Artigos
ENTRE
CANTORAS, MATRONAS E POETAS: Significando o blues
AMONG
SINGERS, MATRONS AND POETS: Meaning the blues
Alexandre Eleutério Rocha 2
blues.alexandre@gmail.com
Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Flávio Santos Pereira 3
Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Luis Abraham Cayón Durán 4
Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Revista
Orfeu
Universidade do Estado de
Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 24 Junho
2021
Aprovação: 16 Dezembro
2021
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional
Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: Este
artigo aborda o blues. Tem por objetivo a análise de aspectos marcantes da
estética e linguagem desse secular gênero musical afro-americano: a agridoce
ambiguidade discursiva, emotiva e comportamental, linguagem culturalmente
codificada cujo fio condutor é o recorte no(s) conceito(s) de significação.
Foram escolhidos eixos analíticos centrados na tétrade reflexiva: estrutura,
processo, função e significado. O caminho que possibilita a análise dessa
manifestação artística é uma revisão bibliográfica que se vale de arcabouço
teórico-metodológico da Musicologia Cultural, Etnomusicologia e Semiologia
Musical. Recorre-se também a outros suportes teóricos de áreas como
Antropologia, História e Estudos Literários. É abordada igualmente a estreita
relação da estética, linguagem e discurso do blues semântica e sintaxe com a
construção sócio-histórica e cultural da identidade étnica do afro-americano.
Palavras-chave: blues, emoção, semântica
musical, signifying, significação.
Abstract: This
article addresses the blues. Its purpose is to analyze striking aspects of the
aesthetics and language of this secular African American musical genre: the
bittersweet discursive, emotional, and behavioral ambiguity, a culturally
codified language whose common thread is linked to the concept(s) of meaning.
Analytical axes were chosen centered on the reflexive tetrad of structure,
process, function, and meaning. The path that enables the analysis of this
artistic manifestation is a bibliographic review that makes use of the
theoretical and methodological framework of Cultural Musicology,
Ethnomusicology, and Musical Semiology. It also resorts to other theoretical
supports from areas such as Anthropology, History, and Literary Studies. The
close relationship of blues aesthetics, language, and discourse semantics and
syntax with the socio-historical and cultural construction of African American
ethnic identity is also addressed.
Keywords: blues, emotion, musical
semantics, signifying, meaning.
Introdução
O poeta afro-americano Langston Hughes conta que
Duma feita, Mr. Van
Vechten deu uma festa (...); quando o champanha estourou, Nora Holt (...)
cantou uma ária abandalhada, chamada “My Daddy Rocks Me With One Steady Roll”.
Quando acabou, conhecida matrona de Nova York exclamou, extasiada, com lágrimas
nos olhos: “Minha querida! Ó minha querida! Como você
canta bonito os spirituals negros!” (apud STEARNS, 1964, p. 166).5
O episódio, ocorrido nos anos 1920 e involuntariamente
anedótico, é um dos infindáveis causos da mitologia do blues, secular e popular
música afro-americana que traz em sua matula histórica significativos exemplos
de equívocos produtivos (VELHO, 1997), pois tivemos aí uma comunicação
imperfeita entre representantes de dois grupos de mesma comunidade linguística
(RAMOS, 2014), cujas concepções, embora diferentes, apresentam semelhanças ou
aproximações que permitiram a continuação da “audição” e consequente
apreciação. São equívocos produtivos que aqui refletem sobretudo o complexo,
delicado e denso locus sociocultural ocupado por esse gênero e seus criadores
na América branca. O episódio é involuntariamente
anedótico, mas oportunamente didático, por integrar também a categoria
semântica dos “símbolos afetivos e emotivos” (NATTIEZ, 2004, p.18), esta por
seu turno flertando com outra categoria, a das representações identitárias, de
grande interesse (etno) musicológico, quando determinados gêneros, estilos ou
timbres musicais característicos denotam, conforme situação, o grupo geracional
ou social, comunidade religiosa, etnia ou nação, sendo intenso e significador o
componente emotivo e seus vestígios possíveis nesses processos semiológicos.
Carregando camadas de significações artístico-identitárias, o
blues, influente manifestação dinâmica e processual esboçada nos estertores da
escravidão e que se espraiou pelo mundo, terminou sendo interpretado pelo senso
comum ao longo de sua centenária história, inclusive no Brasil do século XXI e,
curiosamente, por blueseiros (e incluindo o universo acadêmico e antropológico),
como forma de canção essencialmente lamentosa, obnubilando sua profundidade
semântica, suas piscadelas. Parafraseando John Blacking (apud NATTIEZ, 2004),
trata-se de uma manifestação musical com potência para exprimir ideias acerca
da sociedade, assim como das relações entre indivíduos. Se não, vejamos...
The blues ain’t nothing but a good man feeling bad... ou I love
the blues, it hurts so nice
O causo que envolveu a cantora, a matrona e o poeta integrou portanto o rol antropológico dos equívocos
produtivos (VELHO, 1997): enquanto a cantora operou manipulação vocabular de
seu vernáculo, a matrona expressou ao grupo sua emoção particular, sendo que
ambas, juntas, terminaram por emprestar ao blues a característica de
“lamentoso”. Nattiez (2004), em diálogo com Leonard B. Meyer e John Sloboda,
aceita que um ouvinte pode cognitivamente reconhecer ou identificar a emoção
que as estruturas musicais representam. Vai mais além: tal observação valeria
não apenas para os afetos, mas para todas as formas de associações semânticas
com a música. Porém, problematiza: ao estabelecer distinção entre conteúdo
imanente à música e associações efetuadas pelo ouvinte, indaga se as traduções
verbais da semantização da música obtidas junto aos ouvintes revelam seu conteúdo
semântico imanente, experimentado num estágio pré-verbal, ou se elas fornecem
uma distorção deste conteúdo, colorida pelas idiossincrasias daqueles.
De volta ao domínio da Antropologia, agora das Emoções, Le
Breton (2006) afirma que, de mesmo modo que estados afetivos e suas
manifestações variam a cada grupo social e cultural, o vocabulário a eles
associado não é facilmente traduzível termo a termo em outra língua, pois as
emoções não seriam
facilmente identificáveis
em duas culturas diferentes por meio do simples exame léxico (...). A causa das
emoções, seus efeitos sobre o indivíduo ou sua modalidade de expressão não se
concebem fora do sistema de significados e valores que regem as interações no
grupo (p. 152).
Cada cultura afetiva, ele argumenta, dispõe de vocabulário
particular, de sintaxe e expressões mímicas e gestuais próprias, assim como “de
posturas e modalidades de deslocamento” (p. 152), sendo dificilmente
superpostos os léxicos e experiências que os mesmos revestem, pois duas línguas
não são meros reflexos uma da outra: traduzir um termo do vocabulário afetivo
não é garantia de mesma experiência em línguas distintas. Seria tarefa
infrutífera compreender o complexo movimento da emoção sem alocá-la em íntima
relação e situação precisa com a forma pela qual ela se imiscui à trama social
e à cultura afetiva própria de um grupo. Do mesmo modo, conceber separar algum
aspecto da vida desse grupo dos demais sem apagar a estrutura de conjunto que
lhe dá sentido.
Uma cultura afetiva forma, portanto, estreito tecido onde cada
emoção é alocada em perspectiva no interior de uma trama indissociável: falar
de emoções em absoluto melancolia, amor, volúpia, tristeza, raiva implica
incidir certamente em etnocentrismo ao implicitamente propor, a culturas diferentes,
significado comum. Em uma perspectiva semiológica musical, temos os vestígios
como formas simbólicas, porque são portadores de significações emocionais tanto
para produtores quanto para receptores (e porque remetem a outra coisa diversa
NATTIEZ, 2014): entre os processos poiético (de produção) e estésico (recepção)
um vestígio material existe, e este não é, em si mesmo, portador de
significações de imediato inteligíveis, ao mesmo tempo sem o qual as
significações não poderiam existir. Confrontados com uma forma simbólica, os
receptores atribuem uma rede de significações, geralmente múltiplas, à forma.
E, por vezes, equivocadas, como esclarecemos a seguir.
O paródico e emblemático episódio, citado no início deste
artigo, ilustra como o blues era compreendido por parcela da audiência
“receptora”, por meio de remissões extrínsecas[5],
fora do contexto negro: uma elite branca que não conseguia abarcar seus
significados diversos, mas que certamente contribuiu, como formadora de
opinião, para alimentar condescendentes estereótipos. Em que pese a eficácia do
signifying (conceito que trataremos no próximo tópico) deste blues, não deveria
ser difícil para alguém que compartilhe o mesmo idioma materno alcançar, pelo
menos em nível semântico-poético, que uma canção que profanamente fale “meu
paizinho me embala com um balanço legal” está longe, tematicamente, de
pertencer ao repertório dos negro spirituals, gênero sacro (e elemento formador
do blues) que traz canções como “Sometimes I Feel Like a Motherless Child”[6]:
“My Daddy Rocks Me with
One Steady Roll”
(J. Berni Barbour)
My man rocks me with one steady roll
There’s no slippin’ when he once takes hold
I looked at the clock and the clock struck one
I said “Now Daddy, ain’t we got fun”
He kept rockin’ with one steady roll
My man rocks me with one steady roll
There’s no slippin’ when he once takes hold
I looked at the clock and the clock struck three
I said “Now Daddy, you a-killin’ me!”
He kept rockin’ with one steady roll
My man rocks me with one steady roll
There’s no slippin’ when he once takes hold
I looked at the clock and the clock struck six
I said “Now Daddy, you know a lot of tricks!”
He kept rockin’ with one steady roll
My man rocks me with one steady roll
There’s no slippin’ when he once takes hold
I looked at the clock and the clock struck ten
I said “Glory! Amen!”
He kept rockin’ with one steady roll
“Sometimes I feel like a motherless child”
(canção tradicional)
Sometimes I feel like a motherless child
Sometimes I feel like a motherless child
Sometimes I feel like a motherless child
A long way from home, a long way from home
Sometimes I feel like I’m almost done
Sometimes I feel like I’m almost done
Sometimes I feel like I’m almost done
And a long, long way from home, a long way from home
True believer
True believer
A long, long way from home
A long, long way from home
Ainda sobre significação, nos lembra Pereira (2012) ser esta
possível apenas com o consequente uso pessoal de um significado advindo de
acordo tácito coletivo e se transmitida por meio de código constituído
empiricamente, compartilhado e dominado por emissor e receptor, sendo essa a
base mesma da funcionalidade da linguagem. Mas adverte que a
linguagem artística
pressupõe, entretanto, um ineditismo que extrapola a dimensão funcional da
linguagem, que obriga a decifração num processo que exige do receptor uma
extensão de suas referências, um ultrapassar e estender o seu conjunto de
vivências sob o efeito da experiência com a obra de arte (cuja) mensagem jamais
se esgota na estreita apreciação hedonista (...) imprescindível saber do
contexto em que foi criada, e, se possível, buscar na genética da obra as
referências, explícitas e implícitas, determinantes no seu processo de criação
e na permanente construção do seu valor simbólico (p. 68).
No blues, essa genética remete a uma árvore genealógica cujos
ramos e bifurcações remontam hereditariamente a tempos e espaços que operaram
processos e discursos tão dramáticos quanto fascinantes em seus caracteres
estéticos, estruturais, funcionais e significantes.
“I’m gonna
break up this signifyin’”[7]
Refletindo especificamente sobre a inflexão discursiva da
poética do blues, dúbia e intrincada, postulamos agora e rapidamente uma
aproximação com a linguagem vernacular da comunidade afro-americana, mais
especificamente, com o signifying. Sendo basicamente uma reversão de sentido e
intenção codificada de dizer algo significando exatamente seu oposto (GATES,
1989), signifying é a técnica de exprimir entre/contra seus pares/‘o outro’ ideias ambíguas por meio de perícia verbal
argumentativa, lançando mão da ironia, e também da esperteza, brincadeira,
persuasão e dos jogos verbais. Ao usar de insinuações e conversas dúbias,
compreendidas apenas por membros da própria comunidade, o signifying permite ao
falante, sem custo de represália, expressar opiniões ou sentimentos ousados, satíricos, ou paródicos. Histórica e socialmente, é uma
valorosa estratégia discursiva da oralidade afro-americana.[8]
O signifying pode ser
rastreado até os primórdios do nascimento cultural daquela comunidade (ou mesmo
antes, se pensarmos numa matriz africana[9]),
uma estratégia que remontaria, portanto, à escravidão. Vivendo como escravo e
estrangeiro, o outro de uma terra outra, e diante da nova realidade e dupla
marca, o negro precisou sobreviver e enxergar-se sob o véu e à dupla
consciência[10], operando, mediante criatividade
e adaptabilidade, modos e meios de se relacionar e lidar culturalmente com o
senhor branco. E lidar com o idioma era aspecto crucial dessa operação: o coon
English (inglês de preto, expressão sintomaticamente pejorativa) era o modo
particular de falar desenvolvido a partir da adaptação que os escravos fizeram
do inglês (convém lembrar que em muitas línguas africanas ocidentais, uma
palavra pode mudar de sentido pela alteração do tom ou do acento[11]: esta inflexão significante teria, como veremos
adiante, implicações claras na música negra, onde as alterações desse tipo
adquiriram importante função estética e comunicacional). Sendo o coon English
bem particular quanto à inflexão, acentuação e tonicidade (GARCIA, 1997) e
estando o negro em situação histórica de inferioridade social, este buscou,
através do manejo da linguagem cifrada, tornar impotente seu principal
antagonista. Segundo Debra Devi (2012), o signifying se operou na fala com o
“mestre branco” através do insulto ou escárnio sem que este percebesse, num
ambiente violento que exigia para tanto habilidades
singulares.
Esse aprendizado do manejo discursivo foi questão de
sobrevivência psicossocial negra em face à imposição ao contato hierárquico,
opressor e assimétrico do mundo do branco, para lidar com códigos complexos e
interpretar a linguagem idiomática do dominador. Esse discurso serviu para a
preservação da dignidade individual e afirmação posterior, por meio de
dialéticas estratégias situacionais focadas na identidade cultural e
solidariedade comunitária (KEIL, 1966). Estratégias inclusive presentes em
manifestações musicais que por sua vez formatariam o blues, num continuum
processual (idem), repleto não apenas de continuidades, mas também e
principalmente mudanças e atualizações, rupturas e transformações, como
estratégia do processo de sobrevivência social.
As signifying songs, que seriam derivações evidentes migradas à
linguagem musical popular, mantém função e técnica: apesar de geralmente
alegres e ritmadas (ou por isso mesmo), guardam afiada carga crítica em sua
ambiguidade. A temática é em geral amorosa e divertida, sendo que o intérprete
tem a chance de temperar seu discurso lírico com insultos, velados/metafóricos
ou explícitos. Se alguns autores buscam, como Gates, “raízes” (musicais)
africanas da significação, outros localizam, se não nominalmente o signifying,
mas sua função e técnica, no contexto da escravidão e pós-escravidão, quando
ocorria o desenvolvimento de processos de interação cultural entre descendentes
de africanos e de europeus dos séculos XVII a XIX nos EUA, em específicas
condições econômicas e sociais[12].
Signifying
blues songs
“(...) o aspecto
mais surpreendente dos blues é que, embora repletos de um sentimento de derrota
e desânimo, eles não são intrinsecamente pessimistas: seu fardo de mágoa e
melancolia é dialeticamente redimido pela pura força da sensualidade, uma
afirmação quase exultante da vida, do amor, do sexo, do movimento, da
esperança. Não importa quão repressivo fosse o ambiente americano, os Negros
nunca perderam a fé ou duvidaram de sua capacidade profundamente endêmica de
viver. Todo o blues é um vigoroso, lírico realismo carregado de sincera
sensibilidade.” (Richard Wright apud OLIVER, 1960, ps. 09-10)[13].
Como forma de canção popular, o blues é deveras associado a dois
aspectos aparentemente ambíguos: “tristeza” e “sensualidade”. Esta ampla paleta
emocional guarda outro curioso aspecto: nem sempre a intenção discursiva do
bluesman é clara, inequívoca, mesmo em construções textuais (aparentemente)
simples. Frequentemente endereçado a alguém ao ouvinte, ao outro ausente,
muitas vezes a ambos traz incontáveis letras repletas de metáforas e
provocações e insinuações que permitem ao cantor(a) declarar todos os tipos de
desejos, intenções e críticas.[14]
Tal façanha fica mais intrigante, ambígua e (aparentemente)
paradoxal, quando se encontra mesclada à sua musicalidade: são recorrentes
temas de andamento mais lento e sonoridade mais “melancólica” (tons menores)
celebrativas do amor carnal ou evocativamente otimistas; assim como seu
inverso, em que canções mais animadamente ritmadas discorrem de forma irônica
sobre relações conflituosas ou condições aflitivas. Nos fala a guitarrista
Bonnie Raitt que
uma pessoa numa guitarra ou slide guitar possui uma sonoridade
tão triste e solitária como uma voz humana, podendo expressar tantas emoções
diferentes, desde desejo e calor sexual até dor e traição. A guitarra é em
geral um instrumento muito expressivo, havendo qualquer coisa sobre dureza e
emoção, sobre a noite escura da alma.[15]
Não nos é custoso lembrar e ressaltar que a técnica da slide
guitar, que possibilita a obtenção das blue notes ao deslizar ou escorregar
para uma nota (LEVITIN, 2010) pelas cordas um objeto liso, como navalha, osso
ou gargalo de garrafa serrado, resultando no efeito de bend (“torção” das
notas), com o intuito de conotar emoção, é carregada de amplas possibilidades
expressivas, portanto ambígua e, sobretudo, ricamente plurisemântica.
Etnomusicológica (e hermeneuticamente) falando...
Tanto a Musicologia Cultural quanto a Etnomusicologia e a
Semiologia Musical nos ajudarão a pensar sobre esse estado de coisas do blues.
Da Musicologia Cultural tem-se a averbação da noção de íntima relação existente
entre música e sociedade e da consequente necessidade de articulações acerca
das razões de uma música em particular ser singularmente do modo que é: o fito
seria articular a percepção estética da música com a compreensão de aspectos
históricos, sociais, culturais e políticos, mesmo sendo o foco dessa expansão
do objeto musical o indivíduo, portador de subjetividade, pois situado está em
“complexa rede de incessantes e múltiplas relações sociais”, adverte Pereira
(2012, p. 68), a partir de reflexões principalmente com Lawrence Kramer, para
quem a disciplina objetiva combinar visão estética com a compreensão mais
absoluta de suas dimensões cultural, social, histórica e política, e Rose
Subotnik, que postula a transposição dos limites do objeto musical,
investigando e esclarecendo o contexto e o momento histórico em que a obra,
esta um instrumento de ação e interação de um autor, surgiu, materializou-se,
conduziu-se e que reações e soluções provocou.
A obra musical está, portanto, inserida em meio social, sendo
parte sua, determinada e determinante (Pereira, 2012), assim fazendo-se mister,
por parte da análise musical, depositar importância nas conexões externas à
obra para a sua compreensão (e da própria sociedade), assim como valorar a
noção da obra musical como fato social, ou fato musical total (MOLINO apud
NATTIEZ, 2004), abarcando todo o espaço social onde ela se materializa e se
realiza.
Na esfera etnomusicológica, temos que, se para Blacking (1983)
pequenas variações de ênfase, entonação, ordem de palavras ou mesmo direção da
fala, bem como a paralinguagem, estariam associadas à gramática da palavra e
poderiam transmitir mudanças de significado não menos significantes do que as
ocorridas pela mudança de sintaxe, temos no blues uma estrutura poética que
torna notável o efeito complexo e sofisticado que pode ser alcançado meramente
a partir de pequenas variações de palavras, ritmo e contexto em versos
repetidos (OLIVER, 1990). Poderíamos inferir, portanto, que são muitas as
condicionantes capazes de gerar tantos ruídos hermenêuticos.
No terreno semiológico-musical, por seu turno, Tagg (2006) nos
diz que a semântica geralmente é útil ao entendimento da mensagem,
interpretação e significado de um sistema de comunicação. Trata, notadamente,
das relações entre signos, símbolos e o que eles representam. Já Keil (1966)
etnomusicologicamente coloca atenção na semântica num nível pessoal de análise:
estaria ligada à percepção e emoção, ao performer e audiência como
personalidades na interação, bem como ao processo de aprendizagem. Como
argumenta Mukuna (2008), a música “opera semanticamente como um veículo de
co¬municação num determinado perímetro cultural (p. 23)”, circunscrição que
aglutina e organiza materiais e elementos simbólicos: muito próximos do
significado semântico, integram códigos sociais e culturais e só podem ser
entendidos por indivíduos conhecedores desse código e que possuem essa
competência semântica.
Ampliada em Nattiez (2004), temos a semântica musical como
buscadora das significações afetivas, emotivas, imagéticas, referenciais, ideológicas
vinculadas à música por parte de compositor, performer e ouvinte: o ser humano
estaria capacitado a associar um fenômeno musical qualquer, graças a analogia
natural e motivado entre o significante musical e o significado ao qual remete,
e pelo efeito de convenção e/ou codificação sociocultural sejam esses fenômenos
alturas, intervalos, rítmicas, escalas, acordes, motivos, frases, melismas,
instrumentos com um fragmento qualquer de seu ser/estar no mundo – etos/ ethos
afetivo, psicológico, emocional, social, religioso, metafísico, filosófico em
função de suas necessidades religiosas, alimentares, ecológicas, econômicas,
lúdicas, afetivas e de acordo com as competências simbólicas intrínsecas ao
fenômeno musical (p. 20).
Cremos ser possível articular essa ampla pluralidade conceitual,
tendo a semântica como eixo reflexivo, com os aspectos cognitivos e emocionais
do fazer, performar e da recepção musical com relação ao blues, a partir do
modelo tripartite (NATTIEZ, 1989): se o nível neutro, ou mais bem pensado,
imanente, materializado em uma notação musical, que perpassada pelo
racionalismo ocidental, contemplaria cognitivamente e intencionalmente a
escrita de um tema e sua consequente análise internalista, sabemos que os
níveis poiéticos e estéticos, que se articulam com o fazer, performar e
recepcionar, trazem também elementos emocionais que, juntos certamente com a
cognição, estão atrelados subjetivamente a condicionantes históricos, sociais e
culturais, que por seu turno determinariam ricas pluralidades semânticas para a
compreensão e interpretação (no sentido hermenêutico) do blues (quanto à menção
à partitura, retomaremos este problemático ponto). Com o perigo de desvelar o
clichê e partindo de uma perspectiva êmica, temos que o blues carrega carga tão
emocional quanto plurisemântica, cujos microtons, gemidos, sussurros, risos
irônicos e piscadelas de uma performance seriam possíveis de ser alcançados
quanto maior a proximidade, real e simbólica (cultural), entre público e
performer, e quanto o mais distante da partitura.
Sobre os termos “ambíguo” e “vacilante”, assim como para a
interpretação sobre tonalidade menor no blues: para além, ou aquém, da letra,
temos a chance de tentar interpretar a canção por sua sonoridade. O episódio
que abre nosso artigo sugere que a sonoridade do blues reforçaria o equívoco:
seu sound próprio repousa sobre gama de sete notas, da qual o terceiro e sétimo
graus (e ocasionalmente o quinto e sexto) não são entoados com precisão,
“vacilando” entre terças ou sétimas maior ou menor da
gama ocidental. O ouvido treinado nas tradições musicais europeias percebe tal
entonação como “ambígua”, “incerta”, o que significa perceber intervalos
próprios do blues como tonalidades menores: amiúde, atribui-se cultural e
historicamente a essa tonalidade valor expressivo do gênero plangente. Talvez
um exemplo leve-nos a melhor entendimento:
Uma definição puramente musical de blues nos diz que este
apresenta uma progressão de acordes que consiste em quatro compassos da tônica
(I), dois compassos da subdominante (IV), dois compassos da tônica (I), um
compasso da sétima dominante (V7), um compasso da subdominante (IV) e dois
compassos finais da tônica (I). Este blues de doze compassos é ideal para a
tradição de “chamada e resposta” da África Ocidental, esquema de antifonia em
que uma voz ou instrumento principal afirma uma frase que é respondida por
outras vozes ou músicos. No padrão de música de doze compassos mais comum, o
líder canta duas linhas repetidas, cada uma respondida por uma frase instrumental,
depois uma terceira linha rimada que é respondida por um
final passagem instrumental. O dueto Bessie Smith – Charlie Green em
“Empty Bed Blues” é exemplo clássico desse tipo de conversa lascivo-musical,
que dificilmente poderia ser lida a contento somente através de uma partitura.
Smith começa a segunda estrofe cantando:
“Bought me a coffee grinder, that’s the best one I could find”
Green responde em seu trombone com notas brejeiras ao mesmo
tempo de forma melodicamente relaxada.
Smith repete:
“Bought me a coffee grinder, that’s the best one I could find”.
Green toca uma pequena série de notas lentas e prolongadas
emulando rouquidão.
Smith completa a lembrança libidinosa:
“Oh, he could grind my coffee, ‘cause he had a brand-new grind.”
E Green constrói um obbligato que a leva ao próximo verso.
Como nos lembra a historiadora Marybeth Hamilton (2000), “Empty
Bed Blues” entrou para o cânone historiográfico-musicológico do blues
curiosamente como um tema sobre abandono e perda amorosa. Ela esclarece que
Apesar de seus
versos de abertura tristes, “Empty Bed Blues” não é uma canção sobre abandono,
miséria ou qualquer emoção melancólica tão frequentemente associada ao blues
feminino. É uma música sobre sexo. As letras destacam, em detalhes cada vez
mais sugestivos, os prazeres físicos que a cantora experimentou com seu amante
desaparecido, e o drama da música ou melhor, sua hilaridade vem da
transparência de suas imagens e da maneira implacável como os duplos sentidos
são empilhados um no outro, com um aceno extra e uma piscadela pelo gemido sujo
do trombone de Charlie Green (p.132)[16].
Se nos ativermos ao título e a algumas estrofes, assim como à
sonoridade que numa primeira camada soa lamentosa, teríamos de fato uma canção
de fossa. No entanto, se ampliarmos nossa percepção e compreensão semântica,
temos outros indicativos, intra e extramusicais: (i) na citada segunda estrofe,
mas também na terceira e décima, Bessie lança mão da linguagem vernacular
afro-americana, melhor dizendo, de celebrativas gírias lascivas repletas de
signifying: coffee grinder; cabbage e bacon; deep-sea diver e stroke são
metáforas culinárias e laborais que fazem referência ao ato sexual (sendo a
antiguidade e etnicidade de “to grind”, “moer”, remetida mesmo à Europa
Medieval, como nos mostra Carlo Ginzburg, 1976); (ii) para quem teve
oportunidade de assistir a Bessie Smith ao vivo (Danny Baker apud BERENDT,
1975), era possível acompanhar as sutilezas e/ ou ambiguidades de suas
performances, para muito além de uma notação musical ou mesmo leitura poética:
ela lançava mão de artifícios como risos irônicos, literais piscadelas,
gestualizações erotizadas em contraponto a trechos narrativos lamentosas,
sobretudo quando em espaço dialógico com os músicos, em que por muitas vezes
emulavam um colóquio sexual.
Ainda em Hamilton, que defende, e nós concordamos, se tratar de
uma canção que trata celebrativamente de sexo, de amor sexual, ainda que de
forma ambiguamente lamentosa, porque enfaticamente saudosa e nada ligada ao
eurocentrismo do amor romântico, mas agora nos aproximando de Angela Davis
(1998): a liberdade de viajar e escolher parceiros sexuais normalmente era
negada sob a escravidão e as rainhas do blues como Bessie Smith celebraram
essas liberdades em termos inequívocos. Espécie de proto-feministas, essas
intérpretes e performers se notabilizaram por saírem da condição de objeto para
de sujeitos sexuais, cantando sobre sexo de maneira franca, brejeira ou séria
(ou ambas). E, em que pese sua enorme popularidade entre vasta parcela do
público negro, essa opção estética provou ser uma vergonha para os estudiosos
do blues, feridos em suas sensibilidades moral-estético-religiosas e
ideológico-políticas: aficionados da música, jornalistas, folcloristas e historiadores
que nos últimos oitenta anos geraram vasto corpo de literatura definindo e
avaliando a tradição do blues não apenas renegaram ou silenciaram esse
repertório como chegaram mesmo alguns a não considera-las sequer blues.
Portanto, tons menores e poética lamuriosa estariam longe de ser
um complemento fidedigno de uma definição estrutural do blues.
I woke up this morning with an awful aching head
I woke up this morning with an awful aching head
My new man had left me just a room and an empty bed
Bought me a coffee grinder, got the best one I could find
Bought me a coffee grinder, got the best one I could find
So he could grind my coffee, ‘cause he had a brand new grind
He’s a deep-sea diver, with a stroke that can’t go wrong
He’s a deep-sea diver, with a stroke that can’t go wrong
He can touch the bottom, and his wind holds out so long
He knows how to thrill me and he thrills me night and day
Oh, he knows how to thrill me and he thrills me night and day
He’s got a new way of loving, almost takes my breath away
Oh, he’s got that sweet something and I told my girlfriend Lou
He’s got that sweet something and I told my girlfriend Lou
But the way she’s ravin’, she must have gone and tried it too
When my bed get empty, make me feel awful mean and blue
When my bed get empty, make me feel awful mean and blue
My springs are getting’ rusty, sleepin’ single like I do
Bought him a blanket, pillow for his head at night
Bought him a blanket, pillow for his head at night
And I bought him a mattress, so he could lay just right
He came home one evening with his spirit way up high
He came home one evening with his spirit way up high
What he had to give me, made me ring my hands and cry
He give me a lesson that I never had before
He give me a lesson that I never had before
When he got through teachin’ me, from my elbow down was sore
He boiled my first cabbage and he made it awful hot
He boiled my first cabbage and he made it awful hot
When he put in the bacon, it overflowed the pot
When you get good lovin’, never go and spread the news
When you get good lovin’, never go and spread the news
It’ll build up to cross you, and leave you with them empty bed
blues[17]
Para o afro-americano, nos lembra Miller (1975), tons menores
não representariam estados de espírito melancólicos: ele os utiliza,
principalmente, para produzir expressão enfática, indicativa de grande
perturbação, de grande e complexa emoção, agridoce por certo, mas dificilmente
binária, restrita a apenas uma nítida e unívoca emoção. Isto posto, quem
interpreta a entonação “vacilante” do blues como sinal de estado de espírito
igualmente “vacilante”, melancólico, de distanciamento e alienação do mundo ou
deprimido, estaria usando o ouvido inapropriadamente: aplica seus hábitos
culturais de ouvinte formado pela tradição europeia à percepção de estilo negro
de expressão (o etnocentrismo de que nos falou Le Breton). O mal-entendido do
conteúdo é agravado pelo mal-entendido linguístico: to be blue, em secular
linguagem inglesa corrente, significa “estar aflito, melancólico, desanimado”;
entre afro-americanos tal conceito adquiriu sentido linguístico muito mais
complexo, nuançado e diversificado.
Curioso notar ainda que muitos predicadores e cantores gospel
utilizam o falsete, que na cultura afro-americana (MILLER, 1975) denota
fragilidade ou carência emocional, mas também sinônimo de virilidade e
masculinidade (ressalta-se aqui que, em leitura ocidental com exceção do
contratenor denotaria uma feminização, ou seja, um grande equívoco), expediente
assim adotado por cantores de soul e blues. E quando temos nomeação equivocada
sobre essa canção (um blues lascivo nomeado como negro spiritual), a análise
interpretativa fica mais densa, semioticamente repleta de significados
culturais entrelaçados (GEERTZ, 1989) e paramusicais (TAGG, 2006), em que
significações musicais são necessariamente compreendidas para além de seus
elementos intrínsecos.
Equivocados e produtivos
Parte significativa da clássica historiografia do jazz[18] (STEARNS, 1964; BERENDT, 1975) reserva ao blues o
honrado posto das “matrizes” que fomentaram o mainstream, a corrente principal
daquele. A partir desse condescendente prisma, é percebido antes como precursor
“primitivo”, folclórico e coadjuvante do e secundário ao jazz do que um seu
contemporâneo e cujos expoentes seriam sobreviventes de antiga tradição. Mas o
blues também é celebrado, ora vejam, enquanto música folclórica, “pura” e
“legítima” (CHASE, 1957) assim como popular (GILLETT, 1970), como uma das
“fontes” perenes e principais se não principal que nutriu e nutre o gospel,
rhythm and blues, rock and roll (r’n’r), soul, funk e disco music, o folk
urbano e mesmo a country music e derivações, num continuum histórico que
alcançaria a música (pop)ular contemporânea, do rock ao rap.
Felizmente, a partir da segunda metade do século XX, essas
exegeses passaram a ser complexificadas por pesquisas, trabalhos de campo e
publicações de novos folcloristas, historiadores e sobretudo antropólogos e
etnomusicólogos (CHARTERS, 1959; OLIVER, 1960; KEIL, 1966; LOMAX, 1970; FERRIS,
1978; EVANS, 1982; HERZHAFT, 1986; HAMILTON, 2009; RYAN, 2015; SCHWARTZ, 2018),
que alocaram o blues como música autônoma, com origem, história,
desenvolvimento (mutações e atualizações) e sobretudo perenidade, largamente
independentes daquela do jazz e para além de seus “frutos”.
Pesquisa acadêmica e avaliação crítica contribuíram para lidar
com esse paradoxo: se a relevância do blues para criação e elaboração de todos
esses estilos era relativamente consensual, esses novos olhares
etnomusicológico, sociológico e histórico o vislumbram como música secular
afro-americana ricamente processual. Seus contornos e limites passaram a ser
problematizados e aprofundados: as tradicionais percepções de sua estrutura
musical engessada em acordes, compassos e estrofes pré-definidos, e sua
expressividade lamentosa presentes nas blue notes, poética e performance -,
foram colocadas em xeque, principalmente quando a dança, outro elemento
umbilicalmente associado ao blues, passou a ser contemplado: sabemos que (não
tão) novas pesquisas apontam novas possibilidades etimológicas ao blues: ele
pode ter nascido como animado, ritmado e erotizado ritmo de dança (DEVI, 2012),
sendo identificado mesmo como tal, antes de denominar um gênero musical. Não
por acaso, esse mesmo blues seria celebrado como (outro senso comum) “raiz” do
r’n’r, gênero musical igualmente animado, ritmado e erotizado, reconhecido
inclusive pelos mesmos que postulam ser o blues gênero essencialmente
“lamentoso”. Curiosos binarismos e oximoros para camadas e camadas de
significados...
Enquanto música, poética, dança e performance, o blues foi um
importante fenômeno cultural que marcou profundamente o moderno cancioneiro
ocidental, ao construir uma linguagem artística ambígua, fenômeno bastante
incomum em se tratando de música popular branca norte-americana, até então
presa a claro binarismo de emoções e sentimentos. Ao mesmo tempo triste e
alegre, sensual e melancólica, franca e irônica, direta e velada, esses pares
de opostos têm sua razão de ser, graças a um contexto histórico, social,
cultural, político, econômico e religioso marcado por grande assimetria entre
grupos étnicos. Uma linguagem, discurso, narrativa e comportamento repletos de
significações estéticas, políticas e emocionais (e eróticas!) surgidos como
forma de resistência, negociação e mesmo sobrevivência cultural, cujas várias
camadas de significado compartilhadas apenas, pelo menos inicialmente, por um
grupo de afro-americanos não impediu que fosse mais adiante compreendida,
admirada, assimilada, apropriada por outros setores, em forma de falas, gestos
e acordes.
O estudo clássico do blues, portanto, foi histórica e
culturalmente marcado por romântica, problemática e seletiva orientação que
estabeleceu narrativas canônicas em torno da “autenticidade”, “pureza” e
“legitimidade” dessa música, tida primordialmente como lamentosa e melancólica.
Consequentemente, subestilos como o hokum blues[19]
assim como temáticas debruçadas sobre enredo erótico, ou sobre o amor sexual
maduro muitas vezes representado cifradamente não receberam, como já frisamos,
a devida atenção ou mesmo foram descredenciados. Como foi o caso da
tradicionalmente “romântica” “Easy Rider”.[20]
Cifrada balada folclórica que remonta quiçá à Guerra da Secessão
(186165), “C. C. Rider” (atualizada, modificada, continuada em “See See Rider”
e “Easy Rider”, ao gosto das décadas, contextos rurais/urbanos e gêneros
musicais diversos) é exemplo de poderoso signifying erotic blues. Durante a
Guerra, C.C. referia-se a um Cavalry Corporal (Cabo de Cavalaria) que, nos
primeiros registros da canção (JOHNSON, 1927), foi responsável por separar uma
mulher de seu amante soldado (ou era ele o próprio):
“C.C. rider, see
what you have done, / Lord, Lord, Lord, C.C. rider, see what you have done, /
You’ve made me love you, now my man has gone”. (“Cavaleiro viajante, veja o que
você fez, / Você me fez amá-lo, e agora meu homem se foi.”)
Riding (montar, cavalgar), é um secular eufemismo idiomático
negro para o sexo e mais antiga e comum metáfora para “prazeres do amor” usada
pelo blues (DEVI, 2012)[21]. Um cavaleiro
(rider) é parceiro sexual masculino, amante constante (assim como pony e mare
pônei e égua são extensões naturais da mesma imagem). Em 1924, reformulando o
terceiro verso, a seminal classic blues singer Ma Rainey (1886-1939) se dirigia
ao “See see Rider (...)You made me love you, now your gal has come”. (“Senhor,
Senhor, Senhor Faça-me amar você, /Você me fez amar você, agora sua garota
chegou”). Interessante notar que no vernáculo branco existe forte tendência
para o cavaleiro ser masculino. Já entre os bluesmen ocorre a permuta com a
parceira como figura do discurso, ela mesma se tornando o cavaleiro, o que faz
sentido, dado que no uso afro-americano, cavaleiro pode ser usado para
significar um amante de ambos os sexos (DILLARD apud DEVI, 2012).
Já em Easy Rider (o cavaleiro fácil) acontece a adição de
adjetivo descritivo, passando a designar, na gíria afro-americana, alcoviteiro,
amante, cafetão (também chamado roller) ou gigolô (ULANOV, 1957), ou ainda, ao
homem cujos movimentos sexuais são fáceis e satisfatórios (JOHNSON, 1929),
sendo que easy, sozinha, carrega o significado de uma pessoa infiel e desonesta
e, para a mulher, seria uma expressão que denotaria admiração (DEVI, 2012).
Easy rider designava também a guitarra pendurada nas costas do bluesman
andarilho (OLIVER, 1960). É indicativo da importância afetivo-material da
guitarra para este que o termo easy rider tenha sido amplamente aplicado pelos
primeiros bluesmen aos seus instrumentos e, embora isso derivasse em parte do
fato de que a guitarra era facilmente carregada por uma correia pendurada às
costas do cantor, o uso de um termo amplamente aplicado a um amante indicou
relação afetivo-sexual de proximidade entre músico e instrumento, amplamente
confirmado por registros vários (em performances erotizadas; pela forma do
violão se assemelhando ao corpo feminino; BB King nomeando Lucille a sua
guitarra etc.). Enfim, tem-se aqui um cavaleiro bem distante do exaltado nas
narrativas do amor romântico.
Mais dois episódios abaixo poderão arrematar nossa argumentação,
porque paradigmáticos quanto aos processos de negociações e conflitos,
estratégias e estranhamentos.
“Screaming Guitar and
Howling Piano”
Lado A: Em oferta pela instalação de um sistema de
ar-condicionado, o produtor John Hammond[22]
barganhou em 1938 com a prefeitura de Nova Iorque o apoio a um evento musical
até então inédito. Intitulado “From Spirituals to Swing”, o concerto reuniria
pela primeira vez no palco do Carnegie Hall referenciais nomes da música
afro-americana, mais precisamente do gospel, jazz e blues. Tão didático quanto
ousado e ambicioso, o evento intencionava apresentar a história da (ainda
jovem) música popular negra, até então praticamente invisibilizada entre/pelos
Estados Unidos branco, que teriam de acolher pela primeira vez um público
interétnico que se misturaria “livremente no calor estival” (MAZZOLENI, 2008,
p. 18). Ambição digna de nota, quando sabemos que, à época, raros eram os
melômanos brancos que escutavam os race records[23],
que desde o desenvolvimento da indústria fonográfica dos anos 1920 preenchiam
esteticamente a vida social e cultural negra. Objetivando partir dos cantos negro spirituals, passando pelo boogie-woogie até
chegar às swing bands, que eram as orquestras de jazz na moda até então, o
concerto conheceu retumbante êxito, propiciando uma segunda edição no ano
seguinte. Neste, temos que os românticos clichês ligados ao blues se fizeram
fortemente presentes: de modo paternalista, folclórico e condescendente,
Hammond apresentou o bluesman Big Bill Broonzy como um meeiro e “autêntico
bluesman rural” do Arkansas que largou suas duas mulas e teve de comprar seu
primeiro par de sapatos para a ocasião (HUMPHREY, 1993).
Big Bill Broonzy
(1898-1958), no entanto, não só residia na nortista Chicago desde 1920 como
foi um dos artífices do moderno blues urbano, tendo suas inúmeras gravações
tocadas em espaços negros por todo o país, notabilizado inclusive pela
elegância dos trajes e trejeitos citadinos e sobretudo pelos experimentos
pioneiros com a eletrificação da guitarra. Não se fazendo de rogado, ele
vislumbrou importante porta de acesso profissional a outros loci. E foi o que
aconteceu: ao final da década de 1940, Broonzy era um dos elementos-chave da
emergente cena que acontecia na mesma Nova Iorque, a do American folk music
revival[24], movimento estético-político que
buscava resgatar o blues e outras “autênticas raízes” musicais que contribuíram
para o desenvolvimento de gêneros populares como o country e o jazz. De posse
desse passaporte de legitimação, Broonzy estrearia na Europa em 1951,
triunfando como o autointitulado “último dos artistas de blues da América”
(DIXON apud O’NEAL, p. 337). A partir de então, as dezenas de discos de blues
citadino com baixo, bateria e instrumentos de sopro foram convenientemente
deixados de lado, para que Big Bill desempenhasse a contento o papel do
bucólico folk bluesman dos campos de algodão (PALMER, 1981), para regozijo de
uma ala da esquerda política, assim como do público purista dos dois lados do
Atlântico.
Lado B: No outono de 1958, assistimos desta vez ao guitarrista
Muddy Waters (1913-1983) em apresentação em palcos europeus, este que era, não
por acaso, discípulo e protégé de Big Bill Broonzy que, com saúde deteriorada e
perto do fim, recomendou a alguns de seus fãs ingleses que trouxessem Muddy ao
velho continente. Continuador de um Chicago blues que conheceu formato elétrico
definitivo a partir dos anos 1950, e que teve em Waters um de seus principais
estilistas, o guitarrista fez uma estreia errática em sua turnê inglesa. Como
não havia dinheiro suficiente para o então desconhecido bluesman levar sua
banda, senão seu pianista e braço direito Otis Spann, a modesta turnê foi
realizada junto com um popular grupo de jazz tradicional inglês liderado por
Chris Barber. A esse improvável apoio musical somou-se o desconhecimento por
parte de Waters sobre o público para o qual iria tocar: tratava-se de uma jovem
audiência mais afeita ao blues que dialogava com o jazz tradicional e com o
skiffle leiam-se o dixieland britânico e de um seu derivado, o skiffle, espécie
de versão inglesa do folk blues americano[25] do
que com sua contraparte juvenil, sintonizada no nascente, moderno e
eletrificado rock and roll fortemente derivado do eletric Chicago blues de
Waters. Inocente das expectativas desse público, aumentou o volume de seu
amplificador, deslizou seu bottleneck estrondoso e começou a gritar seu blues.
“Guitarra Gritante e Piano Uivante” (PALMER, 1981). Assim
ficaram na lembrança de Muddy Waters as manchetes dos jornais da manhã seguinte
à sua apresentação:
Eu tinha aberto
aquele amplificador, rapaz, e havia estas manchetes em todos os jornais. Chris
Barber, ele disse: ‘Você toca bem, mas não toque seu amplificador tão alto.
Toque mais baixo’. Porque, veja bem, eu estava tocando aqui em Chicago com um
pessoal que aumenta os seus (apud PALMER, p. 257)[26]
Tocando uma guitarra amplificada em volume bastante elevado e
realçada por um trabalho de slide agressivo e estridente e cantando temáticas
que versavam sobre o amor sexual maduro e os desafios e perigos da vida urbana,
chocou as sensibilidades de uma plateia que até então ignorava totalmente esse
desenvolvimento do blues e que ainda entendia o gênero romanticamente: uma
forma de canção brejeira e pueril, rural e acústica, uma secular manifestação
musical sobrevivente que se limitava a ser uma das matrizes folclóricas do
jazz. Convém relembrar que, até Muddy Waters chegar à Inglaterra, todos os
bluesmen negros que lá haviam se apresentado, e não somente Big Bill Broonzy
(como Josh White e a dupla Brownie McGhee & Sonny Terry), marotamente
tocavam folk blues acústicos em um estilo com o qual os fãs de skiffle podiam
se identificar facilmente. Para contornar todo constrangimento e
contrariedades, Waters mostrou estratégica complacência e permitiu diluir,
escudado pelo jazz tradicional do grupo de Barber, um pouco de sua “áspera”
sonoridade em meio a orquestração mais familiar à inadvertida audiência.
Curiosa e sintomaticamente, a segunda visita do bluesman à
Europa meia década depois se deu sob condições bem mais propícias e
hospitaleiras: desta vez, foi como atração de um festival de blues e cuja
plateia era formada por aqueles jovens e amantes do rock and roll que
conseguiam fazer mais facilmente a ponte estético-
-temporal que ligava o blues
eletrificado de Muddy Waters ao r’n’r “negro” de um Chuck Berry (não por acaso,
e desta vez, discípulo e protegido de Muddy Waters).
Anthropological blues
Para o aficionado mais dedicado, longevo e disciplinado por
algum, por exemplo, gênero artístico colecionador, pesquisador ainda desperta
uma gama de emoções e sentimentos, alguns não tão nobres, ao ouvir opiniões e
questionamentos de leigos sobre seu objeto de desejo. No caso de um blues
scholar, quase que invariavelmente são quatro as abordagens sofridas: a
afirmação de ser o blues “bonito mas melancólico” (ou bonito por ser melancólico);
a dúvida sobre “a diferença se é que tem entre blues e jazz”; o elogio de que o
blues “é legal por ser o pai do rock”; e, heresia suprema, a crítica de que
“todo blues é igual”.
Em que pesem falas do senso comum serem
possíveis momentos de se despejarem platitudes, preconceitos ou equívocos,
mostram-se chance de fértil reflexão sobre o tema em discurso, inclusive em
relação à busca das fontes originárias que ajudaram a formatar juízos
valorativos e informativos. Ainda no caso do blues, muito desse estado de
coisas se deveu, ironicamente, a fontes eruditas e acadêmicas: muito do que
formalmente se escreveu e contribuiu para sedimentar a imagem do gênero partiu
de autores em sua esmagadora maioria homens e brancos que se debruçaram,
musicológica, histórica ou sociologicamente sobre o jazz, folk music e rock,
dando consequentemente papel secundário ao blues. Apesar de (em sua maioria)
bem-intencionadas, menções e avaliações sobre aquele não conseguiram deixar de
escapar superficialidade, reducionismo, incompletude ou truncagem, que não
devem ser debitadas somente ao pouco espaço disponível no papel a um gênero
“secundário”, pois podem refletir também percepções equivocadas,
estereotipadas, elitistas e preconceituosas do objeto retratado.
Roberto Da Matta (1978) nos fala, em referencial texto
antropológico, de anthropological blues como o lado emocional e a subjetividade
que envolvem os agentes sociais e que revelariam o aspecto interpretativo da
pesquisa (de campo): a expressão abarcaria elementos constituintes, mas não
privilegiados do trabalho do etnógrafo, como as dificuldades de integração e
sobretudo solidão e saudades de casa, aspectos humanos, de liminaridade e
estranhamento, que transbordariam sob tais circunstâncias. Estas reflexões são
peculiarmente significativas pela escolha da expressão: ela obviamente remete
ao blues, ou à representação histórica e culturalmente construída em torno
dele: uma música que reflete estado de espírito triste e saudoso, melancólico e
nostálgico; uma música que manipula emoções e sentimentos.
Particularmente vejo nessa expressão uma licença poética e
imagética de contundente eficácia simbólica, uma vez que o blues é celebrado
por tais predicados; mas vejo sobretudo um significativo exemplo de equívoco
produtivo por parte de Da Matta, em detalhe menor, mesmo comezinho, mas
significativo para o autor desse artigo: quando no texto ele se refere ao
gênero musical como “blue” (p. 06), ele entrega um lugar de fala que o realoca
junto a outros atores que partilharam comigo convívio ao longo de mais de três
décadas como pesquisador do blues: scholars, músicos e melômanos que compõem
legitimadora elite intelectual e econômica consumidora de jazz e música erudita
que, sintomaticamente mas com muita elegância e autoindulgência, reduziam o
“blue” a simpática e algo relevante música folclórica, com seus tristes
lamentos do campo, em exercício de atavismo licencioso e caricatural do
apreciador outsider, não entendedor.
Dois episódios relatados a seguir, relativamente recentes e vividos
ainda por este autor pode ser ilustrativo, mesmo elucidativo, sobre o quão
equívocos produtivos, se estruturados e estruturantes, sedimentam-se no
conforto do estereótipo e em longeva e ampla existência.
Em 2019, e portanto quase uma centena
de anos depois do episódio que ensejou esse texto, estava em processo de
divulgação do curso que ministro sobre a história-antropológica do blues. Em
entrevista em rádio sobre o evento, em parceria com renomado duo brasiliense de
blues (voz feminina e violão masculino), ouço este (que é sintomaticamente
egresso do rock), logo após a execução sinuosamente dialógica e evocativamente
lasciva de “Statesboro Blues”, resumir conceitualmente o blues a um lamento.
Esse comentário terminou por se revelar também involuntariamente anedótico e
oportunamente didático como o referido e secular episódio inicial, quando temos
que a citada peça (de 1928 e de autoria de Blind Willie McTell), muito além de
lamentosa, é erótica e animada, realçada inclusive e principalmente por apropriada
performance vocal pedida pela canção e atendida a rigor pela cantora e pelo
arranjo blues-rock escolhido pelo violonista, arranjo de 1971 da Allman
Brothers Band:
Wake up momma, turn your lamp down low;
Wake up momma, turn your lamp down low.
You got no nerve baby, to turn Uncle John from your door.
I woke up this morning, I had them Statesboro Blues,
I woke up this morning, had them Statesboro Blues.
Well, I looked over in the corner, and Grandpa seemed to have
them too.
Well my momma died and left me,
My poppa died and left me,
I ain’t good looking baby,
Want someone sweet and kind.
I’m goin’ to the country, baby do you want to go?
But if you can’t make it baby, your sister Lucille said she want
to go.
(and I sure will take her).
I love that woman, better than any woman I’ve ever seen;
Well, I love that woman, better than any woman I’ve ever seen.
Well, now, she treat me like a king, yeah, yeah, yeah,
I treat her like a doggone queen.
Wake up momma, turn your lamp down low.
Wake up momma, turn your lamp down low.
You got no nerve baby, to turn Uncle John from your door.
As três estrofes discriminadas apontam para duas expressões
vernaculares muito antigas da tradição do blues: Uncle John que, assim como
Sweet Black Papa e Back Door Friend, refere-se a amante fogoso, ardiloso,
ladino boêmio e também sorrateiro, uma plurisemântica igualmente encontrada em
doggone, uma não muito elogiosa, por vezes misógina, mas também sexista e
elogiosa referente a uma amante voraz, astuta e fiel como um cão, quando se
sabe que a utilização metafórica de animais no universo afro-americano
remete-se negativamente à escravidão, mas que passou por rico, complexo, denso
e dramático processo de ressignificação positiva. Já a estrofe que traz “I’m goin’
to the country” alude ao passear com objetivos sexuais, acrescida da bravata
machista do protagonista que ameaça levar ao passeio uma condescendente
cunhada.[27]
Dias antes, ao convidar uma conhecida acadêmica erudita da área
de Letras, Literatura e Tradução para o citado curso, ouço dela que “os blues
são muito interessantes: conheço pouco, mas tenho aquela coleção de capa marrom
que traz aqueles sons bem pungentes.” Além de reduzir o blues a uma referencial
“coletânea marrom” (?!), ela navegou, na forma de uma variante plural, pela
mesma rota semântica que originou secular pecadilho de Da Matta e pares: “os
blues” como plural de “blue”, adjetivo para tristeza e que teria substantivado
esse gênero musical. Não sei se intransigente ou se leviano, o fato é que em
mais de três décadas pesquisando e vivenciando o blues, esta concordância
nominal entre artigo e substantivo – “os blues” – esteve quase invariavelmente
presente na retórica de todos os tipos de interlocutores elencados anteriormente
(“scholars, músicos e melômanos que compõem legitimadora elite intelectual e
econômica consumidora de jazz e música erudita”), como quase um vocabulário
inconsciente, imanente e tácito.
Considerações finais
Exige-se para a compreensão da música, além do pré-requisito
para qualquer análise sensível, a saber, a familiaridade para com ela, a sua
proveniência, origem e época e os usos aos quais destina-se (COOK, 1992). O
mesmo procede com o blues, e mais: necessita-se interpretar os sistemas entrelaçados
de seus signos interpretáveis (GEERTZ, 1989), da leitura (auditiva) do discurso
poético-social por cima dos ombros de quem os narrou; de enxergar além das
referências imediatas que a piscadela auditiva apresenta ao ouvido distraído[28]. A descrição densa fala dessa interpretação dos
fatos descritos, a busca das motivações, objetivos e significados, um profundo
mergulho num dado quadro cultural, indo além da observação superficial,
epidérmica, do enunciado pela camada visível de determinada cultura.
Se o som, per se, é insuficiente para conduzir o sentido
pretendido, então quaisquer sentidos extraídos da música derivariam de
associações extrínsecas, extramusicais (MONELLE apud MUKUNA, 2008) ou
paramusicais (TAGG, 2006). Talvez resida aí o equívoco produtivo referente ao
blues: a imagem do performer negro simbolizaria à paternalista e complacente
audiência branca a versão afro-americana do bom selvagem rousseauniano,
atavicamente sensível ao peso e dores do (seu) mundo. A economia dos signos
corporais e gestos emocionais de herança europeia (VALVERDE, 1993), também
reverberavam na construção perceptiva do negro e sua música, um outro exótico,
emotivo, sofrido; exagerado, infantil e rude. Não esqueçamos, e Pereira (2019)
nos lembra, que a história nos mostra estar a obra “além do seu criador, seja
no plano espacial, temporal ou simbólico” (p.135): ao fim e ao cabo, seu
potencial de sentido se encontra menos no bloco de intenções do
compositor/performer e mais na recepção do grupo social e se renova nos
significados socialmente atribuídos, notadamente se alóctone.
Temos que ter em mente que, por parte dos artistas negros,
talvez residisse aí certa conveniência, ao possibilitar ingresso material
(econômico, social) e simbólico (cultural) ao universo branco, sem grandes
fricções étnicas (OLIVEIRA, 1972), até porque raros conseguiam adensar as
camadas de significado de sua arte. Mesmo na bibliografia de segunda mão
disponível, os primeiros e canônicos escritos de folcloristas, musicólogos e
historiadores, padecia de igual problema: estavam recheadas com dados
históricos falsos e informações pouco fidedignas, graças à falta de
documentação de referência, às limitações etnocêntricas dos escribas e,
sobretudo, aos próprios artistas, quando as entrevistas sobre o blues se
tornaram uma forma de interpretação em si mesma. Relatos de pioneiros
reforçavam esse estereótipo do blues lamentoso, binário, pouco complexo, para
satisfazer a idealização dos “românticos” pesquisadores, o que acabou por sedimentar,
ao entrar na literatura clássica do gênero, o senso comum. Humphrey (1993) no
lembra, por fim, que muitos estudantes brancos da década 1960 antes das
primeiras e exitosas etnografias, como as de Keil (1966), Ferris (1978) e Evans
(1982) limitados ainda a questionários, preferiam entrevistar seus próprios
professores, pesquisadores e scholars do blues, em vez de ir diretamente às
fontes primárias (muitos pioneiros bluesmen, inclusive, ainda estavam vivos e
“disponíveis”) sob o argumento que estes, malandramente, respondiam o que
achavam que os estudantes queriam ouvir, sendo dúbios, vagos, contraditórios,
pouco críveis. Enfim, antes triste, romântico e digno de empatia, a lascivo,
transgressor e provocativo.
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https://www.dailynews.com/2018/03/15/bonnie-raitt-brings-country-blues-to-fantasy-springs-resort-casino-and-pechanga-resort-casino
(Acessado em: 05/2021).
https://songofthelarkblog.com/2018/02/21/nora-douglas-holt-composer-critic-bombshell/
(Acessado em: 05/2021).
“Empty Bed Blues” (Bessie Smith, 1928)
https://www.youtube.com/watch?v=0BsIntS_Io4
“My Daddy Rocks Me With One Steady Roll” (Trixie Smith, 1922)
https://www.youtube.com/watch?v=hHtSz4BooMA&t=14s
“Sometimes I Feel Like A Motherless Child” (Marian Anderson,
1936) https://www.youtube.com/watch?v=783I05pCp-M
“See See Rider” (Ma Rainey, 1924)
https://www.youtube.com/watch?v=SBkfUMRZa1A
“Statesboro Blues” (Blind Willie McTell, 1928)
https://www.youtube.com/watch?v=fnWxZtI3ONY
“Statesboro Blues” (The Allman Brothers Band, 1971)
https://www.youtube.com/watch?v=ezPZxfS1jys
https://songofthelarkblog.com/2018/02/21/nora-douglas-holt-composer-critic-bombshell/
(Acessado em: 05/2021).
https://www.dailynews.com/2018/03/15/bonnie-raitt-brings-country-blues-to-fantasy-springs-resort-casino-and-pechanga-resort-casino
(Acessado em: 05/2021).
Notas
1 O presente artigo é
derivado de meu trabalho de conclusão do curso de Antropologia pela Universidade
de Brasília.
2 Possui graduação em
Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (1997) e Ciências Sociais
(Antropologia) pela Universidade de Brasília (2019), cuja monografia Shake That
Thing: história, significação e erotismo no blues orientada pelo Prof. Dr. Luis
Cayón recebeu menção honrosa no VIII Prêmio Martín Novión para as Melhores
Dissertações de Graduação em Antropologia Defendidas em 2019. É mestrando em
Música também pela UnB (2020), além de possuir formação para Registro de Radialista
pela Televisão Educativa do Estado do Ceará (1984). Tem experiência em pesquisa
e produção musical nas áreas de Jornalismo, Radialismo e Antropologia, com
ênfase em Antropologia da Música, das Emoções, da Dança e da Performance.
Pesquisa há mais de três décadas o gênero musical afro-americano blues, com
enfoque na análise de aspecto de sua estética e linguagem. Realiza também
estudo histórico comparado entre o blues e o samba brasileiro. Ministra cursos
sobre a história do blues, sob olhar sócio-antropológico. Realiza ainda há duas
décadas ainda pesquisa, produção e apresentação de programas radiofônicos
musicais voltados ao blues e samba e subgêneros afins.
3 Flávio Santos Pereira
graduou-se em Composição e Regência pela Universidade de Brasília (1988), sob a
orientação do Prof. Dr. Claudio Santoro. Obteve o título de Mestre em
Antropologia pela Universidade de Brasília (1999) com a defesa da tese
“Hierarquia, Prestígio e Poder de Influência na Música Erudita”, sob a
orientação do Prof. Dr. Wilson Trajano Filho. Obteve o título de Doutor em
Composição Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012), sob a
orientação do Prof. Dr. Celso Giannetti Loureiro Chaves, com bolsa concedida
pelo CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. É
professor efetivo da Universidade de Brasília desde 1991.
(https:/orcid.org/0000-0002-3052-5209).
4 Luis Abraham Cayón
Durán é antropólogo pela Universidad de Los Andes (1992) de Bogotá, (Colômbia),
Mestre (2005) e Doutor (2010) em Antropologia Social pela Universidade de
Brasília. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de
Brasília, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2.
5 contempladas tanto
pela semântica quanto pela hermenêutica musicais (NATTIEZ, 2014), são
direcionamentos pelos quais “a música remete ao mundo em seus aspectos os mais
diversos: objetos, o movimento, tempo, sentimentos, mas também o
sócio-histórico, o ideológico etc. e que são da alçada daquilo que denominamos
geralmente o campo das significações” (p. 24).
6 Uma vez que,
infelizmente, não existem gravações de Nora Holt, inclusive desta, uma das
preferidas do repertório da artista
(https://songofthelarkblog.com/2018/02/21/nora-douglas-hol-
t-composer-critic-bombshell/), optamos por apresentar ao final, nas referências
discográficas (e ilustrada em vídeo no Youtube), performance estética e
temporalmente aproximada por parte da classic blues singer Trixie Smith, datada
de 1922. Optamos ainda por trazer a versão estilizada, e de 1936, de “Sometimes
I feel like a motherless child”, interpretada pela contralto
afro-americana e intérprete de concerto e ópera Marian Anderson, por julgarmos
se aproximar mais do formato em que eram apresentados os negro spirituals para
plateias brancas abastadas.
7 Trecho de “Eyesight
to The Blind”, do bluesman Sonny Boy Williamson (1951).
8 A priori tradicional
jogo verbal praticado amplamente pela comunidade afro-americana, centra-do em
formas de insulto e brincado de vários jeitos (riffing, the dozens, toasting, woofing,
rapping, jiving - ver Devi, 2012), até mesmo de insultar alguém para demonstrar
afeição, o que nos remete a percepção antropológica mais ampla do fenômeno das
joking relationships (RADCLIFFE-BROWN, 1973; MAUSS, 1979; LEACH, 1983), o
signifying recebeu teorizações iniciais em Abrahams (1970).
9 Gates (1989), que
(re)significou o termo para signifyin(g) como um vernáculo negro e forma de
expressão idiomática (BAKER, 1984), defende a sobrevivência à Middle Passage do
orixá ioruba da mito-logia africana ocidental Esu-Elegbara no processo de
contato cultural escravista como o Signifying Monkey, personagem caro à
tradição folclórica afro-americana, ambos personificando o jogo verbal e a
diversão. Figura popular do embusteiro (trickster), brincalhona e signo da
esperteza, principalmente através da palavra, o Macaco Significador habita as
margens do discurso, sempre brincando com as palavras, construindo tropos e
incorporando as ambiguidades da linguagem, “uma inversão irônica da imagem
racista do negro como semelhante a um símio, é nosso tropo para o quiasmo que
ele simulta-neamente repete e inverte, num hábil ato discursivo” (GATES, 1992).
Em lugar de rejeitar a semelhança com o macaco, o negro se apropria da imagem
racista que o branco faz dele para revertê-la ironica-mente e dar-lhe sentido
positivo incorporando certas qualidades do animal que, nos contos folclóricos,
vence pela astúcia e domínio da linguagem figurada: função e técnica que estão
na significação como (habilidosa) estratégia retórica afro-americana, retórica
distorcida de subversão, persuasão e insulto.
10 W.E.B. Du Bois (1999)
afirmava terem os negros nascidos cobertos por um véu e vividos em dupla
consciência: o véu, que os separa do resto do mundo, representa a exclusão
social e o preconceito segregadores, o sentimento de impotência e resignação
que, a despeito de esforços e conquistas, simboliza a exclusão e o sentimento
de despertencimento em seu próprio país; a dupla consciência, por seu turno, é
fruto da dupla identidade de ser simultaneamente americano e negro, que os dota
de visão própria contaminada pela forma com que o restante da sociedade
americana os enxerga, visão medida pela perspectiva do mundo exterior e
permeada de sentimento como pena e desdém, rejeição e medo.
11 Ver Stearns (1964) e
Calado (2007).
12 Nesses contextos, de
intensos conflitos, negociações e estratégias, podemos ouvir em mani-festações
musicais como as work songs e os negro spirituals a presença de discursos
codificados, ambíguos e críticos. Sobre as signifying songs presentes em vários
tempos históricos africano--americanos pré-blues, ver Jones (1964); Stearns
(1964); Schuller (1970); Szwed (1970); Bastide (1974); Trindade (1984);
Genovese (1988); Muggiati (1995); Mintz e Price (2003); McCan (2009).
13 No original: “The
most astonishing aspect of the blues is that, though replete with a sense of
defeat and down-heartedness, they are not intrinsically pessimistic: their
burden of woe and melancholy is a dialectically redeemed through sheer force of
sensuality, into an almost exultant affirmation of life, of love, of sex, of
movement, of hope. No matter how repressive was the American environment, the Negro never lost faith in or doubted his deeply endemic
capacity to live. All blues are a lusty, lyrical realism charged with taut
sensibility.”
14 E com várias camadas
de significação: ao cantar sobre o desejo de se vingar da “mulher má que mantém
um homem enjaulado” (no original: “no-good woman who kept a man in chains” -
CHARTERS apud DEVI, 2012, p. 692), o bluesman pode sugerir determinação étnica
de livrarem-se da opressão branca.
15 No original: One
person on a guitar or slide guitar is such a mournful lonely sound, like a
human voice, that can express so many different emotions from longing to sexual
heat to aching and betrayal. The guitar is a very expressive instrument in
general and there was something about the starkness and soulfulness and the
dark night of the soul
(https://www.dailynews.com/2018/03/15/bonnie-raitt-brings-country-blues-to-fantasy-springs-resort-casino-and-pechanga-resort-casino/)
16 No original: “Its
doleful opening verse notwithstanding, ‘Empty Bed Blues’ is not a song about
abandonment, misery, or any such melancholy emotion so often associated with
the female blues. It is a song about sex. The lyrics spotlight, in ever-more
suggestive detail, the physical pleasures the singer experienced with her
now-vanished lover, and the song’s drama — or rather, its hilarity — comes from
the transparency of its imagery and the relentless way in which double
entendres are piled on one another, given an extra nod and wink by the dirty
moaning of Charlie Green’s trombone.
17 Ainda na seara do que
chamarei de desconstrutivista, ver o ensaio de Tim A. Ryan (2015) sobre outro
cânone do blues “atormentado”, Charley Patton, e seu “agonístico” “Pony Blues”,
que na realidade poderia se aproximar de uma narrativa erótica autoirônica;
além da própria Marybeth Hamilton (2001) colocando em xeque agora as
representações românticas construídas por historiadores acerca do blues como a
“essência da angústia humana”.
18 As bibliografias
sobre o rock, por razões de cronologia histórica, são mais recentes, uma vez
que o gênero “surgiria” oficialmente nos anos 1950 (GILLETT, 1970); os escritos
sobre o jazz se iniciaram já na década de 1930 (SCHULLER, 1968). Ainda assim,
dada a importância do r’n’r como fenômeno de massa, em abrangência e
influência, o peso de seus escribas para a compreensão do blues foi
significativa.
19 Subestilo de blues
que conheceu enorme sucesso discográfico nas décadas de 1920 e 30 mas curiosa e
sintomaticamente invisibilizado e/ou menosprezado pela historiografia canônica
do blues e com características bem determinantes e determinadas, o hokum era
musicalmente feito para dançar e assim tomava empréstimo de recursos
instrumentais como o stop-time a o walking bass de ritmos e estilos aparentados
ao blues como o ragtime e o boogie woogie (SCHWARTZ, 2018), se valendo ainda e
sobretudo de uma sonoridade poética de deliberado bom humor. Alegre, malicioso
e por vezes pouco sutil, apelava essencialmente ao duplo sentido e a complexa
linguagem de metáforas vernaculares afro-americanas domésticas, culinárias,
cotidianas, laborais ao falar de práticas sexuais e homoafetividade,
prostituição e jogatina, drogas e bebidas. Apesar de situarmos como um
subestilo do blues, o hokum remonta a matrizes musicais, artísticas e
folclóricas do blues, perpassando assim pelas baladas europeias; canções
escravas; minstrel shows, vaudeville e medicine shows; e pelos proto-bluesmen
chamados songsters (cantadores).
20 Ver, entre outros e
pela ordem de desconstrução, Johnson (1929); Blesh (1946); Ulanov (1957);
Oliver (1960); e Devi (2012).
21 “I wonder where my
easy rider’s gone” tornou-se mesmo uma antiga e muito disseminada expressão vocabular
entre negros do Sul: quando WC Handy compôs “Yellow Dog Blues” (1915), se
apropriou dessa frase, por perceber o uso generalizado de “easy rider”, assim
como a existência de várias canções folclóricas baseadas nesse tema. A canção
fala de um jockey que abandona seu cavalo de corrida e volta para o Sul,
deixando este a perguntar “para onde foi meu cavaleiro fácil?”. Aparentemente
simplória e brejeira, daí seu sucesso no Norte (não por acaso foi também um
hokum blues de 1913), a música trazia camadas de simbólicos significados
profundamente enraizados em fontes folclóricas, afetivamente compreendida pelos
negros do Sul, onde fez enorme sucesso. Para Johnson (1927), “tratou-se de uma
interessante circunstância conectada a esta expressão que iluminou a questão de
como significados vulgares transformam canções folclóricas em arte” (p. 16,
grifos nossos – no original: “there is an interesting circumstance connected
with this expression which throws light upon the question of how vulgar
meanings get over into art songs from folk songs”).
22 Além de produtor
musical, John Hammond (1910-1987) foi também crítico musical, ativista dos
direitos civis e sobretudo um headhunter (caçador de talentos) que, entre as
décadas de 1930 e 1980, “descobriu” ou promoveu inúmeras carreiras musicais de
nomes do jazz, blues, folk; soul music e rock.
23 Ou algo como discos
raciais: termo acintosamente preconceituoso utilizado oficialmente, pelos selos
musicais (brancos) a partir dos anos 1920, para denominar discos feitos para
consumidores negros.
24 O “renascimento” da
música folk começou a se estruturar a partir da década de 1930 e seguiu até o
final da década de 1960, “revivendo” temas tradicionais e hinos de protesto,
significando-os num contexto de ativismo social e de política progressista e de
esquerda e associada ao movimento sindicalista, nas vozes de artistas/bardos
engajados como Woody Guthrie e Pete Seeger.
25 Enquanto o dixieland
britânico era uma emulação algo arcaica do subgênero homônimo de jazz criado
originalmente em 1910, em Nova Orleans, o fenômeno skiffle, iniciado nos anos
1950, foi um gênero folk inglês com influências do blues, jazz e folk e próxima
da estética e sonoridade das jug bands estadunidenses, por lançarem mão da
democrática mistura de baratos instrumentos caseiros ou improvisados, como
violão e banjo de segunda mão ou baixo de pau (washtub bass), tábua de lavar
roupa (washboard), jarros (jugs), pente-com-papel-de-seda e kazoo.
26 No original: “I had
opened that amplifier up, boy, and there was these headlines in all the papers.
Chris Barber, he say, ‘You play good, but don’t play your amplifier so loud.
Play it lower.’ Cause, see, I’d been playin’ here in Chicago with these people
who turned theirs up.”’ O inglês Paul Oliver, que mais adiante se tornaria um
dos mais importantes historiadores do blues, observou ironicamente no periódico
Jazz Monthly que “quando Muddy Waters veio para Inglaterra, o seu rocking blues
e sua guitarra eléctrica eram carne que se revelou demasiado forte para muitos
estômagos” (apud PALMER, p. 257 e 258 – no original: ‘“When Muddy Waters came
to England, his rocking blues and electric guitar was meat that proved too
strong for many stomachs”).
27 Ver Smitherman
(2006); Calt (2009) e Devi (2012)
28 Geertz recorre a
Ryle, que analisa de várias formas as contrações de uma pálpebra: a linguagem,
comunicação, informação, entendimento estabelecido a partir das piscadelas e
seus efeitos e significados captados, segundo códigos culturais já
estabelecidos e aceitos. A descrição densa é interpretativa: interpreta o fluxo
do discurso social, aquilo que está oculto pela epiderme dos atos.
Autor notes
2 Possui graduação em
Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (1997) e Ciências Sociais
(Antropologia) pela Universidade de Brasília (2019), cuja monografia Shake That
Thing: história, significação e erotismo no blues orientada pelo Prof. Dr. Luis
Cayón recebeu menção honrosa no VIII Prêmio Martín Novión para as Melhores
Dissertações de Graduação em Antropologia Defendidas em 2019. É mestrando em
Música também pela UnB (2020), além de possuir formação para Registro de
Radialista pela Televisão Educativa do Estado do Ceará (1984). Tem experiência
em pesquisa e produção musical nas áreas de Jornalismo, Radialismo e
Antropologia, com ênfase em Antropologia da Música, das Emoções, da Dança e da
Performance. Pesquisa há mais de três décadas o gênero musical afro-americano
blues, com enfoque na análise de aspecto de sua estética e linguagem. Realiza
também estudo histórico comparado entre o blues e o samba brasileiro. Ministra
cursos sobre a história do blues, sob olhar sócio-antropológico. Realiza ainda
há duas décadas ainda pesquisa, produção e apresentação de programas
radiofônicos musicais voltados ao blues e samba e subgêneros afins.
3 Flávio Santos Pereira
graduou-se em Composição e Regência pela Universidade de Brasília (1988), sob a
orientação do Prof. Dr. Claudio Santoro. Obteve o título de Mestre em
Antropologia pela Universidade de Brasília (1999) com a defesa da tese
“Hierarquia, Prestígio e Poder de Influência na Música Erudita”, sob a
orientação do Prof. Dr. Wilson Trajano Filho. Obteve o título de Doutor em
Composição Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012), sob a
orientação do Prof. Dr. Celso Giannetti Loureiro Chaves, com bolsa concedida
pelo CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. É
professor efetivo da Universidade de Brasília desde 1991.
(https:/orcid.org/0000-0002-3052-5209).
4 Luis Abraham Cayón
Durán é antropólogo pela Universidad de Los Andes (1992) de Bogotá, (Colômbia),
Mestre (2005) e Doutor (2010) em Antropologia Social pela Universidade de
Brasília. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de
Brasília, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2.