Dossiê

 

SER PROFESSOR DE MÚSICA DE PROJETO SOCIAL: Narrativas musicobiográficas

TO BE A TEACHER IN MUSIC SOCIAL PROJECT: Musicbiographic narratives

Karina Firmino Vieira

UnB, Brasil

Delmary Vasconcelos de Abreu

UnB, Brasil

Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Continua
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/20848

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Resumo: Este trabalho é um recorte de uma pesquisa de Mestrado concluído, no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília (PPGMUS-UnB), cujo objetivo constituiu-se em compreender o que é ser professor de música, no bojo de projetos sociais. O trabalho dialoga com pesquisadores da área de Educação Musical em projetos sociais, com foco na qualidade da formação/ constituição do docente. O referencial teórico parte de conceitos inerentes ao ensino de música e suas implicações na aprendizagem, em uma perspectiva mais transformadora que reprodutiva, como Biografização na contemporaneidade e com reflexões sobre processos de constituição do sujeito e os conceitos de Lugar. A pesquisa se inscreve na perspectiva teórico-metodológica (Auto)Biográfica, cuja fonte foi uma entrevista, dessa natureza, com o professor de música Valdécio Fonseca, idealizador do projeto social “Música e cidadania”, realizado em Varjão (DF). A análise interpretativa prioriza a subjetividade do sujeito, a observação dos processos de reflexividade do agir e narrar sobre si do colaborador da pesquisa. Ao fazer uma escuta atenta, da palavra dada pelo professor, que aqui configura-se como de um outro-Autor, o professor Valdécio fez emergir, em seus discursos narrativos, as posturas, as escolhas, as tomadas de decisões e sua avaliação sobre acontecimentos escolhidos e narrados por ele. As conclusões indicam uma epistemologia do sujeito biográfico, o qual enlaça, nas narrativas da experiência, as razões e emoções capazes de levar um professor de música de projeto social a fazer o que fez. Na pesquisa (auto)biográfica em Educação Musical, o professor não conta como faz, mas o que fez de sua vida.

Palavras-chave: História de vida de Professor de música, Projeto social, Entrevista Narrativa (Auto)biográfica.

Abstract: This work is an excerpt from a completed Master’s research of Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília (PPGMUS-UnB), whose objective was to understand what it is to be a music teacher, in the midst of social projects. The work dialogues with researchers in the field of Music Education in social projects, focusing on the quality of teacher training/constitution. The theoretical framework is based on concepts inherent to the teaching of music and its implications for learning, in a more transformative than reproductive perspective, such as Biographization in contemporary times and with reflections on processes of constitution of the subject and the concepts of Place. The research is inscribed in the theoretical-methodological (Auto)Biographic perspective, whose source was an interview of this nature, with the music teacher Valdécio Fonseca, creator of the social project “Music and citizenship”, held in Varjão (DF). The interpretative analysis prioritizes the subjectivity of the subject, the observation of the reflexivity processes of acting and narrating about himself of the research collaborator. By listening carefully to the word given by the teacher, which here appears as another-Author, teacher Valdécio brought out, in his narrative speeches, postures, choices, decision-making and his evaluation of events chosen and narrated by him. The conclusions indicate an epistemology of the biographical subject, which links, in the narratives of the experience, the reasons and emotions capable of leading a social project music teacher to do what he did. In (auto) biographical research in Music Education, the teacher does not tell how he does it, but what he did with his life.

Keywords: Music teacher’s life story, Social project, Interview, (Auto)biographical narrative.

Introdução

O que é ser professor? Essa foi a primeira pergunta feita ao entrar no curso de mestrado acadêmico, no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília (PPGMUS-UnB) no ano de 2015. Eu me lembro de que no prólogo da dissertação havia uma epígrafe do poema Catar feijão de João Cabral de Melo Neto. E aquele poema fazia-nos lembrar de todas as dificuldades de escrever sobre determinado assunto, porque não é apenas escrever ou descrever. Mas escrever o quê? E sobre isso, o poeta orienta-nos: “Vamos, pegue seu feijão! Comece a catar, escreva o como se compreende e o que boiar no papel ou o que não estiver de acordo com o como sente, ou se compreende, jogue fora. É simples.” (MELO NETO, 2002, p. 23). Escreva somente o que sente, o que faz você se apaixonar. Sim, às vezes, corre-se o risco de encontrar as pedras ou outras coisas difíceis de mastigar. O poema nos alerta sobre isso também. Então, faça dessa escrita mais do que uma receita e sim uma deliciosa refeição. Um feijão saboroso com ingredientes únicos que deixam-no com um aroma irresistível. Posso dizer que, para catar meu feijão, tive, primeiro que pensar em alguns ingredientes constituintes (passado e presente) de minha vida. Minha jornada foi o ingrediente fundamental para a escrita da dissertação.

Em certas ocasiões, questionamo-nos para que vivemos e qual o objetivo dessa caminhada. O grande inquietante “por quê?” (PASSEGGI, 2016). As pessoas costumam dizer que o tempo ou a vida ensina. Se isto é verdade, quer dizer que ela nos educa. Mas como? Para quê? Se a vida e o tempo são professores pelo fato de nos ensinarem, depende de nós sermos bons alunos? São questionamentos os quais nos inspiram pensar no processo de ensino e aprendizagem a partir da história de vida de professores. Será que para essa compreensão preciso viver mais, construindo uma história de vida de professora, para dar sentido ao Tempo e a Vida como um sujeito do conhecimento e da experiência? Dito de outro modo, um sujeito epistêmico e que se reconhece no sujeito (auto)biográfico?

Catar feijão nem sempre é fácil, pois nem sempre nós questionamos o trajeto e acontecimentos até que o feijão esteja pronto para ser servido à mesa. Portanto, refazer esse caminho é o desafio para o qual lanço-me agora, tendo em vista o que afirma Delory-Momberger (2008, p. 527), “seguir atores” é dar-se a compreender os fatos narrados pelos professores constituídos professores de música em/de projetos sociais.

Existem dois bagos essenciais que influenciam no sabor do nosso feijão – a vida e o tempo – A vida de professores e o tempo da experiência. Trago a mesa, junto com a minha, a História de Vida profissional do professor de música, Valdécio Fonseca, idealizador do projeto social “Música e Cidadania” localizado no Distrito Federal. Está servido?

Quem é o professor de música Valdécio Fonseca, idealizador do projeto social Música e Cidadania, localizado no Distrito Federal? Por que contar essa história de vida profissional como professor de música de projeto social? E qual seria a contribuição disso para a área de Educação Musical? Espero, ao final das narrativas, apreender e sentir os sabores da experiência e da vida de professor de música de projeto social.

Selecionando os grãos: objetivos tecidos pelo estado do conhecimento

Ao me propor contar uma história, abro este tópico com a frase de DeloryMomberger (2008, p. 35): “não fazemos narrativa porque temos uma história, temos uma história porque fazemos narrativa”. Mas para contar esta história, primeiramente, entendo que devo dialogar com outros que já contaram histórias parecidas, até para não ser redundante e trazer novidade. Para tanto, dialoguei com a literatura da área de Educação Musical com foco na temática música e projetos sociais, para assim tecer o meu objeto de estudo, que é a história (de vida) do professor de música Valdécio Fonseca no projeto social, Música e Cidadania do Distrito Federal.

Ressalto que esse tema entrelaça-se com a minha história nesses contextos, tanto como professora, quanto como aluna de música em projetos sociais. Somos conhecedores e apontamos, de acordo com Padronav e Freitas (2013, p. 120), que um tema de pesquisa poderá surgir de diferentes maneiras, seja pela curiosidade científica, da análise feita na leitura de outros trabalhos, de uma dificuldade prática encontrada pelo pesquisador, ou até mesmo de sua experiência de vida. Abarquei todas essas possibilidades na construção da temática, até chegar aos objetivos estabelecidos.

Começo pelas experiências pessoais adquiridas no contexto de projetos sociais. Pois, de acordo com Jossô (2004), as narrativas de experiências de formação possibilitam explicitar singularidades, vislumbrar o universal e perceber o caráter processual da formação e da vida. Isso ocorre por meio da articulação entre espaços, tempos e nas diferentes dimensões de nós mesmos, em busca de uma sabedoria de vida. Também permite que a utilização das experiências pessoais transforme-se em recurso para reflexão científica.

Eu me lembro dos momentos iniciais da paixão por fazer curso de música. Sentada no jardim, sempre acompanhava minha avó em um café. Ela sabia que nesse mesmo horário, meninos vestidos de uniforme, trazendo uma pasta nas mãos e uma flauta doce, passariam pela rua.

Já naquela época, minhas brincadeiras preferidas eram ligar o rádio, no volume máximo, e fazer minhas interpretações musicais, com um microfone feito de escova de cabelo, cujo público e plateia eram meus ursos de pelúcia. Minha avó associou essa prática à dos meninos flautistas que desciam a rua. Certa vez, ela ficou na frente da casa esperando os meninos passarem, e abordando-os, perguntou para onde iam todas as tardes. Eles responderam que era para a escola de música. Logo mais, minha avó tomou-me pelas mãos e, juntas, seguimos até a escola de música. Ao chegarmos, deparamo-nos com alguns jovens tocando diversos instrumentos musicais presentes numa orquestra. As diferentes sonoridades envolveram-nos completamente, e, por isso, a minha avó não hesitou e procurou imediatamente o professor que se chamava Luís, para matricular-me. Desse modo, em pouco tempo de curso, eu sabia ler, solfejar e tocar flauta doce. Passei a ser um desses meninos e meninas que desciam a rua da minha avó, com uma pasta e uma flauta doce nas mãos. E tempos depois, com um instrumento escolhido por mim, ou seja, uma flauta transversal. Dessa maneira, as minhas tardes passaram a ser preenchidas com a música.

Fui crescendo e vendo crianças como eu aparecerem na escola querendo participar do projeto social. E, do mesmo modo, elas ganhavam uniformes, pasta e flauta doce. Porém, tendo a mesma oportunidade e igualdade de condição de tocar flauta fui percebendo que eu queria muito mais que aprender. Eu queria também ensinar! Foi assim que me tornei “monitora júnior” do professor Luís. O professor propôs que eu o ajudasse nas aulas e, em contrapartida, a escola me daria uma bolsa integral como incentivo.

Assim, o professor Luís se preocupava em encaminhar ou criar oportunidades para os jovens que se mantivessem comprometidos com a aprendizagem musical. Da mesma maneira como fez com outros jovens, ele ajudou no meu desenvolvimento como pessoa tanto quanto como profissional da área de música. Fui aprendendo e ensinando, ao mesmo tempo, inclusive alguns valores para a vida. O tempo passou e o projeto social ao qual nos referimos continuou, porém com algumas diferenças substanciais no agir de seus mentores.

No decorrer desse projeto, mudaram-se os professores e esses outros pareciam mais preocupados com a manutenção da orquestra do que com as pessoas que a compunham. Não havia mais o mesmo acolhimento para os jovens. Nesse âmbito, não bastava ensinar a tocar, era preciso mais. O conservatório da capital do estado do Pará (Belém) doava instrumentos musicais, uniformes e outros materiais. Mas, isso não era o suficiente, os jovens daquele lugar precisavam suprir outras necessidades para poder fazer música.

Com a evasão, foi natural a falta de visibilidade desses jovens nas apresentações musicais em eventos, principalmente de grandes empresas. A invisibilidade é pior que a fome. Como afirma Bauman (2009, p. 666), “as mudanças vêm e vão e muita gente está convencida de que existem alternativas, mas que são invisíveis porque ainda estão muito dispersas”. Com a falta de incentivo, de patrocínios, a responsabilidade social tudo se torna vulnerável. E, como diria Bauman (2009, p. 666), “os compromissos tendem a ser evitados, a menos que venham acompanhados de uma cláusula de até nova ordem”.

Comecei a perceber que o incentivo para fazer música ia muito além da vontade dos jovens envolvidos em querer tocar um instrumento. Era preciso criar condições para que eles continuassem aprendendo música. Então, sem exibicionismo nenhum, posso dizer que tive essa condição, em detrimento de muitos. Meus pais levaram-me para estudar em um conservatório de música, na capital do estado do Pará. Mas uma pergunta é latente: e aqueles outros jovens que lá ficaram? Qual foi o rumo que tomaram?

Passei grande parte da minha juventude estudando no conservatório. Lá aprendi a incomodar-me com o modo de ensinar música. Também, passei a testar-me, em relação à essas práticas de ensino, trabalhando como voluntária em projetos sociais. Verifiquei, então, que os métodos de ensino tinham os mesmos fundamentos, porém a minha forma de ensinar continuava como daquela monitora júnior de projeto social, preocupada com o sujeito aprendiz. Assim, constatei que no conservatório a preocupação é com a técnica. E diante disso, tornei-me técnica em flauta transversal. O curso técnico em música do conservatório e a licenciatura em música legitimaram-me como profissional, mas era da profissão professor de música de projeto social que eu sentia saudades.

Dessa saudade alimentei-me. Pois, eu havia sido preparada, na infância e juventude, por um professor de música de projeto social. Tive o privilégio de ter um professor que ensinava em uma perspectiva humana e que fazia tudo o que podia para prover as faltas de seus alunos, a falta do que comer, do que vestir, do sapato e da flauta doce, do afeto e do acolhimento. Pois, aquele era um professor que sentava do nosso lado para nos ensinar lições de música e lições de vida. Essas lembranças foram decisivas. Assim eu queria ser e fazer! Voltei, então, a dar aulas em projetos sociais.

Não há dúvidas de que estar em grandes orquestras fazia meus olhos brilharem, mas ser professora de música de projetos sociais me emocionava, fazia sentir-me útil. Era como agradecer a oportunidade que tive antes, devolvendo-a aos outros. Observar os meus alunos tocando juntos, a sorrir e a sonhar com as mesmas orquestras que, um dia, eu sonhara, era mais que satisfatório, era uma realização. Se seriam bons músicos, eu não tinha certeza, contudo, notadamente, percebiam-se como família, compartilhavam o pão, a água, a partitura, sons e sonhos. Meus alunos eram indivíduos tão jovens, mas que sabiam o valor da partilha e da amizade.

Hodiernamente, como professora licenciada em música, compreendo, de forma ampliada, que no âmbito dos projetos sociais, tem-se como premissa o fator social do aluno procurando promover melhores condições de vida por meio da música. Saber tocar bem um instrumento musical pode assegurar a oferta de caminhos profissionais. Isso é fato. Porém, saber tudo isso, e, ainda, comprometer-se com cuidados sobre as vidas dessas pessoas é uma escolha bem válida. Percebe-se que há muitos com uma trajetória semelhante a minha, e que iniciaram seus estudos de música em projetos sociais, e após serem legitimados, reconhecidos socialmente como músicos e professores de música, muitas vezes, escolhem voltar para esse lugar, como eu escolhi.

Falar sobre isso, dessa maneira, significa, conforme aponta DeloryMomberger (2012, p. 535), recorrer ao “topoi biográfico”. Dito de outra forma, constituir-se professor de música com o lugar de fala. Nesse sentido, ser professor de música em projetos sociais é o que me intriga, ao longo desse tempo de experiência nesses contextos.

Tenho claro que somente narrar minha experiência formativa nesses contextos não daria conta de fertilizar tais sementes para germinar a construção de uma problemática de pesquisa. É preciso mais. Por isso, buscam-se na literatura da área de educação musical ressonâncias com esse assunto.

A área de Educação Musical possui história consolidada. E, nesse escopo, são vários os pesquisadores que se propuseram a constituir e a contar essa história. E é com eles que sigo, catando meus feijões, fertilizando-os, no intento de chegar aos objetivos desta pesquisa.

Na peneira, o que dizem pesquisadores da área de Educação Musical sobre projeto sociais

A Educação Musical faz-se cada vez mais presente no contexto dos projetos sociais e, dessa forma, instiga novas pesquisas e com mais aprofundamentos. Isso nos leva a pensar nas escolhas e preferências de professores de música por atuarem nesses contextos socioeducativos. Tanto a literatura de Educação Musical, quanto da Educação e da Sociologia sinalizam para a existência de uma força motriz que leva alguns professores de música a atuarem nesses contextos e de se posicionarem como agentes sociais. E dessa forma, esses professores promovem, no ensino-aprendizagem da música, uma relação entre pessoas e músicas como um meio de transformação social.

Dentre alguns autores que dissertam sobre projeto social e Educação Musical, citam-se: Arroyo (2000); Muller (2004); Kleber (2008); Gohn (2011); Queiroz (2013); Nascimento (2014). Porém, eu escolhi fazer uma aproximação com as ideias de Kater (2004), por entender que o professor de música de projetos sociais é capaz de propiciar movimentos para uma Educação Musical humanizadora, como ele afirma.

Os projetos sociais, segundo Vasconcelos (2007), são idealizados por um grupo de pessoas com intuito de mudar uma realidade social. Pois, os projetos são como uma ligação entre o desejo e a realidade. Assim sendo, buscam diagnóstico sobre um problema real específico, agem sobre ele e, assim, contribuem para o desenvolvimento social. Para esse autor, a educação musical em projetos sociais envolve diversas perspectivas de ensino, tanto musical como social, pois o ensino é um processo social. E, nesse sentido, se o ensino é um processo social, existe relação dessas perspectivas com o meio ambiente e contexto onde vivem e criam significações.

Dessa maneira, esses projetos sociais, geralmente, são pensados e propostos para solucionar um problema ou uma necessidade social. Seus objetivos são definidos em função de um problema, “oportunidade ou interesse de uma pessoa, grupo ou organização” (MAXIMINIANO, 1997, p. 20).

Desse modo, pode-se afirmar que a área de Educação Musical tem um papel significativo na sociedade, especialmente nos contextos socioeducacionais, como é o caso dos projetos sociais. Essa responsabilidade leva-nos a pensar na figura do professor de música que atua nesses contextos sócio educativos como um profissional que se constrói com o lugar. E, assim, comprometido com ações pedagógico-musicais implicadas com a vida, com as relações humanas, criando laços de pertencimento.

A relação das pessoas com o ensino de música em projetos sociais envolve diversas situações, perpassando pelas relações sonoras e não sonoras. Isso significa dizer que os problemas que envolvem as relações de pessoas e música, nos aspectos de apropriação e transmissão do conhecimento musical, passam por questões humanas também. Isso é o que Kater (2004) propõe e discute, ao longo dos anos. Para ele, uma epistemologia de Educação Musical deve partir da perspectiva de Educação Musical para a vida, com ensino de música pensando no ser humano como o centro das reflexões. As ideias de Kater (2004) vão na direção de uma Educação Musical humanizadora.

Ao dialogar com Kater (2004), procuro fazer uma aproximação com o conceito de gestão biográfica de Delory-Momberger (2012). Isso porque, ao construir a gestão biográfica com o lugar, o professor de música constrói relações de pertencimento com os projetos sociais, cuja história de vida profissional está imbricada com esse contexto socioeducacional. Talvez, isso amplie compreensões para algumas inquietações de Kater (2004) sobre a “qualificação da formação pessoal do próprio educador, com enfoque humanizador da Educação Musical [...] como meio de conscientização pessoal e do mundo” (KATER, 2004, p. 43).

A respeito dessa conscientização pessoal e do mundo, bem como da qualidade da formação pessoal do próprio educador, como Kater (2004) menciona, e no olhar de Delory-Momberger (2012), tratando das relações de pertencimento do professor de música nos projetos sociais, eu esclareço que compreendo a figuração de um professor como parte do próprio projeto social, estando diretamente imbricado com o contexto. Nesse sentido, há uma retroalimentação do sujeito com o contexto. Ou seja, agir biograficamente com o lugar – projeto social – é construir representações de si e do próprio projeto social – “topoi biográfico” (DELORY-MOMBERGER, 2012. p. 535). Essas construções são tidas como lugares de reconhecimento e chaves de interpretação de si.

Segundo Kater (2004), tanto a música quanto a educação são produtos da construção humana e, por meio dessa conjunção, surge uma ferramenta que possibilita o conhecimento e o autoconhecimento. Desse modo, é possível compreender que a educação musical em projetos sociais possui a função de promover no indivíduo a consciência de si e do mundo, de forma mais abrangente e criativa, pois entre as funções da educação musical “teríamos a de favorecer modalidades de compreensão e consciência de dimensões superiores de si e do mundo, estimulando uma visão mais autêntica e criativa da realidade” (KATER, 2004, p. 44). Portanto, o foco é “proporcionar resultados educativos de grande valor, não só no que concerne à formação musical, mas também no referente a outras dimensões da formação humana” (SANTOS, 2006, p. 06).

Como se nota, segundo Kater (2004, p. 46), a Educação Musical possui “tanto a tarefa de desenvolvimento da musicalidade e da formação musical quanto o aprimoramento humano dos cidadãos pela música”. Portanto, esses projetos devem apresentar propostas consistentes, centradas numa concepção sociotransformadora, compreendendo e valorizando as diferentes realidades socioculturais de cada contexto.

Esse diálogo com a literatura, especificamente, com Kater (2004), encaminhou-me para as seguintes questões: Como um professor de música de projeto social constrói o seu processo formativo com esses contextos? O que leva esse profissional a escolher ser professor de música de projetos sociais? Como as experiências da formação o tornam um professor de projeto social? De que modo esse profissional se coloca numa posição de agir na e para a transformação social, por meio da sua relação com a música? Para responder essas questões tomei como objetivo geral compreender o que é ser professor de música em projetos sociais. E os desdobramentos consistiram em entender o que leva esse profissional a escolher ser professor de música de projetos sociais, e, assim, fazer emergir as experiências da formação desse profissional do contexto de projeto social, na sua reflexão sobre o modo como se coloca numa posição de agir na / para a transformação social por meio da música.

Diante disso, norteada pelos objetivos da pesquisa, apresento de forma sucinta os conceitos que reforçaram as reflexões construídas ao longo desta pesquisa.

A representação de si no movimento das experiências constitutivas

Ao refletir com a filosofia da Educação Musical, na perspectiva de Wayne Bowman (2001, 2002, 2005, 2007, 2012, 2014), e da Biografização do sujeito na contemporaneidade, discutida por Christine Delory-Momberger (2008, 2012), promove-se um princípio de juntabilidade de conceitos que dão sentido e significados da representação de si, do sujeito no movimento de suas experiências que o constitui. Esses princípios requerem compreensões de que tipo de pessoa e sociedade se quer e se necessita. Isso leva-nos a uma questão central da Educação Musical: Que tipo de pessoas desejamos ser por intermédio da música? E essa questão nos faz pensar sobre que tipo de professores desejamos ser e que tipo de pessoas desejamos formar, por intermédio da música, e se isto está condescendente para o desenvolvimento de uma sociedade melhor, por meio da Educação Musical. Essas são questões fundamentais que nortearam a pesquisa.

Ao contextualizar sobre a música e seu valor, o filósofo da Educação Musical Wayne Bowman (2001, 2002, 2005, 2007, 2012, 2014) acredita ser de suma importância que a área de Educação Musical discuta temas que envolvam o ensino de música e suas implicações de aprendizagem numa perspectiva mais transformadora do que reprodutiva. Há uma preocupação do autor com uma Educação Musical que pense como as pessoas compreendem música e a partilham. Nesse sentido, a Educação Musical não trata somente sobre música, mas, sobre alunos, professores e “tipos de sociedades que juntos esperamos construir” (BOWMAN, 2005, p. 75, tradução nossa). Esse autor defende que a filosofia da educação musical, além de abordar a natureza, o valor e o significado da música, precisa falar do “tipo de pessoas que desejamos ser através da educação musical” (BOWMAN, 2005, p. 75, tradução nossa).

O mesmo autor, ainda, chama a atenção para a necessidade de refletirmos sobre princípios éticos educativos-musicais. Pois, o problema parte do ato de ensinar música a um indivíduo detentor de problemas sociais que o afetam diretamente e que tem algum tipo de relação com fenômenos sociopolíticos, muitas vezes podendo ser refletidos, pensados e/ou solucionados por meio da música, como meio de alcance, resolução, reflexões dos problemas e das relações dos indivíduos com a sociedade (BOWMAN, 2007).

Portanto, como pensar a formação de pessoas por meio da música como um fato, fenômeno e construção social coexistindo com problemas sociais? Esses processos formativos são construídos na responsabilidade social de um ensino de música justo e detentor de equidade para todos os envolvidos neste processo formativo?

Na perspectiva de Bowman (2007, p. 117, tradução nossa), as “fronteiras devem ser porosas”, cujos processos formativos do sujeito sejam globais, por meio de uma Educação Musical humanizadora. O autor adverte, porém, que o professor deve expandir seus horizontes, instigando seus alunos a desejarem construir conhecimento coletivamente, com a pluralidade de singularidades.

Isso significa dizer que as epistemologias da Educação Musical contemporânea abarcam pluralidades e diversidades de sujeitos, que nas suas singularidades compõem o que chamamos de social, cultural, musical e educativo musical em projetos sociais. Essas ligaduras entre o que somos e o que fazemos, nessas diferentes perspectivas, são feitas pelo sujeito, que na sua condição biográfica no mundo contemporâneo, se constitui com o lugar.

O lugar pode ser o “espaço-tempo” que permite várias formas de deslocamento “onde se pensa, questiona e produz a profissão” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 78). A autora parte do pressuposto que o lugar do indivíduo é onde ele se reconhece, sendo que podem ser vários lugares simultâneos uma vez que, “homens habitam os espaços e os espaços os habita; eles constroem o espaço e o espaço os constrói; eles fazem significar o espaço, e o espaço confere sentido aos seus e à sua ação” (DELORY-MOMBEGER, 2012, p. 70). Assim, é possível pensar, com a autora, que o professor constitui novos lugares, portanto, novas construções de si com o lugar.

Nesse caso, o lugar pode ser compreendido como a própria obra arquitetônica em que funcionam as atividades sociomusicais do projeto social, assim como a pessoa física do professor que, ao propor movimentos sociomusicais, torna-se um lugar de constituição, orientação de organização para o ensino de música no projeto social. Também, o projeto social pode ser entendido como um lugar constituído pela experiência, valores, constituições e significações do professor de música, agindo com e no projeto social com reflexões e por práticas que, no caso da música, possibilitam uma formação sócio musical (DELORYMOMBERGER, 2012).

Dessa forma, tais perspectivas tratadas pelos autores supracitados revelam a necessidade de compreendermos o processo de musicobiografização – conceito tratado por Abreu (2019, 2020) – de um professor de música, como é o caso, pois a musicobiografização permite emergir seus questionamentos e reflexões a respeito das relações entre a construção de “[um] si mesmo como um outro” (RICOEUR, 2014, p. 12) com a refiguração de sentidos de sua história de vida com e no projeto social. O que significa trazer à tona a música como processo de sua biografização. Trata-se de compreendermos que no processo de musicobiografização o professor constrói, na narrativa, a figura de si, constituindo-se a própria condição biográfica no projeto social. Assim, o processo de biografização produz, por meio de um capital biográfico, material biográfico (DELORY-MOMBERGER, 2012).

Por fim, compreende-se, por meio dos conceitos aqui apresentados, que o sujeito constitui lugar em si mesmo e que, dessa maneira, na reflexividade e na historicização de sua experiência é que poderá religar o mundo na figura de si.

A Pesquisa (Auto) Biográfica: aspectos teórico-metodológico e perfil biográfico

Esta pesquisa se inscreveu na perspectiva teórico-metodológica (Auto) biográfica, de Delory-Momberger (2008, 2012), a qual “analisa os efeitos da educação sobre os processos de biografização, no campo de tensão entre as disposições e condutas individuais e os âmbitos estruturais da socialização”, com ênfase nas histórias de vida, na vertente da pesquisa narrativa (auto)biográfica (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 25).

Os caminhos metodológicos empregados para alcançar os objetivos da pesquisa comungaram do pensamento de Delory-Momberger (2012), de que a postura da Pesquisa (Auto)biográfica é “mostrar como a inscrição forçosamente singular da experiência individual, em um tempo biográfico, situa-se na origem de uma percepção e de uma elaboração peculiar dos espaços da vida social” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 524).

As dimensões narrativas dizem respeito às fontes de informações, ao registro do percurso, que é constitutivo da produção de informações e ao modo de produzir conhecimento. Isso ocorre uma vez que as informações dos sujeitos das pesquisas são produzidas, de forma reflexiva, a partir das narrativas escritas pelo pesquisador. A Pesquisa (Auto)biográfica é relevante para se compreender as posições e papeis ocupados pelos indivíduos na estrutura social. Portanto, reconstruímos o sentido de nossas vidas narradas, quando relacionamos o mundo com as nossas construções biográficas e as compreendemos nas relações de ressonância com a nossa própria experiência biográfica (DELORYMOMBERGER, 2008). Para a autora, a forma de expressão mais imediata para demonstrar a representação mental, pré-escritural de uma biografia são as narrativas. A autora esclarece que os princípios do discurso narrativo, além de orientar quanto aos objetivos do sujeito em narrar determinados fatos, consistem em organizar a sucessão dos fatos, as sintaxes das ações e das funções, a dinâmica transformadora entre sequências de aberturas e de fechamento dos acontecimentos. Nesse sentido, a narrativa apresenta-se como a linguagem do fato biográfico, como o discurso no qual escrevemos nossa vida.

Assim, ao narrar a sua própria história, o indivíduo age e produz ação. E essa ação deixa rastros de conhecimentos produzidos e de experiências adquiridas. Portanto, no ato de contar a sua história é possível produzir narrativas formativas refletidas no texto. O relato não é somente o produto de um ato de contar, ele tem também o poder de produzir efeitos sobre aquilo que relata.

A história de vida que se desenvolve pela narrativa (auto)biográfica, no ato de narrar é o momento em que o sujeito forma-se, elaborando e experimentando a sua história de vida, por meio da inteligibilidade biográfica, refletindo sobre como esse sujeito apreende e compreende sua vida ao recontá-la. O objetivo da narrativa (auto)biográfica não é apenas descrever fatos narrados pelo sujeito da pesquisa, e muito menos “reduzir a narrativa a premeditados interesses do pesquisador, mas seguir os personagens procurando as formas de existência do narrador” (DELORYMOMBERGER, 2008. p. 57-138).

O perfil biográfico do professor Valdécio Fonseca, foi traçado por meio de fontes documentais e da entrevista narrativa (auto)biográfica. Sua vida é traçada com o projeto social Música e Cidadania, fundado por ele no ano de 2007, no Varjão, região administrativa de Brasília (DF). Ele fundou a Associação Comunitária com 40 alunos, utilizando instrumentos musicais do seu acervo pessoal.

Atualmente, o projeto atende crianças e jovens de 07 a 18 anos, ofertando cursos de instrumentos sinfônicos. As instalações do espaço contam com: cinco salas de aula com revestimento acústicos; uma sala de instrumentos para uso diário e também para empréstimos aos alunos do projeto que não possuem instrumento próprio. Possui também uma sala de ensaio ampla; copa e cozinha disponível aos alunos e professores do projeto.

Os grupos musicais do projeto são cinco: 1) “Banda Primeiros Sons”, formada por alunos iniciantes nos instrumentos de sopro e percussão; 2) “Orquestra Primeiros Sons”, formada por alunos iniciantes nos instrumentos de cordas; 3) “Banda Tocando Sonhos”, formada por alunos avançados nos instrumentos de sopro e percussão; 4) “Orquestra Tocando Sonhos”, formada por alunos avançados nos instrumentos de cordas; 5) “Brasília Sopro Sinfônica Tocando Sonhos” (grupo mais avançado do projeto social “Música e Cidadania”), formado pelos alunos mais avançados do projeto, bem como pelos jovens da “Escola de Música de Brasília” e formandos em Música da “Universidade de Brasília” que participam do projeto como alunos ou professores.

O ensaio da “Brasília Sopro Sinfônica Tocando Sonhos” funciona no Teatro Dulcina de Moraes, localizado em Brasília (DF). E nesse teatro, o professor de música Valdécio Fonseca concedeu-me a entrevista. Enquanto os seus alunos ensaiavam para uma apresentação, nos dirigimos para fora do teatro, de maneira que não atrapalhasse o decorrer do ensaio. Posteriormente, fiz a transcrição da entrevista evidenciando temáticas que dão lugar a uma boa história narrativa, que mantêm o caráter narrativo na pesquisa, pois conforme aponta Bolivar (2012, p. 92), “o forte tratamento categorial analítico deixa de ser narrativo”.

Embora tenha feito, nesta pesquisa, uma análise interpretativa fundamentada na compreensão das interpretações e ressignificações que o sujeito da pesquisa fez de si, optei trazer, para este trabalho, uma narrativa rearranjada, porém contada por ele mesmo, explorando a capacidade de abstração do professor Valdécio Fonseca colocando-o como um especialista e teórico de si mesmo. Um sujeito que se coloca numa posição de mudar o fazer, com tomadas de posições avaliativas, ajustando sua ação com a realidade, de produzir teorias musicobiográficas capazes de ajudar, em nossa concepção, na transformação social.

A musicobiografização do professor Valdécio Fonseca narrada por ele mesmo

No início deste artigo, eu contei a minha história com o projeto social, a partir do entendimento de que o pesquisador, muitas vezes, se apropria de sua experiência como tema para dialogar com autores e o autor da história de vida investigada. Neste caso, a História de vida do professor de música Valdécio Fonseca, no projeto social Música e Cidadania do Distrito Federal. As narrativas produzidas foram, por mim, encadeadas em forma de intriga, tanto que, em alguns momentos, trago minhas reflexões para o diálogo com ele e com aqueles produzidos anteriormente, com outros autores. Mas, a narrativa (auto)biográfico foi produzida pelo próprio autor.

Nascido na periferia de Belo Horizonte, Minas Gerais, o professor Valdécio, quando ainda aprendiz, frequentava o projeto social do Maestro Guimarães que se dedicava a ensinar música para os meninos da periferia. Valdécio quis, então, seguir os passos daquele, pois foi quem lhe deu forças para fazer o que faz hoje. As marcas iniciais da narrativa são constituídas com o lugar, os primeiros investimentos musicobiográficos. Como bem esclarece Delory-Momberger (2012), o lugar está “em si mesmo e não pode se religar ao mundo a não ser por meio da reflexividade e na historicidade da sua experiência” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 144).

A música e a figura do professor do entrevistado foi o marco inicial para gerar sentidos e significados na vida dele. Ele nos convida a pensar na relação das experiências formativas de professores, como algo desafiador e instigante, porque ao narrar as experiências formativas constrói-se possibilidades de perceber o sujeito da experiência como um desafio de construção da sua musicobiograficidade. Cumpre, nesse sentido, compreender que o saber necessário para sermos docentes é aquele que está unido a nós, que nos constitui, que está incorporado.

Ao tornar-se professor de música de projeto social, Valdécio Fonseca se constitui como sujeito da experiência com o outro. Ou seja, como um professor que incorpora na profissão aquilo que fez sentido na experiência do outro. E essa experiência do outro, no caso do seu professor, o maestro Guimarães, é o que Valdécio Fonseca aplica em suas práticas como, por exemplo, “montar uma banda, ensinar meninos da periferia, participar da vida do aluno e o cuidado na formação humana e musical” desses jovens. Essa narrativa de Valdécio Fonseca encontra ressonâncias nas palavras do maestro Levino Ferreira de Alcântara, fundador da Escola de Música de Brasília, que uma entrevista concedida a Abreu (2016, p. 133) aponta: “os jovens precisam acreditar em si mesmos, para saber que vão influenciar outras pessoas. Para pensar um mundo melhor, deve-se iniciar pelas crianças”.

No entanto, para a produção dessas práticas exigem-se singularidades próprias, alguém que tenha um jeito próprio de ensinar, como exemplificado por ele, Valdécio Fonseca: “O maestro aplicava primeiro a teoria musical e depois a prática instrumental. Eu já faço diferente, primeiro o menino sopra, experimenta o instrumento e o seu som. Se o menino está confortável e quer estudar, tocar, eu ensino. Tenho o meu próprio jeito”. Há, nesse sentido, formas para educar musicalmente, isto é, o aluno expressa jeitos de aprender. Isso pode significar que um professor constrói o seu modo de ensinar a partir do modo como pode experienciar durante a sua formação.

Na singularidade do professor de música estão os conteúdos, metodologias e práticas musicais que podem ser reproduzidas ou trabalhadas de forma parecida com a do aprendizado porém, a experiência dessa prática é única, uma vez que cada delas é formativa e faz parte do processo de musicobiografização de cada profissional da área.

A preocupação do professor Valdécio, em relação aos seus alunos, vai além de apenas ensinar tocar um instrumento ou executar bem um exercício musical. Ele entende que é preciso ter disciplina para tocar um instrumento, mas ao mesmo tempo é o aluno quem decide ter essa disciplina, ou não. Isso pode ser aclarado no relato que trata da época em que era aluno e de suas escolhas por se manter na banda: “A leitura musical era chata e enfadonha e os alunos iam desistindo. De uma turma de cem alunos restaram apenas três, eu e mais dois, da primeira turma formada pelo maestro Guimarães no projeto social”. Esse, portanto, é um relato que mostra a persistência em querer continuar sua aprendizagem musical com banda. A persistência, tanto dele como dos outros dois colegas e do professor, tornou possível a idealização e concretização de um projeto musical com bandas de música.

O que é possível perceber nesse relato é o querer, a vontade de continuar com o projeto do vir a ser músico, como bem esclarece Queiroz (2015) quem defende que os jovens que querem continuar fazendo música, ao longo de suas vidas, trazem na construção desse projeto de si a música não apenas como uma atividade cotidiana, mas como um projeto de vida profissional (QUEIROZ, 2015, p. 130)

E isso é o que o professor Valdécio escolheu para a sua vida. Ainda no início de sua juventude, esse projeto delineou-se cada vez mais, e de forma mais contundente como músico de banda, a partir de sua entrada no serviço militar. E, na sequência sua carreira como músico de banda do Exército, o que ocorreu anos mais tarde. Depois de algum tempo, Valdécio conta que foi transferido para Brasília (DF).

Assim que chegou na Capital Federal, Valdécio relata que foi transferido para Tefé (AM) e naquele espaço adquiriu experiência na formação de bandas com ações socioeducativo-musicais. Para ele, uma experiência de formação musical de jovens “emocionante porque aprenderam a tocar, tanto que, quando fui embora, os meninos tocaram; e a banda está lá até hoje”. Ou seja, além de formar músicos, foi consolidada a permanência de uma banda naquela cidade.

E, com essa primeira experiência, Valdécio foi se tornando professor de música de projetos sociais. Pensando no professor de música de projeto social como sujeito da experiência, encontramos em Passeggi (2016) estudos que elucidam como esse sujeito se constitui. Para a autora, o sujeito se constitui como epistêmico e biográfico. Neste caso, “o sujeito epistêmico detém um conhecimento musical e sujeito biográfico é aquele que tem uma vida-formação com a música, podendo constituir-se, desse modo, como sujeito da experiência” (PASSEGGI, 2016, p. 80).

Ao tratar da constituição de Valdécio, como professor de música de projeto social, trago as narrativas que elucidam esses acontecimentos. Ele contou que elaborou um projeto de implementação de banda, tendo oferecido, primeiramente, para as “escolas públicas e particulares e também para outros órgãos públicos”. Mas, nem sempre seus argumentos foram o bastante para o convencimento dos dirigentes desses locais. Segundo Valdécio, ele recebeu muitos “nãos”. Desse modo, os desafios foram enormes, mas ele não desistiu da ideia, como ele próprio narrou: “aquilo era o meu sonho, e quer saber de uma coisa vou começar com o que eu tenho mesmo, vamos ver no que vai dar”.

Foi, então, com a ajuda de um amigo, que o professor Valdécio montou seu primeiro projeto social em uma pequena comunidade chamada de Varjão, no Distrito Federal. Ele contou também que, quando chegou àquele lugar, chamado Varjão, e verificou as necessidades das crianças, lembrou-se de que também tinha vindo “de um lugar longe, e não tinha nada, mas que alguém abriu as portas para a música”. E, por “praticamente ter se agarrado nisso”, o professor compreendeu que poderia dar essa contribuição à comunidade, pois como narra: “o pouco que eu sou, devo a música; não é justo eu ficar com isso para mim; é um conhecimento adquirido que não dá para ficar só com você”.

E foi assim, com esse agir progressivo que ele iniciou os seus trabalhos como professor de música no projeto social de Varjão (DF). Iniciou o projeto dispondo de poucos recursos materiais, e com seus próprios instrumentos musicais: “um sax, um clarinete e um sousafone que havia ganhado”. E para dar sustentação ao projeto ele conta que criou uma “Associação de Moradores”. O seu agir estratégico de envolver a comunidade, como ocorreu na experiência adquirida na implementação da banda de música, na cidade de Tefé (AM), se configurou no projeto de Varjão (DF).

Assim, o professor tomou a inciativa de instituir o projeto social, via Associação de Moradores, reconhecendo nesse procedimento o fortalecimento não só do seu trabalho, mas também da comunidade. Essa atitude cria um sentido de lugar no sujeito que pode ser construído por diversas maneiras, haja vista que a singularidade profissional do professor de música se constitui por meio de suas experiências tornando-a única e pessoal. E desse modo, reconhece, as experiências do sujeito como “topoi”, construindo-se com base nas opções, nas escolhas, nos motivos recorrentes, nas práticas, nas negociações e confrontos do seu “topoi biográfico” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 535), como professor de música de projeto social. O professor Valdécio toma o conhecimento adquirido como experiência, como um processo de musicobiografização da experiência, mediante a sua ação e tendo a música como objeto. Em outras palavras, o modo que Valdécio escolheu para se aproximar e ajudar a quem precisava, foi pelo ensino de música, criando grupos musicais como bandas e orquestras, com apoio de vários colaboradores.

Com o passar do tempo e os ensinamentos, “a qualidade técnica foi melhorando; o grau de dificuldade das músicas também foi aumentando”. E para montar a orquestra, o professor conta que “a POUPEX providenciou o que precisava, enquanto instrumentos musicais de boa qualidade”. Isso sempre foi considerado por ele como “a meta na criação do projeto social, pois acredito na transformação das pessoas por meio da música”. Ele segue compreendendo que “não são todos que se transformam, seria muita pretensão achar isso, mas essa transformação torna o projeto um porto seguro de alguma forma”.

Para esses “alguns” o professor vê “na música a possibilidade de crescimento”. Consciente das dificuldades, ele deixa-se afetar pelos problemas das pessoas e do projeto social. E, ao tomar para si a responsabilidade, busca meios para encontrar soluções dos problemas articulando a música com a via possível.

A atitude do professor, de chamar para si a responsabilidade dos problemas do outro, é o que Ricoeur (2014) chama de solicitude, valor que faz cada pessoa ser insubstituível em nossa afeição e em nossa estima. A “solicitude responde à estima do outro por mim” (RICOEUR, 2014, p. 213).

Esse modo de querer proteger o aluno demonstra a construção do sentimento de mutualidade, de reciprocidade. Essa mutualidade os une em uma relação de alteridade. A alteridade “é caracterizada pela relação de uma pessoa com outra, ou entre um grupo de pessoas, em que se faz necessário aceitar as diferenças ali existentes” (OTERO, 2015, p. 97). De forma que, essas pessoas possam compreender suas diferenças, aprendendo com elas por meio do respeito entre si. Pois havendo mutualidade e alteridade um sujeito agrega-se a outro, e ambos constituem a si mesmos. Entendo que suas narrativas representam a inclusão de si com outro, pois é o que Bowman (2007, p. 123) nos leva a pensar, quando chama de reconfiguração o termo “nós”. Para esse autor, a identidade profissional, tradicionalmente, ainda está ligada as preocupações com a musicalidade, dificultando as reflexões sobre responsabilidade social. (BOWMAN, 2007).

Entendo que Valdécio tenta fazer essa mudança ao qual Bowman (2007) nos propõe. O professor de música Valdécio sabe que essa busca pela mudança “é muito difícil”. Mas, isso não o faz desistir, pelo contrário, tenta, quer “fazer mais, mesmo que não consiga”. Mesmo que, por conta das muitas dificuldades, ele sinta, às vezes, “com vontade de desistir, não pela música, mas pela desigualdade [social] que a gente tem”.

Devo dizer que ele narrou isso de maneira muito emocionada. E como entrevistadora, pude aferir tal emoção, por ver brotar de seus olhos lágrimas, ao narrar tais acontecimentos. E foi com essa emoção que ele, em um gesto de confiança, olhou no fundo dos meus olhos, como se quisesse demonstrar a importância do seu propósito de vida, e disse: “É triste! Mas, um dia a gente chega lá”. Compreendi que, até aquele momento da entrevista narrativa (auto)biográfica, que esses sentimentos e sensações eram para ele um sentimento ainda inconsciente pois, na narrativa possibilita desenvolver sentimentos e emoções percebida por meio de todos os nossos sentidos, pelas nossas experiências (DELORY-MOMBERGER, 2012). Nessa narrativa, foi possível perceber a força e a vontade de Valdécio, em continuar seu trabalho com o ensino de música, formando músicos e criando bandas a partir dessa constituição de si. Dessa maneira, enxergando o outro no eu próprio processo de musicobiografização.

O processo, em que o professor de música se biografiza com o outro, por meio do saber-poder fazer música com e para o outro, constitui-se um contínuo. Nele se produz para si e para seus alunos manifestações mentais assim como verbais, corporais, comportamentais de sua existência, utilizando, a música com linguagem, como símbolo e como discurso. A música, para o professor Valdécio, traduz-se, como um comprometimento ético.

A partir das narrativas de Valdécio, em consonâncias com as compreensões de autores com os quais venho dialogando, e também, na relação com a minha própria experiência formativa em projetos sociais, entendo que se não há mutualidade, alteridade e solicitude entre professor e aluno não há ensino de música, tanto quanto não há aprendizado. Pois, isso só é possível quando o sujeito vive a música com alteridade. Ricoeur (2014) diz que para haver alteridade, a ação deve enriquecer não só ao indivíduo, mas também o outro.

Tomando as narrativas neste processo de análise e interpretação, torna-se possível considerar que o professor de música Valdécio é o que Ricoeur (2014, p. 290) chama de “homem do ágape” e ao mesmo tempo é o “homem da justiça”. Pois, o homem ágape é aquele que dá generosamente sem esperar nada em troca. O homem da justiça é aquele que retribui que repõe o equilíbrio.

As narrativas até aqui figuram um processo de musicobiografização que conta como Valdécio Fonseca foi se tornando professor de música de projeto social. É um sujeito que se coloca numa posição de agir para que ocorram mudanças e transformações, no contexto em que se insere.

Nesse modo de produzir análise de narrativas (auto)biográficas, é possível evidenciar que a musicobiografização dos sujeitos relacionados à música é aferida por um sujeito epistêmico, o qual gera conhecimentos musicais, com a sua biografia significando aquilo que ele faz e fez de sua vida vivida. Ou seja, um autor que fala sobre acontecimentos ou situações incorporadas, que não poderiam existir, se ele não contasse.

A partir do caráter reflexivo e da historicidade do entrevistado, tornou possível evidenciar um sujeito epistêmico, mas principalmente musicobiográfico, que se coloca em cena contando acontecimentos que não poderiam existir, se ele não contasse, transpondo-se de autor para agente social. Ou melhor, uma pessoa que se coloca numa posição para mudanças e transformações. Essas narrativas levaram-nos à compreensão de Valdécio, constitui-se um professor que se musicobiografiza como um agente social, uma vez que se coloca em posições avaliativas de mudanças, quanto ao fazer, ajustando, de maneira ética, suas ações de acordo com a necessidade e com a realidade.

Isso pode ser compreendido pelo fato de chamar para si, em um processo que envolve mutualidade, alteridade e solicitude, a responsabilidade social, preocupando-se com a qualidade do ensino de música no projeto social e, ao mesmo tempo, com a vida dos indivíduos em sociedade. Essas preocupações, em estabelecer maneiras de ajudar o outro – biografizando-se como homem ágape – e de refletir sobre como pode, com a música, melhorar a sociedade para as novas gerações – musicobiografizando-se como o homem da justiça – fazem-se claras nas ressignificações de Valdécio. Haja vista que também se fazem presente em sua vida, diariamente. E “é nesse sentido que se pode falar de conscientização” (PASSEGGI, 2016, p. 83).

Por fim, esperei o momento em que ele sinalizou que a narração musicobiográfica havia terminado. E no silêncio, demonstrou-se emocionado, ao ouvir seus alunos, dentro do teatro, tocando Villa-Lobos. Ele fez uma pausa, e, com a voz embargada, disse: “agradeço por ter escutado a minha história; agora venha comigo ver o ensaio; você vai ver e respirar a alegria deles”. Depois, caro leitor, eu o convido, com prazer, a assistir a uma apresentação da “Brasília Sopro Sinfônica neste link[3]” (VALDÉCIO FONSECA, 2016).

Algumas compreensões…

A partir do exposto, com as narrativas do professor de música Valdécio Fonseca, em consonâncias com a literatura, compreendi que os processos formativos musicais nem sempre garantem a transformação de um ser socialmente inserido. Há de se pensar em uma formação musical, social e humanística alcançada pelo próprio sujeito.

E essas compreensões resultam do processo de musicobiografização de um professor de música de projeto social, o qual se coloca numa posição de agir na e para a transformação social por meio da sua relação com a música. O que levou Valdécio Fonseca a escolher ser professor de música de projeto social foi o seu próprio processo de biografização, com projetos sociais ao longo da sua história de vida. Essa história é reconfigurada por ele, nas narrativas (auto)biográficas, mostrando as tomadas de decisões que o levam a constituir uma vida de professor de projeto social.

A compreensão advinda das narrativas (auto)biográficas de Valdécio Fonseca contribuem com indagações que ele mesmo levantou como professor de música de projeto social. As questões e problemáticas são de quem as vive. Assim, os pesquisadores podem, nesse tipo de pesquisa, narrar e produzir conhecimento com aqueles que vivem o contexto e com ele se constituem. O potencial da qualidade dessa constituição está no sujeito que se dispõe para se constituir com o outro.

Pela complexidade das relações e da interação com o lugar de constituição biográfica, o que importa, afinal, é encontrarmos, como área de conhecimento, diferentes maneiras de compreender o que é e como é ser professor de música de projetos sociais. Isso não significa reconhecer e considerar a história de vida de um único sujeito como referência, mas a força narrativa desta história com o lugar, ou melhor, como lugar. Portanto, se o potencial da situação está no coletivo de uma área, assim como a força da água está no relevo, o nosso desafio, com as teorias biográficas, está no potencial desta força na fertilização.

Comecei a pesquisa com um poema sobre catar feijão, que causou reflexão sobre as dificuldades da escrita da escolha sobre o que escrever e como o fazê-lo. Procurei escrever sobre como me sentia e como me via como pessoa e como professora de música. Comecei a escrever como me compreendia, o que sentia, o que fazia eu apaixonar. Fiz da minha escrita história de vida. E a História de Vida de Valdécio Fonseca como professor de música de projeto social, agora, faz parte da minha história com esse contexto e de muitos outros professores que se reconhecem a partir desse lugar. Como professora de música que iniciou sua trajetória de vida musical em projetos sociais, sigo com a intenção de começar minha constituição como pesquisadora para continuar constituindo-me musicobiograficamente com o campo da Educação Musical.

Retomo o poema “Catar Feijão” de João Cabral de Melo Neto, trazendo compreensões de que “catar feijão se limita com o escrever: jogam-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel” (MELO NETO, 2002, p. 23). Assim, como catador de feijões, seleciona-se os melhores grãos, a fim de construir a palavra dada ao leitor que poderá com o texto redesenhar horizontes de possibilidades.

 

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Notas

1 Karina Firmino Vieira possui graduação em Licenciatura Plena em Música pela Universidade do Estado do Pará (2011) e Mestrado em Música pela Universidade de Brasília (2017). Atualmente é docente na graduação em música da Universidade de Brasília

2 Delmary Vasconcelos de Abreu. Docente de música da Universidade de Brasília (UnB), com doutorado em música pela UFRGS, mestrado em linguagem (UFMT), graduação em letras (Unemat) e graduação em música (IPA/RS). Possui pós-doutorado em educação na linha cultura, escrita e linguagens pela UFPel. Atualmente é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música da UnB e líder do grupo de pesquisa Educação Musical e Autobiografia

3 Banda Sopro Sinfônica disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bA589dEHawo.

Autor notes

Karina Firmino Vieira possui graduação em Licenciatura Plena em Música pela Universidade do Estado do Pará (2011) e Mestrado em Música pela Universidade de Brasília (2017). Atualmente é docente na graduação em música da Universidade de Brasília

Delmary Vasconcelos de Abreu. Docente de música da Universidade de Brasília (UnB), com doutorado em música pela UFRGS, mestrado em linguagem (UFMT), graduação em letras (Unemat) e graduação em música (IPA/RS). Possui pós-doutorado em educação na linha cultura, escrita e linguagens pela UFPel. Atualmente é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música da UnB e líder do grupo de pesquisa Educação Musical e Autobiografia.