Dossiê

Práticas interpretativas, performance musical, processos criativos: mais uma reflexão sobre o intérprete na academia

Music performance: another debate regarding the interpreter and academia

Daniel Lemos Cerqueira

Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil

https://orcid.org/0000-0001-7438-3436

Revista Orfeu

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2525-5304

Periodicidade: Contínua

v. 7, n. 2, 2022

revistaorfeu@gmail.com

Recepção: 12 Abril 2022

Aprovação: 07 Julho 2022

 

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Resumo: Debate sobre a situação dos intérpretes da área de Música – cantores, instrumentistas e regentes – e sua respectiva subárea no meio acadêmico brasileiro da atualidade. O método consiste em revisão bibliográfica ligada a pesquisadores que se debruçaram sobre a questão, em nível nacional e internacional, juntamente com cruzamentos interdisciplinares. Conclusões apontam para a possível implementação da pesquisa artística, mais especificamente a pesquisa através das Artes juntamente com a infraestrutura necessária, como forma de contribuir para a legitimidade de sua posição na academia.

Palavras-chave: Práticas Interpretativas; Performance Musical; Metodologia Científica; Pesquisa Artística

Abstract: Discussion regarding interpreters/performers position in Brazilian’s academia. The method is focused on bibliographical review with studies from national and international researches related to the main topic, involving interdisciplinary approaches. Conclusions point to the implementation of artistic research, more specifically research through arts (BORGDORFF, 2012) and its necessary infrastructure, aiming to better legitimate the interpreter’s position in Brazilian’s academic field.

Keywords: Music Performance; Scientific methodology; Artistic Research; Research through Arts

Introdução

Performance Musical, Práticas Interpretativas, Execução Musical, Criação e Interpretação em Música, Processos Criativos... logo de início temos uma indefinição na terminologia referente à subárea da Música que se dedica mais diretamente ao fazer artístico-musical como objeto e/ou objetivo de suas pesquisas.

Ora, mas essa definição também pode se aplicar à Musicologia e demais subáreas, pois elas se debruçam sobre o estudo das práticas musicais, não é? Certamente sim. Ao mesmo tempo, os estudos associados à subárea em debate utilizam métodos característicos das subáreas-irmãs e de outras áreas do conhecimento? Com certeza. E essa semelhança conceitual torna ainda mais complexa a tarefa de buscar esclarecimentos para a questão em pauta...

Nessa perspectiva, o presente artigo oferece algumas reflexões acerca das incertezas apresentadas, procurando fomentar um debate que não é recente, mas ainda raro por ter “potencial de risco”. Trata-se de um estudo essencialmente bibliográfico, ancorado em publicações acadêmicas de autores-intérpretes [1] que têm se debruçado sobre o assunto, bem como em referências interdisciplinares. Por fim, gostaríamos de ressaltar que o termo a ser utilizado adiante em referência à subárea em debate será “Práticas Interpretativas”, pois além de ser uma medida para organização do texto, trata-se da nomenclatura mais recorrente nos atuais Programas de Pós-Graduação em Música do Brasil, certamente por ter sido proposta no primeiro Encontro Nacional da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), realizado em 1988 (BORGES, 2019, p. 49). Destarte, nossos agradecimentos à colaboração voluntária do Prof. Dr. Renato Borges.

Um breve retrospecto histórico

Podemos associar o embrião do problema apontado ao momento em que, segundo uma convenção entre pesquisadores da Música, houve a sistematização e subsequente estabelecimento da Musicologia como disciplina acadêmica. Segundo o musicólogo Paulo Castagna (2008), uma proposta feita por Friedrich Chrysander em 1863 teria sido a pioneira no sentido de reconhecer determinadas pesquisas sobre música como possíveis métodos científicos para uma futura área acadêmica de Música [2]. Duas décadas depois, o dito autor tomou parte na criação do periódico Vierteljahrsschrift für Musikwissenschaft juntamente com Philipp Spitta e Guido Adler, em 1884 (MUGGLESTONE, 1981), chamados na época de “historiadores da música”. Dentre os artigos publicados na sua primeira edição, o de maior impacto foi Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft[3], do último autor (ADLER, 1885). Nele, são propostas duas abordagens gerais de estudos sobre música: a) análise teórica sobre obras, fenômenos sonoros e sistemas de organização sonora, incluindo seu ensino e aprendizagem, denominada “Musicologia Sistemática”; e b) pesquisa histórica/historiográfica sobre práticas musicais de diferentes pessoas, épocas, e regiões geográficas associadas à cultura dita “Ocidental”, intitulada “Musicologia História”. Da primeira categoria, houve diálogos interdisciplinares que levaram ao estabelecimento de disciplinas como Estética da Música (ao abordar Filosofia), Educação Musical (Pedagogia), Acústica (Física) e Psicologia da Música, entre outras (CABRAL, 2014). Já a Etnomusicologia, que conta com uma forte influência da Antropologia, teve sua origem na primeira categoria sob a denominação de “Musicologia Comparada”, visando ao estudo dos sistemas de organização sonora de comunidades e culturas diversas do mundo em comparação com referências de teoria e análise da produção musical associada à cultura convencionalmente denominada “Ocidental”, sem considerar questões sociais e temporais/históricas.

Para nós, é fundamental observar que nesse percurso inicial de inclusão da Música como área do conhecimento na academia, nenhuma das disciplinas mencionadas trata de maneira direta ao que se entende na atualidade como “Práticas Interpretativas”, além de não agregar diretamente a figura do intérprete. É perceptível que, para se afirmar como uma disciplina respeitável, a Musicologia precisou tomar de empréstimo métodos de investigação e referências de áreas já estabelecidas no meio acadêmico, como as mencionadas Filosofia, Antropologia, Educação, História, Psicologia e Física, dentre as diversas possibilidades. Hoje, é possível afirmar que ela constitui uma subárea já estabelecida graças a uma literatura específica/especializada em desenvolvimento há mais de um século – sendo essa bibliografia a responsável por prover a sua identidade acadêmica. Assim sendo, os musicólogos já têm à disposição uma diversidade de abordagens, métodos e referências.

Por que não estamos junto com a Musicologia?

A pergunta dessa subseção personifica um dos desconfortos provenientes da falta de uma posição estabelecida no meio acadêmico para a subárea objeto do presente estudo. O intérprete – ou musicólogo?[4] – John Rink, em um artigo que discute como as ferramentas de análise musicológica aplicadas nas Práticas Interpretativas são diferentes (e não piores!) em relação à Musicologia, aponta uma valoração de perfis acadêmicos relacionada à questão:

[...] existe há muito tempo na musicologia uma suposição implícita, segundo a qual os acadêmicos ocupariam um patamar superior em termos de conhecimento e discernimento, e que os intérpretes que não buscam assimilar avidamente os resultados dessas pesquisas em suas performances correriam o risco de se entregar a um fazer musical superficial e desprovido de sentido, que serviria apenas a eles enquanto indivíduos, ao invés de atender a um ideal mais elevado. Tal ponto de vista é insustentável e deve ser abandonado de uma vez por todas (RINK, 2012, p. 40).

Por um lado, é necessário reconhecer que a publicação de certos estudos dotados de fragilidade metodológica pode dar margem à crítica que Rink procurou responder. Dentre alguns exemplos, temos a autoetnografia, ferramenta utilizada com recorrência nos últimos anos em pesquisas associadas às Práticas Interpretativas. A etnografia é um método de pesquisa oriundo da Antropologia, sendo aplicada primordialmente em pesquisas sobre comunidades – voltada, portanto, ao estudo da coletividade em contextos sociais, históricos e culturais. Logo, sua derivação individual – a autoetnografia[5] – deve(ria) abordar a posição do indivíduo em seu contexto, situando-o no meio sociocultural e compartilhando os saberes advindos dessa experiência, para assim manter o foco na coletividade, dialogar com a literatura relacionada e promover contribuições à área do conhecimento em pauta. Entretanto, ao verificar qualitativamente o emprego da autoetnografia em estudos recentes associados às Práticas Interpretativas, a pesquisadora Rebeca Vieira apontou a aplicação dessa ferramenta em uma maneira definida pela autora como de “caráter pessoal”[6], deixando a desejar em termos de acréscimos efetivos para o debate sobre a coletividade, a investigação acadêmica e, principalmente, em termos de contribuição para a área do conhecimento[7]:

Depois de realizadas as análises sobre as pesquisas, identifico duas vertentes dentre os resultados obtidos com as investigações: de caráter pessoal, que pode ser ou não compartilhado com sua área de conhecimento; e a de caráter geral que pode ser aplicável em outras experiências. Acredito ser esse o principal desafio das pesquisas em Práticas Interpretativas que se utilizam da autoetnografia como ferramenta metodológica: fazer de sua autodescoberta uma descoberta que pode ser partilhada em outras experiências. A forma de conduzir a investigação, principalmente na análise dos materiais levantados, pode ser o diferencial. [...] Chego à conclusão de que a autoetnografia é uma excelente ferramenta metodológica a ser aplicada nas investigações sobre as Práticas Interpretativas, sobretudo quando utilizada em conjunto com ferramentas complementares que envolvam a participação de outros agentes, pois assim as pesquisas tendem a ganhar maior credibilidade nos seus resultados (VIEIRA, 2020, p. 1076).

A autora complementa que a “pesquisa da prática artística é uma jovem aprendiz” (VIEIRA, 2010, p. 1076); logo, é parte do processo de amadurecimento haver experiências metodológicas que deixam a desejar. Esse é um processo natural das disciplinas que ainda precisam passar por uma consolidação e subsequente aceitação por parte do meio acadêmico – vide o percurso pelo qual passaram as Ciências Sociais e Humanas no século XIX, conforme aponta o musicólogo Henk Borgdorff (2012): eram consideradas “faculdades inferiores” até o final do século XVIII[8]. Nesse sentido, é preciso manter uma autoavaliação constante sobre as produções para assim assegurar o desenvolvimento do campo[9]. Todavia, a generalização feita aos intérpretes em geral, denunciada anteriormente por Rink, não pode ser aceita. Borgdorff alerta que existe um tipo de perfil acadêmico presente na própria área de Música, e nas Artes em geral, que resiste à aceitação da prática como meio legítimo de pesquisa e produção de conhecimento: “Para certos acadêmicos estabelecidos da arte, a prática como pesquisa não pode ser aceita como uma metodologia respeitável, sendo vista como uma nódoa em subdisciplinas de arte e mídia recém-estabelecidas” (BORGDORFF, 2012, p. 4).

Outro aspecto que diferencia a subárea debatida em relação à Musicologia é a necessidade de autoafirmação como “Ciência”; enquanto se trata de um objetivo preterido na última, vários estudos ligados às Práticas Interpretativas reiteram a intenção de diferenciar essa subárea como sendo “Arte”. Uma ilustração notável é a breve menção do pianista José Alberto Kaplan em sua Teoria da Aprendizagem Pianística, obra norteada pelo objetivo de sistematizar o ensino e aprendizagem do piano por meio de processos científicos, mas sem abandonar a essência da prática pianística e musical em geral, que é o fazer artístico:

Em trabalhos anteriores, procurei demonstrar – e creio tê-lo conseguido – a necessidade inadiável de fundamentar o ensino do piano, não no empiro-subjetivismo imperantes, e sim em bases científicas, isto é, nos dados objetivos que nos podem proporcionar aqueles ramos do saber que, como a Anatomia, a Fisiologia, a Física e a Psicologia, especialmente a da Aprendizagem Motora, deveriam ser os pilares de sustentação do processo de ensino-aprendizagem dos instrumentos musicais. É verdade que tocar piano ou qualquer outro instrumento não será nunca uma ciência, nem pretendemos que o seja, mas não vemos razões suficientemente importantes que invalidem nossa pretensão de que a execução instrumental e seu ensinamento estejam alicerçados em premissas de caráter científico (KAPLAN, 1987, p. 13).

Ligando essa questão às Artes de maneira geral, um desdobramento emerge nos debates pioneiros sobre pesquisa em Arte no Brasil, levantados pelo artista visual e pesquisador Sílvio Zamboni, já vistas na opção pelo título de seu livro sobre o assunto – A Pesquisa em Arte: um paralelo entre Arte e Ciência (ZAMBONI, 2001). Na introdução, o autor relata alguns dos desafios institucionais enfrentados durante o processo de aceitação das Artes como uma área do conhecimento junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Brasil (CNPq):

No CNPq, ficou cada vez mais clara a todos os dirigentes a necessidade de oficialização da área de artes. Mas isso não era o bastante. Uma proposta nesse sentido deveria ser aprovada no órgão colegiado de deliberação máxima da instituição, no qual tinham assento e voto vários membros representantes da comunidade científica, muitos dos quais eram contrários à implantação da área. Alegavam que o CNPq era um órgão que, por tradição, apoiava a ciência baseando-se nos próprios critérios científicos para definir os projetos a serem aprovados, e que não deveria apoiar as artes, pois poderia ferir os objetivos primeiros da instituição, além de faltarem critérios claros e objetivos para o julgamento de projetos em artes (ZAMBONI, 2001, p. 2).

Dessa maneira, fica claro que as Práticas Interpretativas necessitam da “Ciência” em sua acepção tradicional, mas não podem apenas se restringir ao pensamento científico-racional e seus respectivos protocolos de investigação. E se por um lado se deseja manter a intuição, a subjetividade e a experimentação como características afins ao cotidiano laboral do intérprete – elementos que, em diversas situações, ainda despertam “maus olhares” no meio acadêmico – por outro, segundo Borgdorff, há um pré-conceito sobre a metodologia científica como se ela não oferecesse espaço para criação e inovação:

Os pesquisadores acadêmicos, além de desenvolver os métodos e técnicas apropriados para a condução de seus estudos, definem as regras de validade e confiabilidade dos resultados com base no próprio domínio da pesquisa, e não de maneira externa e/ou independente a ela. A ciência alcança sua excelência se for conduzida de maneira menos rígida e limitada do que imaginam alguns participantes do debate (BORGDORFF, 2012, p. 40).

Nesse sentido, além do pré-conceito que certos acadêmicos de áreas estabelecidas têm sobre a produção artístico-cultural, existe também um desconhecimento de boa parte dos artistas em relação ao ofício de um pesquisador. Uma hipótese para a última questão é que nos cursos voltados à formação de intérpretes da área de Música, os componentes curriculares relacionados à pesquisa acadêmica – quando existem – são apresentados como manuais de metodologia científica “engessados”, baseados na descrição dos métodos de investigação como regras e procedimentos a serem seguidos, falhando em demonstrar as possibilidades de variações e adaptações para cada ferramenta metodológica. A pesquisadora Carolina Couto, em sua pesquisa doutoral, trata de características preteridas da estrutura curricular de cursos voltados à formação de intérpretes:

A trajetória tradicional de formação do músico performer, que em sua maioria prioriza o desenvolvimento de habilidades artísticas e musicais em detrimento de um treinamento da capacidade reflexiva sobre essas habilidades e todo o conjunto de conhecimentos teóricos, filosóficos e sociológicos implicados nela, acaba desenvolvendo mais um conhecimento do tipo tácito. A dificuldade de falar sobre um conhecimento dessa natureza será acentuada pela ausência de estudos de caráter mais teórico no currículo que subsidiariam o treino para o desenvolvimento da habilidade do pensamento reflexivo com esse tipo de material (COUTO, 2019, p. 9).

Ao mesmo tempo, há uma certa dúvida dos intérpretes com relação ao usufruto da metodologia científica em suas carreiras profissionais – fato compreensível diante do distanciamento que ainda persiste entre prática artística e pesquisa acadêmica. Soma-se à questão o fato de que as disciplinas de Metodologia Científica, na maioria absoluta das vezes, não apresentam ferramentas de investigação claramente direcionadas à pesquisa sobre Artes e através das Artes – conceito proveniente da Pesquisa Artística, em debate internacional desde o início da década de 1990 segundo Borgdorff (2012) e que será abordado adiante.

E por que também estamos junto com a Musicologia?

Sônia Ray e Fausto Borém, pesquisadores de longa data dedicados às Práticas Interpretativas – e que defendem a nomenclatura “Performance Musical” –, procuraram delinear os principais tópicos e contribuições da subárea através de uma análise quali-quantitativa de estudos publicados entre 2000 e 2012 em uma seleção de periódicos e de eventos acadêmicos da área de Música. Destarte, os autores apontam certa dificuldade em detectar quais estudos estariam efetivamente relacionados às Práticas Interpretativas, havendo duas possibilidades:

a. se eles são autodeclarados afins à subárea pelo(s) próprio(s) autor(es/as); ou

b. se o tema e/ou a abordagem se relacionam à subárea em questão, com base na proposta taxonômica desenvolvida pelos autores.

De maneira geral, os autores concluem que a subárea é, por natureza, “versátil e interdisciplinar” – e, possivelmente, multidisciplinar[10]. Eles também apontam que as pesquisas relacionadas às Práticas Interpretativas são recentes meio acadêmico brasileiro, sendo que em outros países, Gerling e Souza (2000) – em outro relevante estudo voltado à caracterização da subárea em debate – afirmam que elas retroagem à década de 1920. Contudo, concordamos em parte: para que haja um diálogo inter/transdisciplinar, é necessário que o campo temático já esteja consolidado como disciplina. Mesmo com os avanços das últimas décadas – que diferem da dificuldade pioneira apontada por Ray e Borém (2012, p. 160) na qual os intérpretes ingressantes na pesquisa acadêmica, diante da falta de especialistas, tinham de recorrer a orientadores que desconheciam a realidade da prática vocal, instrumental, da regência e da composição – as Práticas Interpretativas ainda carecem de uma consolidação mais ampla de métodos, procedimentos e recursos próprios de investigação. Estamos, aparentemente, em uma etapa análoga à da Musicologia nas primeiras décadas do século XX, ancorando-se em métodos de outras disciplinas já estabelecidas – daí a percepção de uma “interdisciplinaridade”, mas que é, contudo, mais a consequência da falta de uma identidade própria.

Tomando como base a pesquisa exploratória de Renato Borges, voltada à análise da produção acadêmica de Música com a proposição do conceito de “repertório musicológico” – referente às ferramentas metodológicas desenvolvidas até então pela Musicologia – o autor analisou qualitativamente dezoito teses de doutorado defendidas no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) entre 2009 e 2015 autodeclaradas afins às Práticas Interpretativas. As características diagnosticadas por Borges, em síntese, são as seguintes:

• O compositor como a figura central dos estudos;

• Ampla dependência dos conceitos de autor. obra;

• Condução da pesquisa com base na proficiência/especialidade do intérprete (instrumento, canto ou regência) [11] com consequente “especialização extremada” do estudo;

• Uso de diferentes tipos de suporte para além do texto acadêmico.

Com relação ao primeiro ponto, a contextualização histórica sobre o repertório estudado – uma importação da historiografia recorrente em estudos ligados à interpretação musical – prioriza o autor/compositor e seu respectivo contexto em relação a outros tópicos como, por exemplo: definições de gênero musical; história da circulação das obras estudadas; idiomatismo e técnica instrumental; subsídios para edições musicais críticas; ou análise interpretativa de fonogramas.

Apesar de breve, a amostra estudada pelo autor já apresenta características recorrentes da produção acadêmica ligada às Práticas Interpretativas, com destaque à importação de modelos analíticos das Musicologias Histórica e Sistemática. Além disso, tais pesquisas se edificam – de maneira implícita – sob uma compreensão estabelecida de “música” na perspectiva sociológica da cultura “Ocidental”, e geralmente não têm o objetivo de abordar aspectos sociais, políticos e econômicos presentes na prática, produção, difusão e nas posições e estruturas de poder consolidadas no mercado e na cadeia produtiva da música erudita (ou de concerto), focando quase que exclusivamente, portanto, nos conceitos de autor e obra pontuados por Borges. Não vemos essa abordagem como problema em uma determinada pesquisa em si; a questão passa a ser inadequada quando uma subárea inteira se ancora em apenas uma única perspectiva metodológica, gerando pouca ou mesmo nenhuma reflexão sobre as várias possibilidades de pesquisa disponíveis ao intérprete-pesquisador.

Como consequência da dita “especialização extremada” (BORGES, 2019, p. 70), o autor aponta para uma possível consequência da ênfase no idiomatismo típica de estudos relacionados à subárea em pauta:

Eles [os estudos] priorizaram atender a uma demanda bastante específica, delimitada entre a obra e o instrumento propostos. Caso fosse buscado um nível epistemológico de hierarquia mais alta a que esses textos pudessem se incorporar, eles seriam no Brasil associados à subárea de Performance (ou Práticas Interpretativas e demais denominações). No entanto, vê-se que o que emerge dessa situação não é o fortalecimento de um campo de Práticas Interpretativas propriamente dito. Isso parece o mais significativo aqui. No lugar disso, estabelecem-se microrredes de pesquisas e assuntos, organizadas a partir principalmente dos instrumentos. Talvez, por isso, uma palavra forte nessas pesquisas seja idiomatismo, buscando lidar principalmente com aquilo que é particular daquele instrumento (BORGES, 2019, p. 71).

Trata-se de uma situação oposta ao que pontuam Ray e Borém ao discorrer sobre o contexto de inserção dos primeiros intérpretes no universo da pesquisa acadêmica, cujos trabalhos finais podiam conter dois problemas: “falta de profundidade e ausência de uma relação factível com a performance” (RAY; BORÉM, 2012, p. 160). Em acréscimo, Borges traz uma questão que pode ser relacionada às conclusões do estudo de Vieira (2020) acerca do (mau) uso da autoetnografia:

Uma leitura dos textos revela uma preocupação em alcançar conclusões para um público-alvo que se encontra naquela mesma situação específica, sem empreender diálogos com campos mais amplos da própria atividade musical, começando com praticantes de outros instrumentos, repertórios, estilos e gêneros, e alcançando compositores, arranjadores, professores de música, musicólogos e demais analistas (BORGES, 2019, p. 70-71).

Podemos acrescentar as limitações de tais tipos de pesquisa aos próprios intérpretes: os estudos de caso sobre repertório acabam sendo de interesse direto apenas para quem pretende interpretar aquelas obras em particular; ausentam-se, portanto, subsídios capazes de oferecer contribuições mais amplas a um repertório de regiões, épocas e linhas estéticas variadas ou mesmo à subárea de maneira mais geral. Trata-se de um fato curioso, pois Gerling e Souza (2000) e Ray e Borém (2012) ilustram uma diversidade metodológica considerável nas pesquisas em Práticas Interpretativas, enumerando estudos heterogêneos em termos de possíveis tópicos e abordagens [12]. Tal fato nos leva, mais uma vez, a suspeitar de lacunas na formação de intérpretes com relação aos componentes curriculares dedicados à pesquisa acadêmica, mesmo em nível de pós-graduação – questão corroborada pelo estudo de Couto (2019).

Caminhos para delinear a identidade da subárea

Com relação à última característica observada por Borges, o uso de diferentes tipos de suporte – tanto nas etapas da pesquisa (processo) quanto no produto final – sinaliza uma qualidade distinta das Práticas Interpretativas. Na oportunidade, o autor se refere ao uso de partituras e fonogramas, sendo esses últimos mais ligados ao interesse dos intérpretes por conterem sonoridades que documentam objetivamente ideias e conceitos de interpretação musical[13]. Diversos estudos ligados à subárea como, por exemplo, os de Pederiva (2004), Madeira e Scarduelli (2014), Póvoas e Pontes (2007), o mencionado Kaplan (1987) e Borém (2011) abordam, sob diferentes pontos de vista – a saber: saúde do músico, expressividade cênico-musical e aprendizagem motora, respectivamente – corpo e movimento para intérpretes. No estudo desse tópico, as descrições textuais acadêmicas se apresentam como uma ferramenta metodológica limitada[14], motivo pelo qual o emprego de imagens, vídeos, renderização15 e captura de movimentos[16] é mais adequado para compreensão dos fenômenos investigados. Tais tipos de dados, naturalmente, demandam o uso de plataformas multimídia, diversificando os tipos de suporte para a pesquisa em Práticas Interpretativas. Contudo, geram um desafio para as Ciências da Informação: a necessidade de repositórios para publicação capazes de lidar com tais recursos, não se limitando apenas à hospedagem de arquivos de texto e imagem – sendo o formato PDF aquele mais disseminado na atualidade. Um importante exemplo é o “Research Catalogue”, repositório internacional dedicado à publicação de estudos ligados à Pesquisa Artística e que conta com os recursos tecnológicos necessários mencionados – disponível em https://www.researchcatalogue.net.

Aqui, temos um ponto importante a ser debatido nas pesquisas acadêmicas das Práticas Interpretativas: muitas das informações presentes no dia-a-dia do intérprete – desde a interpretação do repertório, aprendizagem e preparação da prática à etapa de difusão das obras – são “invisíveis” aos meios tradicionais de documentação e publicação acadêmica, pois envolvem audição direcionada e analítica, estudo cinestésico/de movimentos corporais e de sensações táteis, direcionamento da atenção/concentração, propriocepção[17] e educação somática[18], para assim enumerar alguns dos aspectos e tipos de informações presentes nesse complexo campo de investigação[19]. O flautista e pesquisador Jorge Salgado Correia se refere à inclusão desses tipos de informação como a “fratura epistemológica” das Práticas Interpretativas (CORREIA, 2013), pois elas precisam ampliar seu leque metodológico em relação a ferramentas, procedimentos e formatos para divulgação de pesquisas, não se limitando apenas à importação dos padrões provenientes de outras disciplinas – incluindo a Musicologia. Borgdorff acrescenta ao debate:

[...] adotar unilateralmente o modelo das ‘ciências naturais’, das ‘ciências sociais’ ou das ‘humanidades’ [...] irá produzir uma compreensão míope do que realmente está acontecendo nas artes. As várias abordagens divergentes sobre processos e produtos artísticos possuem sua própria razão de ser [...] (BORGDORFF, 2012, p. 23).

Couto, ao analisar as diretrizes dos Programas de Pós-Graduação em Música brasileiros em vigência, sinaliza que ainda não há espaço para adoção de suportes diversos de divulgação científica, prejudicando o estabelecimento de novas ferramentas metodológicas para as Práticas Interpretativas:

Embora cada área do conhecimento possua autonomia metodológica e epistemológica, autonomia quanto ao estabelecimento de critérios para constituição de quadros docentes dos cursos e programas, para organizar e gerir a forma de seleção e treinamento dos discentes, para decidir quantidade e tipos de produção aceitas e seus critérios de avaliação, os músicos devem apresentar produção em formato de texto acadêmico, independentemente se a área optou por aceitar a produção artística como mais um tipo de produto legítimo. Nesse sentido, podemos dizer que essa norma que estabelece a necessidade de compartilhamento pela via escrita do conhecimento que se produz acaba configurando uma demarcação limítrofe dentro da qual a autonomia dos profissionais em questão pode ser exercida. Em outras palavras, a maneira com que o sistema de pós-graduação se encontra estruturado permite aos músicos autonomia para controlar o corpo de conhecimento que lhe compete bem como a forma de produzi-lo, mas não proporciona autonomia completa em relação à forma de compartilhá-lo (COUTO, 2018).

Logo, a diversificação dos tipos de dados a serem tratados, bem como a adequação dos repositórios institucionais às necessidades de difusão das pesquisas que fazem uso dessas particularidades, ainda são insipientes no cenário nacional.

A pesquisa artística em música

Ao nos debruçarmos sobre os referenciais que tratam da Pesquisa Artística para a elaboração de um breve manual didático de metodologia científica para a área de Música (CERQUEIRA, 2017), foi possível propor um modelo que ilustra a hierarquia entre as ferramentas de pesquisa presentes em manuais de metodologia científica (Figura 1):

Figura 1 - Representação da hierarquia de métodos em manuais de metodologia científica.

 



Fonte: elaborado pelo autor em 2022
.

Apesar da limitada amostra de manuais de metodologia científica utilizada para elaboração do mencionado livro (CERQUEIRA, 2017), percebemos uma característica em comum ao conjunto de referências acessadas. Os manuais voltados às Ciências Exatas apresentavam métodos, abordagens e teorias aplicáveis apenas a esse conjunto de áreas, e sequer mencionavam ferramentas das Ciências Sociais e das Humanidades – mesmo sendo essas utilizadas nos campos da Biologia e Ciências da Saúde, mais próximas às Ciências da Natureza. Entre os tópicos recorrentes apresentam-se o método cartesiano, o método hipotético-dedutivo, noções de Estatística e as propostas conceituais de Isaac Newton e Francis Bacon, entre as diversas possibilidades. Já nos manuais voltados às Ciências Sociais e Humanidades, há menções a métodos utilizados nas Ciências Exatas e Naturais – de maneira menos detalhada – com o acréscimo de ferramentas e teorias próprias das primeiras, incluindo métodos para pesquisa com pessoas (entrevista, questionário, etnografia, etc.) e bases teóricas para interpretação da realidade e construção de narrativas (marxismo dialético, fenomenologia e psicanálise, por exemplo).

Com relação aos métodos específicos das Artes, incluindo a Pesquisa Artística – somada a toda a bagagem metodológica das Ciências Exatas, Naturais, Sociais e Humanas – não os encontramos em nenhum dos manuais de metodologia científica, levando-nos a ancorar nas referências que oferecem um diagnóstico sobre os métodos e abordagens mais recorrentes. Entre eles, o livro de Borgdorff apresenta subsídios importantes, exemplificando disciplinas ligadas às Artes, Mídia e Estudos Culturais que já contam com métodos reconhecidos na academia, a saber: Musicologia (de maneira mais geral), História da Arte, Estudos em Teatro, Estudos em Mídia e Literatura (BORGDORFF, 2012, p. 38). O musicólogo acrescenta um campo caracterizado por abordagens próprias das Ciências Sociais Aplicadas em uso nas Artes, que envolvem pesquisas ligadas indiretamente à realização artística – adaptações acústicas de espaços culturais, desenvolvimento de tecnologias em apresentações públicas e interações entre linguagens artísticas, por exemplo. Contudo, como tais pesquisas também se baseiam em métodos consolidados de outras áreas do conhecimento – em relação aos exemplos mencionados: Física/ Acústica, Computação/Informática, ópera/espetáculo cênico e de dança/audiovisual e cinema, respectivamente – optamos por não as diferenciar das disciplinas mencionadas anteriormente em termos de categorização.

Mesmo sendo tais disciplinas e estudos desenvolvidos com a adoção de métodos e abordagens já consolidados na academia, adaptações particulares para a área de Música podem ser observadas. A historiografia, quando aplicada à Musicologia Histórica, faz uso de apreciação de repertório e de fontes primárias raramente utilizadas na área de História, como programas de concerto e encartes de fonogramas; já na organização e manutenção de documentos musicais, conceitos de Arquivologia e Biblioteconomia precisam ser adaptados, como a questão do arquivo sair da fase corrente (uma partitura ou fonograma sempre pode voltar à utilização, a qualquer tempo) e o incipit, uma síntese do tema principal da peça que deve estar presente entre os metadados de catálogos de coleções e acervos musicais – e que exige do bibliotecário um conhecimento elementar de leitura musical (ÁVILA, 2021), entre alguns exemplos. Tais particularidades permitiram a definição de uma identidade para a Musicologia como disciplina, levando Borges a propor o conceito de “repertório musicológico”. A aplicação dessas ferramentas nas Práticas Interpretativas, por sua vez, foi referenciada por Correia como “Estudos em Performance”. Entretanto, o autor reconhece que tais métodos e abordagens não são suficientes para abordar aspectos mais aprofundados sobre a prática do intérprete, sendo necessário envolver análise e documentação de informações aurais/auditivas e visuais mais amplas, motoras/cinestésicas e táteis; e o papel da concentração/atenção seletiva, intuição, subjetividade e da experimentação, entre outras possibilidades. Aqui, Correia faz a proposta metodológica da “Investigação Artística” [20], termo utilizado em Portugal mais próximo ao que temos chamado de “Pesquisa através das Artes”.

Breves explanações conceituais

Pesquisa Artística, de maneira geral, refere-se a qualquer investigação acadêmica que possui arte como objeto e/ou objetivo de estudo. Inclui, portanto, toda a literatura da pesquisa sobre e para práticas/processos e produtos artístico-culturais. No entanto, a diferença substancial se faz presente em uma nova proposição de abordagem metodológica: a pesquisa através das artes. Nela, a prática artística se faz presente como método de investigação com todas as suas particularidades: intuição, experimentação e demais elementos mencionados anteriormente. Essa abordagem metodológica visa a acessar conhecimentos e habilidades invisibilizados nas ferramentas de pesquisa já estabelecidas, seja pela impossibilidade de documentação (no caso da sensação tátil)[21], pela restrição proveniente do conceito tradicional de “conhecimento” na academia[22] ou pela dificuldade gerada devido à complexidade das informações envolvidas. Nesse último caso, oferecemos o exemplo do instrumentista: os movimentos corporais construídos para a interpretação de uma obra são resultado de anos de estudo e aprimoramento cinestésico e tátil, e não estão restritos apenas à preparação dessa obra em particular: envolvem toda sua trajetória de ensaios e prática deliberada, as aulas de instrumento com seus professores, as masterclasses e outros meios de adquirir informações cinestésico-motoras, como assistir a concertos de instrumentistas e a videoaulas de técnica instrumental. Tais saberes, passados entre gerações de intérpretes-professores de maneira similar às tradições orais principalmente devido à impossibilidade de registro – e cuja interrupção pode acarretar consequências irreversíveis para a subárea em debate – é chamado de conhecimento incorporado [23]. No meio acadêmico, ele pode passar despercebido por pesquisadores não familiarizados com o ofício do intérprete, correndo risco constante de rejeição como forma legítima de saber[24]. Borgdorff oferece uma defesa persuasiva para a questão:

Essa abordagem [pesquisa através das artes] é baseada na compreensão de que não existe separação fundamental entre teoria e prática nas artes. Além disso, não há práticas artísticas desprovidas de experiências, histórias e conhecimento; da mesma maneira, não há teoria ou interpretação da prática artística que deixa de moldá-la em sua essência. Conceitos e teorias, experiências e compreensões estão inter-relacionados com a prática artística; e, parcialmente por esse motivo, a arte é sempre reflexiva. Assim, a pesquisa através das artes busca articular parte desse conhecimento incorporado por meio do processo criativo e do produto artístico (BORGDORFF, 2012, p. 38-39).

Apresentamos adiante um modelo que situa a Pesquisa Artística e, particularmente, a pesquisa através das artes no cenário da metodologia de investigação acadêmica (Figura 2):

Figura 2 - Modelo para situar a Pesquisa Artística no meio interno e externo à academia



Fonte: elaborado pelo autor em 2022.

O que entendemos por “Pesquisa Artística” consiste no círculo em cinza, envolvendo as subcategorias “pesquisa sobre artes” (que faz uso de métodos e abordagens consolidados) e “pesquisa através das artes” (na qual a prática artística constitui parte do método de investigação). O modelo mostra também a localização da produção artístico-cultural em geral, incluindo tanto aquela externa ao meio acadêmico – ou seja: produzida sem o intuito da pesquisa acadêmica – quanto aquela resultante de processos de investigação artística e que fazem a interseção entre os meios interno e externo à academia.

É inevitável que nesse momento algumas perguntas apareçam: o que caracteriza, então, a diferença entre a produção artístico-cultural feita com pesquisa daquela usual? Os pesquisadores ligados ao tema, depois de debates calorosos em eventos dedicados à pauta, procuram responder. O musicólogo Rúben López-Cano e a musicóloga Úrsula San Cristóbal Opazo, em relevante publicação sobre esse tópico, afirmam que para diferenciar o processo criativo das Artes em geral com o viés de pesquisa, algumas preocupações são necessárias, sendo elas: a) documentar o processo de criação artística, de maneira a tornar possível sua análise e replicação do modelo; e b) permitir o compartilhamento do conhecimento gerado sobre o processo e/ou o produto (LÓPEZ-CANO; SAN CRISTÓBAL OPAZO, 2014, p. 47). Borgdorff acrescenta que para permitir seu desenvolvimento, a Pesquisa Artística deve adotar o mesmo sistema de orientação acadêmica e de revisão por pares da prática científica tradicional, assegurando a avaliação dos processos e produtos por artistas-pesquisadores de excelência em seus respectivos campos de atuação (BORGDORFF, 2012, p. 132-133). Já a coreógrafa Efva Lilja, em seu livro Arte, Pesquisa, Empoderamento: sobre o artista como pesquisador, oferece uma concepção mais aberta, afirmando que ao abordar produções artísticas de diferentes locais, épocas e comunidades, o artista já estaria trabalhando sob uma perspectiva de investigação (LILJA, 2015, p. 15). Contudo, todos esses autores concordam que se trata de (mais) um debate relacionado à Pesquisa Artística que ainda precisa de amadurecimento para chegar a soluções consensuais.

Alguns exemplos de “pesquisa através da Música”

A exemplificação é certamente a melhor maneira de conhecer as possibilidades metodológicas da pesquisa através das artes aplicada à área de Música, inclusive porque é a literatura produzida que irá solidifica-la como disciplina. López-Cano e San Cristóbal Opazo (2014) baseiam seu livro em pesquisas concluídas e reconhecidas como afins ao método em debate. Apresentamos adiante uma síntese das ilustrações dos autores, organizadas em tópicos mais gerais:

Inovação nas convenções de difusão e circulação da produção musical: pesquisas que envolvem apresentações em espaços alternativos, formas inovadoras de interação com o público e experimentos transdisciplinares com expressões e linguagens artísticas variadas. Alguns exemplos são os concertos-debate (mais amplos que os “recitais-palestra”, pois abrem espaço para diálogo com o público), recitais em espaços culturais diferentes daqueles em que o tipo de prática musical abordada circula por convenção, reconstituição virtual de espaços acústicos (recorrente com a música acusmática), dramatizações, artes performáticas (integração com as Artes Cênicas e/ou a Dança) e mídias audiovisuais em interação com a interpretação ao vivo;

Práticas inovadoras de interpretação: pesquisas que visam ao estabelecimento de formas distintas de reger, cantar ou interpretar o instrumento e/ou documentação do processo de estudo/preparação. Alguns exemplos são readaptações, arranjos e intervenções no repertório canônico, reconstituição de práticas históricas de organologia, escuta/apreciação e interpretação (aqui entra a dita “interpretação de época” ou “interpretação historicamente informada”), criação de técnicas expandidas ou de novos recursos para a interpretação, análise de movimento, corpo e gesto no fazer musical, experiências performáticas (ansiedade no palco e estudos que tangenciam Psicologia e Educação Física, entre outros), registro e análise do processo de preparação do repertório;

Teoria e análise aplicadas à interpretação: pesquisas que adotam ferramentas analíticas, musicais ou não, direcionadas à interpretação musical. Algumas possibilidades são estudos sobre decisões interpretativas em gravações de obras, análise performativa – aqui, entram os estudos de Robert Hatten (2004) sobre gesto musical, que agregam teoria musical com o resultado sonoro das interpretações para análise e compreensão da obra – integração entre hermenêutica, retórica e semiótica junto à interpretação musical, intertextualidade e interdiscursividade (relações transdisciplinares entre a música como expressão, linguagem ou discurso com outras áreas das Artes).

Sob tais perspectivas metodológicas, uma breve busca na internet revelou pesquisas associadas às Práticas Interpretativas no Brasil que fazem uso de abordagens afins a alguns dos três tópicos apresentados. Seria oportuno realizar uma investigação qualitativa para avaliar como cada um dos estudos encontrados se relaciona à pesquisa para as artes na Música, mas que, por ora, excede o escopo do presente artigo. Ademais, a perspectiva de já haver uma produção acadêmica com possível associação à metodologia em pauta aponta para a necessidade de uma organização mais clara desse corpus de conhecimento.

E como estão nossas “irmãs”?

Assim como na área [25] de Música, Artes Visuais, Artes Cênicas [26] e Dança contam com especialidades cujas posições se assemelham às do instrumentista/cantor/regente. São elas, na ordem respectiva: artista visual/das visualidades (nas vertentes bi e/ou tridimensional), ator/atriz [27] e bailarino(a)[28]. No âmbito da pesquisa acadêmica, as subáreas que se dedicam aos processos de criação interpretativa são:

• Artes Visuais: Poéticas Visuais ou Poéticas Artísticas, com base no último encontro da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP);

• Artes Cênicas: Atuação Cênica ou Processos de Criação. Expressão Cênicas, com base no último congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE);

• Dança: Poéticas ou Execução da Dança, baseado em documentos da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA); contudo, a última nomenclatura foi objeto de recente questionamento por parte de pesquisadores da área (VIERA et al, 2019, p. 65).

Sobre a Pesquisa Artística em cada uma das mencionadas áreas, uma breve busca por referências trouxe nomes de artistas-pesquisadores que têm se dedicado a trazer o debate a suas respectivas especialidades no Brasil. Alguns deles são Ciane Fernandes e Sílvia Geraldi em Artes Cênicas; Joelene de Oliveira Lima e Neila Baldi em Dança. O tema contou com uma mesa-redonda no X Congresso Nacional da ABRACE, realizado em 2018 na cidade de Natal. Com relação às Artes Visuais, não encontramos publicações que apresentassem o termo “pesquisa artística” com o sentido proposto nesse artigo.

Uma questão importante que leva a refletir sobre o emprego do termo “performance” na Música é observar sua utilização nas demais áreas artísticas. Enquanto performance[29] musical se refere à apresentação musical pública (recital, concerto, show, etc.) – e que na justificativa de Borém (1997, p. 51) seria mais apropriado porque, na língua inglesa, to perform apresenta um sentido mais amplo em relação a to practice – as Artes em geral, principalmente as Artes Cênicas, utilizam o termo “performance” em referência a atividades artísticas multidisciplinares e até pluriculturais, ainda que envolvam o palco/espaço cultural e a ação pública/voltada a um público. Tomamos como referência a definição de “Artes Performativas”[30] proposta no livro de Barros et al (2012), que conta com o corpo (portanto, Dança, Teatro e Música – mas não apenas essa última!) e a performance (o espetáculo e a imagem – Artes Visuais, considerando também o público e sua recepção do performer). Nesse aspecto, o uso do termo “performance musical” tem sido restrito em relação ao uso nas demais Artes. Já “interpretação”, por sua vez, denota maior completude, pois um intérprete pode produzir várias performances – ou mesmo nenhuma, pois a interpretação de uma obra ou ciclo de obras não precisa existir apenas no plano físico. De qualquer forma, é fundamental o diálogo entre as diversas Artes para chegar a uma possível convergência terminológica ou, ao menos, a um entendimento mútuo.

Por fim...

Ao abordar a formação do intérprete [31] na Escola Superior de Música de Lisboa, Cristina Cruz trata da inclusão da pesquisa artística (sob o termo artistic research), trazendo uma nova perspectiva formativa na instituição. Até então, as pesquisas acadêmicas eram conduzidas por musicólogos, no âmbito das disciplinas consolidadas – Musicologia Histórica e Sistemática, Etnomusicologia e Psicologia da Música, por exemplo. Com a pesquisa artística, introduzida por meio de formações strictu sensu diferentes das já estabelecidas – semelhantes ao Mestrado Profissional em Música no Brasil e, futuramente, ao Doutorado Profissional, com base na sinalização constante no documento de avaliação da pós-graduação mais recente (CAPES, 2019) – a autora oferece um panorama sobre as características e impactos da implementação da “pesquisa através das artes” na Música, destacando ser ainda um sistema em construção:

Informalmente, os performers sempre fizeram este tipo de investigação sobre o repertório a estudar, o estilo das obras, os seus compositores, a coerência do programa, as partituras originais, as suas edições ou a sua recuperação através de investigação, a sua interpretação, muitas vezes informada historicamente, o instrumento em si mesmo ou as características do agrupamento vocal ou instrumental executante, a acústica da sala, etc. A investigação feita por músicos sempre existiu, mas a sua tradução escrita não. Notas de programa, textos inclusos em edições de discos, CDs e DVDs, ou ocasionalmente artigos em revistas da especialidade, seriam as formas mais usuais de comunicação, por escrito, das conclusões ou resultados do processo de investigação informal que visava à performance e a sua qualidade. A documentação escrita, gravada ou filmada produzida durante a Artistic Research, também veio transformar o panorama da investigação em música, já que o performer, um investigador no seu próprio backyard, comunica os resultados do que investigou a uma comunidade alargada de musicólogos e músicos, a partir de uma perspectiva assumidamente subjetiva. O investigador é um dos participantes e está completamente envolvido no objeto de investigação quando não é ele próprio, enquanto músico, o objeto de estudo. Um novo paradigma de investigação veio definitivamente mudar o panorama da investigação e será necessária alguma distanciação temporal para organizar processos e métodos, para avaliar os resultados do ponto de vista científico e também artístico (CRUZ, 2014-2015, p. 78).

Conforme vimos anteriormente, entendemos a pesquisa artística de maneira mais ampla, e uma diversidade maior de métodos e abordagens podem se somar às ilustradas por Cruz em seu relato. Entretanto, diferentemente de Portugal e outros países mais avançados no tópico, o caminho a ser traçado na realidade brasileira ainda é de aceitação e posterior implementação institucional dessa perspectiva inovadora para a pesquisa acadêmica. As contribuições em potencial não serão refletidas apenas para os intérpretes que buscam uma capacitação no meio acadêmico, mas também à sociedade, através de profissionais da cadeia produtiva da Música mais seguros sobre como lidar com uma maior diversidade de práticas e conhecimentos, encontrando, enfim, uma razão para integrar de fato a pesquisa acadêmica em seu métier.

Com relação à terminologia referente à subárea estudada no presente artigo, nosso objetivo não é o de propor soluções, mas apenas sinalizar o problema. Seria oportuna a realização de um debate junto aos interessados, especialmente envolvendo as entidades que congregam intérpretes-pesquisadores, a exemplo da Associação Brasileira de Performance Musical (ABRAPEM) – que, inclusive, já traz em seu título uma proposta de nomenclatura. Trata-se de uma decisão coletiva; ela não será alcançada através das entrelinhas dessa ou de qualquer outra publicação acadêmica.

Por parte da academia, é importante, de começo, mudar a visão na qual o intérprete seria “menos competente” ou um mero “rebelde” no sentido de acatar e assumir o modus operandi hegemônico e estabelecido da academia por ser essa uma suposta obrigação dele quando assinou um contrato profissional com tais instituições. A universidade, as agências de fomento à pesquisa, as leis e regulamentos que regem o sistema educacional brasileiro nunca incluíram as Artes com todas as suas particularidades de fato; é necessário reconhecer que o espaço do intérprete na academia sempre foi relegado a uma “faculdade inferior”, nos termos utilizados por Borgdorff (2012). E estamos aí para mudar isso.

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Notas

1 No presente artigo, utilizaremos a palavra “intérprete” em referência a instrumentistas, cantores e regentes quando for de nossa lavra, ao invés dos termos performers, músicos ou musicistas. Um debate sobre o uso desses termos é oportuno, entretanto, por ora, foge à essência do que pretendemos abordar.

2 Um ponto a destacar para pesquisadores de outras áreas do conhecimento é que “música” – em minúsculas – certamente já era objeto de estudo desde a Antiguidade Helênica. Contudo, “Música - iniciando em maiúscula – ainda não era entendida na academia, nesse contexto, como uma área do conhecimento.

3 Tradução: “O Escopo, Método e Objetivo da Ciência da Música [Musicologia]”.

4 Interessante observar que no artigo citado, Rink diferencia “intérpretes” de “acadêmicos”. Tal fato personifica a distinção que ainda existe entre “músico” e “musicólogo”, “artista” e “pesquisador”, “Arte” e “Ciência”.

5 Uma curiosidade: Ruben López-Cano, em um artigo sobre a pesquisa artística na América Latina (LÓPEZ-CANO, 2020), afirmou que a pesquisa de doutorado do autor do presente artigo é uma “autoetnografia”; contudo, não há menção ao termo na tese, nem foi sinalizada a adoção dessa ferramenta na metodologia.

6 Borém e Ray (2012, p. 124-125) percebem problema semelhante ao tratar dos primeiros estudos de pós-graduação strictu sensu brasileiros da área de Música.

7 Existe um trocadilho na língua inglesa em referência a esse tipo de falha metodológica, baseada no termo research: “mesearch”.

8 Segundo o contexto ilustrado por Borgdorff (2012), até então, as únicas áreas do conhecimento autorizadas a emitir diplomas de doutoramento eram Medicina, Ciências Jurídicas (Direito) e Teologia.

9 Complementação de Borgdorff (2012, p. 6): “Atualmente, este desenvolvimento [da pesquisa através da prática artística] é caracterizado por uma diversidade de iniciativas, modelos e práticas, nas quais nem todas são comprovadamente frutíferas. Essa heterogeneidade é típica de um campo que ainda está se desenvolvendo e ainda não foi cristalizado completamente. Estabelecer um novo campo de pesquisa é algo que leva tempo – e gera alguns conflitos”.

10 Uma breve explanação: a interdisciplinaridade trata do diálogo entre disciplinas de uma mesma área do conhecimento e multidisciplinaridade se refere a estudos sobre um mesmo tópico, sendo cada um deles ancorado em uma determinada área e cujas conclusões podem se cruzar.

11 A essa característica, Borges (2019) se refere como alteridade, ou seja: a vivência/proximidade do pesquisador com seu contexto de investigação – que, nas “Práticas Interpretativas”, é recorrentemente próxima.

12 Devido à brevidade do texto, não foi possível exemplificar tais estudos mencionados pelos autores. Sendo assim, para maior aprofundamento, recomendamos a leitura das respectivas publicações.

13 É oportuno mencionarmos a Teoria do Gesto Musical de Robert Hatten (2004) que oferece uma abordagem inovadora em Teoria e Análise Musical ao considerar que não apenas a partitura e o compositor, mas também a literatura de fonogramas e interpretações devem ser consideradas para o estudo e compreensão de uma obra – colocando o intérprete em uma posição diferenciada em relação às pesquisas musicológicas tradicionais.

14 Tal fato também explica o uso recorrente de metáforas no intercâmbio e difusão de saberes no ensino e aprendizagem musical. Para maiores informações, recomendamos as leituras de Zorzal (2007) e Casari (2019).

15 Essa ferramenta tecnológica tem sido utilizada em livros didáticos para ensino do piano. Uma explanação mais pormenorizada pode ser encontrada em Cerqueira (2012).

16 Chamada de motion capture (MoCap) ou performance animation, essa tecnologia é mais utilizada em produções audiovisuais de Cinema (animação) e, particularmente, em jogos virtuais de futebol, nos quais os movimentos de jogadores profissionais são capturados por receptores óticos ou eletromagnéticos e replicados nos modelos 3D de suas respectivas réplicas virtuais. No Brasil, estudos na área de Dança já contam com o uso dessa tecnologia, como no “Elétrico” – Grupo de Pesquisa em Ciberdança (PIMENTEL, 2013). Em nível internacional, temos o exemplo de Jensenius et al (2009) e Jakubowski et al (2017).

17 A propriocepção diz respeito à capacidade de sentir e controlar os movimentos e o posicionamento das partes do corpo apenas pela sensação tátil. O professor de instrumento evoca a propriocepção em frases como “sinta seu pulso desativado” ao invés de “olhe o seu pulso desativado” – a segunda frase evoca a visão ao invés da sensação.

18 A educação somática trata do desenvolvimento de movimentos/habilidades motoras ao longo da carreira do intérprete, não se restringindo somente aos movimentos necessários para a preparação/construção da prática de uma obra musical em particular; seria um “repertório de habilidades” adquirido ao longo da vida.

19 Com base nessa questão, podemos afirmar que as práticas musicais e artísticas são essencialmente orais; mesmo sob processos sistemáticos de documentação, há informações cuja permanência só é assegurada se forem mantidas entre gerações de artistas e aprendizes. Logo, a melhor forma de registro é zelar pela sobrevivência dos agentes culturais, além de dar-lhes de condições adequadas para manutenção de suas tradições.

20 Alertamos que há denominações distintas para o que decidimos por chamar de “Pesquisa Artística”, a exemplo do sinônimo português; encontramos “Pesquisa Performativa” e “Prática como Pesquisa”, mas que na maioria das ocorrências não corresponde ao significado empregado nesse artigo. Outro termo visualizado, utilizado em Portugal, foi “Investigação Baseada em Arte” (tradução literal de Pratice-based Research).

21 É importante frisar que a documentação cinestésica/de movimentos já é uma realidade, sendo feita por eletrodos ligados ao corpo para captação em três dimensões. Games de futebol já fazem isso para registrar os gestos corporais de determinados jogadores. Contudo, a documentação da sensação tátil ainda é inviável, pois depende de mecanismos cognitivos internos nos quais apenas a reprodução de movimentos não assegura a plena compreensão.

22 A intuição, por exemplo, é apenas um tipo de pensamento humano diferente da razão; contudo, ela norteia diversas de nossas tomadas de decisão no dia-a-dia, afetando a realidade. Nas Artes, ela pode ser considerada uma forma de conhecimento.

23 Em referência a esse conceito, Borges utiliza a expressão “conhecimento tácito”. Na língua inglesa, o uso recorrente é pelo termo embodied knowledge.

24 Defendemos, inclusive, que essa é a mesma situação dos Mestres das Tradições Populares, uma vez que a oralidade e o desenvolvimento de habilidades através de informações “invisíveis” para as pesquisas acadêmicas tradicionais é similar ao que acontece com os artistas (CERQUEIRA, 2021).

25 Alertamos aqui para a classificação das áreas do conhecimento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que considera Artes Cênicas, Artes Visuais, Dança e Música como subáreas de uma grande área denominada “Linguística, Letras e Artes” – denominação que não concordamos. Por isso, trataremos das diversas linguagens artísticas como áreas individuais e autônomas do conhecimento.

26 Agradecimentos à Prof.ª Dr.ª Cássia Batista (UFMA) pelas conversas sobre a questão nas Artes Cênicas.

27 O dramaturgo ou teatrólogo tem papel mais semelhante ao do compositor na Música.

28 O coreógrafo, responsável pelo roteiro do espetáculo de Dança, também se assemelha à função do compositor.

29 Não apenas no presente artigo, o termo Performance aparece em itálico pelo fato de possuir origem latina, mas ter sido “reimportado” da língua inglesa sob outro sentido – razão pelo qual não é bem visto por alguns pesquisadores da área de Música no Brasil

30 Interessante observar que o adjetivo “performativo” tem sido preterido em relação a “performático”.

31 O autor usa o termo performer em referência a intérpretes.