Dossiê

 

A história de vida de duas professoras de música das Escolas Parque de Brasília: construção de laços pelas experiências

 

Raimundo Vagner Leite de Oliveira

Universidade de Brasília (UnB), Brasil

Delmary Vasconcelos de Abreu

Universidade de Brasília (UnB), Brasil

Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Continuo
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 17 Julho 2021
Aprovação: 17 Abril 2022

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/20707

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo refletir sobre aspectos históricos da pesquisa em Educação Musical, a partir das trajetórias de vida-científica de pesquisadores com Bolsa de Produtividade em Pesquisa/ PQ do CNPq dessa área no Brasil. Como metodologia utilizou-se: a pesquisa de natureza qualitativa; a pesquisa documental; o Currículo Lattes como fonte para coleta de dados; o Biograma como referencial teórico-metodológico; e para os resultados, o paradigma interpretativo da hermenêutica para se chegar à valoração. Os resultados revelam que os caminhos trilhados por esses seis pesquisadores, apesar de singulares, convergem para um mesmo fim: consolidação e avanços constantes da Educação Musical. Isso pode ser confirmado ao observar os vários acontecimentos em suas trajetórias as quais constituem uma representação de área. São ainda formativas para outros que desejam trilhar o caminho da pesquisa e docência. Conclui-se que ao considerar a unicidade na pluralidade, é possível compreender essa área pelas trajetórias de vida-científica de pesquisadores. Dar visibilidade às trajetórias de vida-científica da área é mostrar, por esse olhar, uma das várias histórias da Educação Musical no Brasil.

Palavras-chave: Educação Musical, História, Pesquisa, Trajetória de vida-científica.

Abstract: This article aims to reflect on historical aspects of research in Music Education, from the scientific life trajectories of researchers with a Research Productivity Grant/PQ from the CNPq this area in Brazil. The methodology used refers to research of a qualitative nature; documentary research; the digital curriculum as a source for data collection; the Biogram as a theoretical-methodological framework; and for the results, the interpretive paradigm of hermeneutics to arrive at the valuation of the collected data. The results demonstrate that the paths followed by these six researchers, despite being unique, converge towards the same end: consolidation and constant advances in Music Education. This can be confirmed by observing the various events in their trajectories which constitute a representation of the area. They are also collaborative for others who wish to follow the path of research and teaching. It is concluded that when considering uniqueness in the midst of plurality, it is possible to understand this area through the scientific life trajectories of researchers. Giving visibility to the scientific life trajectories in the area is to show, through this perspective, one of the various stories that composes the Music Education in Brazil.

Keywords: Music Education, History, Search, Scientific life trajectory.

Introdução

A história da Educação Musical no Brasil pode ser contada de várias perspectivas, como bem aponta Souza (2014). Dentre as várias histórias, temáticas e agendas contemporâneas que suscitam questões epistêmicas, a pesquisa autobiográfica é um dos pontos atuais, ou noutras palavras, um campo epistêmico-empírico metodológico que evolui bastante na Educação Musical no Brasil. Isso pode ser verificado no estado da arte realizado por Gontijo (2019), em que se investigou o movimento (auto)biográfico no campo da Educação Musical no Brasil. Por essas razões, este artigo tem por objetivo refletir sobre aspectos históricos da pesquisa em Educação Musical a partir das trajetórias de vida-científica de pesquisadores PQs[1] dessa área no Brasil. Esse é um dos modos plurais de olhar esse campo investigativo.

Ao falarmos de Educação Musical, com iniciais maiúsculas, estamos nos referindo à área de conhecimento. Existe também o termo com iniciais minúsculas, o qual aporta os processos de ensino e aprendizagem e as pedagogias ali envolvidas (ARROYO, 2002; OLIVEIRA, 2021).

Este artigo, recorte de uma pesquisa já concluída sobre trajetória de vida-científica, tem por objeto de estudo as trajetórias dos seis pesquisadores com Bolsa Produtividade em Pesquisa (PQ) da Educação Musical. O estudo alicerça-se no projeto guarda-chuva intitulado “Educação Musical e Pesquisa (Auto) Biográfica: desafios epistêmico-metodológicos”, cujo propósito é “escolher, intencionalmente, educadores musicais” que se sobressaíram como profissionais que influenciaram e ainda influenciam comunidades e gerações “escrevendo a História da Educação Musical no Brasil [...] por suas compreensões de como o campo da Educação Musical se configura (ABREU, 2016, p. 08). Vincula-se ainda ao Grupo de Pesquisa Educação Musical e Autobiografia (GEMAB), operando na vertente de histórias de vida de educadores musicais brasileiros.

Por trajetória de vida-científica entendemos ser uma obra viva, uma narrativa de si que aparece de forma articulada com as ações de outros pesquisadores no próprio campo de atuação de forma una, mas ligada aos pares por um discurso de área, um projeto coletivo, com temas que se entrelaçam, dando assim um sentido harmônico para a construção de uma área, fazendo emergir na diversidade, nas singularidades, a unicidade de um campo. Diante disso, é possível compreendermos aspectos do campo da Educação Musical pelo indivíduo universal-singular, considerando a unicidade na diversidade de ideias para e com a área. A “unicidade” se refere ao comprometimento, ao envolvimento e ao modo alinhado com a área de conhecimento, ou seja, ao alinhamento dos pares investigados com a área. Já a diversidade se refere às diferentes trajetórias de vida-científica. A unidade na diversidade é como um campo de valoração daquilo que é heterogêneo na área.

Entendemos que tais pesquisadores, de certa forma, protagonizam a Educação Musical, na contemporaneidade, por estarem inseridos em cenários de representatividade científica, como é o caso das universidades, associações específicas e o CNPq, ao obterem a Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ), e também por neles figurarem parte da produção de conhecimento gerado nesse âmbito. Uma das formas como a Educação Musical se constitui no Brasil ocorre pela continuidade de vidas implicadas com essa área de conhecimento.

Dos marcos históricos da área

A pesquisa em Educação Musical no Brasil vem ocorrendo “no âmbito da pós-graduação em diversos campos do conhecimento, mas especialmente [...] na grande área Artes” (OLIVEIRA, 1995, p. 7). A pós-graduação em Artes no Brasil teve início em 1974 com a abertura do curso de Mestrado em Artes na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Dessa época, destacaram-se os trabalhos de Cecília Conde, José Rafael Menezes Bastos e José Jorge Carvalho. Ainda segundo Oliveira (1995, p. 7), “com as primeiras teses de mestrado e doutorado, inaugurou-se uma nova fase de estudos científicos”.

Surgem então os primeiros trabalhos científicos da Educação Musical, dos quais faziam parte a Alda Oliveira, Jusamara Vieira Souza, Irene Tourinho, Esther Beyer, Liane Hentschke, Raimundo Martins e Carlos Kater (DEL-BEN, 2017). Denota-se, portanto, com essa formação em Educação Musical, que os sete primeiros doutores têm uma trajetória de vida-científica como pesquisadores. Foram fundadores da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) assumindo cargos como presidente, conselho editorial, conselho diretor, conselho editorial e 1° secretário, nas duas primeiras diretorias da ABEM em 1991-1993 e 1993-1994. Esses primeiros doutores em Educação Musical romperam espaços fronteiriços, abrindo os primeiros caminhos de internacionalização da área por meio de sua própria formação nos USA, Alemanha, França e Inglaterra como pesquisadores. Ao se formarem, abriram caminhos para a Educação Musical como campo investigativo. Além disso, atuaram na formação de novos recursos humanos, retroalimentando a área.

A área de Música no Brasil foi institucionalizada em 1980 com a criação dos cursos de pós-graduação (QUEIROZ, 2014). O marco inicial para a Educação Musical no Brasil, como campo investigativo, ocorre, segundo Oliveira (2012) e Schwan (2021), com fundação da ABEM em 1991. Outros autores, como Oliveira e Cajazeira (2007) e Souza (2014), deixam a entender que esse marco ocorreu com a criação da linha de educação musical em um curso de pós-graduação no Brasil, na década de 1980. Entretanto, neste trabalho, a fundação da ABEM é a referência temporal do marco, ou dito de outro modo, a estruturação sistemática de área. Assim, ao longo de sua trajetória, a produção científica relacionada à Educação Musical toma forma e corpo, tornando-se crescente e plural no Brasil.

As trajetórias de vida-científica mostram os caminhos, bem como as reflexões dos pesquisadores para tomadas de decisão que se entrelaçam e que dão um sentido harmônico a Educação Musical. Esse itinerário deixa rastros “tal como nas pegadas sobre a areia” (LISSOVSKY, 2011, p. 283). Ou seja, observa-se um movimento que surpreende, pois a sua profundidade não é um contínuo, “mas um conjunto de planos sucessivos onde o percurso se faz por pequenos saltos” (LISSOVSKY, 2009, p. 51). Portanto, os rastros deixam marcas daquele sujeito que se constrói continuamente uma área de conhecimento.

Dentre os sete primeiros profissionais da Educação Musical no Brasil que obtiveram doutorado – Alda Oliveira, Raimundo Martins, Carlos Kater, Jusamara Vieira Souza, Irene Tourinho, Esther Beyer e Liane Hentschke – destacamos três doutoras que, além de todos os construtos com a área, também obtiveram/obtêm Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq. A primeira pesquisadora é Alda Oliveira, professora aposentada da UFBA, que no ano de 2017 foi condecorada como Sócia Benemérita da ABEM e no final do ano de 2021 foi convidada a integrar a Academia Brasileira de Música, em reconhecimento ao trabalho desenvolvido.

A segunda pesquisadora é Liane Hentschke, Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E, a terceira pesquisadora é a Professora Titular na UFRGS, Jusamara Vieira Souza, que esteve em Estágio como professor Visitante Senior no Exterior pelo Programa Print CAPES-UFRGS, que no ano de 2017 também lhe foi atribuído o título de Sócia Benemérita da ABEM. Desse modo, é possível evidenciar que desde as primeiras produções e da fundação da Associação Brasileira de Educação Musical, a trajetória de vida-científica dos sete primeiros doutores e pesquisadores da área, três deles foram contemplados com a Bolsa Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq Nível 1, nas categorias A, B e C, ou seja, nos níveis mais elevados considerados na produtividade de pesquisadores. Se a área da Educação Musical encontra-se institucionalizada e legitimada, conforme aponta Del-Ben (2017), isso se dá desde a formação dos sete primeiros doutores no Brasil que se empenharam em sua construção. É preciso destacar que a ABEM viveu distintos momentos, sendo que o período inicial, no qual os primeiros doutores voltaram do exterior e criaram a Associação, pode ser vista como uma fase de construção das bases do que viríamos a ser. (SCHWAN, 2021). Ressaltamos que mesmo em se tratando de trajetórias de vida-científica, a história de vida de um indivíduo é indissociável da história de vida científica, acadêmica ou profissional.

Da produção do conhecimento e os sujeitos que constorem histórias de vida com a área

Ao longo dos anos, a produção do conhecimento ocorreu sob os mais diferentes olhares de pesquisadores brasileiros. Num levantamento feito entre os dias 1 a 15 de maio de 2021 em periódicos de estrato superior Qualis A1[2] – a saber, Revista da ABEM, Revista OPUS, Revista Música Hodie, Revista Acadêmica de Música Per Musi e Revista Orfeu – esses olhares desdobram-se, até onde se verificou, em 25 temáticas, estudas por centenas de autores, considerando autoria e coautoria (ver APÊNCIDE A).

Mas a partir de balanços da produção de conhecimento gerado na Educação Musical, encontramos pesquisas de autores que analisam as produções de conhecimento e trazem algumas reflexões sobre o fertilizar de teorias, conceitos, metodologias e práticas músico-educacionais em diferentes contextos (BEYER, 1996; SOUZA, 1996, 2003, 2007; BEINEKE; SOUZA, 1998; BELLOCHIO, 2003a, 2003b; HENTSCHKE; SANTOS, 2003; DEL-BEN, 2003, 2007, 2010, 2014, 2017; FERNANDES, 2006, 2007; DEL-BEN; SOUZA, 2007; FIGUEIREDO, 2007; PIRES; DALBEN, 2013; MACEDO, 2015; QUEIROZ, 2017).

Dentre esses autores que analisam as produções de conhecimento, identificamos, em negrito, seis[3] pesquisadores com Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) que, como outros, se debruçam insistentemente sobre a produção do conhecimento na área. A identificação dos pesquisadores ocorreu a partir da leitura dos Currículos Lattes. O destaque para a trajetória de vida-científica desses pesquisadores PQs está no critério estabelecido nesta pesquisa, qual seja: a escolha intencional de pesquisadores que tenham se destacado entre os seus pares, ao tornarem-se pesquisadores do CNPq. Esses pesquisadores PQs, objetos de estudo desta pesquisa, são Liane Hentschke, Jusamara Vieira Souza, Luciana Marta Del-Ben, Cláudia Ribeiro Bellochio, Luiz Ricardo Silva Queiroz e Viviane Beineke. Cabe esclarecer que as trajetórias de vida-científica desses seis pesquisadores PQs não são as únicas que sustentam a Educação Musical, mas considera-se que foram e continuam referência basilar na compreensão de como a área vem se constituindo pelo viés de suas trajetórias agregadas pela educação brasileira.

Ter Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) confere aos pesquisadores considerável destaque “à vida acadêmica do pesquisador e da instituição a que está vinculado” (CÂNDIDO, 2016, p. 8). De acordo com o autor, essa Bolsa é a mais almejada pelos pesquisadores por proporcionar certo destaque, tanto entre os pares como dentro da sociedade científica como um todo, uma vez que o trabalho do pesquisador é o de gerar conhecimento na área de atuação, contribuindo para o desenvolvimento e maior aprofundamento do avanço dos estudos.

Encontramos em Bondía (2002, p. 24) um olhar para as experiências cujas trajetórias de vida inscrevem algumas marcas, deixando vestígios e alguns efeitos. Esses efeitos, vestígios e marcas se inscrevem nas escritas de si que podem ser descritas de diferentes maneiras, como é o caso, por exemplo, do Currículo Lattes, como “quase um relato (auto)biográfico” (NASCIMENTO; NUNES, 2014, p. 1079).

Fundamentado em Abreu (2016), entendemos que esses pesquisadores deixaram marcas de um sujeito que constrói na sua história de vida-científica uma trajetória com a Educação Musical. Esse é um dos modos de olhar para a construção de uma determinada área no Brasil. Os pesquisadores assumem compromissos e responsabilidades que acabam por trazer avanços para suas áreas de conhecimento (CNPq, 2018). Há um aumento da produção científica, tecnológica e de inovação por seu incentivo e liderança. Isso possibilita uma retroalimentação, fazendo emergir a constituição de um campo investigativo. A produção já caracteriza a importância de estudá-las. Sendo assim, trajetórias são os caminhos percorridos por esses pesquisadores ao longo da vida científica que nos levaram a pensar como se tornaram destacados entre os seus pares.

Para tanto, é preciso observamos a trajetória dos pesquisadores pela ótica de três linhas de pensamento: o primeiro é o aristotélico, na qual ressalta que a excelência é um hábito; o segundo é o biosistêmico, ele mostra a dinâmica vital a partir do sujeito que observa, que pensa, isola, e define; e, por fim, o terceiro pensamento, o epistêmico, que revela um sujeito atuante. Essas ações, observadas por esses três pensamentos, formam um todo indissociável tornando-se na história de vida, que aqui chamamos de trajetória de vida-científica. Essa trajetória se expande para as organizações em suas interações internas e externas, pois essas ações não fazem sentido estando sozinhas, não existem sujeito senão em profunda troca com um ambiente social e cultural, onde o mesmo lhe permite pensar, refletir, reconhecer e definir o saber.

Trajetória, itinerário, ação, projeto de vida individual ou coletivo, por conseguinte, fazem parte da estrutura social. E, nessa perspectiva, Marinho (2017) diz que:

Se as condições de existência, representadas pela ideia de estrutura social, são essenciais para contextualizar socialmente as trajetórias dos indivíduos ao longo de suas vidas, o contrário também pode ser afirmado: as trajetórias são fundamentais para a produção de conhecimento sobre a sociedade. (MARINHO, 2017, p. 31, grifo nosso).

Tomamos as ideias de Dausien (1996) e Arango (1998) para aclarar que a trajetória de vida-científica filtra no singular o social. Diante disso, é possível interpretar acontecimentos e percursos vividos em intervalos de tempo que podem indicar, nas ações do sujeito, as mudanças que ocorrem em diversos setores do social como, por exemplo, aspectos econômicos, culturais e no mundo do trabalho. Dito de outro modo, a história de vida de cada sujeito é construída por aquilo que ele escolhe filtrar do social, tornando constitutivo em sua trajetória. Portanto, fazer o registro dessas trajetórias de vida-científica dos pesquisadores é fazer produzir uma leitura daquilo que está entrelaçado entre o social e o individual para a área da Educação Musical. Os indivíduos, no contexto social, ocupam uma variedade de campos simultaneamente como, por exemplo, o interpessoal, nos relacionamentos familiares, e também profissional. Para Bourdieu (1989), o conceito de trajetória de vida consiste em um conjunto de posicionamentos pelo indivíduo/grupo, continuamente, no espaço-tempo onde acontecem, de fato, as incessantes mudanças.

Dar destaque, neste artigo, a essas trajetórias de vida-cientifica torna-se formativo para aqueles que consideram pertinentes saber mais dos caminhos percorridos pelos pesquisadores que contribuem tanto na construção, quanto na consolidação de uma área. Isso é, no nosso entendimento, saber-fazer-poder retroalimentar o campo da Educação Musical com a história dos que a fizeram, continuam fazendo e ainda farão. Lembrando, dessa forma, as palavras de Souza (2014, p. 119) que é na “pluralidade de olhares” que se constroem “histórias da Educação Musical, inventariando possíveis temas para futuras investigações colaborativas”, ou seja, são as trajetórias de vida-científica que dão uma dimensão da totalidade de uma história da Educação Musical. Portanto, é possível compreendermos, com os estudos aqui apresentados, que uma trajetória é orientada pelos itinerários sociais bem como por rumos assumidos a partir de ações deliberadas pelos sujeitos.

Da reflexão de pesquisadores à constituição de uma área

A trajetória da Educação Musical no Brasil se fez e se faz “através dos pensamentos e realizações de educadores musicais” e pesquisadores (ARROYO, 2002, p. 18). Uma vez que a Educação Musical tem história – sendo um campo que se constituiu como área – nos inquieta saber que trajetórias são essas, dos pesquisadores PQs do CNPq, que ajudaram na consolidação desse campo investigativo. O estudo da temática trajetória de vida-científica, ou história de vida, ocorre na perspectiva da pesquisa (auto)biográfica e o resultado, que parte das escritas de si no Currículo Lattes, consubstancia-se na autobiografia, ou seja, no gênero literário.

Cabe destacar que “na ciência, as teorias não são neutras, elas não surgem por acaso, elas pertencem aos homens e mulheres que assim as elaboram” (GONÇALVES, 2017, p. 95). Tais realizações ocorrem por intermédio de reflexões filosóficas, que são “o ponto de partida de qualquer trabalho científico” (MARINHO, 2017, p. 26). Portanto, há um comprometimento reflexivo individual e coletivo constante (MATEIRO, 2003; DEL-BEN, 2010). Para Chaui (2006, p. 20), “a reflexão filosófica é o movimento pelo qual o pensamento, examinando o que é pensado por ele, volta-se para si mesmo como fonte desse pensado”. Para a autora a reflexão filosófica é ainda “a concentração mental em que o pensamento volta-se para si próprio para examinar, compreender e avaliar suas ideias, suas vontades, seus desejos e sentimentos” (CHAUI, 2006, p. 20).

De acordo com o dicionário a palavra reflexão é sinônimo de análise, estudo, pesquisa, e também investigação. Isso nos leva ao termo investigação filosófica de Bowman e Frega (2016). Para esses autores reflexão significa “um processo no qual cada profissional da Educação Musical está obrigado a participar” para o exercício profissional (BOWMAN; FREGA, 2016, p. 35). Tal investigação é resultado da prática filosófica, prática pedagógico-didática e prática musical. No encontro dessas três práticas emerge a Filosofia da Educação Musical. Portanto, “partimos da certeza de que a compreensão de qualquer teoria fica incompleta se não soubermos minimamente da vida de quem a ajudou em sua elaboração” (GONÇALVES, 2017, p. 95).

Nessa perspectiva, os estudos apresentados até aqui abrem caminhos para fazermos um recorte dessas trajetórias de pesquisadores, dando destaque para aqueles que possuem Bolsa Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq. Na categoria 1: nível “A”, não há nenhum pesquisador, mas esse nível já foi preenchido pela pesquisadora Profª. Dra. Alda Oliveira, hoje aposentada, mas que ainda tem representatividade, tanto que foi condecorada pela ABEM como Sócia Benemérita pelo meritórios serviços prestados. O nível B está preenchido pela pesquisadora Liane Hentschke. Jusamara Vieira Souza e Luciana Marta Del-Ben estão enquadradas no nível C. Cláudia Ribeiro Bellochio está no nível D. Na categoria 2 identificamos o pesquisador Luiz Ricardo Silva Queiroz e a pesquisadora Viviane Beineke.

Esses pesquisadores possuem diferentes formações em nível de doutorado: Liane Hentschke e Jusamara Vieira Souza, Educação Musical; Luciana Marta Del-Ben e Viviane Beineke, Música; Luis Ricardo Silva Queiroz, Música com concentração em Etnomusicologia; e Cláudia Ribeiro Bellochio em Educação. Esses pesquisadores possuem diferentes visões epistemológicas, mas com uma preocupação coletiva para a constituição e avanços da Educação Musical, sendo pelo viés da formação de professores, como é o caso de Liane Hentschke e Cláudia Bellochio; pela Educação Musical Escolar, da qual trata Luciana Del-Ben; pela Educação Musical e Cotidiano com uma abordagem da sociologia da Educação Musical, como se dedica Jusamara Vieira Souza; pelas práticas criativas, formação de professores e produção de material didático, trabalhados por Beineke, e por fim, pelo diálogo na perspectiva da Educação Musical como Cultura, que pretende Luis Ricardo Silva Queiroz.

A partir dos estudos de Thomas e Znaniecki (1918), Bourdieu (1989), Born (2001), Bolívar, Domingo e Fernándes (2001), Passeggi (2008), Passeggi, Souza e Vicentini (2011), Abrahão e Rosa (2012), Marinho (2017) e CNPq (2014, 2015, 2018), procuramos identificar as ações desses pesquisadores da Educação Musical, noutras palavras os caminhos, para enxergar, nessas trajetórias, o sujeito, a pessoa humana.

Para Born (2001, p. 240), as trajetórias de vida são cruciais para que se promovam “debates essenciais sobre a estrutura social e a ação individual”. No caso da Educação Musical, verifica-se a estrutura de uma área que se sustenta pela ação individual e, em pares, por ações colaborativas de pesquisadores. Sendo assim, a estrutura se sustenta nos pilares de indivíduos, de pessoas, de sujeitos que no seu tempo produzem, no espaço constituído pelo campo da Educação Musical, a vida-formativa que alimenta uma área de conhecimento. É possível entender as ações individuais que tornaram cada trajetória de vida-científica significativa e o conjunto delas como uma identidade de área pela estrutura e localização dos acontecimentos, pois a partir de Born (2001, p. 240) entendemos essa perspectiva de “micro à macro” numa “mudança de status” localizada nessas trajetórias. Portanto, compreendemos até aqui que a construção do conhecimento é a própria trajetória de vida do pesquisador, ou no sentido de Abreu (2016a, 2016b) e Abrahão (2016), a história de vida como um produto.

A ciência é um produto de investigadores, que consubstancia-se em um corpo de conhecimento e de resultados (SOUZA, 2007). Ao considerar uma ciência por essa perspectiva, ela dependeria de pelo menos três aspectos, segundo Nunes (2005). No primeiro, cabe questionar quem são os pesquisadores, onde se apresentam, onde publicam, quais são seus interesses e posições. No segundo aspecto, questiona-se quais são os meios de produção do conhecimento como métodos de pesquisa, conceitos e teorias, por exemplo. O terceiro aspecto está relacionado com uma determinada área de conhecimento: como se encontram estruturadas e como funcionam em relação a outras estruturas e instituições, tais como o grau de independência, políticas de financiamento, mecanismos de gestão administrativa e científica, por exemplo.

A ABEM, associação que representa a Educação Musical no Brasil, na qual esses pesquisadores atuaram e continuam a figurar, “tem contribuído para pensar a Educação Musical como ciência [...]” (SOUZA, 2007, p. 25, grifo nosso). Ainda conforme a autora, “os objetos científicos de uma área são construídos socialmente” (SOUZA, 2007, p. 25, grifo nosso). Percebe-se uma preocupação com a construção da área e como isso vem sendo consolidado ao longo dos anos de história da Educação Musical no cenário brasileiro. Essa percepção fica clara, ao retomarmos às ideias de que a ciência surge pelas reflexões constantes de sujeitos que as elaboram (MATEIRO, 2003; DEL-BEN, 2010; GONÇALVES, 2017; MARINHO, 2017; OLIVEIRA, R., 2019, 2020, 2021).

As pesquisas realizadas por Del-Ben (2014, 2010, 2007, 2003) trazem discussões sobre o desenvolvimento da produção científica em Educação Musical no Brasil, constatado pelo avanço da pós-graduação e, consequentemente, pelo aumento das publicações científicas. Na pesquisa de Oliveira (2019, 2020a, 2021a, 2021b) constata-se a presença constante dos seis pesquisadores nesses dois pontos. Ao investigar sobre os impactos da produção científica da Educação Musical nas políticas e práticas educacionais, ressalta-se, “o papel da ABEM na circulação e divulgação da produção científica [em Educação Musical no Brasil], e discute ainda condições que influenciam os impactos da produção científica e formas de avaliação de sua relevância” (DEL-BEN, 2007, p. 57). Esse foco da autora, sobre a produção do conhecimento gerado na área, teve início com uma pesquisa realizada por ela no ano de 2003, em que buscou destacar a “trajetória da pesquisa em Educação Musical do Brasil” (DEL-BEN, 2003, p. 76, grifo nosso). A autora também desenvolveu outro estudo em conjunto (DEL-BEN; SOUZA, 2007, p. 1) na qual ambas as pesquisadoras sistematizaram dados que possibilitassem “avaliar a produção apresentada nos encontros anuais da Associação Brasileira de Educação Musical – ABEM”. As autoras tomaram como “dados empíricos os trabalhos apresentados em catorze dos quinze encontros anuais da ABEM realizados entre 1992 e 2006” (DEL-BEN; SOUZA, 2007, p. 1). Com isso, mostraram, por meio de mapas quantitativos e levantamento de temáticas, os “modos de interação da pesquisa [...] com a sociedade trazendo indicativos sobre como a Educação Musical vem se relacionando com outras áreas do conhecimento” (DEL-BEN; SOUZA, 2007, p. 1, grifo nosso).

Nota-se, no parágrafo acima, que a trajetória da pesquisa e os modos de interação –entre os pares; entre uma determinada área e a sociedade em geral – ocorrem pelos homens e mulheres que fazem a ciência nesse campo investigativo da Educação Musical. Bellochio (2003b, p. 35) já anunciava a necessidade de se pensar “sobre algumas das relações que se estabelecem entre a produção, a difusão e a apropriação da pesquisa em Educação Musical no Brasil”. Ou seja, os estudos apontam para o interesse de pesquisadores de que a consolidação de uma área se dê pela formação de pesquisadores, produção do conhecimento e também de como esses pesquisadores se apropriam de objetos de estudo, para assim avançar na produção do conhecimento em Educação Musical. Como bem entende Souza (2014, p. 92), o desafio da Educação Musical constitui em manter “o diálogo entre as diferentes formas de apropriação e transmissão do conhecimento musical produzido socialmente”.

Muito já foi feito para o avanço da produção científica brasileira em Educação Musical por meio das análises dessa produção, como o Estado da Arte, meta-análise, teorização da Educação Musical, e listagem de teses, por exemplo (DEL-BEN, 2010; ARROYO, 2016; PEREIRA; GILLANDERS, 2019). Entendemos que uma das formas também de se avançar nas pesquisas pode ser pelo estudo da trajetória de vida-científica (OLIVEIRA, 2019) de pesquisadores, além da perspectiva da Musicobiografização (ABREU, 2019), ao investigar o sujeito biográfico pelas narrativas da experiência (PASSEGGI, 2016).

Ao elaborar um mapa que contém os relatos de vida-científica (OLIVEIRA, 2019), por intermédio do Biograma, e analisar por esses registros os acontecimentos e cronologia das trajetórias dos sujeitos, com intuito de extrair a valoração dos acontecimentos, foi possível representar a trajetória de vida-científica como um encadeamento que enreda uma história de vida com a Educação Musical. O Biograma foi o instrumental teórico-metodológico, que é a representação da trajetória de vida-científica por representar o comportamento do sujeito em tempo-espaço preciso: início, meio (durante) e fim. Esse comportamento são os itinerários, ou seja, o roteiro, o percurso que o sujeito seguiu/segue. Essa trajetória de vida-científica é a estrutura de sua vida, é a identidade de um sujeito comprometido com a ciência.

Nesse sentido, por sua representatividade, os seis pesquisadores desse estudo dão um panorama da Educação Musical. Ou seja, a trajetória de vida-científica da Educação Musical encadeia cronologicamente os fatos mais importantes da vida desses pesquisadores, pois suas trajetórias de vida-científica ligam-se inteiramente à trajetória da área considerando a fundação da ABEM como marco. Assim, a caracterização específica e temporal da natureza da proposta desse artigo ocorre a partir da (i) ABEM em 1991, (ii) do balanço da produção do conhecimento (ver tópico três) sobre sujeitos que se constituíram com a área da Educação Musical (OLIVEIRA, 2020a)[4], (iii) do Biograma, referencial teórico-metodológico da pesquisa, dando vida ao Lattes (iv) à luz do paradigma interpretativo da hermenêutica. Esse delineamento, em suma, proporciona visibilidade às seis trajetórias de vida-científica aqui apresentadas.

Observando os Lattes dos seis pesquisadores e os cinco Biogramas elaborados para cada pesquisador, utilizando cinco diferentes critérios do CNPq, discorremos a seguir, sobre os efeitos gerados pelos pesquisadores, de forma resumida. O primeiro critério trata da produção científica. Engloba indicadores da produção bibliográfica, técnica, orientações concluídas e produção cultural. Totalizam 3.511 trabalhos dos quais destacamos 214 artigos completos publicados em periódicos dos quais 185 são em coautoria. Esses trabalhos fazem parte dos cronogramas de estudos dos cursos de graduação, pós-graduação, grupos de pesquisa, dentre outros. Promovem discussões e discorrem sobre resoluções de problemas por meio desses estudos, gerando assim impacto para a sociedade brasileira.

O segundo critério aborda a formação de recursos humanos na pós-graduação. O total dos profissionais formados em nível de pós-graduação pelos seis pesquisadores PQs, que atuam em universidades desde o ano de 1995, somam 316 dos quais 224 desses profissionais são mestres, doutores, e pós-doutores. A partir da análise do Currículo Lattes de cada uma desses 224 profissionais constatou-se que os mesmos atuam em todas as regiões do país em 28 instituições de nível superior. Contata-se uma retroalimentação da área, na qual esses profissionais qualificados passam a atuar também como formadores de professores nos programas de pós-graduação, conforme dado a seguir. De acordo com a última Avaliação Quadrienal (2017-2020), existem no Brasil 29 programas/cursos stricto sensu em Música (18 mestrados e 11 doutorados) e estão presentes em 12 estados. A formação de recursos humanos e o avanço do conhecimento gerado na pós-graduação tem importante significado e impacto para a área da Educação Musical no Brasil.

O terceiro critério discorre sobre a contribuição científica e tecnológica e para inovação. A contribuição científica é medida pelo conjunto e a qualidade das obras de um pesquisador, com destaque para os artigos completos publicados em periódicos científicos (ver critério 1). As principais ferramentas são a bibliometria e cienciometria. Assim, “quanto mais impacto cause uma publicação científica maior é a sua qualidade como contribuição científica” (DROESCHER; SILVA, 2014, p. 180). A tecnologia e inovação não são observadas pelo CNPq (2018). Entretanto, Souza (2015) entende que tecnologia e inovação na Educação Musical como sendo um meio para o conhecimento e uma maneira singular usada nos processos cotidianos de ensino-aprendizagem.

O quarto critério versa sobre a coordenação ou participação principal em projetos de pesquisa. Nas instituições de ensino superior, os projetos de pesquisa científica, nas mais diversas áreas, visam contribuir significativamente para o aprofundamento e ampliação dos conhecimentos adquiridos, sobretudo, para o desenvolvimento do país. São nessas instituições e/ou órgãos governamentais que estão inseridos os pesquisadores PQs da Educação Musical, na coordenação ou participação principal em projetos de pesquisa. Lembrando que ser pesquisador PQ implica ter tido projeto de pesquisa aprovado pelo CNPq. A partir desses projetos nascem as produções científicas, e consequentemente, a produção do conhecimento.

Os projetos de pesquisa científica dos seis pesquisadores tiveram início em 1994, 1995, 2001, 2003 (dois) e 2005. Todos os pesquisadores, segundo constou no Lattes, em 30 de julho de 2020, estavam com projetos em vigência. Foram contabilizados 56 projetos de pesquisa. Nota-se, então, um compromisso constante consigo, com e para a Educação Musical. A cada novo projeto, os pesquisadores aprofundam-se em suas buscas por avanços para essa área.

Por fim, o quinto critério, que se refere a participação em atividades editoriais e de gestão científica e administração de instituições e núcleos de excelência científica e tecnológica. É o critério mais extenso de todos e subdivide-se atuação profissional, produção técnica, revisor de periódico, membro de corpo editorial, membro de comitê de assessoramento e revisor de projeto de fomento. Essas seis subcategorias mostram onde e como atuam os pesquisadores PQs. Percebemos nesse quinto critério fragmentos de uma vida inteira, aqueles eventos importantes nos quais marcam determinadas épocas e lugares que acabaram por construir a trajetória de vida-científica dos pesquisadores como sujeitos do meio, do lugar. Como sujeitos do meio e/ou do lugar, seus percursos biográficos convergem de um ser para um amplo contexto repleto de interconexões com outros sujeitos e campos do conhecimento que se relacionam direta ou indiretamente com a Educação Musical.

Trajetórias singulares-universais

Seus caminhos, apesar de singulares, convergiram e convergem para um mesmo fim: consolidação e avanços constantes. Isso pode ser confirmado ao observar os acontecimentos em suas trajetórias, dos quais destacamos: os estudos no Brasil e exterior; a busca constante por excelência acadêmica; a fundação da ABEM, associação que representa a área no Brasil; publicações contínuas de artigos, capítulos de livros e livros que são referências bibliográficas de destaque; a formação de professores e pesquisadores que atuam em todas as regiões do país; a coordenação de grupos de pesquisa nas instituições a que estão vinculados; a participação como palestrantes e organização de eventos – seminários, congressos, encontros, convenções, conferencias nacionais e internacionais [...], com destaque para eventos nas universidades, na Isme, ABEM e Anppom; e a obtenção da bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ do CNPq, que os levaram a figurarem nas agências do CNPq e CAPES – passando pois, a se dedicarem às atividades de pesquisa e a integrarem essas agências como consultores ad hoc, destacando-os, de certa forma, entre os pares.

Essas destacados pesquisadores consubstanciam-se como sujeitos epistêmicos, ou seja, do conhecimento histórico-científico na área da Educação Musical no Brasil. Suas trajetórias de vida são formativas para outros que desejam trilhar o caminho da pesquisa e docência. Entendemos, a partir dessa concepção, suas histórias de vida singulares-universais como um produto. Entretanto, reiteramos que esses seis pesquisadores PQs não são os únicos que estruturaram a Educação Musical, como se pode perceber no marco histórico exposto aqui evidenciando tantos outros que estiveram e participaram da constituição da Educação Musical como campo de conhecimento, mas, como já justificado, os seis foram e são referência basilar na compreensão e na constituição desse campo investigativo.

Talvez seja pertinente fazer a seguinte pergunta: por que fascinam as trajetórias de vida-científica, ou histórias de vida de pesquisadores da Educação Musical? A partir de Carino (1999, p. 153) entendemos que “cada vida é una [...]. O uno seria a propriedade de tudo que é, do universo como unidade”. Assim, as trajetórias de vida-científica ou história de vida dos pesquisadores da Educação Musical “são uma representação de área, um uno que foi transformado em motivo de reflexão acerca da natureza do seu campo investigativo” (OLIVEIRA, 2020b, p. 322). Descrever essa pluralidade em forma de uno é traçar a identidade da área refletida em reflexões, palavras e atos; é “cunhar-lhe a vida pelo testemunho de outrem; é interpretá-lo, reconstruí-lo, [...] revivê-lo” (CARINO, 1999, p. 154).

Compreendemos que ao “utilizar o individual em benefício do coletivo, faz-se com que as experiências, vivências e realizações” dos seis pesquisadores sejam apropriadas pela Educação Musical. Essas trajetórias tornam-se formativas, um exemplo em sua unicidade, pois influenciam novas gerações de professores para os mais diversos segmentos, bem como formação de mestres, doutores, pós doutores e pesquisadores para a área. Portanto, o conjunto das seis trajetórias de vida-científica configuram-se como uno, uma identidade (mostra representativa de pesquisadores comprometidos) da Educação Musical como área de conhecimento.

Portanto, os estudos até aqui apresentados mostram que a Educação Musical foi construída por várias mãos, ou, dito de outro modo, várias histórias de vida construídas com e pela área, e por esse trabalho coletivo, a Educação Musical, portanto, encontra-se consolidada.

Considerações finais

O foco desse texto foi refletir sobre aspectos históricos da pesquisa em Educação Musical a partir das trajetórias de vida-científica de pesquisadores com Bolsa de Produtividade em Pesquisa/PQ do CNPq da área no Brasil. Essas trajetórias diversas resultam numa unidade da área, ou, em outras palavras, um uno que emerge da pluralidade das trajetórias. O que essas trajetórias de vida-científica têm em comum? No conjunto das trajetórias dos pesquisadores ocorrem as circunstâncias educativas por três formas: suas vidas imbricadas com a área de conhecimento; suas obras e produção científica utilizadas para propósitos específicos de formação; suas atuações profissionais que se desdobram em segmentos e também estão conectadas, por exemplo, com a formação de recursos humanos para atuação na mesma área. As trajetórias de vida-científica são singulares-universais. Expressam-se individualmente únicas, embora se complementem em sua relação com sua área de conhecimento. A trajetória de vida-científica é uma manifestação particular de um indivíduo cujo propósito é a inserção em seu tempo, no lugar, ou seja, em sua realidade concreta, no saber científico em que vive. Essa relação não é mecânica.

O pesquisador é ativo nesse processo de apropriação de tudo que o cerca nesse mundo social, traduzido em práticas educativas musicais que manifestam a subjetividade inerente à sua área de atuação. Esse processo é a “reapropriação singular do universal social e histórico” por esses pesquisadores. E assim, “podemos conhecer o social [ou seja, a área] a partir da especificidade irredutível de uma práxis individual” (FERRAROTTI, 1988, p. 27). Acreditamos que nas trajetórias de vida-científica dos pesquisadores reside um ponto que é o “paradoxo epistemológico fundamental das autobiografias: a união do mais pessoal com o mais universal” (FERRAROTTI, 1998, p. 28). Parece que essa individualidade, esse singular, ou ainda, a subjetividade do sujeito, constitui, dentro do seu campo investigativo da Educação Musical, uma via de acesso que pode ser não linear e que leva, por assim dizer, o conhecimento científico ao sistema social. E isso não se faz sem uma invenção de estratégias como pensamentos, reflexões e ações ou métodos. Nesse sentido, Ferrarotti (2010: 51) entende que “Um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamar-lhe um universal singular [...]. Universal pela universalidade singular da história humana. Singular pela singularidade universalizante dos seus projetos”.

Portanto, nesse sentido, é possível perceber aspectos históricos da Educação Musical pelo indivíduo universal-singular. E ao considerar a unicidade na pluralidade, é possível compreender esse campo pelas trajetórias de vida-científica ou histórias de vida de seus pesquisadores. E nisto está a beleza oculta da área: nas diversas formas de contar a sua história (quase autobiografias explícitas no Lattes, trajetória de vida-científica, história de vida, autobiografia, musicobiografia e outras possibilidades; assim, abre-se espaço, inclusive, para outras áreas abordarem o campo da Educação Musical); e, a cada forma revelada, uma nova possibilidade de continuar avançando. É a necessidade que a ciência tem de se revelar continuamente. Esse, talvez, seja o fio condutor de toda essa unidade delineada pela pluralidade das seis trajetórias aqui apresentadas.

Se a história é uma literatura (JABLONKA, 2021), a história de vida de pesquisadores, ou trajetória de vida-científica, consubstancia-se como uma literatura contemporânea, ou de outro modo, uma obra viva e formativa, uma performance intelectual de pesquisadores construída na e para a Educação Musical no Brasil. Neste trabalho, observamos que a construção da Educação Musical perpassa pela produção científica; pela formação de recursos humanos em nível de pós-graduação; pela contribuição científica para inovação; pela coordenação ou participação principal em projetos de pesquisa e, ainda, pela participação em atividades editoriais e de gestão científica e administração de instituições e núcleos de excelência científica e tecnológica. Cabe destacar que esses não são os únicos caminhos. A trajetória é multifacetada.

Se a Educação Musical encontra-se institucionalizada, muito se deve a essas trajetórias de vida-científica de pesquisadores que se dedicaram para tornar o conhecimento gerado na Educação Musical no Brasil um bem público, partilhado. Por esses construtos, a história de vida ou trajetória de vida-científica, que surge do pessoal, completo e transdisciplinar, precisa ter visibilidade, ser lida e compreendida. As trajetórias aqui apresentadas mostram-se à altura dos desafios da contemporaneidade, portanto são – em sua singularidade, pluralidade e/ou unicidade – um produto histórico inovador pela força formadora para outros pesquisadores, professores e estudantes da Educação Musical e outras áreas do conhecimento.

APÊNDICE A

Listagem temática da produção do conhecimento de pesquisadores brasileiros

TEMAS

AUTORES

Trajetória de vida-científica

(OLIVEIRA, R., 2019; 2020b; 2021)

Epistemologia da Educação Musical

( AQUINO, 2017; MARTINS, 1989, 1995; ABREU, 2015)

Musicobiografia

(ABREU, 2019b; SOUZA, G., 2018; GONTIJO, 2019);

Educação Musical e tecnologias

(DE OLIVEIRA, 2020; GOHN, 2020; CIELAVIN; MENDES, 2020; GARCIA; BELTRAME; ARAÚJO; MARQUES, 2020; CERNEV, 2018; ARISTIDES; SANTOS, 2018; SOUZA, C., 2006; GALIZIA, 2009)

Educação Musical afrodiaspórica

(SOUZA, L., 2020)

Educação Musical e espiritualidade/ religiosidade

(BEZERRA; FIALHO, 2020; TORRES, 2004; RECK; LOURO; RAPÔSO, 2014)

Educação Musical e infância

(MAKINO, 2020; VIEIRA BRITO; BEINEKE, 2020; MARQUES; ABREU, 2018; LINO, 2012; BRITO; BEINEKE, 2020; SANTIAGO; NASCIMENTO, 1996)

Ensino de música na educação básica

(AMATO, 2006; QUEIROZ, 2012; MACEDO, 2015; DE ALMEIDA; LOURO, 2016)

Filosofia da Educação Musical

(LAZZARIN, 2006; DE ABREU, T., DUARTE, 2021)

Profissionalização de professores de música

(ABREU, 2011)

Ensino de música universitário brasileiro

(BEINEKE, 2004; DO COUTO, 2014; SALGADO; ARAÇÃO, 2018)

Formação do educador musical

(BELLOCHIO, 2003a. 2016; MATEIRO, 2003, GROSSI, 2003; 2007; PENNA, 2007; WAZLAWICK et al., 2013)

Análise da qualidade das pesquisas realizadas

(BEYER, 1996; OLIVEIRA, 1992; OLIVEIRA; SOUZA, 1997; SOUZA, 1997, ULHÔA, 1997)

Delimitação da Educação Musical como campo de conhecimento ou científico ou área de conhecimento

(SOUZA, 1996, 2001a, 2001b, 2007, 2020; OLIVEIRA, R., 2019, 2020b; 2021; DEL-BEN, 2010, 2017)

 

Do autor com base nos periódicos científicos Qualis A1 (Revista da Abem, OPUS, Hodie, Per Musi e Orfeu) considerando o quadriênio 2013-2016. Em pesquisa realizada na Plataforma Sucupira, 16 mai. 2021, verificou-se que o quadriênio 2017/2020 ainda não estava disponível[5]. Levantamento de listagem de temas feito entre os dias 01 de maio e 15 maio de 2021.

TEMAS

 

AUTORES

Educação Musical como/é cultura

 

(QUEIROZ, 2017)

Educação Musical e criatividade

 

(BEINEKE, 2009, 2011, 2015; PELIZZON; BEINEKE, 2019; VIEIRA, 2014; FONTERRADA, 2015)

Identificação de perspectivas teórico-metodológicas

 

(ENCONTRO ANUAL DA ABEM..., 1996; SOUZA, 1996; FERNANDES, 2021)

Educação Musical e legislação

 

(ALVARENGA; MAZZOTTI, 2011)

Gosto musical de alunos

 

(OLIVEIRA, R., 2014; TOURINHO, 2002; QUADROS JÚNIOR; LORENZO, 2013 )

Ensino coletivo

 

(TOURINHO, 2010; SANTOS, W.; SANTOS, A., 2020; BATTISTI; ARAÚJO, 2017; NAZARIO; MANNIS, 2014)

Listagem de dissertações e teses

 

(PEREIRA; GILLANDERS, 2019; FERNANDES, 1999, 2000, 2006, 2007; OLIVEIRA; SOUZA, 1997; ULHÔA, 1997)

Índices de autores e assuntos

 

(BEINEKE; SOUZA, 1998; FERNANDES, 2006, 2011; HENTSCHKE; SOUZA, 2003; MATEIRO, 2013; PEREIRA, 2019)

Diversidade temática, teórica e metodológica

 

(PEREIRA; GILLANDERS, 2019; BELLOCHIO, 2003b; DEL-BEN, 2003; SANTOS, 2003)

Produção científica em Educação Musical

 

(DEL-BEN, 2007; PEREIRA; GILLANDERS, 2019; OLIVEIRA, 2019, 2020, 2021)

Impactos da pesquisa

 

(BELLOCHIO, 2003b; DEL-BEN, 2007; SCHAMBECK, 2016; QUEIROZ, 2012)

Relação com outras disciplinas

 

(PENNA, 2006; FONTERRADA, 2007; FUCCI AMATO, 2010; QUEIROZ, 2004, 2010; SILVA; SILVA; ALBUQUERQUE, 2008; MOREIRA, 2012)

Metodologias específicas de pesquisa

 

(FIGUEIREDO; SOARES, 2012; RIBEIRO, 2013; PENNA, 2015; BRESLER, 2007; ABREU, 2019b; OLIVEIRA, R., 2020a; ALMEIDA; LOURO, 2019; CERNEV, 2018)

Ética

 

(FIGUEIREDO; SOARES, 2012; RIBEIRO, 2013; PENNA, 2015; BRESLER, 2007; ABREU, 2019b; OLIVEIRA, R., 2020a; ALMEIDA; LOURO, 2019; CERNEV, 2018)

 

Do autor com base nos periódicos científicos Qualis A1 (Revista da Abem, OPUS, Hodie, Per Musi e Orfeu) considerando o quadriênio 2013-2016. Em pesquisa realizada na Plataforma Sucupira, 16 mai. 2021, verificou-se que o quadriênio 2017/2020 ainda não estava disponível[5]. Levantamento de listagem de temas feito entre os dias 01 de maio e 15 maio de 2021.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

TEMAS

AUTORES

Políticas de CT&I

(DEL-BEN, 2014; PENNA, 2015; RIBEIRO, 2013)

Revisões e estudos de revisão

(GÁRCIA, et al., 2020; AMUI; GUIMARÃES, 2016; AQUINO, 2017; ARROYO, 2009; BEINEKE, 2008; FANTINI; JOLY; ROSE, 2016; GALIZIA; LIMA, 2014; MATEIRO; VECHI; EGG, 2014; PENDEZA; DALLABRIDA, 2016; PIRES; DALBEN, 2013a, 2013b; ROCHA; GARCIA, 2016; SCHAMBECK, 2016; SOUSA; IVENICKI, 2016; WERLE; BELLOCHIO, 2009; DE SOUSA; IVENICKI, 2016; MATHIAS, 2019; DEL-BEN, 2010)

 

Do autor com base nos periódicos científicos Qualis A1 (Revista da Abem, OPUS, Hodie, Per Musi e Orfeu) considerando o quadriênio 2013-2016. Em pesquisa realizada na Plataforma Sucupira, 16 mai. 2021, verificou-se que o quadriênio 2017/2020 ainda não estava disponível[5]. Levantamento de listagem de temas feito entre os dias 01 de maio e 15 maio de 2021.

Para outras temáticas ou correlações, sugere-se pesquisar os termos nos demais periódicos científicos da área, em livros e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) – que integra os estudos das instituições de ensino e pesquisa do Brasil e livros.

REFERÊNCIAS

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ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; ROSA, Miriam Suzéte de Oliveira. Apresentação: cuidado humano e educação. In: Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 1, p. 11-18, jan.-abr. 2012. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/21798. Acesso em: 13 abr. 2022.

ABREU, Delmary Vasconcelos. A construção da educação musical no Distrito Federal e história de vida de educadores musicais. 2016. Projeto de pesquisa (Projeto universal CNPq 2016 a 2019) [Acervo pessoal de Delmary Vasconcelos de Abreu]. Programa de Pós-Graduação Música em Contexto, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2016a.

ABREU, Delmary Vasconcelos. Levino Ferreira de Alcântara: a gênese da educação musical no Distrito Federal. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. (org.). Destacados Educadores Brasileiros: suas histórias, nossa história. EDIPUCRS: Porto Alegre, 2016b, p. 119-146.

ABREU, Delmary Vasconcelos. A história de vida aguçada pelos biografemas: um recorte da história de Jusamara Souza com o campo da educação musical. Revista da ABEM, 27, nov. 2019. Disponível em: http://www.abemeducacaomusical.com.br/revistas/revistaabem/index.php/revistaabem/article/view/856. Acesso em: 13 abr. 2022.

ARANGO, L. Família e trabalho. São Paulo: Diadorim: FINEP, 1998.

ARROYO, Margarete. Educação musical na contemporaneidade. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA DA UFG, 2., 2002, Goiânia. Anais […]. Goiânia: Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, 2002. p. 18-29. Disponível em: http://www.musicaeeducacao.ufc.br/Para%20o%20site/Revistas%20e%20peri%C3%B3dicos/Educa%C3%A7%C3%A3o%20Musical/Ed%20Mus%20 contemporaneidade%20Arroyo.pdf. Acesso em: 13 abr. 2022.

ARROYO, Margarete. Meta-análise e teorização da Educação Musical que envolve jovens: recursos e desafios da análise secundária de dissertações e teses (2010-2015). Anais [...]. do Congresso da ANPPOM, 26, Belo Horizonte: ANPPOM, 2016 p. 1-9. Disponível em: https://www.anppom.com.br/congressos/index.php/26anppom/bh2016/paper/view/4346. Acesso em: 13 abr. 2022.

BEINEKE, Viviane; SOUZA, Jusamara. (Org.). Publicações da Associação Brasileira de Educação Musical: índice de autores e assuntos: 19921997. Santa Maria: UFSM, 1998.

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BELLOCHIO, Cláudia. Da produção da pesquisa em educação musical à sua apropriação. OPUS, [s.l.], v. 9, p. 35-48, dez. 2003b. Disponível em: https://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/86. Acesso em: 13 abr. 2022.

BEYER, E. A pesquisa em educação musical: esboço do conhecimento gerado na área. In: ENCONTRO DA ANPPOM, 9., Rio de Janeiro, 1996. Anais […]. Rio de Janeiro: Anppom, 1996. p. 74-79. Disponível em: https://anppom.org.br/congressos/anais/anteriores/. Acesso em: 13 abr. 2022.

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Notas

1 Sobre Bolsa PQ (compromisso, responsabilidade, obrigações do pesquisador e significado) conferir Oliveira (2019, p. 33-36).

2 Considerando o quadriênio 2013-2016, pois o quadriênio 2017-2020 ainda não está disponível (em 16 mai. 21).

3 Esta pesquisa, que se iniciou em agosto de 2017, contava com cinco pesquisadores com Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ). No entanto, em maio de 2019, e confirmado em julho de 2020, observamos que a pesquisadora Liane Hentschke se aposentou e a pesquisadora Jusamara Souza optou pela bolsa de pós-doutorado com a qual desenvolverá pesquisa no exterior, na Alemanha [fontes pessoais advindas de Delmary Vasconcelos de Abreu]. Tal fato não tira o mérito da trajetória de vida-cientifica aqui analisada pela temporalidade da experiência e por estarem ambas com suas trajetórias ativas nessa modalidade. Ao atualizar a pesquisa no 2° semestre de 2020, Viviane Beineke entrou como a 6ª pesquisadora PQ.

4 Artigo publicado exclusivamente sobre a metodologia desenvolvida na dissertação.

5 https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublicacaoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.jsf