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Apropriações da literatura na pesquisa
em educação musical: algumas questões
USES OF LITERATURE FROM DIFFERENT
SOURCES IN MUSIC EDUCATION RESEARCH: Some issues
Silvia Cordeiro Nassif
1
scnassif@unicamp.br
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Continua
vol. 7, núm.
1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 18 Setembro
2021
Aprovação: 10 Abril 2022
URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/20043
Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira
publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: Este
texto, de natureza ensaística, discute a pesquisa em educação musical com foco
em questões relativas às formas de apropriação da literatura especializada nos
trabalhos. A partir de uma discussão inicial sobre a noção de teoria científica
e seu valor acadêmico, discorre também sobre a questão da coerência
epistemológica como um dado importante para a confiabilidade da pesquisa. Problematizando
o estatuto das diversas fontes bibliográficas mobilizadas em um trabalho
investigativo, propõe um modo de organização desse material que permita que as
diferentes funções dos diferentes textos usados fiquem explicitadas inclusive
no modo de escrita. Sem nenhuma intenção de fornecer um modelo como o melhor,
muito menos fechar a questão, acredita-se, porém, que uma preocupação com as
questões aqui abordadas poderá qualificar as pesquisas e avaliações de
pesquisas na área.
Palavras-chave: Pesquisa em Educação
Musical, Teoria Científica, Epistemologia.
Abstract: This essay
discusses research in music education regarding the use of specialized literature in the works. From an initial
discussion on the notion of scientific theory and its academic value, it also raises the question of epistemological coherence as an important aspect
for research reliability. Inquiring the status of the texts
mobilized in an investigative work, this essay proposes
a way of organizing this material. The objective is to allow
different functions of different texts used to be
made explicit even in the way of writing. There is no intention of providing a model as the best, much less closing
the question. However, it is believed that
a concern with the issues addressed here may qualify
research and research evaluations in the area.
Keywords: Music Education
Research, Scientific Theory, Epistemology.
Introdução
Como orientadora e
avaliadora de trabalhos de pesquisa nos níveis de graduação e pós-graduação já
há certo tempo, venho notando uma dificuldade grande em relação ao modo como a
literatura em geral (teorias científicas, artigos, relatos de pesquisas etc.) é
usada nas análises de dados e na estruturação geral dos textos de pesquisadores
em formação (não apenas graduandos, como também mestrandos e mesmo
doutorandos).
Com bastante frequência,
as diferentes fontes bibliográficas estudadas são abordadas sem qualquer
distinção de estatuto em relação à sua função exercida nos trabalhos[2]. Assim, por exemplo, muitas vezes dados aparecem
analisados à luz de pesquisas iniciantes sobre o tema em questão, e as teorias
“de peso”, que constituem o referencial teórico assumido em determinada
pesquisa, ficam em segundo plano, aprisionadas no item ou capítulo que lhe foi
destinado ou diluídas em notas de rodapé e em outros trechos sem nenhum
destaque. Na minha avaliação, isso acaba fragilizando pesquisas que
potencialmente poderiam trazer contribuições substanciais à área.
Para além dessa indissociação entre as várias fontes bibliográficas
consultadas, a própria noção de que todo trabalho científico precisa estar
fundamentado em alguma teoria científica sólida e reconhecida parece não ser
tão clara, pois alguns trabalhos se limitam a estabelecer articulações entre
seus objetos, seus dados e outros textos publicados, sem que necessariamente
esteja presente entre eles alguma teoria. Parece haver, em suma, tanto um
desconhecimento sobre a importância dos aportes teóricos quanto sobre os
diferentes estatutos que textos de naturezas distintas possuem em um trabalho.
Consultando algumas das
obras sobre pesquisa bastante usadas na área de educação musical, percebemos,
com efeito, que essa não é uma questão muito considerada e, quando isso ocorre,
geralmente se trata de uma abordagem que apenas tangencia o problema do uso
efetivo da literatura. O foco, em várias dessas obras, geralmente se concentra
na questão dos procedimentos metodológicos técnicos a serem realizados no
trabalho. Apenas a título de exemplo, vejamos como alguns desses textos
apresentam e fazem indicações sobre a questão bibliográfica e seus modos de
apropriação nas pesquisas.
Talvez o mais citado texto
sobre pesquisa em educação e áreas afins, o livro Pesquisa em Educação:
abordagens qualitativas, de Lüdke e André (1986), apresenta de modo muito claro uma
discussão sobre pesquisa científica, distinguindo-a de outras formas de
pesquisa e destacando o papel das teorias como as lentes através das quais é
possível interrogar os dados e “construir o conhecimento sobre o fato pesquisado”
(p.4). Há ainda no texto uma discussão sobre os paradigmas epistemológicos que
embasam as pesquisas em educação e um aprofundamento nas abordagens
qualitativas e suas técnicas de coleta de dados. No capítulo destinado à
análise do material coletado, destaca-se novamente a importância do referencial
teórico na categorização dos dados, sem entrar, contudo, em nenhum momento, nos
modos possíveis como esse referencial contribuirá para a teorização final.
Também bastante referido
na área, o livro Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, de Antonio Chizzotti (1991), apresenta rapidamente os grandes
paradigmas de pesquisa e, em seguida, desenvolve todo o texto a partir da
diferenciação entre pesquisa experimental e pesquisa qualitativa, seus
pressupostos, métodos, processos e possíveis contestações. Não há nenhuma
menção aos modos de uso das teorias em questão.
Amplamente lido e adotado
em graduações e pós-graduações, a obra de Antônio
Joaquim Severino (2016) Metodologia do Trabalho Científico aborda diversos
tópicos sobre o trabalho acadêmico na universidade, passando, ainda que
rapidamente, por todas as questões aí envolvidas, em especial pelas relativas à
pesquisa. Há um capítulo específico sobre “Teoria e prática científica” (p.105)
no qual são apresentados os paradigmas epistemológicos usados nas ciências
humanas. A despeito desse destaque para a questão teórica, esta é abordada
apenas de modo genérico e abstrato, não sendo o objetivo entrar no uso concreto
das teorias na elaboração da pesquisa (muito embora isso esteja presente de
modo indireto no texto).
Em uma linha um pouco
distinta dos trabalhos anteriores, Metodologia da Pesquisa Educacional, livro
organizado por Ivani Fazenda (1991) e
com textos de vários autores, discute a questão da metodologia de um ponto de
vista prioritariamente epistemológico. Nessa direção, o capítulo de Sérgio Luna (“O falso conflito entre
tendências metodológicas”) discorre sobre a inseparabilidade entre o
referencial teórico e toda a construção da pesquisa. Aponta ainda alguns
problemas comuns em relação a essa questão, como, por exemplo, as técnicas de
pesquisa serem pensadas de modo autônomo em relação às abordagens teóricas.
Apesar do grande destaque dado à questão teórica no livro como um todo, a
proposta claramente também é discutir o problema em um nível conceitual e não
entrar no uso prático das teorias nas análises e escrita do trabalho.
No âmbito da bibliografia
sobre pesquisa especificamente voltada para a música e educação musical, o
livro Horizontes da Pesquisa em Música, organizado por Vanda Freire (2010), vem sendo uma
importante fonte de consulta na área e destaca em dois capítulos na parte
inicial a questão epistemológica e o problema do referencial teórico. Entre as
questões discutidas está o atrelamento da consistência da pesquisa à base teórica:
A confiabilidade dos
resultados das pesquisas qualitativas está, em grande parte, assim como nas
quantitativas, relacionada à consistência e coerência de sua base teórica,
tanto quanto ao emprego consistente e sistemático de procedimentos metodológicos
pertinentes (FREIRE, 2010, p.46).
Também aqui a proposta é
uma discussão geral sobre o tema e não há referências diretas sobre o modo como
isso poderia ser feito.
Por último, mas obviamente
longe de esgotar as inúmeras obras que têm embasado pesquisas em educação
musical, temos o livro Construindo o primeiro projeto de pesquisa em Educação e
Música, de Maura Penna (2015). Voltado prio ritariamente para a graduação,
esse livro tem efetivamente contribuído também em outros níveis acadêmicos,
pois apresenta de modo muito claro um percurso possível de pesquisa, desde a
formulação da questão inicial até a análise dos dados. Embora se proponha a ser
uma obra de “caráter mais operacional” (p.21), aborda a importância da questão
teórica em vários capítulos, desde a discussão inicial sobre os critérios de
cientificidade de uma pesquisa, passando pela função da revisão bibliográfica e
pela necessidade de confrontar os dados com o referencial teórico e com outros
estudos. Chama ainda a atenção sobre o fato de que “o levantamento e o estudo
de fontes teóricas e bibliográficas pode (e deve) se estender por toda a
pesquisa, procurando atender, inclusive, à necessidade de compreender a
realidade empírica revelada pelos dados coletados” (p.155). Há, portanto, nessa
obra, um destaque especial para a importância das teorias e da literatura em
geral na pesquisa, a despeito do fato de não entrar nos meandros e sutilezas
das formas como a apropriação desse material será realizada.
Podemos perceber, por meio
desses poucos exemplos, que, embora as obras sobre pesquisa em geral abordem a
questão teórica e/ou epistemológica, há poucas indicações sobre o uso efetivo
das fontes bibliográficas na análise dos dados e organização do texto final da
pesquisa (relatório, monografia, dissertação ou tese). Os
diferentes modos como a apropriação dessas fontes será feita,
entretanto, pode resultar em trabalhos consistentes, que darão a sua
contribuição, ainda que pequena, ao avanço do conhecimento na área, ou podem
levar a um desperdício de materiais empíricos, muitas vezes ricos, pela
inconsistência com que são tratados teoricamente.
Visando dar uma
contribuição em relação a essa questão, este texto, pensado originariamente
como um subsídio aos meus próprios alunos e orientados, sintetiza parte do que
vem sendo colocado sobre o tema por diversos autores e, ao mesmo tempo, busca
sua ampliação e aprofundamento. Estruturado a partir de três tópicos, vai tentando,
por aproximações, cercar o problema de uma maneira relativamente abrangente,
ainda que não exaustiva, estabelecendo um diálogo com algumas práticas que são
comumente observadas nas pesquisas em educação musical. Sem nenhuma intenção de
oferecer receitas prontas e fechadas, o texto não se exime, no entanto, de
apontar possíveis direções.
Assumindo a neutralidade
absoluta como impossível, enfatizo que não posso deixar de olhar esse objeto
específico a partir da minha própria concepção de pesquisa, mas faço um esforço
para tentar separar, na medida do possível, o que considero aspectos gerais,
válidos para um grande número de pesquisas, em diferentes abordagens teóricas,
de aspectos específicos da linha por mim assumida. Tomo como ponto de partida
uma reflexão sobre a noção de teoria científica e sua importância nas pesquisas
que se pretendem científicas.
O que são e para que servem as
teorias científicas
Para começar a pensar em
teorias científicas, creio ser importante distinguir esse conceito da ideia
mais ampla de “saber” e “pré-saber”. Segundo Japiassu (1977), o termo “saber” tem um sentido amplo e
engloba “todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou
menos sistematicamente organizados e susceptíveis de serem transmitidos por um
processo pedagógico de ensino” (p.15). Para o autor, o saber engloba tanto os
saberes “especulativos”, não científicos (como a filosofia e a teologia),
quanto os saberes “não especulativos”, representados pela ciência em suas
diversas disciplinas. Além disso, todo saber científico se articula ao que ele
denomina “pré-saberes”:
Antes do surgimento de um
saber ou uma disciplina científica, há sempre uma primeira aquisição ainda não
científica de estados mentais já formados de modo mais ou menos natural ou
espontâneo. No nível coletivo, esses estados mentais são constitutivos de uma
certa cultura. Eles constituem as “opiniões primeiras” ou pré-noções, tendo por
função reconciliar o pensamento comum consigo mesmo, propondo certas
explicações. Podemos caracterizar tais pré-noções como um conjunto falsamente
sistematizado de juízos, constituindo representações esquemáticas e sumárias,
formadas pela prática e para a prática, obtendo sua evidência e sua
“autoridade” das funções sociais que desempenham (JUPIASSU, 1977, p.17-18, grifos e aspas do
autor).
Nessa linha, podemos conceber
as teorias científicas como sistematizações de saberes científicos dentro de
uma disciplina específica (Psicologia, Sociologia, Antropologia etc.), que
superaram de alguma maneira essas “pré-noções” ou “opiniões primeiras” que
circulavam coletivamente em determinado momento histórico. Formadas e
legitimadas por meio de pesquisas metodologicamente orientadas e embasadas em
teorias anteriores (as quais provavelmente foram afirmadas, expandidas ou
negadas), as teorias científicas pressupõem uma ampla aceitação por cientistas
especialistas naquele campo.
Nas pesquisas em geral, as
teorias exercem, segundo Luna (1991, p.31),
dois papéis importantes: indicam lacunas no conhecimento da realidade, gerando
novos problemas de pesquisa, e servem “de referencial explicativo para os
resultados que vão sendo observados” (p.32). Nas palavras do autor: “O
referencial teórico de um pesquisador é um filtro pelo qual ele enxerga a
realidade, sugerindo perguntas e indicando possibilidades” (p.32). Por essa
razão, a adoção de teorias precisa estar alinhada a toda a construção da
pesquisa, seus métodos e técnicas, de forma a buscar o que se chama de
coerência teórico-metodológica[3]. O fazer
musical e, por decorrência, os processos de ensino e aprendizagem da música são
atividades essencialmente práticas (ainda que essas práticas sempre carreguem,
de modo subjacente, pressupostos teóricos). Isso tem levado muitas vezes a
educação musical a adotar posturas a meu ver equivocadas em relação à
importância delegada e ao modo de apropriação das teorias nas pesquisas. Em
bancas de avaliação, por exemplo, já vi diversas vezes candidatos terem seus
trabalhos teoricamente frágeis elogiados em nome da prática educativa de
excelência que desempenham. Aprova-se o pesquisador por ser um bom educador,
deslegitimando ainda mais a já pouco valorizada pesquisa[4].
Justamente pelo caráter
prático da atividade musical, comumente as pesquisas feitas em campo conseguem
coletar um material empírico bastante volumoso e de grande interesse. Na
ausência de teorias sólidas dando suporte às análises desse material, porém,
muitas vezes não há sequer a construção de dados, limitando-se o pesquisador a
uma descrição do material bruto que foi coletado. Sem as lentes de uma teoria
não há como selecionar o que é relevante para a pesquisa em questão,
correndo-se o risco de que a leitura do trabalho gere “a sensação de que a
resposta estava pronta antes da pesquisa e teria sido oferecida
independentemente das informações coletadas e das análises realizadas” (LUNA, 1991, p.29). Com efeito, não é
incomum alunos solicitarem auxílio no sentido de que os orientadores forneçam
citações que corroborem ideias que eles já tinham em mente. Ou seja, eles já
sabiam o que queriam dizer desde o início, mas precisavam de teorias que
legitimassem suas suposições (por vezes crenças). Isso, do meu ponto de vista,
não é fazer pesquisa, pois dessa forma não se avança em relação às “pré-noções”
adquiridas e validadas na prática. Fazer pesquisa é refletir teoricamente sobre
a prática e não transferir exclusivamente para os sujeitos a responsabilidade
sobre o conhecimento em construção:
A crescente valorização da
prática e da subjetividade parece estar levando a uma tendência à reificação da
prática e do sujeito, em prejuízo da construção de conhecimentos relevantes e
do diálogo com os autores que já se ocuparam do tema. Aparentemente para fugir
ao equívoco de aceitar a teoria como verdade, cai-se no equívoco de transferir
para os sujeitos a posse da verdade (ALVES-MAZZOTTI,
2001, p.43-44).
No extremo oposto da
desvalorização da teoria em prol dos dados e/ou dos sujeitos, está o seu
excessivo enaltecimento. Nessa linha, podemos encontrar alguns trabalhos que
tomam como ponto de partida as teorias e que se limitam a “encaixar” os dados
nelas, de certa forma procurando demonstrar sua validade. As teorias científicas,
até adquirirem esse estatuto, passam pelo crivo de inúmeros especialistas e não
estão, pois, sub judice, já têm sua legitimidade garantida, ainda que
provisoriamente em termos históricos[5]. Não há
necessidade, portanto, de que as nossas pesquisas exemplifiquem ou ilustrem os
conceitos teóricos com dados suplementares. Embora esse tipo de exemplificação
possa ser importante nas pesquisas, sobretudo no momento da escrita, não
podemos confundi-lo com a análise propriamente dita. O movimento, a meu ver, na
etapa analítica, deve ser justamente o contrário, ou seja, usar as teorias como
perspectiva de análise dos dados, os quais são o ponto central do trabalho,
embora pouco úteis sem as referidas análises.
Ainda outro procedimento
que pode ser encontrado com frequência e que procura fugir de uma possível
falta de fundamentação teórica é a adoção de um número excessivo de teorias.
Muitas vezes os pesquisadores em formação acabam tendo acesso a diversas teorias
que se relacionam com o seu objeto em estudo. Na ânsia de não deixar perder
nada do que foi estudado, acabam construindo um quadro teórico volumoso e no
qual algumas teorias por vezes até se contradizem entre si. Isso nos leva à
segunda questão.
A coerência teórica no
trabalho de pesquisa
As pesquisas em educação
musical têm se valido tanto de teorias do campo da música quanto da educação,
além, obviamente, de teorias originadas na própria área. A educação, por sua
vez, realiza pesquisas também a partir de diversas outras ciências humanas, as
quais possibilitam olhares para essa área sob pontos de vista específicos[6]. O leque de possibilidades teóricas que possam
fundamentar uma pesquisa em educação musical é, portanto, muito grande e o
perigo de se perder nessa vastidão também. Pensar a questão da coerência
teórica nesse campo, a meu ver, pede uma reflexão sobre duas questões
interligadas: a) até que ponto as teorias que se constituíram em outros campos
do saber servem para fundamentar pesquisas em educação musical? e b) até que
ponto podemos, em uma mesma pesquisa, nos valer do conhecimento de diferentes
disciplinas científicas? Começarei pela segunda.
Toda teoria científica,
independentemente da área do conhecimento, tem uma base filosófica, constrói-se
a partir de pressupostos filosóficos (ou epistemológicos) tomados como verdades
a priori (os chamados axiomas, que são aceitos mesmo sem comprovação). A
filosofia é, portanto, o ponto de partida da ciência, e, numa definição bastante
simplificada, “a Epistemologia é uma disciplina filosófica que reflete
criticamente sobre o conhecimento científico” (OLIVEIRA, 2016, p.18, negritos da autora).
Entre as premissas que embasam as teorias científicas, estão a própria
concepção de ciência e os critérios de cientificidade (objetividade ou
subjetividade, por exemplo), as concepções de sujeito e objeto e sua relação na
pesquisa, as diferentes noções de ser humano, história, realidade etc. (GAMBOA, 1991). A coerência teórica numa
pesquisa, nesse sentido, é garantida quando as teorias mobilizadas como
fundamentação partilham de pressupostos filosóficos semelhantes, filiam-se a um
mesmo campo epistemológico, embora não necessariamente a uma mesma disciplina
científica.
Essa questão tem sido alvo
de equívocos frequentes nas pesquisas em educação musical, pois é muito comum
encontrarmos, por exemplo, trabalhos fundamentados na Psicologia que adotam
teorias psicológicas conflitantes do ponto de vista epistemológico. Não é
possível fundamentar uma pesquisa ao mesmo tempo na teoria social cognitiva, na
psicologia interacionista piagetiana e na psicologia histórico-cultural, por
exemplo, pois cada uma dessas teorias possui pressupostos filosóficos
diferentes e, consequentemente, entende a questão do desenvolvimento humano de
modo distinto. Nessa linha de raciocínio, podemos, sim, colocar em diálogo
trabalhos oriundos de diferentes linhas teóricas, mas não analisar nossos dados
à luz de todas elas, sob o risco de cairmos, a meu ver, em um ecletismo teórico
insustentável (voltaremos a essa questão no próximo item). A coerência teórica,
em suma, não está ligada à disciplina científica em questão, mas ao paradigma epistemológico
que é tomado como base, e, nesse sentido, diferentes disciplinas (Psicologia,
Sociologia etc.) poderão ser acionadas desde que guardem pressupostos comuns e,
sobretudo, desde que o discurso do pesquisador seja capaz de estabelecer essa
conversa de modo consistente.
Quanto à primeira questão
(até que ponto teorias surgidas fora do campo da educação musical são legítimas
para fundamentar pesquisas nessa área), esta parece já ter sido razoavelmente
abordada e, até certo ponto, resolvida, embora nem sempre essas reflexões
sirvam para balizar avaliações de trabalhos, por exemplo. Em artigo publicado
em 2003, Del-Ben ressalta, com base em Kraemer (2000), a
multidimensionalidade das práticas educativas musicais e a impossibilidade de
que todas essas dimensões possam ser compreendidas “pelo viés de somente uma ou
outra disciplina, quer específica do campo da Música, quer específica do campo
da Educação ou das Humanidades” (DEL-BEN,
2003, p.79). O que precisa ser garantido, segundo a autora, é a
especificidade do objeto de estudo, que não pode ficar diluído nessas teorias:
“tendo em mente nosso objeto de estudo, não há porque temer o diálogo da
Educação Musical com outras áreas do conhecimento” (DEL-BEN, 2003, p.79)[7].
Em trabalho posterior (DEL-BEN, 2010), a
mesma autora ressalta também a importância da construção de teorias a partir do
campo pedagógico-musical, fato sinalizado naquele momento pelo aumento de
citações, nas pesquisas, da própria área. Não tendo como discordar dessa
preocupação, deixo, contudo, uma reflexão sobre o perigo contrário, ou seja,
sobre a possibilidade de que, na ânsia de consolidar cientificamente a área de
educação musical, acabemos nos aprisionando em teorias da área, perdendo a
oportunidade de nos aprofundarmos nas questões epistemológicas.
Como orientadora adepta da
fundamentação nas ciências humanas, venho percebendo o quão enriquecedor é para
a formação do pesquisador o esforço de enxergar sua própria área e seu próprio
objeto em teorias que não estão necessariamente falando deles. O movimento mais
indireto do pensamento nesse caso contribui, no meu ponto de vista, para a
formação de pesquisadores com uma maior capacidade reflexiva. Além disso, o
contato com as matrizes teóricas que deram origem às teorias em educação
musical permite um aprofundamento nessas próprias teorias e, por vezes, sua
expansão para objetos não pensados no momento de sua construção. A esse
argumento soma-se ainda o pouco tempo de existência da educação musical como
campo de pesquisa acadêmica no Brasil. A Associação Brasileira de Educação
Musical, principal marco na consolidação da área, completou recentemente três
décadas, enquanto muitas das ciências humanas já acumulam mais de cem anos de
pesquisas e construções teóricas. É natural que tenhamos aí um leque de opções
teóricas muito maior e mais consolidado. E, mesmo considerando teóricos da
educação musical fora do Brasil que são disseminados por aqui (como Keith Swanwick e outros), é sempre válido ir às matrizes teóricas
desses autores para um maior aprofundamento de suas formulações, especialmente
nas pesquisas em níveis de mestrado e doutorado.
Considero que uma maior
clareza quanto às questões teóricas e epistemológicas pode não apenas adensar e
dar mais coerência às pesquisas, como também ajudar a qualificar as avaliações
de trabalhos. Considerando o pluralismo de paradigmas epistemológicos que
caracteriza as ciências humanas (SEVERINO,
2016, p.112), é saudável que as avaliações sejam feitas por pesquisadores
oriundos de diferentes correntes. Entretanto, acredito ser importante que a
avaliação seja feita dentro dos parâmetros dos diferentes referenciais. Como
alerta Luna: “Fora disso, corremos o risco de criticar um pesquisador por não
ter feito a pesquisa como nós a faríamos ou, pior, a avaliação da produção
científica dependerá da crença em valores compartilhados por iniciados em uma
mesma confraria” (1991, p.33).[8] Para além das questões sobre fundamentos teóricos e
epistemológicos aqui em discussão, a literatura mobilizada por um pesquisador
quando da realização da pesquisa, do projeto inicial ao texto final, envolve
muitos outros textos de naturezas diversas. Penso que os mesmos cuidados na
apropriação desses textos, no sentido de compreensão de seus paradigmas de
sustentação, formas e momentos ideais de uso, deverão ser tomados. No item a
seguir, nosso olhar se voltará para a literatura no sentido mais amplo e,
sobretudo, para seu uso prático na pesquisa.
Os diferentes textos e seu
estatuto em um trabalho de pesquisa
Nos tópicos anteriores,
tratamos com algum cuidado de questões relacionadas ao que costuma ser
denominado “referencial teórico”, que é constituído pelas teorias científicas
consolidadas em determinado campo do conhecimento que fundamentam uma pesquisa.
Nas pesquisas em educação musical, o referencial teórico pode ser composto
tanto de teorias próprias da área quanto de suas matrizes epistemológicas
(teorias no campo das ciências humanas que foram tomadas como base para a
construção dessas teorias) ou ainda das diversas teorias da educação (SAVIANI, 2007).
Além desses que serão os
alicerces da pesquisa, porém, inúmeros outros textos ajudarão a compor o
trabalho, e é importante que o pesquisador tenha a dimensão exata da
participação de cada um deles no seu próprio texto, evitando colocá-los todos
no mesmo nível de importância. Nesse sentido, a primeira distinção importante
diz respeito à diferença entre referencial teórico e revisão da literatura. Nas
palavras de Freire (2010),
O referencial é a base
teórica sobre a qual a pesquisa se constrói. É constituído pelos conceitos ou
teorias que irão servir de base para a análise interpretativa dos dados da
pesquisa.
[…]A
revisão da literatura se destina a realizar uma leitura crítica da literatura
especializada, buscando situar o tema da pesquisa no atual estado de
conhecimento da área. A revisão da literatura pode até incluir alguns trabalhos
que não têm a mesma linha de abordagem adotada na pesquisa, mas que enriquecem
o conhecimento sobre o assunto por outros ângulos. Já o referencial teórico
decorre de um posicionamento específico, de uma escolha do pesquisador …] (FREIRE, 2010, p.43).
Fica claro aqui que a
literatura consultada no decorrer da pesquisa será muito mais ampla do que as
teorias tomadas como fundamento. Nessa literatura ampliada, poderão constar,
inclusive, textos teoricamente conflitantes entre si e/ou com o referencial, o
que deverá ficar claro na exposição dessa revisão no texto. Isso não significa
que essa literatura não possa ser colocada em diálogo em determinados momentos,
por exemplo comparando resultados obtidos em pesquisas que partiram de outras
bases com os resultados obtidos na pesquisa em questão. Uma vez pontuado de
modo claro no texto que as bases são outras, não vejo problema em trazer essa
literatura. Esse foi, aliás, um procedimento muito usado por teóricos adeptos
do chamado pensamento dialético, os quais costumavam trazer para o diálogo
teorias diversas, as quais seriam negadas dialeticamente[9],
muitas vezes apresentando outras explicações para fatos semelhantes por meio da
introdução, por exemplo, de um conceito que em alguma medida procurava superar
supostas limitações dessas teorias face aos novos problemas que surgiam[10]. É importante ressaltar, porém, que esse diálogo
precisa ser feito com muito cuidado, pois a ideia de usar de cada teoria apenas
a parte que interessa, desconsiderando completamente suas bases
epistemológicas, é sempre tentadora e tem sido um procedimento comum em
pesquisas na educação musical. Se levarmos a sério a questão da coerência
epistemológica discutida anteriormente, porém, veremos que isso não é possível,
pois os conceitos teóricos só têm validade como fundamento quando são tomados
dentro das teorias. Mesmo que estas não sejam usadas na sua totalidade no
trabalho (e geralmente não o são), não podemos trair seus pressupostos e,
oportunisticamente, usá-las de modo superficial e descoladas deles. Esse tipo
de procedimento, a meu ver, fragiliza teoricamente a pesquisa, por vezes
deslegitimando as análises efetuadas.
Além de outras teorias
(que não as do quadro teórico do trabalho), fazem parte da literatura estudada
também outras pesquisas sobre o tema em questão ou sobre temas afins. O diálogo
com esses trabalhos muitas vezes é importante não apenas no momento da revisão
bibliográfica, mas também na discussão dos resultados, na medida em que vai
situando melhor o alcance e a contribuição da pesquisa em relação a pesquisas
anteriores. Trata-se, nesse caso, de uma relação de interlocução mais
horizontal, uma vez que alguns desses trabalhos podem ser, inclusive, bastante
iniciantes. É preciso não confundir, no entanto, esse diálogo horizontalizado
com a adoção desses textos como fundamento, procedimento que pode gerar muita
confusão. Esse tipo de relação dialogada é diferente, por exemplo, do diálogo
com o referencial teórico, pois este fornece as ferramentas de análise e, em
grande medida, submete as análises a essas ferramentas, criando uma relação, a
meu ver, mais vertical. Quando as teorias basais selecionadas não fornecem os
princípios explicativos, os conceitos necessários às análises, significa que
escolhemos as teorias erradas ou que precisaremos ampliar nosso quadro teórico
com a incorporação de outras teorias. Recorrer a textos que não chegam a
consolidar uma nova teoria com esse objetivo de fundamentar análises não me
parece uma opção.
Ainda outro procedimento
que ocorre com frequência nas pesquisas em educação musical e que merece uma
reflexão é a adoção dos chamados “Métodos Ativos” como fundamentação teórica.
Como o próprio nome diz, esse importante movimento na história da educação
musical tinha como objetivo a proposição de práticas educativas com música, e
não a consolidação de teorias sobre o ensino da música. Seus proponentes eram
educadores musicais que exploraram, na prática, possibilidades inovadoras de
ensino de música das quais se pode extrair alguns princípios que são válidos
até hoje. A intenção da maior parte desses educadores não era, contudo,
sistematizar uma filosofia da educação musical nem construir teorias aderindo
ao rigor de métodos científicos. Assim, a despeito do seu enorme valor
histórico e como ferramenta prática, esse material não tem o estatuto
científico necessário para ser adotado como fundamento teórico em pesquisas.
Obviamente esses autores são importantes interlocutores nos trabalhos, podem e
devem ser trazidos à discussão sempre que necessário, mas não dispõem da
consistência teórica desejável a um quadro referencial. Mesmo os que deixaram
escritos teóricos sobre pedagogia o fizeram de uma maneira bastante livre, por
vezes até apresentando contradições entre as reflexões sobre educação musical e
as propostas práticas efetivas.
Em síntese, podemos dizer
que as formas de apropriação da literatura mobilizada em um trabalho
investigativo variam bastante e devem se realizadas
com cuidado. Uma maneira prática de tratar essa questão que venho adotando é
pensar essas formas de uso da literatura em diferentes planos. Num primeiro
plano estão as teorias científicas que fundamentam a pesquisa, que fornecem as
bases e os princípios explicativos que servirão para analisar os dados, sejam
eles de qualquer natureza. A adesão a essas teorias deve ser feita com muita
consciência, uma vez que seus pressupostos serão assumidos direta ou
indiretamente no trabalho e servirão para identificar de maneira mais profunda
a linha epistemológica à qual se vincula.
Num segundo plano creio
estarem, se for o caso, outras teorias vinculadas ao mesmo campo epistemológico
ou mesmo a outros e que servirão como interlocutoras no trabalho para
estabelecer um contraponto entre as ideias, análises e conclusões apresentadas
e outras possibilidades de interpretação para as questões em foco. A ideia aqui
não é “complementar” possíveis lacunas das quais as teorias fundamentais não
deram conta, mas talvez demonstrar uma consciência de que as verdades postas no
trabalho não são as únicas possíveis, embora sejam as melhores nas condições
específicas dessa pesquisa. Esse movimento de dialogar com outras fontes
teóricas não é absolutamente obrigatório, mas mostra uma maturidade do
pesquisador em relação à própria concepção do que é ciência. Além disso,
apresentar outras possibilidades interpretativas pode colaborar também no
sentido de fortalecimento de suas próprias escolhas teóricas e de sua
argumentação.
Finalmente, num terceiro
plano, temos as pesquisas empreendidas em diversos níveis cujos resultados de
alguma forma podem ser comparados aos nossos, seja por afirmação ou negação.
Por abordarem temas próximos ao objeto em questão, esses trabalhos são leitura
obrigatória na revisão da literatura e poderão também ser trazidos em outros
momentos, sobretudo na análise dos dados. Conforme já dito, a relação que se
estabelece aqui é mais horizontalizada, é um diálogo entre pares que visa
situar de modo mais claro a abrangência do nosso trabalho.
Esses diversos planos,
mesmo que não estejam estabelecidos no início (e geralmente não estão),
precisam ir ficando claros para o pesquisador ao longo do período de realização
da pesquisa e estar definitivamente resolvidos no momento da redação final do
texto. Do mesmo modo, penso que o leitor do trabalho deveria, ao final da
leitura, ser capaz de reconhecer qual o estatuto desses múltiplos textos
referidos ao longo do texto e listados ao seu final. Chegar a tal clareza,
porém, é importante frisar, implica em um longo processo de aprendizado,
dificilmente sendo uma conquista em uma primeira pesquisa. Já o pesquisador
maduro talvez não precise se preocupar demasiadamente com essa questão, uma vez
que na densidade e consistência do seu discurso argumentativo estará a garantia
do trabalho. Trata-se, portanto, de uma preocupação que diz respeito
prioritariamente à formação de um pesquisador.
Considerações finais
A educação musical como
objeto de reflexão e construção de conhecimento científico é relativamente
recente no Brasil e tem crescido muito com a abertura de novos programas de
pós-graduação. É preciso, no entanto, que esse crescimento se dê não apenas quantitativamente,
mas principalmente qualitativamente. Creio que uma maneira de qualificar melhor
esses inúmeros trabalhos que surgem e são publicados a cada ano seria o seu
adensamento teórico.
O fato de a atividade
pedagógica musical ter um caráter eminentemente prático tem frequentemente
levado a educação musical a uma incompreensão em relação ao valor de reflexões
teóricas. Mesmo trabalhos acadêmicos no nível de pós-graduação por vezes
permanecem em um nível reflexivo muito superficial, que não vai além do estabelecimento
de algumas articulações entre teorias, outras pesquisas e dados concretos da
realidade. Embora esse seja realmente um movimento inicial, penso que aprender
a olhar a realidade através de lentes teóricas para ser capaz de elaborar novas
teorizações sobre ela é a finalidade última de qualquer pesquisa no âmbito das
ciências humanas, área bastante próxima à nossa e que nos tem sido de grande
auxílio no campo reflexivo[11]. Nessa direção, o
enfrentamento de questões como as tratadas neste texto talvez seja um primeiro
passo.
REFERÊNCIAS
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pesquisa em educação. Cadernos de Pesquisa, n. 113, p. 39-50, 2001.
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Petrópolis: Vozes, 2016.
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trabalho científico. 24. ed. São Paulo: Cortez, 2016.
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musical como ciência: a participação da Abem na construção da área. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 16, n. 5, p.
SOUZA, Jusamara. A educação musical como
campo científico. Olhares & Trilhas,
Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 9-24, 2020.
Notas
2 Considerandoo
gênero ensaístico e os objetivos deste texto, não foi realizado nenhum
levantamento sistemático das produções científicas na área e, portanto, não
serão apresentados dados concretos de qualquer natureza. As reflexões aqui
colocadas são oriundas exclusivamente da minha experiência como orientadora,
avaliadora e leitora de trabalhos científicos, vista sob a ótica da
bibliografia que me apoia.
3 A esse respeito,
Freire (2010, p.44-45) chama a atenção, por exemplo, para a necessidade de que
os próprios termos e conceitos usados na pesquisa sejam coerentes com o
referencial teórico, uma vez que termos iguais podem ter sentidos muito
distintos em diferentes teorias.
4 Penso que, mesmo
quando a pesquisa em questão é uma reflexão sobre o trabalho educativo do
pesquisador, o que está em jogo é sobretudo essa análise, e não a pedagogia em
si.
5 É bem verdade que
toda teoria científica pode ser revista, expandida ou mesmo refutada com base
em novos dados. Vale assinalar, contudo, que a refutação de uma teoria “por
dentro”, ou seja, pondo em questão suas premissas, é um trabalho coletivo, que
envolve tempo, várias pesquisas e pesquisadores, e geralmente culmina na criação
de um novo paradigma. Nesse sentido, penso que nem mesmo uma pesquisa de
doutorado teria o fôlego e a maturidade necessários para essa empreitada.
Pode-se, no máximo, nos limites de uma pesquisa, apontar algumas parcialidades
ou mesmo vulnerabilidades de uma teoria, mas não colocá-la
em julgamento.
6 Questões sobre o
desenvolvimento humano ou os modos de funcionamento de uma sociedade, por
exemplo, afetam diretamente a educação, e, por essa razão, as contribuições de
áreas como a Psicologia ou a Sociologia são imprescindíveis para uma
compreensão mais globalizante de tudo o que está envolvido nas práticas
educativas, musicais ou não.
7 Posição semelhante é
defendida por Souza (2007) também com base no mesmo autor, destacando a
necessidade do diálogo da área com as Ciências Humanas. Ao argumento da
multidimensionalidade, Souza acrescenta ainda a questão da emergência de temas
específicos na educação musical na contemporaneidade que pedem teorias
específicas. Em trabalho posterior, contudo, Souza (2020) retoma essas ideias
dando maior ênfase à autonomia da Educação Musical e deixando claro que esta
não deve ser vista como uma área interdisciplinar. Há um questionamento da
autora, inclusive, em relação à possibilidade de que a teorização da educação
musical possa ser realizada “a partir de um olhar pedagógico com arcabouços
teóricos da educação ou por outros campos (Pedagogia, Sociologia, Antropologia,
Psicologia)” (p. 18). Nota-se, portanto, que, por um lado, há a defesa do
diálogo com as Ciências Humanas, mas, por outro, um receio em relação ao modo
como essa interlocução será feita, ou talvez, ao peso que teorias de outros
campos terá nas elaborações teóricas da área.
8 A título de exemplo,
alunos meus já tiveram trabalhos, escritos no âmbito teórico do materialismo
dialético, criticados por não se fundamentarem em teorias pós-modernas, as
quais estão em um paradigma epistemológico distinto. Uma consideração pelo
paradigma que estava em jogo naquele momento evitaria esse tipo de análise.
9 A negação dialética é
uma negação por incorporação. Assume-se que determinada teoria (ou parte dela)
traz avanços ao conhecimento, mas de um modo parcial, e procura-se superar essa
parcialidade buscando novas ferramentas teóricas, que levem a uma visão mais
totalizante do problema em questão.
10 Essa postura pode ser
vista, por exemplo, na obra de Vigotski em relação a
Piaget, um dos seus principais interlocutores. Partindo de outras premissas
epistemológicas, Vigotski fez uma leitura de Piaget
que não assumia nem descartava completamente sua teoria, mas procurava
superá-la em pontos que considerava limitados ou equivocados.
11 Embora a educação
musical esteja em alguns documentos oficiais no Brasil mais próxima da Música,
que pertence à grande área “Linguística, Letras e Artes”, a proximidade com as
ciências humanas tem sido defendida por diversos autores. Além de Souza (2007),
já mencionada, ver também Penna (2015) e Nassif-Schroeder e Schroeder (2004).
Autor notes
1 Livre-docente na área
de Licenciatura/Artes, doutora em Educação, graduada em Letras e Música, todos
pela UNICAMP. Atualmente é docente do Departamento de Música do Instituto de
Artes da UNICAMP, atuando no curso de Licenciatura em Música e no Programa de
Pós-Graduação em Música dessa instituição. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
Música, Linguagem e Cultura (MUSILINC/CNPq), desenvolve pesquisas em educação
musical na sua interface com a linguagem, a cultura e o desenvolvimento humano.