Dossiê
Sonata para flauta e piano de Lowell Liebermann: sugestões para
a performance do flautista e análise musical em interlocução com o compositor
Lowell Liebermann’s Sonata for flute and piano: performance and
musical analysis in dialogue with the composer
Lucas Martins Pedro 1 lucasmartinsflauta@gmail.com
Zürcher Hochschule der Künste , Suiza
Adriana Lopes Moreira 2
adrianalopes@usp.br
Universidade de São Paulo, Brasil
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina,
Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Contínua
vol. 7, núm. 2, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 19 Agosto 2022
Aprovação: 18 Novembro 2022
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional
Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: Circunscrito
ao campo da pesquisa artística, este artigo volta-se à relação entre a análise
e a performance musical da Sonata para flauta e piano
Op. 23 de Lowell Liebermann. Estabelece uma interlocução com o
compositor por meio de remissões a uma recente entrevista. Através de recursos
em análise musical e da experiência dos autores em performance musical,
apresenta aspectos composicionais da obra, sugestões de interpretação e
estratégias de performance.
Palavras-chave: Flauta transversal,
Performance musical, Análise musical, Forma sonata, Lowell Liebermann.
Abstract: This
article is restricted to the field of artistic research and focuses on the
relationship between analysis and musical performance of Lowell Liebermann’s
Sonata for flute and piano Op. 23. Establishes a dialogue with the composer
through references to a recent interview. Through resources in musical analysis
and the authors’ experience in musical performance, it presents compositional
aspects of the work, interpretation suggestions and performance strategies.
Keywords: Transverse flute, Musical
performance, Musical analysis, Sonata form, Lowell Liebermann.
Introdução
O compositor estadunidense Lowell Liebermann nasceu em 22 de
fevereiro de 1961, em Nova York (Estados Unidos), e é considerado um dos mais
importantes compositores daquele país. Após iniciar seus estudos musicais ao
piano, Liebermann cursou Bacharelado, Mestrado e Doutorado em Composição na
Juilliard School of Music. Segundo consta no site do compositor (LOWELL LIEBERMANN, [s. d.]),
sua produção inclui desde obras solo, como os Noturnos para
piano e Soliloquy, para flauta transversal,
passando por obras de câmara, como as Sonatas, Trio-sonatas
. Quintetos de cordas, até as obras orquestrais, incluindo uma ópera.
Recentemente, foi indicado para o prêmio Grammy. Atualmente, integra o quadro
de professores da Mannes School of Music, onde fundou a Mannes American
Composers Ensemble (MACE), e mantém um vínculo com a empresa Steinway and Sons.
Este artigo origina-se da relação entre duas práticas,
performance e análise musical, sendo acrescido de menções a uma entrevista
semiestruturada3 com o compositor e circunscrevendo-se
no campo da pesquisa artística.
A pesquisa artística é, por definição, o processo de produção de
conhecimento a partir da experiência prática. É possível delimitar quatro
objetos de estudo principais dentro do campo da pesquisa artística (LÓPEZ-CANO, 2015, p.74): práticas
interpretativas, processos criativos, exercício profissional e práticas
pessoais. O objeto de uma pesquisa focada em processos criativos culminará na
execução da obra proposta, que prevê, por exemplo, a exposição das conduções
motívica, contrapontística, harmônica, rítmica, dinâmica, textural e
timbrística; a escolha de notas, acordes e regiões mais estruturais, em
contrapartida aos multiníveis mais ornamentais; a escolha de guias de
memorização e de andamentos; entre outros aspectos inerentes ao intérprete,
que, combinados, resultam na performance integral da peça.
Buscaremos apresentar, portanto, alguns processos criativos em
análise musical de forma inteligível e palpável ao leitor, em interlocução com
os processos envolvidos na criação da performance da Sonata
para flauta e piano Op. 23, de Lowell Liebermann.
Análise musical da Sonata
para flauta e piano Op. 23, de Lowell Liebermann
Conforme consta na capa da partitura, a Sonata
para flauta e piano Op. 23 foi composta em agosto de 1987, tendo sido
comissionada pelo Spoleto Festival Chamber Music Series4
e dedicada à flautista, também norte-americana, Paula Robinson e ao pianista
Jean-Yves Thibauldet. Trata-se de uma obra representativa de suas estratégias
composicionais, “que englobam tonalidade, expressão romântica, cores
impressionistas e uma abordagem neoclassicizante” (GARNER, 1999, p.2).
Esta Sonata apresenta algumas diferenciações em relação à Sonata
do período Clássico e à Forma Sonata5. A primeira
delas é a organização em apenas dois movimentos, o primeiro lento con rubato, e o segundo, presto energico. O
compositor não se vale das relações de tônica-subdominante-dominante entre as
seções, como apresentado na Fig. 1, especialmente no primeiro movimento, como
será visto abaixo, mas também no segundo movimento. Em contrapartida, recorre
especialmente às relações de mediantes entre as tonalidades e centralidades. É
perceptível também a exploração de três características muito comuns à música
do século XX: a politonalidade, o uso de métrica mista e as escalas hexatônica
e octatônica.
Primeiro movimento
O primeiro movimento da obra, lento con
rubato, é composto por 102 compassos e pode ser dividido conforme
apresentado na Fig. 1.
Fig. 1
Elaboração
própria.
A partir da observação da divisão estrutural, proposta na Fig. 1, é perceptível que o primeiro movimento apresenta uma
exposição bastante extensa (47 compassos), sendo finalizada com a grande pausa
do compasso 48, centro estrutural do movimento, que polariza a atenção para si
por meio do silêncio. Sobre este compasso, na entrevista que realizamos com o
compositor, Liebermann afirmou: “[…] essa pausa marca o meio da obra e deve ser
uma pausa longa e desconfortável, o público deve começar a se perguntar o que
está acontecendo neste momento” (LIEBERMANN
in PEDRO, 2020, p.32).6
Após a grande pausa, seguem-se um curto desenvolvimento, que retoma
todos os materiais apresentados na exposição de forma retrógrada, uma
recapitulação quase literal dos dezesseis primeiros compassos e uma curtíssima
coda.
A ambiguidade na definição das tríades apresenta-se nesta obra
como um fator estilístico fundamental. Decorrente da combinação de diferentes
escalas, esse obscurecimento harmônico é classificado pelo compositor como
“definitivamente politonal. Às vezes atonal, às vezes quase atonal” (LIEBERMANN in PEDRO, 2020, p.31). Ao longo
desta Sonata, há combinações da escala aumentada (que alterna intervalos de
segunda menor e terça menor)7 com diversas
formas de escalas diatônicas (a escala maior, as escalas menores e os modos
lídio e frígio).
No segundo compasso da peça (Fig. 2), pode-se ver como as
combinações de materiais se expressam na prática. Aqui, tem-se uma harmonia
baseada nas notas Ré#, Mi#, Fá#, Sol, Lá# e Si. Essa combinação pode gerar as
tríades de Ré# menor (que vem escrita), mas também soam as tríades de Ré# maior
e Ré# aumentado:
Geralmente é uma textura maior e menor ao
mesmo tempo. É algo que eu uso para cores sonoras e cores harmônicas, […]. E
também não penso em termos de progressões de acordes padrão. Geralmente, a harmonia
é mais um aspecto de cor para mim do que de função. (Lowell Lieberman. In: PEDRO, 2020, p. 31).
Em boa parte do tempo, essas alterações caminham junto com o
ritmo harmônico.
Fig. 2
Theodore
Presser Company (1988a, p.2).
A Tab. 1 elenca as escalas numeradas na Fig. 2 e destaca as centralidades em Ré#, Mi, Ré, Réb, Ré,
lembrando uma cambiata. A esse respeito, Lowell
Liebermann (in PEDRO,
2010, p.31) declara: “uso centros tonais de maneira temática”.
Tab. 1
Elaboração
própria.
Nesse trecho inicial, é apresentado o primeiro tema, doravante
Tema A (comp. 2-9, Fig. 2). O tema A possui claro centro Ré# (por repetição) e
é composto por oito compassos, divididos em duas semifrases de quatro compassos
cada. Para compor a linha melódica, o compositor utiliza os modos lídio e
frígio, além de manipular os modos maior e menor, relativos ao centro
mencionado. A dinâmica e a expressão, textualmente indicadas (pp, dolcissimo possible), e a textura rarefeita
contribuem para a construção de uma ambientação de suspensão ou hesitação. Além
disso, a frase longa, em um andamento muito lento (semínima = 40 batidas por
minuto), se apresenta como uma grande dificuldade ao instrumentista, que
precisa executá-la com grande controle da emissão de ar. Como o compositor
sugere, é preciso grande carisma e concentração para que a linha freaseológica
seja executada de maneira a cativar o ouvinte; caso contrário, Liebermann
afirma preferir que o movimento seja executado levemente mais rápido:
Eu acho que, para tocar no andamento indicado,
deve-se ter um controle extraordinário da respiração e, mais ainda, ter extrema
concentração e carisma para executar a passagem de maneira satisfatória, caso
contrário, o trecho pode parecer um pouco tedioso ou muito lento. Então, para
mim, as indicações de metrônomo são mais indicações do humor desejado do que
uma indicação absolutamente inflexível. Mais uma vez, é algo no qual me tornei
mais específico mais tardiamente. Se eu quero que uma especificação seja
seguida exatamente, escrevo semínima igual a algum andamento. Quando alguém
pode ter alguma liberdade, escrevo “ca.” (aproximadamente) antes da marcação
metronômica. A outra coisa importante é que eu sempre espero que minha música
seja tocada com uma certa quantidade de rubato, então não é metronômica, você
deve seguir a frase. Mas, tendo dito tudo isso, quando eu toco a peça com um
flautista, geralmente ela é muito lenta, porque é o que tenho em mente. Eu ouvi
alguns flautistas que não têm o controle da respiração ou a intensidade para
sustentar as frases e, nesse caso, eu preferiria que eles tocassem um pouco
mais rápido. Mas, o flautista ainda deve seguir a sugestão da semínima igual a
40, que deve ser extremamente lenta e suspensa; portanto, se alguém tocar com a
semínima igual a 60 está errado, e ouvi pessoas tocando tão rápido e isso não
faz sentido algum para mim. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.30).
Aqui propomos que o intérprete comece seu estudo a 60 batidas por
minuto e gradualmente, durante o passar dos dias de estudo, reduza o andamento
até 40 batidas por minuto, a fim de executar os quatro compassos de cada
semifrase em uma única respiração, atentando-se às dinâmicas e às indicações
escritas. Uma segunda alternativa é a respiração a cada dois compassos do tema,
por exemplo, nos compassos 3 (após o Ré#) e 5 (na pausa de semínima).
Desde o princípio do movimento, Liebermann estabelece uma camada
textural ao piano em forma de ostinato (comp. 1-5, 10-16, Fig. 2
e 3), utilizando a tríade aumentada de Ré# (com
enarmonização na nota Fáx, escrita como Sol). Na escuta ampla da passagem
(comp. 1-16), as escalas formadas sobre Mi, Ré e Réb obscurecem, por vezes, o
centro Ré#. A opção por ostinatos é recorrente no trabalho do compositor, como
o próprio afirma: “Gosto de ostinatos, uso-os com frequência e não sei
realmente se há mais alguma razão a dizer. É apenas parte do meu estilo” (LIEBERMANN in PEDRO,
2010, p.33).
O ostinato forma a camada intermediária de uma textura composta
por três monodias. A camada superior corresponde a uma linha melódica de
caráter lírico, executada pela flauta (cuja construção é discutida a seguir),
e, a partir do compasso 10 (Fig. 3), uma terceira camada é
apresentada pela linha do baixo oitavada.
A inserção da terceira camada na região grave do piano (comp.
10-16, Fig. 3) promove uma ambientação auditiva mais
misteriosa. Há também uma alteração na segunda camada, que é transposta uma
oitava abaixo, reforçando a distância entre as texturas de melodia e de
acompanhamento. Quanto à voz principal, Liebermann utiliza nesse conjunto de
compassos o que Douglas Green (1965, p.48)
chamou de frase diferente, porém similar à primeira, pois são preservados
muitos elementos da primeira frase, como o contorno melódico na camada da
flauta e algumas sucessões harmônicas, mas o objetivo harmônico desta frase é
outro. Aqui, ele amplia ainda mais a angulosidade da melodia, levando a flauta
até o Sib da terceira oitava do instrumento. Sugere-se a utilização de posições
alternativas tanto para o Lá (uso da chave do Dó# grave) quanto para o Sib da
terceira oitava (adicionar o uso da primeira chave de trinado, além dos
anelares das duas mãos), além de uma velocidade de ar maior, combinada com a
diminuição do orifício da embocadura, para que se obtenha um timbre mais
delicado, como solicitado na partitura. Por angulosidade, entende-se os amplos
intervalos utilizados horizontalmente, e a constante mudança de direção,
verticalmente.
Fig. 3
Theodore
Presser Company (1988a, p.2).
Na segunda seção (comp. 17-30, Fig. 4), que
começa com uma nova indicação de andamento (un poco piu
mosso), é apresentado, pelo piano, o Tema B (comp. 21-28), que será
retomado e expandido pela flauta a partir do compasso 21, com uma nova
indicação de andamento (movendo). Durante os quatro
primeiros compassos, é difícil que se estabeleça um campo tonal claro, devido
ao grande uso de cromatismos. Entretanto, pode-se sugerir o centro Sol, que é
reafirmado a partir do compasso 21, com a textura arpejada apresentada pelo
piano, novamente amparando-se na ambiguidade entre os modos maior e menor, com
uso predominante do modo lídio. O Tema B estabelece, com o Tema A, uma relação
de mediante por enarmonia. Mais adiante, observaremos que a relação mediante é
um dos recursos explorados nesta obra.
O Tema B é apresentado com uma textura clara e transparente,
composta por duas camadas principais (melodia e arpejos do piano) e uma
terceira, mais espaçada, de notas longas com o uso de pedal indicado pelo
compositor. As próprias indicações do compositor (molto tranquilo, limpido e
ppp) reforçam a ideia da textura transparente e ambientação mais calma.
Uma pequena transição (comp. 28-30) traz, na mão esquerda do
pianista, uma figuração caracterizada pela síncopa, o retorno do intervalo de
segunda menor e a voz do baixo reforçando o centro Sol. Concomitantemente, a
mão direita executa um movimento melódico com paralelismos na construção
harmônica e também com a diminuição da célula indicada (Fig. 4,
sob os círculos).
Fig. 4
Theodore
Presser Company (1988a, p.3).
Após um ritardando, introduz-se
abruptamente a terceira seção (comp. 30-35, Fig. 5), que tem textura mais
áspera que a seção precedente, com três vozes acontecendo simultaneamente (duas
de melodia e uma de acompanhamento), tocadas sob a indicação de dinâmica ff, e com a ocorrência de inúmeras indicações de acentos,
como marcatto, tenuto e martelato. Outro aspecto
relevante dessa passagem é a variedade rítmica, valendo-se desde semínimas até
fusas e passando por quiálteras compostas de três, cinco, seis e sete notas.
Pode-se destacar, no compasso 32, a presença de escalas octatônicas na voz
executada pela flauta, justapondo tétrades diminutas para compor o movimento
melódico:
Eu sempre gostei de escalas octatônicas e
sempre as usei até certo ponto. Eu também acho que elas pertencem ao mundo
sonoro desta peça e à ênfase nas terças, você sabe, nas terças maiores/menores,
nas terças entrelaçadas, tudo se encaixa nas escalas octatônicas. Então, eu
acho que isso faz parte do meu mundo sonoro […]. (LIEBERMANN in
PEDRO, 2010, p.34-35)
Logo no início da terceira seção, o compositor insere um novo
padrão rítmico na voz executada pela mão esquerda do pianista, com uma colcheia
seguida de quatro fusas (comp. 30-32, Fig. 5). No compasso
seguinte, ele utiliza o mesmo ritmo, com uma colcheia seguida de seis fusas,
utilizando uma forma espelhada: enquanto uma voz faz esse ritmo ascendente, a
outra voz faz o mesmo ritmo, porém de forma descendente.
A partir do compasso 33, o compositor explora a ambiguidade
entre Ré# menor e Ré menor para a construção da camada homofônica no piano e
monofônica na flauta. Nesse contexto textural composto, o compositor se vale do
paralelismo (evidente nas figuras compostas por colcheias pontuadas, seguidas
de uma semicolcheia) e da simetria (no espelhamento entre a voz executada pela
mão direita do pianista, que se movimenta de baixo para cima, e a voz executada
pela mão esquerda do pianista, que executa as figurações de cima para baixo).
Fica claro que, no compasso 30, a intenção do compositor era
submeter o ouvinte à grande surpresa, ao fazer tais mudanças, tão drásticas, em
intensidade, ritmo, textura e densidade. Essas mudanças impõem aos executantes
grande dificuldade técnica, seja pela complexidade rítmica, seja pelo alto
número de acidentes e acentos recorrentes, além de ser especialmente difícil,
para a flauta, o controle da afinação, na dinâmica e registros indicados pelo
compositor.
Observamos que, para uma boa execução técnica, este trecho
requer um estudo muito lento e também uma atenção especial durante os ensaios
com o pianista para a perfeita sincronia entre as vozes. Por fim, sugere-se o
estudo destes compassos de trás para frente, a fim de condicionar a coordenação
motora das mãos, em concomitância com a embocadura e com a língua.
Fig. 5
Theodore
Presser Company (1988a, p.4-5).
Na quarta seção (comp. 36-47, Fig. 6), o
compositor volta a utilizar o ostinato como forma de acompanhamento, na mão
esquerda do pianista, enquanto apresenta, na mão direita, o tema de fechamento
da exposição (que será desenvolvido, apenas posteriormente, pela flauta),
composto especialmente pela figuração de colcheia pontuada, seguida de grupo de
quatro semifusas. É importante ressaltar esse aspecto, pois, no trecho de
transição entre exposição e desenvolvimento (comp. 42-47), o compositor
manipula este material, aumentando-o, para construir o acompanhamento da
transição, que é finalizada com um compasso de grande pausa (comp. 48).
No que se refere a centralidades, a quarta seção pode ser
dividida em duas partes (Fig. 6). Na primeira parte (comp.
36-41), tanto o tema quanto as pequenas interjeições realizadas pela flauta circundam
a região tonal expandida de Si, explorando, como em outras seções, a
politonalidade. Já na segunda parte (comp. 42-47), a textura volta à
intensidade ppp no piano, e a flauta, que agora possui uma curta linha
melódica, volta ao pp. Esta segunda parte é
apresentada na região de Fá, explorando o uso do trítono, como ocorrerá em
outras regiões da obra. Aqui a progressão harmônica se dá por uma região de
dominantes, finalizando a seção em um poliacorde que combina os acordes de Ré
maior e menor.
Fig. 6
Theodore
Presser Company (1988a, p.5-6).
Por fim, pontua-se que o compositor, na entrevista concedida,
afirma que a grande pausa (comp. 48) deve ser executada com a duração de um
compasso completo (segundo Liebermann, por vezes, intérpretes a ignoram) e que
ela foi pensada neste compasso tanto para funcionar como divisão estrutural
entre exposição e desenvolvimento como para provocar uma sensação de dúvida aos
ouvintes: “essa grande pausa deve ser mantida por toda a duração do compasso,
porque muitos flautistas simplesmente ignoram e fazem uma breve pausa, mas há
uma razão pela qual eu escrevi isso” (LIEBERMANN
in PEDRO, 2020, p.30).
O desenvolvimento (comp. 49 a 80) começa com a flauta retomando
o tema apresentado pelo piano no compasso 47, a partir do qual o compositor
expande os materiais melódicos. O tema continua na região tonal
predominantemente de Si menor, sendo desenvolvido até atingir o clímax do
movimento, no compasso 56.
No início do desenvolvimento, as indicações “p”, “esitante”, “poco a poco più f” e “ritmico”
(Fig. 7) se relacionam especialmente com a parte do piano,
cujo acompanhamento se torna visivelmente mais rítmico, e gradualmente, ao
sofrer seguidas diminuições em conjunto com o crescendo indicado (tanto para o
piano quanto para flauta), colabora para o acréscimo de tensão, que vai
culminar no supracitado clímax.
Fig. 7
Theodore
Presser Company (1988a, p.6)
Um trecho de difícil execução pelo flautista é o que apresenta
duas estruturas rítmicas com quiálteras de sete e dez notas (comp. 52-53, Fig. 8). No trecho com quiálteras, sugere-se o apoio melódico
nas três primeiras notas de cada grupo, tendo em vista que o tempo despendido
enfatizando estas notas permite a organização mental e a coordenação entre os
dedos, para que a passagem seja executada de forma mais clara. Julga-se também
possível a tomada e retomada do andamento, ou seja, a realização de pequenos rubatos,
que também auxiliam na execução e na sincronia entre flauta e piano.
Fig. 8
Theodore
Presser Company (1988b, p.6).
Chega-se, pois, ao clímax do 1º movimento, no compasso 56 (Fig.
9). Aqui, o compositor continua com centro Si (com alternância entre Si maior e
menor) e promove um forte adensamento da textura, sobrepondo três camadas que
dividem o protagonismo. A primeira camada é executada pela flauta, onde há a
variação de um material apresentado pelo piano ao final da terceira seção
(comp. 33-35). A segunda camada é formada por um ostinato com figuras rítmicas
de valor reduzido (semicolcheias e fusas). E a terceira camada, executada pela
mão esquerda do pianista, varia também um material utilizado na terceira seção
(nos comp. 30-31, oitavas na mão direita do músico), como podemos observar na
Fig. 9.
Sugere-se, neste trecho, que o flautista despenda maior atenção
à afinação, para que, seguindo a indicação do compositor (ff
e o vasto uso do terceiro registro do instrumento), o resultado sonoro,
em conjunto com o piano, seja o adequado ao ouvinte. Como experiência pessoal,
o uso de dedilhados alternativos demonstrou-se efetivo.
Rapidamente, a partir dos compassos 58 e 59 (Fig. 9), há uma
diminuição na atividade musical, seja em textura, seja em volume sonoro, e o
clímax se dissipa, dando início a uma nova seção a partir do compasso 60.
Fig. 9
Theodore
Presser Company (1988a, p.7).
A passagem compreendida entre os compassos 60 e 79, como
indicado pelo compositor (no comp. 60, Fig. 9), é
construída com extrema delicadeza, em ppp, delicato.
É iniciada com uma textura em arpejos executados pelo piano, novamente
explorando a centralidade em Si, com o recorrente uso da politonalidade e da
ambiguidade entre modos. A flauta retorna no compasso 62, com variações por
aumentação do tema B.
Após uma pequena cadência, no compasso 68, a centralidade em Sol
é retomada, mantendo as relações mediantes que permeiam todo o movimento. Logo
em seguida, o compositor faz a sobreposição de materiais previamente
utilizados, formando uma textura composta (Fig. 10, camadas
1, 3 e 4), com a adição de um ostinato, com a figuração de quiáltera de seis
semicolcheias por grupo (Fig. 10, camada 2).
Fig. 10
Theodore
Presser Company (1988a, p.10)
Por fim, ressalta-se a citação de dois trechos do terceiro ato
da ópera Die Walküre de Richard Wagner,
respectivamente, em remissão ao momento de despedida de Wotan e à circunscrição
Brünnhilde no anel de fogo mágico (Fig. 11). O primeiro
inspirou a construção do Tema A de Liebermann e aparece subposto ao segundo na
retransição que antecede a recapitulação (Fig. 12).
Fig. 11
Dover
Publications, 1978, p. 656, 682. Cf. Garner
(1997, p.39).
Fig. 12
Theodore
Presser Company (1988a, p. 2, 11).
Sobre a retransição, o autor afirma:
Bem, a citação de Wagner foi muito deliberada,
e teve a ver com um período específico da minha vida, e não há um significado
programático extra para essas citações, além de significarem algo pessoalmente
para mim, musicalmente. Mas também é citado porque, às vezes, eu fazia isso,
como uma espécie de trocadilho musical com os intervalos com os quais estava
trabalhando na peça. Então, essa é a única razão pela qual isso é citado. Eu
não diria que Wagner foi uma grande influência para mim, musicalmente, embora
tenha sido um período muito importante da minha vida, durante minha estadia no
Festival de Bayreuth, com a neta de Wagner. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.28).
A partir do compasso 80, a obra entra na fase de recapitulação, iniciada
pela reexposição quase exata dos dezesseis primeiros compassos do movimento. As
exceções decorrem das indicações de tempo, intensidade e timbre, bem como da
adequação harmônica à centralidade em Sol (comparar comp. 9-10 e 88-89, Fig. 13) e de uma nova figuração em fusas presentes na mão
esquerda do pianista (comparar comp. 10-12 e 89-91, Fig. 13).
Fig. 13
Theodore
Presser Company (1988a, p. 2, 12).
Após um compasso de transição, com um grande diminuendo (onde o compositor novamente explora as
relações de terça maior e menor, entre as notas Sol-Si e Sol-Sib), uma pequena
coda bipartida encerra o movimento (comp. 97-102, Fig. 14).
Fig. 14
Theodore
Presser Company (1988a, p.6, 12).
Nos três primeiros compassos da coda, Liebermann retoma o
material que abre o desenvolvimento, transposto por um intervalo de terça maior
abaixo do original. Contudo, se no desenvolvimento esse material adicionou
energia ao movimento, no novo contexto, o grande diminuendo, até não haver mais
som, combinado a um ritenuto e à finalização em uma
pausa de colcheia longa, revela seu inusitado potencial recessivo.
Na segunda parte da coda (comp. 100-102), o compositor escreve
uma escala aumentada, de execução livre pelo flautista, como indicado (lento, a piacere). Sugere-se aqui que o instrumentista
realize uma respiração lenta e profunda, obtendo e armazenando a maior
quantidade possível de ar, tendo em vista que o último compasso do primeiro
movimento, além de desacelerar bruscamente (rit. molto),
possui uma fermata. Sugere-se também que o ataque da nota Sol do compasso 101
seja o mais delicado possível, possivelmente com a língua entre os lábios, além
de utilizar, para a digitação, o dedo mínimo da mão direita na chave de Dó
sustenido em vez da chave de Ré sustenido. Essa alternativa permite que a nota
seja executada com um volume sonoro menor, mas ajuda a manter seu brilho
sonoro.
Os últimos dois compassos possuem uma textura esparsa e uma
tessitura muito expandida. Neles, Liebermann utiliza apenas as quatro notas
presentes no ostinato inicial (Ré#, Sol, Lá# e Si), seja verticalmente ou
horizontalmente, e reforça o término da obra dentro do centro que a iniciou.
Segundo movimento
Pode-se afirmar que o impacto que o segundo movimento causa ao
ouvinte é um dos grandes responsáveis pelo grande sucesso da sonata Op. 23 entre os flautistas. Aqui, Liebermann escreve um
Rondó extremamente enérgico (Presto enérgico), onde
flauta e piano duelam pelo protagonismo, ambos com figurações rítmicas
vigorosas (especialmente quiálteras de três semicolcheias, que permeiam todo o
movimento) e com indiscutível virtuosismo requerido. O compositor afirma que
pianista e flautista devem ser parceiros iguais e que não gosta de pianistas
que tocam como acompanhantes:
Eu deliberadamente quis escrever uma peça que
seria extremamente forte, onde o flautista seria igual ao pianista e onde o
pianista seria também um parceiro, e não apenas um acompanhante, o que
geralmente acontece em peças de flauta. Eu realmente fui entender como a flauta
foi estereotipada, e é assim que, penso, a peça decolou do jeito que aconteceu.
É claro que havia peças antes que faziam a mesma coisa, por exemplo, a sonata
de Prokofiev. […], toda a tensão do segundo movimento depende do virtuosismo
instrumental entre os dois músicos e sua dificuldade. (LIEBERMANN in
PEDRO, 2010, p.28).
O segundo movimento da sonata Op. 23,
Presto energico, é composto por 175 compassos e pode ser dividido
conforme apresentado na Fig. 15, onde as seções A, B, C e
coda são as partes estruturais que compõem o Rondó:
Sim, acho que se poderia dizer que é um Rondó.
Bem, provavelmente veio do meu amor por Haydn, que costuma usar as formas
Rondó. Novamente, acho que nunca me sentei e disse: “Vou compor um Rondó
agora”. Eu costumo rascunhar e escrever os materiais sem ter ideia de qual será
a forma. E, quando eu tenho uma boa percepção de quais são os materiais e como
eles querem se desenvolver, aí, sim, eu tomo a decisão. Depois que eu escrevi o
primeiro material, a forma Rondó parecia se encaixar naturalmente com o
material. Eu sabia que queria que fosse um moto perpetuo, mas a forma me
parecia um caminho natural a seguir. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.33).
Fig. 15
Os autores.
Antes de prosseguir com a análise, é importante ressaltar que, a
cada vez que cada seção do Rondó é reapresentada, há pequenas variações intrínsecas,
mas que não descaracterizam ou alteram relevantemente o trecho apresentado
originalmente. Ao ser questionado sobre as variações, sendo apontado na
entrevista que essas alterações dificultam o processo de memorização do Rondó,
Liebermann afirma: “As pequenas mudanças foram feitas para variar o tema
principal, para mantê-lo interessante e, suponho, para que o flautista fique
infeliz [os dois riram]” (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.34).
A seção A é inicialmente apresentada com centralidade em Mib,
explorando vastamente o intervalo de terça menor (Mib-Solb) e continuando a
explorar a politonalidade descrita na análise do primeiro movimento (Fig. 16). Há uma alternância constante das classes de alturas
Si e Sib,9 e a métrica mista da seção mantém a
semicolcheia como unidade rítmica.
Fig. 16
Theodore
Presser Company (1988a, p.13)
Ao final da seção A (comp. 20-21, Fig. 17),
alterações no agrupamento das notas formam uma hemíola, deslocando assim a
acentuação dos tempos dentro do compasso e inserindo mais um grau de
complexidade rítmica.
Fig. 17
Theodore
Presser Company (1988a, p.14)
Como pode-se observar, desde o início, tanto do ponto de vista
do flautista quanto do pianista, este é um movimento extremamente
virtuosístico. Sugerimos aqui, bem como para todo o Rondó, iniciar o estudo
muito lentamente, com o auxílio de um metrônomo, primeiramente com a marcação
temporal em semicolcheias (p.ex., 160 batidas por minuto), aumentando o
andamento gradual e diariamente até atingir uma agilidade considerável (p.ex.,
252 batidas por minuto). Quando for atingida a marcação temporal em colcheias
indicada ao início da obra, sugerimos um novo aumento gradual de andamento, com
o intuito de assegurar um controle técnico-mecânico absoluto na marcação de
tempo indicada. De maneira geral, sugerimos ao flautista o uso da posição 2
durante todo o movimento, conforme apresentada na Tab. 2,
para a execução da altura Sib do segundo registro do instrumento, utilizando-se
a chave do polegar com um grau maior de conforto. Entretanto observa-se que o
compasso 4 (e todas suas repetições adiante) apresenta um nível de dificuldade
acentuado devido à proximidade entre as alturas Si e Sib no compasso, já que a
velocidade do movimento dificulta a alternância do polegar esquerdo entre a
chave de Si e Sib.
Tab. 2
Charette ([s. d.]), adaptado pelos autores.
Ao longo da seção A, a harmonia gravita em torno do centro Sol,
evidenciando novamente a relação por terças. Contudo, a centralidade retorna
muito rapidamente para a região de Mib e segue dessa maneira até o início da
seção B (comp. 23, Fig. 18).
A seção B (comp. 23-56, Fig. 18) é
caracterizada pelo centro em Dó, pela mudança de caráter na linha melódica da
flauta e pela alternância constante entre o uso das terças maiores e menores
(Mi e Mib, respectivamente): “No segundo tema, a parte da flauta é construída
sobre a progressão harmônica da primeira parte do movimento. Ele acompanha os
centros que você atinge na primeira parte do movimento” (LIEBERMANN in PEDRO,
2010, p.33).
Fig. 18
Theodore
Presser Company (1988a, p.14)
Sob um caráter mais lírico, a linha melódica da flauta combina
duas tríades aumentadas justapostas horizontalmente (comp. 25-32, Fig. 19). O piano mantém o vigor rítmico para que não se perca
a ideia do supracitado moto perpetuo e mantém a
estabilidade métrica (predominantemente binária e tendo a mínima como unidade
de tempo).
Fig. 19
Theodore
Presser Company (1988b, p.5), alterada
pelos autores.
Como sugestão de interpretação da seção B pelo flautista,
aconselha-se o uso de um vibrato mais intenso e mais amplo, aproveitando-se do
maior lirismo do presente trecho. Entre os compassos 27 e 44, há quatro
possíveis pontos de apoio em perceptíveis resoluções de semifrases (comp. 27,
31, 35 e 39). A linha melódica construída a partir do uso dos intervalos de
segunda menor é finalizada pela apogiatura Lá-Láb (comp. 41), que estabelece o
clímax do longo período. A partir do compasso 41, sugere-se uma rápida retração
na dinâmica, para uma posterior retomada do tema na dinâmica mf a partir do compasso 45.
Uma reiteração da estrutura acima descrita conduz à seção A1
(comp. 61-80), com o tema transposto e gravitando ao redor do centro Si.
Na seção C (comp. 81-101, Fig. 20), o
protagonismo está focado no piano. O flautista deve perceber que suas inserções
devem ser ouvidas como pano de fundo, como complemento à textura em oitavas
apresentada pelo piano, seguindo assim estritamente as indicações textuais do
compositor:
Existem alguns pontos em que o flautista muda
a dinâmica ou as oitavas porque acredita que eu não sabia o que estava fazendo.
Por exemplo, no último movimento, há um ponto em que as flautas tocam notas
repetidas, e o ponto principal disso é que você não ouviria isso no começo e,
portanto, emergeria da parte do piano posteriormente. Era para ser parcialmente
coberto e uma textura de fundo. E há alguns trechos que levam uma oitava para
cima, onde os flautistas pensam que eles devem ser ouvidos acima do piano o
tempo todo, e às vezes queremos que o piano seja ouvido mais do que a flauta. (LIEBERMANN in
PEDRO, 2010, p.29).
Fig. 20
Theodore
Presser Company (1988a, p.19).
Nas seções C e A2. deste segundo movimento,
destacamos duas citações do primeiro tema exposto pela flauta no primeiro
movimento, aqui transformado na linha melódica transposta ao piano (Fig. 21). Na seção A2 (comp. 111-115, Fig. 21), a citação oitavada que ocupa a região grave do piano
traz uma sensação métrica binária, que estabelece uma polimetria implícita com
a métrica mista das vozes superiores desprovidas de um padrão constante e
perceptível.
Fig. 21
Theodore
Presser Company (1988a, p.19, 21)
Na seção B1 (comp. 121-138), o segundo tema é
transposto terça maior acima, mantendo a centralidade em Mi, até que a
centralidade original em Mib é restabelecida na seção A2
(comp. 139-164). Uma pequena variação ao final desta última funciona como ponte
para a coda.
A coda (comp. 165-175, Fig. 22) é
basicamente construída sobre a execução de arpejos pela flauta, cujas notas
todas são acentuadas com cunhas, ou martelatos,
enquanto o piano sobrepõe as mesmas notas em forma de acordes incisivos e
extremamente acentuados, que culminam nos três últimos compassos. O fato de ser
a primeira subseção escrita em fff em todo o
movimento10 suscita um possível sentimento de
histeria e agitação ao final da obra, liberando a tensão musical acumulada.
Neles, há uma súbita diminuição da dinâmica para . para permitir que os músicos
tenham espaço para que cresçam com a dinâmica até os enfáticos Rés sustenidos,
executados em quatro oitavas diferentes, que impactam fortemente a audiência
com um final brilhante e cheio de energia.
Fig. 22
Theodore
Presser Company (1988a, p.25)
Considerações finais
No que tange às centralidades subjacentes a ambos os movimentos,
as relações por quintas cedem espaço para relações por terças. Nesse contexto,
alguns recursos da teoria transformacional revelaram conexões que garantem uma
unidade no âmbito estrutural, conforme apresentado a seguir.
No primeiro movimento, a sucessão de centros descreve a
sequência D#-G-B-F-B-G--D#-G-D#, que ocupa os quadrantes 1, 2, 7 e 8 da
“ciranda de cubos” transformacional (Fig. 23, com destaques
nas cores roxo e cinza). Nesse ínterim, às relações mediantes cromáticas cujas
fundamentais distam a terças maiores, somam-se relações por trítono formadas
entre os centros Fá (F+ e f-, nos quadrantes 1 e 2) e Si (B+ e Bm, nos
quadrantes 7 e 8).
No segundo movimento, a sucessão acórdica Eb-C-B-G#-G-E-Eb(D#)
ocupa os quadrantes 7, 8, 10 e 11, que se entrecruzam no vértice 9 (Fig. 23, com destaques nas cores cinza e verde). Sendo assim,
as relações mediantes cromáticas alternam-se às relações cromáticas C-B, G#-G e
E-Eb, e as relações com fundamentais passam a ser distanciadas por terças
maiores e menores.
Fig. 23
Os autores, a
partir de Richard Cohn (2012, p.104)
Conclui-se que as relações por semitons, por trítonos e por
terças maiores e menores (tanto exclusivas como misturadas) articulam tanto as
funções estruturais como os desdobramentos acórdicos e as elaborações melódicas
da obra. As relações cromáticas prontamente perceptíveis na construção melódica
e motívica da superfície combinam-se às relações mediantes cromáticas da micro
à macroestrutura da Sonata, formando uma obra de alta engenhosidade
composicional. E essa engenhosidade reflete-se no alto grau de desafios
apresentados para ambos os instrumentistas.
Referências
CAPLIN, William E. Classical form: a theory of formal functions
for the instrumental music of Haydn, Mozart, and Beethoven. New York: Oxford
University Press, 1998.
CHARETTE, Mark. The woodwind fingering
guide. Disponível em: https://www.wfg.woodwind.org/flute/fl_alt_2.html.
Acesso em: 23 ago. 2020.
COHN, Richard. Audacious euphony:
chromatic harmony and the triad’s second nature. New York: Oxford University
Press, 2012.
GARNER, Lisa Michelle. Lowell Liebermann:
a stylistic analysis and discussion of the sonata for flute and piano Op. 23,
sonata for flute and guitar Op. 25, and Soliloquy for flute solo Op. 44. Thesis
(Doctorate degree in Musical Arts) – Rice University, Houston, 1997.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos
de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
GREEN, Douglass M. Form in Tonal Music:
An Introduction to Analysis. 2. ed. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1979.
KOSTKA, Stefan; SANTA, Mathew. Materials
and techniques of post-tonal music. 5. ed. NY and London: Routledge,
2018.
LÓPEZ CANO, R. Pesquisa artística, conhecimento musical e a
crise da contemporaneidade. ARJ Art Research Journal / Revista
de Pesquisa em Artes, v. 2, n. 1, p. 69-94, 30 jun. 2015.
LIEBERMANN, Lowell. Sonata for flute and
piano, op. 23. King of Prussia, PA, USA: Theodore Presser Company,
1988a. 1 partitura para flauta e piano.
LIEBERMANN, Lowell. Sonata for flute and
piano, op. 23. King of Prussia, PA, USA: Theodore Presser Company,
1988b. 1 partitura para flauta.
LOWELL LIEBERMANN. Site oficial. Disponível em: https://www.lowellliebermann.com/bio-graphy.
Acesso em: 10 jun. 2020.
PEDRO, Lucas Martins. Lowell Liebermann:
performance e análise musical da Sonata para flauta e piano em interlocução com
o compositor. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Instrumento com
Habilitação em Flauta Transversal) – Departamento de Música, Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
ROSEN, Charles. Sonata forms. NY: W.
W. Norton, 1988.
SPOLETO Festival USA. Disponível em: https://spoletousa.org/about/program-history-2/.
Acesso em: 19 out. 2022.
STRAUS, Joseph. Introduction to post tonal
theory. 4. ed. NY: W. W. Norton, 2016.
WAGNER, Richard. Die Walküre, WWV 86B. New York: Dover
Publications, 1978. 1 partitura.
Notas
3
Uma entrevista pode ser denominada semiestruturada quando apresenta certo nível
de formalização, como um roteiro de perguntas, mas reserva um espaço para uma
expansão dos assuntos, visto que o entrevistado ou entrevistada tem liberdade
para extrapolar os tópicos das perguntas elencadas. Entretanto, o sociólogo Antonio Carlos Gil (2002) destaca que a
entrevista semiestruturada também permite que o entrevistador retome a questão
original ao perceber desvios.
4
Fundado em 1977 pelo compositor Gian Carlo Menotti, o Spoleto Festival USA é
dedicado à performance de música, dança e teatro. Na área de música, contempla
óperas, obras sinfônicas, corais e de câmara, estendendo-se aos estilos jazz e
folk. Sediado na cidade de Charleston, Estados Unidos, constitui-se como uma
contrapartida americana ao Festival dei Due Mondi fundado por Menotti em 1958 e
que ocorre anualmente na cidade de Spoleto, Itália (SPOLETO, [s. n.]).
5
Constituída por exposição, desenvolvimento e recapitulação, a Forma Sonata
disseminou-se durante o período Clássico. Boa parte das sonatas com três ou
quatro movimentos desse período possui pelo menos um deles escrito em forma
sonata. No período Romântico, mesmo obras com apenas um movimento foram
influenciadas pelo contraste temático e harmônico-estrutural dessa forma (ROSEN, 1988, p.15, tradução nossa).
Durante o século XX, “permaneceu sendo uma forma viável, embora altamente
modificada” (CAPLIN, 1998, p.195, tradução
nossa).
6 No
dia 22 de maio de 2020, às 15h, por meio do aplicativo Zoom, realizamos com o
compositor uma entrevista semiestruturada, gravada em vídeo, cuja transcrição
integra o trabalho de conclusão de curso realizado por Lucas Martins Pedro (2020) sob orientação
de Adriana Lopes Moreira.
7
Cf. Kostka e Santa (2018, p.22).
8 Colocamos
entre parênteses as alturas sugeridas pelo contexto, mas ausentes da partitura.
9
Emprestamos o termo “classe de alturas” da teoria dos conjuntos por
corresponder a todas as alturas que possuem o mesmo nome (STRAUS, 2016, p.1-4).
10
Apesar de haver um fff em uma única nota,
que finaliza uma frase musical no compasso 81.
Autor notes
1
Lucas Martins Pedro é Bacharel em Música, com Habilitação em Instrumentos de
Sopros, com Ênfase em Flauta Transversal, pela Escola de Comunicações e Artes
(ECA) da Universidade de São Paulo (USP, 2017-2020). Já participou de festivais
de música no Brasil, Argentina, Estados Unidos, Itália e Suíça, além de ter
colaborado com as maiores orquestras jovens e profissionais do Estado de São
Paulo. Foi vencedor do 1° Concurso “Jean Nöel-Saghaard” (2020) e do 8° e 9°
Prêmio “Ernani de Almeida Machado” (2019 e 2020). Foi premiado também como
aluno destaque no “Galway Flute Festival 2016”. Atualmente atua com docência de
flauta transversal e é bolsista do programa JOVENS TALENTOS, da Sociedade
Cultura Artística (2017-).
2
Livre-docente, é Professora Doutora Associada no Departamento de Música (CMU)
da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP,
2004-) e no Programa de Pós-Graduação em Música da ECA-USP (2010-). É
coordenadora do Grupo de Pesquisa TRAMA: Teoria e Análise Musical, voltado à
aplicação de conceitos teóricos emergentes para a prática analítica de obras
musicais (ECA e CNPq, 2015-). Foi editora-chefe de publicações da ANPPOM
(2011-15), que englobam Revista OPUS (Qualis-CAPES A1), série Pesquisa em
Música no Brasil e coordenação científica dos congressos anuais. É colaboradora
externa do Caravelas, Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira,
FCSH-UNL, Portugal (2012). A ênfase de seu trabalho está voltada a estudos
sobre Teoria, Análise e Percepção Musical, atuando principalmente nos seguintes
temas: Música dos Séculos XX e XXI; Almeida Prado; Olivier Messiaen; Piano.