeios cantados; canto em conjunto – mostrando de que modo as variações de
tempo (lento, rápido, ralentando), de intensidade (suave, leve, fortíssimo)
enriquecem as experiências sensíveis das crianças […]. A demanda pela música na
formação de professores de Educação Infantil sempre foi intensa, chegando mesmo
a jornadas de estudos e formação de um dia inteiro. (EN2, 2021, p.1-2).
Fig. 1
Acervo de Leda Maffioletti (9-10
out. 1991).
Essas experiências a levaram aos seus modos de ser professora e
ao interesse de oferecer outras disciplinas na universidade, as de Música.
Concomitantemente à orientação de estágio, Leda criou duas disciplinas eletivas:
Música na Educação Infantil, com carga horária de 45h/a, e Brincadeiras
Cantadas, com 40h/a:
Então, a música foi
entrando assim. Eu atendia ao estágio, e essas disciplinas eletivas, também à
comunidade; fazia, por amor, Música na Educação Infantil e Brincadeiras
Cantadas. Depois, ocorreu a mudança [do currículo] da Pedagogia em 2007, que
incluiu a Educação Musical (45h/a) como disciplina obrigatória […], e eu assumi
essa disciplina. (EN2, 2021, p.13).
No decorrer das entrevistas, conforme narrava, observei que
havia uma predisposição da professora em abordar a prática e, em seguida, a
teoria. Isso acontecia em todas as aulas que ministrava, e antes mesmo de
assumir como docente na UFRGS. Por isso, em vários momentos ela usou a
expressão “a todo vapor”. Suas ações eram permeadas pelo apoio pedagógico, por
fundamentações, práticas com brincadeiras, rodas cantadas, risos e diálogo,
sendo imediata a resposta das estudantes para essa disposição, como ela
recordou: “Ô, professora, o que é isso, tomou Redbull?”
(EN2, 2021, p.14). Leda complementou dizendo que, a partir de 2007, as aulas de
Educação Musical aconteciam pela manhã, às 7h30min, e, por isso, as alunas
muitas vezes usavam essa expressão.
A mudança do currículo refere-se à resolução CNE/CP n.º 1, de 15
de maio de 2006, (BRASIL, 2006), que
institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Graduação em
Pedagogia, Licenciatura (DCNP). A partir dessa resolução, o egresso do curso de
Pedagogia deve estar apto a ensinar, de forma interdisciplinar e conforme as
fases do desenvolvimento humano, os conteúdos de Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências, Artes, entre outras. Assim, em 2007, a professora ficou com duas
disciplinas na graduação, orientação de estágio de docência e educação musical,
sendo ela a responsável pela elaboração do programa da disciplina obrigatória
de educação musical no curso de Pedagogia da UFRGS. Ela relata: “E o que inseri
no plano é o que eu achava que seria uma boa formação para uma pedagoga que não
tivesse tido aula de música […]. Inicialmente […], recebi alunas que nunca
tinham tido aula de música” (EN3, 2021, p.1). Leda disse que o plano de ensino
tinha como objetivos principais:
Mobilizar a
musicalidade do aluno preparando-o para orientar as atividades musicais com
crianças e jovens” e “Refletir sobre as contribuições da música na educação,
compreendendo os conteúdos, objetivos e práticas que caracterizam a Educação
Musical” – conforme constava no meu plano de ensino – significava criar
oportunidades para que a música fosse vivenciada intensamente, produzindo
conhecimentos musicais em suas variadas formas de expressão: cantar, inventar
ritmos e melodias, tocar instrumentos musicais simples e movimentar-se no
espaço/tempo das canções. Refletir sobre os fundamentos da educação musical
significava tecer considerações sobre as relações estabelecidas com a música na
vida escolar, na vida social e cultural do contexto em que ela se situa. (EN3,
2021, p.3).
Para Leda, o significado de ser professora dessas estudantes foi
estar “[…] fazendo um trabalho muito importante”. Em suas palavras:
Eu estava
trabalhando com quem estaria na linha de frente do trabalho com as crianças. Se
eu valorizasse a música e não transmitisse esse valor a elas, seria provável
que privassem as crianças dos benefícios da música. Eu acho que, para o
bem-estar das alunas e seu futuro trabalho na escola, aprender a propor uma
atividade e coordenar o seu desenvolvimento é essencial, e não é tão difícil
como as licenciandas pensam. Notei que é no canto que
elas têm receio de se expor, mas, se for uma brincadeira cantada, esse receio
desaparece. Uma atividade simples, como convidar as crianças para brincar de
roda, pode gerar vínculos afetivos que asseguram no futuro aprendizagens
musicais mais complexas. As crianças de mãos dadas, cantando e rodando felizes,
tem sabor de sucesso e pode encorajá-las a criar oportunidades para que a
música aconteça. Por isso, quando observava as orientandas brincando de roda,
eu me sentia muito feliz! Porém, eu sei que elas poderão ter dificuldades para
corrigir a reprodução de um ritmo, por exemplo. Mas conseguem corrigir as
crianças, quando se encontram num ambiente descontraído. Por exemplo: na hora
da canção “meu lanchinho, meu lanchinho”, em que as crianças costumam gritar em
vez de cantar, já observei as alunas em estágio dizerem “não precisa cantar tão
forte, pode machucar a tua garganta”. Porque as crianças são de berrar, de
cantar assim, a todo vapor! E claro que não afinam
desse jeito, não tem quem afine. Eu explicava que, para cantar bonito, cantar
afinado, não é o volume da voz que vai resolver. Cantar com suavidade é até
melhor. (EN3, 2021, p.13).
Essa narrativa e o jeito especial que a professora lidava com a
dificuldade das estudantes poderiam significar que esperava que elas
realizassem o mesmo procedimento com as crianças, sugerindo que também
cantassem suave. Possivelmente, considerava que as licenciandas
compreenderiam que, para realizar uma atividade musical, nesse sentido, não era
necessário ser especialista em Música, isto é, cantar e falar suavemente são
recomendações básicas para a saúde vocal de qualquer pessoa. Interpretei que a
professora trabalhava os conteúdos musicais de modo a despertar nas estudantes
e, consequentemente, nas crianças o prazer de fazer música, almejando uma
formação global.
Unindo as duas disciplinas, Estágio e Educação Musical, Leda
desenvolvia atividades musicais procurando “assessorar a parte de educação
artística” e orientar as estudantes de Pedagogia quanto à elaboração de seus
planos de aula, discutindo com elas como a atividade musical poderia ser
registrada. Ensinava-as como construir uma justificativa, objetivos,
procedimentos, bibliografias e organizava com elas a planilha com as atividades
da semana. A proposta era que as licenciandas
estruturassem seus planos de aula com, pelo menos, três atividades – uma delas
poderia ser uma atividade musical, como Leda relatou:
Eu ajudava as
alunas a coordenar onde iriam situar uma atividade musical como parte
integrante da rotina e como registar o objetivo. Um exemplo simples: se as
crianças serão convidadas a cantar e bater palmas, o objetivo poderia ser
“acompanhar com palmas seguindo o tempo da canção, ou seguindo os acentos, ou
somente quando canta trá lá lá” […]. Então, na verdade, ensinava extrair da atividade o
objetivo que lhe corresponde. Na escola há horários fixos que organizam seu
funcionamento como um todo, porque envolve o atendimento da merenda, rodízio no
uso do pátio, almoço ou janta, e limpeza da sala antes do horário do sono. Por
exemplo, as crianças chegavam às 7h, 7h30min, e o que fariam depois? Qual o
horário do lanche ou da mamadeira? Da troca das fraldas, que hora é isso, que
hora é aquilo. Era importante que as alunas aprendessem a prever em que momento
poderiam propor, não só aquela atividade que fizeram comigo na aula de música,
mas qualquer outra atividade pedagógica. (EN3, 2021, p.10).
Entrecruzar as disciplinas, conectando suas ações, era algo
presente nas aulas da professora. Do mesmo modo, observei em suas falas que
procurava propor às estudantes uma base para que, futuramente, elas por si só
encontrassem seus modos de ser professora. Verifiquei, assim, que a formação
profissional e humana se dava pela vivência, experiência, sentido e reflexão,
permeada pelo diálogo e pelo vínculo que Leda mantinha com as futuras
pedagogas.
Experiências e
conhecimentos compartilhados
Referente à dimensão pedagógica da disciplina Educação Musical,
Leda narrou quais eram e como pensava os conteúdos e atividades para as
estudantes. Ficou evidente, por meio de suas narrativas, a articulação de suas
experiências e conhecimentos ao preparar suas aulas, ou seja, como alinhava a
prática com os fundamentos da formação de professoras para o Ensino
Fundamental. Leda elaborou uma pasta intitulada “Orientações Didáticas” para as
pedagogas, uma espécie de roteiro para cada conteúdo trabalhado com as
estudantes ao longo do semestre, auxiliando-as também nos estágios. Estão
descritas, nesse documento, sugestões de atividades musicais em forma de
objetivos, conforme as seguintes temáticas: ritmo, orientação espaço-temporal,
canto, percepção auditiva e atividades de apreciação. De acordo com o objetivo
deste artigo, destacamos suas narrativas sobre as atividades de canto e
percepção auditiva, as quais foram desenvolvidas com as licenciandas
na disciplina de Educação Musical.
A professora iniciou seu relato dizendo que aprendeu em seu
primeiro curso de formação pedagógica, em 1968, que havia três tipos de
canções: didáticas, folclóricas e recreativas. Para ela, as canções didáticas
são as que mais acontecem nas escolas, citando, por exemplo, canções para lavar
as mãos ou ir para o lanche. Essas canções de rotina, comentou que não faziam
parte do repertório de canções, mas as canções folclóricas (rodas cantadas,
versos e rimas) estavam presentes em suas aulas, como também as brincadeiras
cantadas – que correspondem às canções do tipo recreativas. A professora contou
sobre como pensava essas atividades com as estudantes:
[…] as músicas que
eu ensinava para as alunas acabavam sendo um momento importante de descontração
no relacionamento com as crianças no estágio. E eu acho que a música cumpre bem
esse papel de estabelecer um vínculo positivo. Eu procurava criar nas minhas
aulas um clima tal que as alunas ficassem com vontade de participar. Nem sempre
todas se engajavam, mas, no geral, elas eram receptivas e achavam bom e gostoso fazer as atividades propostas. Elas eram
minhas alunas no sexto semestre. No semestre seguinte, o sétimo, iniciavam o
estágio de docência. A disciplina estava bem situada na grade curricular do
curso, favorecia o interesse pelas aulas. (EN3, 2021, p.6).
Realizava atividades de improviso de melodias para quadrinhas
populares ou versos, fazendo coletâneas de versos populares; levava
brincadeiras de roda cantada, por exemplo, Roda peneira
menina, em que colocava os versos dentro de uma peneira, que era passada
de mão em mão, e, quando a música parava, a estudante que ficou com a peneira
na mão tinha que tirar um verso e cantá-lo improvisando; além de relacionar a
atividade de canto a outros conteúdos, como o ritmo. O objetivo era que as licenciandas cantassem e realizassem o acompanhamento com
palmas em acentos e pulso no ritmo da canção. Disse que brincava de regência
com as estudantes e preparava um movie maker8.
[…] legendado com
as palavras “acento”, “pulso”, “ritmo”, situadas nas partes da música onde as
alunas deveriam bater conforme constava na legenda. A marcha militar Schönfeld Marsch, do compositor
Carl Michael Ziehrer, era perfeita para essa
brincadeira. Eu pegava uma vareta e brincava que era regente e fazia assim no
acento [apontou para a diagonal com movimentos levantando a mão e o braço,
simulou gestos de regência]. Depois, eu fazia dessa forma, no pulso, [idem], txá, txá!, seguindo cada parte da música, comandando o som a todo
vapor! [risos]. Era uma canseira maravilhosa! Chamava as alunas para reger,
algumas se aventuravam. Eu trabalhava o acompanhamento (acento, pulso e ritmo)
primeiro em canções com toda a turma. Depois, em pequenos grupos, elas
escolhiam uma canção conhecida e cantavam acompanhando com palmas, ou pés do
acento, por exemplo. Eu ficava livre, circulando entre os grupos, para ver como
é que elas estavam trabalhando esses conceitos sozinhas. Eram nesses momentos,
em que eu circulava entre elas, que podia fazer anotações sobre a participação
individual das alunas. (EN3, 2021, p.7).
O modo como ela pensava e organizava suas atividades se
entrelaçava, mesmo que tivesse objetivos distintos para cada conteúdo. Percebi,
por exemplo, que, trabalhando roda cantada com as estudantes, conseguia
desenvolver os conteúdos de ritmo, percepção, entre outros. Ao contar sobre
percepção auditiva, a primeira observação feita pela professora foi: “não
confundir com apreciação musical”. Segundo Leda, era “simplesmente ouvir o som
procurando identificar o que é e onde está” (EN3, 2021, p.7). Como exemplos,
disse que chamava a atenção das estudantes para a importância de identificar e
nomear os sons, dizer o que é; localizar onde está, longe ou perto, dentro ou
fora do ambiente; se o som está parado ou se movimentando de um lado para o
outro; qual o tipo do material, madeira, metal, identificar a voz da colega
etc.
Ao realizar essa narrativa, lembrou-se de um episódio em sala de
aula quando visitava uma estagiária: “Em uma turma de maternal (três anos),
minha orientanda colocou, no gravador, um barulho de chuva. Acredita que as crianças
olharam para a janela quando escutaram o barulho de chuva? Elas não se deram
conta de que aquilo era uma representação da chuva” (EN3, 2021, p.8). Eram
nesses momentos do cotidiano da escola, observando as atividades desenvolvidas
pelas estudantes, que a professora aproveitava para nos
assessoramentos destacar a compreensão teórica do fato observado, trazer as
fundamentações e compartilhar conhecimentos. Falou sobre a importância de ter o
conhecimento sobre a noção de representação,
As crianças pequenas,
que ainda não têm interiorizada a imagem do evento sonoro, em vez de
representá-lo mentalmente enquanto ouvem, voltam os
olhos para a janela, para conferir, ao vivo, a chuva que deveria estar lá fora.
Bem interessante essa cena! Piaget, Vygotsky e Wallon
tratam dessa temática – cada um com sua teoria, claro! (EN3, 2021, p.8).
As orientações didáticas que Leda tinha como roteiro já
indicavam algumas mudanças no seu modo de ver e agir com relação ao ensino de
música para crianças, consequentemente, nas aulas com as estudantes de
Pedagogia. Foi a partir dessas narrativas que a professora retomou uma reflexão
sobre como foi modificando sua forma de compreender a aprendizagem musical das
crianças:
[…] quem provocou
mudanças no meu modo de pensar foi Mary Louise Serafine
(1983)9. […]. Em seu artigo sobre os processos
cognitivos musicais, faz uma crítica à transposição dos elementos utilizados em
análise musical – melodia, ritmo e harmonia – para os planejamentos de educação
musical, como se fossem o padrão de compreensão das crianças; como se fosse a
maneira da criança pensar a música. Aqui eu me encaixei! Orff
e Willems apoiam seus métodos nesses elementos, mas o
equívoco de imaginar que eles corresponderiam ao modo de pensar das crianças
fica por minha conta: eu não tinha parado para pensar… Hoje eu penso que o que
poderia ter acontecido comigo foi uma “associação imediata”, processo que pode
acontecer sem a interferência da reflexão: melodia, ritmo e harmonia
associados/modo da criança pensar a música. (EN4, 2021, p.2).
Conhecendo as ideias de Serafine sobre
uma compreensão diferente de aprendizagem musical, a professora buscou rever os
seus conceitos, no intuito de reorganizar sua concepção pedagógica sobre o
ensino de música. Essas ideias permearam suas aulas com as estudantes de
Pedagogia, pois compartilhava esses conhecimentos, visando à formação
profissional das licenciandas, e propiciava que se
sentissem mais segurança nos contextos em que trabalhariam. Observei que seu
conjunto de referenciais teóricos era enriquecido constantemente, mas, como
lembrou e relatou a professora, “toda mudança é sempre lenta” (EN4, 2021, p.2).
Foi na participação e publicação de um artigo em um evento da Associação
Brasileira de Educação Musical (ABEM), da qual a professora também foi
sócia-fundadora e membra da diretoria, que ela identificou indícios dessa
mudança nos seus modos de pensar e começou a buscar por novos autores que
respondessem às suas inquietações:
No II Encontro
Anual da ABEM em Porto Alegre, do qual fui coordenadora, (1993) – na época eu
era coordenadora da Educação Musical nas escolas municipais de Porto Alegre –,
por esse motivo, a Prefeitura financiou a distribuição de um livreto de minha
autoria, onde constam três artigos, sendo um deles “As funções sociais da
música na escola”. Esta foi a primeira vez que fiz críticas ao modo como via a
música na escola, me apoiando em autores que tinham um olhar para o aspecto
social e cultural da Educação Musical. Há um espaço grande depois disso, que
não procurei encontrar rastros nos arquivos que tenho guardados sobre minha
docência. (EN4, 2021, p.2).
Foi após terminar o doutorado, em 2005, que Leda observou mais
claramente sua transição de referenciais, por meio de outras pesquisas e
leituras. Segundo ela, “Uma marca nessa transição certamente foram as leituras
que fiz, como A natureza cultural do desenvolvimento
humano, de Bárbara Rogoff (2005), e Origens culturais da aquisição do conhecimento humano, de
Michel Tomasello (2003)” (EN3, 2021, p.19). Citou,
também, Colwyn Trevarthen e
Daniel Stern, os quais sustentam suas reflexões. Afirmou: “Eu me sinto mais
nessa linha hoje […], uma abordagem da educação infantil com os autores de
referência, autores da linha do desenvolvimento cultural da criança” (EN3,
2021, p.19). De forma sucinta, a professora falou como percebeu essa transição:
Meu olhar esteve
sempre voltado para a compreensão do que minhas alunas já sabiam sobre música.
Em 2007 fiz um estudo sistemático sobre isso, procurando identificar nos
depoimentos das alunas sobre música os conhecimentos que elas expressavam. Mas
ainda muito distante do que hoje entendo como episódios de histórias de vida.
Os estudos sobre a musicalidade humana me mantinham na linha mais
sociocultural.
Entre 2009 e 2010,
meus estudos mostram temas que mesclam interesse em “Apreciação Musical” e
“Modos de Compreensão da Música”. As leituras de Bolívar, Bakhtin e Josso me aproximaram da pesquisa (auto)biográfica. O texto
publicado em 201010 marca minha inserção mais
clara no campo da pesquisa (auto) biográfica. Pouco depois, a perspectiva
sociocultural passou a se integrar em minhas aulas no curso de Pedagogia e nas
minhas publicações referentes à música na educação infantil e formação de professores.
(EN3, 2021, p.19).
Percebi que as mudanças foram acontecendo pelo seu modo atento
em relação às ações das crianças e dos adultos. Ela notava que as estudantes se
sentiam bem fazendo as brincadeiras cantadas e observava que, no estágio, essas
atividades aproximavam as estudantes e as crianças, “criando o contexto eu/nós”
(EN3, 2021, p.2), referindo-se ao apego e ao vínculo. Exemplificou e detalhou
como trabalhava com as pedagogas, as questões dos referenciais que utilizava em
suas aulas, entre a música e outras áreas, mostrando vários livros e falando
das concepções e pesquisas de cada autor(a) que fundamentava suas reflexões.
Ela disse:
Colocava uma linha
horizontal no quadro, representando a linha do tempo de zero a seis anos, e
falava sobre o desenvolvimento das crianças, mostrando sempre a importância de
a música estar presente; como ela poderia contribuir, quais atividades seriam
potencialmente mais adequadas, considerando as fases em que determinada
aquisição se mostra no desenvolvimento infantil. Por exemplo, o bebê
recém-nascido tem memória do que ouvia antes de nascer? Quando o bebê é capaz
de segurar o chocalho? Imitação é o mesmo que expressão livre? (EN4, 2021,
p.4).
Em uma das entrevistas, escolheu compartilhar um texto de sua
autoria, intitulado “A música e as primeiras aprendizagens da criança” (MAFFIOLETTI, 2014), no qual buscou mostrar
de que modo as sonoridades e inflexões da voz tornam-se episódios melódicos e
rítmicos, com intencionalidade comunicativa. Em suas próprias palavras:
Muito cedo, as
crianças aprendem o repertório comunicativo da língua materna e passam a
utilizar de modo adequado para expressar concordância (Tá!, Hã-hã!),
desaprovação (Xi!!!!), desejo (Tomara!), surpresa (Hã?),
desânimo (Oh!), alegria (Êba!) ou reclamação e dor (Aiê!). […] Elas também apreendem o significado de irritação
contido na separação prolongada das sílabas na frase: “eu-já-faa-leei!”. (MAFFIOLETTI, 2014, p.120).
Dessa forma, a professora iniciou dizendo: “Mas, então, eu vou
te falar de um momento muito importante na vida das crianças, que comento com
as professoras e acentuo bem quando estou tratando da música no berçário, que é
o vínculo entre a mãe e o seu bebê” (EN4, 2021, p.4). Leda disse que o primeiro
cientista a distinguir o mecanismo que explica como ocorre o apego ou vínculo
foi Konrad Lorenz, em 1970, o qual ficou conhecido como o cientista dos gansos:
Loretz descobriu que o
filhote das aves, assim que sai do ovo, seguirá o primeiro objeto em movimento
que passar por ele, não importa quem seja. Chamou este fenômeno de printing, ou impregnação filial, que corresponde ao que
mais tarde tornou-se conhecido como “teoria do vínculo”. (EN4, 2021, p.4).
Posteriormente, continuou Leda, Hubert Montagner
(1993) defendeu a ideia de que as pesquisas de Lorenz poderiam contribuir
para a compreensão do comportamento dos bebês humanos; seus gestos, mímicas,
vocalizações e outras sensibilidades formam o conjunto dos comportamentos
realizados nas interações dos bebês com suas mães ou pessoas próximas. Baseada
nesse autor e em outros, a professora defendeu que a música poderia desempenhar
um papel relevante na relação das pedagogas com as crianças do berçário.
Complementando, relatou de que modo direcionava a atenção das alunas para a
observação de um detalhe importante na comunicação dos bebês, aproximadamente
aos oito meses de idade, que é o vínculo pelo olhar. Por meio de uma pequena
encenação, instigava as alunas a descobrir do que se tratava:
Dramatização: Eu
era o bebê, uma das alunas me entregaria um objeto qualquer, o restante da
turma deveria observar o que acontece com o bebê quando recebe o objeto, em
dois momentos – aos quatro meses e aos oito meses de idade. E reproduzia as
cenas de entregar o objeto para o bebê pegar, destacando a referida idade.
“Olhem o que um bebê de quatro meses faz – e fazia a cena de manipulação do
objeto –; agora olhem o que acontece com bebê de oito meses – e fazia a cena de
manipulação, mas recebia o objeto de forma diferente”. Nos comentários, pedia
que dissessem o que notaram. As respostas eram superconhecidas,
“ele colocou na boca, sacudiu, largou, pegou”. Repetia, pelo menos, quatro vezes,
até que as alunas notassem alguma diferença. Por fim, eu repetia as duas cenas,
desta vez exagerando o olhar do bebê de oito meses ao receber o objeto. Então,
sim, ficava explícito o vínculo pelo olhar do bebê de oito meses, dirigido à
pessoa que lhe entregava o objeto. Esse vínculo é fundamental! A música pode
prolongar o tempo de duração desse olhar, essencialmente humano, que a criança
estabelece com quem se dirige a ela. O vínculo pelo olhar abre as
possibilidades para o surgimento das relações intersubjetivas no ser humano.
Essa informação vem de Tomasello. (EN4, 2021, p.4-5).
No exemplo citado pela professora, busquei relacionar os
referenciais teóricos que embasavam suas reflexões, sendo essa apenas uma das
tantas narrativas que ela me contou durante as entrevistas. Ficam claros para
mim seus modos de pensar e agir sobre o ensino e aprendizagem musical na
relação com outras áreas do conhecimento.
Então, vou falando
da importância de todos os elementos que fazem parte da vida da criança, das
brincadeiras, do seu modo de interagir e vou associando com a aprendizagem
musical que ocorre a partir da estrutura dos versos, da estrutura das
brincadeiras, por exemplo: Seu Joaquim quirim quim,
da perna torta ratá [cantarolou]. Essa estrutura repetitiva
é diferente daquela estrutura que forma sequências ordenadas: Estava a velha no
seu lugar, e veio a mosca lhe incomodar, a mosca na velha, a fiar… lá rá, lá
rá… e vai e fazem um cacho sem fim! [idem] E a criança, quanto mais ela aprende
coisas da cultura, mais facilidade terá para dominar a estrutura da língua
materna, consequentemente, maior domínio expressivo. Porque a estrutura da
linguagem e dos sons da cultura, das brincadeiras culturais, ajudam e dão
flexibilidade para a criança entender a estrutura da língua materna. Belinante [Gustavo Belinante],
que é um especialista no Brasil em alfabetização, deu uma palestra em Porto
Alegre [e] chegou aqui dizendo: para a criança aprender, para se alfabetizar,
ela tem que aprender os instrumentos da cultura, por excelência: as músicas, as
quadrinhas e as brincadeiras musicais. Fiquei feliz, tive vontade de gritar de
alegria! Então, no que se refere à alfabetização, a música é reconhecida como
essencial […]. Disse o palestrante que essas associações que a criança faz,
[por exemplo], a música do sapo [o sapo não lavo o pé], levam a criança a
escrever. Então, ensinar música para as crianças é o que melhor se pode fazer –
disse Belinante. (EN4, 2021, p.8).
As atividades e os conteúdos incluídos em seu roteiro de
orientações didáticas foram permeados por esses diálogos entre as áreas de
conhecimento e a busca constante por autores que auxiliavam suas reflexões e
observações, em especial demonstrados na escolha deste tópico, para este
artigo. Penso ser, também, um momento de perceber os conhecimentos adquiridos e
compartilhados ao longo de uma trajetória. Na perspectiva de Burnard (2013) e
Shulman (1987),
visualizo Leda como uma professora de música e formadora de pedagogas que
possui esses conhecimentos e que de modo direto ou indireto compartilhou-os com
seus estudantes em sua carreira como docente.
Considerações
Ter a oportunidade de conhecer e escutar as narrativas da professora
de música e formadora de pedagogas Leda Maffioletti
foi importante na construção da minha formação humana e profissional. Afirmo
que suas palavras impactaram minha formação como pesquisadora, professora de
música de crianças, motivando-me a continuar investigando a relação entre
música na Educação Infantil e música e Pedagogia, em contextos de formação de
professoras. Nesse sentido, compreendi que olhar com uma lupa para a
experiência da professora, escutá-la e aprender por meio das conversas me formou
e me transformou, como, por exemplo, a entrevista que focou sobre as
fundamentações teóricas, na relação da música com autores que abordam o
desenvolvimento cultural da criança. Leda trouxe, em sua fala, conceitos e
ideias suas e de outros autores que eu não tinha conhecimento. Considerando
essas aprendizagens, de forma positiva em minha formação, não há como ir para a
escola trabalhar música com as crianças do mesmo jeito que ia antes. As (trans)formações me acompanham. E, para além disso,
demonstrou respeito e compromisso comigo e com a pesquisa, sendo didática nas
entrevistas e atenciosa com o compartilhamento de outros materiais, deixando
marcas de como se produz uma pesquisa com ética e responsabilidade social.
Da mesma forma, poder compartilhar e contar junto com ela parte
de sua história é contribuir para a produção de conhecimento e, especialmente,
o reconhecimento do seu trabalho na educação musical e na Educação no Brasil.
Busquei apreender e desvendar os significados atribuídos pela professora Leda Maffioletti às atividades de canto e apreciação
desenvolvidas na disciplina de Educação Musical no curso de Licenciatura em
Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Refletindo
sobre suas experiências e em diálogo com as autoras que fundamentaram minhas
reflexões no presente artigo, considero que seu modo de pensar, agir e
fundamentar sua prática em sala de aula é, também, uma maneira de compreender a
educação musical em cursos de Pedagogia.
Compartilhar suas experiências com as licenciandas,
escutar suas histórias, era a maneira de aproximá-las da realidade da profissão
e estimulá-las a tomarem suas próprias decisões futuras. Esses conhecimentos
compartilhados com as estudantes, ao longo da trajetória da professora Leda,
expressam suas ações e modos de pensar uma educação musical em determinado
tempo e espaço.
Conforme apontado pelas pesquisadoras, o retorno do
sujeito-ator-autor tornou legítimas as experiências vividas de professores, por
meio de suas narrativas, memórias e histórias de vida como fonte de produção de
conhecimento. Essas autoras auxiliaram a compreensão sobre a abordagem
(auto)biográfica e o método biográfico, assim como as questões que envolvem a
experiência como forma de conhecimento, em particular na percepção da interface
individual e social, reconhecendo o sujeito como ser singular e plural.
Verifiquei a constante busca pelo conhecimento na curiosidade e
no interesse que movimentaram as observações e pesquisas desenvolvidas pela
professora, ressaltando e confirmando as sete categorias elaboradas por Shulman, assim como o terceiro gênero apontado por Nóvoa, como apropriação de uma experiência refletida.
Conectando teoria e prática, Leda aproximou diversas áreas de conhecimento e
constituiu-se professora de música formadora de pedagogas. Nesse sentido, as
narrativas de experiências vividas da professora Leda corroboram a discussão e
a pertinência sobre a formação musical de futuras professoras que trabalharão
na Educação Básica, sobretudo, neste artigo, as que atendem à modalidade de
Educação Infantil.
Ao mesmo tempo, despertar a musicalidade dessas estudantes é
possibilitar uma formação global, no sentido profissional e humano, e,
consequentemente, proporcionar mais segurança em seus momentos de atividades
com as crianças. Isso pode ser verificado em suas narrativas, nos modos como a
professora preparava e articulava suas aulas e nas maneiras como auxiliava as
elaborações de planos de aulas com as licenciandas.
Para mim, Leda tem uma visão humana e intelectual de ensino, despertando nas
estudantes as emoções e os sentimentos que a música proporciona, para além dos
conhecimentos técnicos.
As mudanças e transformações foram acompanhadas pelo significado
de ser professora de música, formadora de pedagogas. Valorizar a música e
transmitir esse valor para suas estudantes eram formas de chegar até as
crianças na Educação Básica. Por isso, encorajá-las a despertar suas
musicalidades era prioridade, tendo como guia o desejo de “contribuir […] para
a construção do ser humano na sua totalidade” (MAFFIOLETTI, 1996, p.7-8).
Ademais, observei que, oferecendo as disciplinas eletivas de
música antes de a disciplina de Educação Musical passar a ser obrigatória, em
2007, Leda estava à frente de seu tempo. Talvez, na tentativa de reorganizar a
estrutura do ensino, busca incluir a música como disciplina específica, sabendo
da importância dessa para a formação das estudantes, já que no período vigorava
a Lei n.º 5692 do ano de 1971, a qual tinha como característica a formação
polivalente. Portanto, mais uma vez, reitero que legitimar o conhecimento
empírico de profissionais da Educação Musical e de outras áreas é contribuir
para os aspectos educacionais, políticos, sociais e culturais do próprio
sujeito e da sociedade.
Dessa forma, apreendi os sentidos dados pela professora, como
sujeito epistêmico e biográfico, no movimento de tríplice mimese, entre a
narrativa e o tempo, no qual Ricoeur (1994) relata a observação, interpretação e
compreensão da narrativa que constitui a identidade. Essas são questões
fundamentais para chegar ao conhecimento de si e do mundo, segundo o autor. É
nesse sentido que, ao narrar parte de sua história, Leda possibilita a
legitimidade e o potencial epistemopolítico almejado
pela pesquisa (auto)biográfica.
REFERÊNCIAS
ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. A aventura do diálogo
(auto)biográfico: narrativa de si/narrativa do outro como construção epistemo-empírica. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto;
CUNHA, Jorge Luiz da; BÔAS, Lúcia Villas (org.). Pesquisa (auto)biográfica:
diálogos epistêmico-metodológicos. Curitiba: CRV, 2018. p. 25-49.
ABREU, Delmary Vasconcelos de. A
história de vida aguçada pelos biografemas: um recorte
da história de Jusamara Souza com o campo da educação
musical. Revista da Abem, v. 27, n. 43, p. 150-167,
jul./dez. 2019.
BELLOCHIO, Cláudia. A educação musical nas
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Acesso em: Fev. 2022.
Notas
3 Dissertação de
mestrado intitulada “Leda Maffioletti: música na
infância e na formação de pedagogas” (PEDROLLO,
2022), com apoio de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil CAPES – Código de Financiamento 001.
4 Optei pelo genérico
feminino para me referir a ambos os gêneros por considerar que a maioria dessas
profissionais e estudantes é mulher. Da mesma forma, essa escolha se estende às
autoras e pesquisadoras, que compuseram, em ampla maioria, as referências
teóricas desta pesquisa. Entretanto, manterei o gênero masculino para os demais
sujeitos citados(as) no decorrer do texto.
5 Sobre detalhes do
“giro linguístico”, vide Rojas (2001).
6 Conforme Projeto
Pedagógico de Curso Licenciatura em Pedagogia (2019). Disponível em:
https://www.ufrgs.br/pedagogia/wp-content/uploads/2019/03/PPC__Curso_PEDAGOGIA_FACED_2018_VERSAO-2019-1.pdf.
Acesso em: Jun. 2022.
7 Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/comissoes-cns/conep/
8 Editor de filmes que
o usuário pode criar, editar seus filmes no computador. Disponível em:
https://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/windows-movie-maker.html. Acesso em: Fev. 2022
9 SERAFINE, Mary
Louise. Cognitive processes in music:
discoveries vs definitions. Bulletin of council for research in music education, n. 73, p. 1-14, 1983.
10 MAFFIOLETTI, Leda.
Formação de professores na licenciatura: processos narrativos na/da apre-ciação musical. In: ROCHA, Simone Albuquerque da
(org.). Formação Professores: licenciaturas em discussão. Cuiabá: EdUFMT, 2010. p. 43-54.
Autor notes
1 Professora
de música na Educação Infantil e doutoranda em Música – Educação Musical
(PPGMUS/ UDESC) com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES), Código de Financiamento 001. Licenciada e mestra em
Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e licenciada em
Pedagogia pela Universidade Paranaense (UNIPAR). Integrante do grupo de
Pesquisa “Educação Musical e Formação Docente” (ForMusi/UDESC/CNPq).
2
Licenciada em Música, mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Atuou como orientadora dos estágios de Docência em Educação
Infantil e professora de Educação Musical no curso de Licenciatura em Pedagogia
da Faculdade de Educação da UFRGS. Dedica-se à pesquisa nas áreas de Educação
Infantil e Formação de Professores. Atualmente é uma das coordenadoras do GT da
ABEM Pesquisa (auto)biográfica e Educação Musical