A interseccionalidade de pessoas com deficiência na moda inclusiva
RESUMO
O campo de estudos sobre deficiência, que parte da perspectiva das próprias pessoas com deficiência para debater sua inclusão social, recentemente tem reconhecido a importância da interseccionalidade na construção da subjetividade de pessoas com deficiência. Assim, partindo-se do pressuposto de que considerar a interseccionalidade e a subjetividade de pessoas com deficiência é fundamental para que se promova plena inclusão social, este artigo visa investigar como a subjetividade e a interseccionalidade de pessoas com deficiência têm sido abordadas em publicações brasileiras sobre moda inclusiva. A partir de revisão integrativa da literatura, conduzida em periódicos brasileiros de moda e design, este artigo investiga aspectos utilizados para analisar e descrever o público de pessoas com deficiência e como as funções práticas e as estético-simbólicas são equilibradas na pesquisa sobre moda inclusiva. Constata-se que, no cenário brasileiro, a maioria da produção científica sobre moda inclusiva delimita seu público a partir do marcador da deficiência, enfatizando funções práticas relacionadas à acessibilidade, sem considerar a interseccionalidade e a subjetividade das pessoas com deficiência. Alguns artigos, contudo, apresentam considerações relacionadas ao uso da moda para a promoção de autoestima de pessoas com deficiência, reforçando a necessidade de compreender de maneira ampla esse público e de considerar as funções estético-simbólicas para promover inclusão social plena no âmbito da moda.
Palavras-chave: Design; Estudos sobre deficiência; Subjetividade.
The intersectionality of people with disability in inclusive fashion
ABSTRACT
The field of disability studies, which starts from the perspective of people with disabilities themselves to debate their social inclusion, has recently recognized the importance of intersectionality in the construction of the subjectivity of people with disabilities. Thereby, based on the assumption that considering the intersectionality and subjectivity of people with disabilities is fundamental to promoting full social inclusion, this article aims to investigate how the subjectivity and intersectionality of people with disabilities have been addressed in Brazilian publications about inclusive fashion. Based on an integrative literature review, conducted in Brazilian fashion and design journals, this article investigates aspects used to analyze and describe the public of people with disabilities and how practical and aesthetic-symbolic functions are balanced in research on inclusive fashion. It appears that, in the Brazilian scenario, the majority of scientific production on inclusive fashion delimits its audience based on the marker of disability, emphasizing practical functions related to accessibility, without considering the intersectionality and subjectivity of people with disabilities. Some articles, however, present considerations associated with the use of fashion to promote the self-esteem of people with disabilities, reinforcing the need to broadly understand this public and to consider the aesthetic-symbolic functions to promote full social inclusion within the scope of fashion.
Keywords: Design; Disability studies; Subjectivity.
La interseccionalidad de las personas con deficiencia en la moda inclusiva
RESUMEN
El campo de los estudios sobre deficiencia, que parte de la perspectiva de las propias personas con deficiencia para debatir su inclusión social, ha reconocido recientemente la importancia de la interseccionalidad en la construcción de la subjetividad de las personas con deficiencia. Entonces, partiendo del supuesto de que considerar la interseccionalidad y la subjetividad de las personas con discapacidad es fundamental para promover la plena inclusión social, este artículo tiene como objetivo investigar cómo la subjetividad y la interseccionalidad de las personas con deficiencia han sido abordadas en las publicaciones brasileñas sobre moda inclusiva. A partir de una revisión integradora de la literatura, realizada en revistas brasileñas de moda y diseño, este artículo investiga aspectos utilizados para analizar y describir el público de personas con deficiencia y cómo las funciones prácticas y estético-simbólicas se equilibran en las investigaciones sobre moda inclusiva. Parece que, en el escenario brasileño, la mayor parte de la producción científica sobre moda inclusiva delimita su audiencia en función del marcador de discapacidad, enfatizando funciones prácticas relacionadas con la accesibilidad, sin considerar la interseccionalidad y la subjetividad de las personas con discapacidad. Algunos artículos, sin embargo, presentan consideraciones relacionadas con el uso de la moda para promover la autoestima de las personas con deficiencia, reforzando la necesidad de comprender ampliamente a este público y considerar las funciones estético-simbólicas para promover la plena inclusión social en el ámbito de la moda.
Palabras-clave: Diseño; Estudios de deficiencia; Subjetividad.
1. INTRODUÇÃO
Moda inclusiva é um tema que vem se popularizando no Brasil sobretudo a partir de 2009 por meio do 1ª Concurso de Moda Inclusiva, promovido pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo de São Paulo (Auler, 2014; Martins; Teixeira; Filgueiras, 2019). O concurso tem como objetivos (I) sensibilizar jovens designers de moda sobre o tema e (II) influenciar novas tendências para o mercado de moda, promovendo acessibilidade, inclusão social e equidade (Auler, 2014). O termo “moda inclusiva” não se refere unicamente à inclusão de pessoas com deficiência no âmbito da moda, podendo se estender para todos os “tipos de corpos que a indústria hoje não contempla, em virtude dos rígidos padrões da moda tradicional” (Auler, 2014, p. 12).
Embora a moda inclusiva muitas vezes enfoque questões relacionadas às funções práticas do design, relacionadas à funcionalidade e ao conforto (Auler, 2014), as funções estético-simbólicas são igualmente relevantes, como argumentam Thais Ferreira e Francisca Mendes (2015) ao destacar a importância de o design de moda voltado para pessoas com deficiência considerar não apenas funcionalidade e usabilidade, mas também o vínculo afetivo que pode ser desenvolvido com um produto de moda. As funções de um produto são aspectos essenciais na relação estabelecida entre seres humanos e objetos, segundo Bernd Löbach (20O1), que destaca as funções práticas e as funções estéticas e simbólicas. Cada produto pode apresentar equilíbrio diferente entre essas funções: ora a função prática é mais relevante, ora as funções estético-simbólicas. Em produtos de moda, as funções estético-simbólicas costumam ser tão ou mais importantes que as práticas, motivo pelo qual precisam ser consideradas em produtos de moda inclusiva para que haja plena inclusão de pessoas com deficiência na sociedade e no âmbito da moda.
Explorar as funções estético-simbólicas na moda inclusiva implica em considerar a subjetividade e a interseccionalidade de pessoas com deficiência, aspectos cada vez mais investigados pelo campo de estudos sobre deficiência, que combina ciências humanas, sociais e da saúde para investigar aspectos relacionados à deficiência não sob o viés normativo da medicina, mas das próprias pessoas com deficiência (Bampi; Guilhem; Alves, 2010; Bisol; Pegorini; Valentin, 2017). Nos últimos anos, os estudo sobre deficiência têm se aproximado dos estudos feministas e das teorias raciais e de gênero (Mota; Bousquat, 2021), reconhecendo a interseccionalidade de pessoas com deficiência, que costumam se identificar com diversos marcadores sociais para além da deficiência: “gênero, raça/etnia, nacionalidade/territorialidade, religiosidade/espiritualidade, geração, orientação sexual, classe social” (Chaveiro, 2024, p. 102).
Comumente, a sociedade reduz a identidade da pessoa com deficiência à sua condição de deficiência, o que invisibiliza outros marcadores sociais (Ignarra; Saga, 2022). Contudo, a experiência de vida das pessoas com deficiência é transpassada por múltiplas identidades sociais, as quais se entrelaçam, como aponta Maylla Chaveiro (2024), e precisam ser consideradas para se ter compreensão ampla desse público e promover inclusão plena. Em outras palavras, a compreensão da pessoa com deficiência não pode se limitar ao estudo do seu corpo ou da sua deficiência, pois “a construção dos sujeitos e subjetividades está intensamente ligada às diversas opressões impostas socialmente” (Arantes; Bussinguer, 2024, p. 2428), opressões essas relacionadas a diversos marcadores sociais.
Assim, partindo-se do pressuposto de que considerar a interseccionalidade e a subjetividade de pessoas com deficiência é fundamental para que se promova plena inclusão social, coloca-se a seguinte questão de pesquisa: os artigos científicos brasileiros sobre moda inclusiva têm considerado a subjetividade e a interseccionalidade de pessoas com deficiência? Para responder esta pergunta, o presente artigo visa examinar como a subjetividade e a interseccionalidade de pessoas com deficiência têm sido abordadas em publicações brasileiras sobre moda inclusiva.
Primeiramente, foi realizada pesquisa bibliográfica assistemática para investigar as relações entre os estudos sobre deficiência e a interseccionalidade. Posteriormente, foi conduzida revisão integrativa de artigos científicos, publicados em periódicos brasileiros de moda e de design, com dois objetivos específicos: (I) identificar aspectos utilizados em artigos científicos sobre moda inclusiva para analisar e descrever o público de pessoas com deficiência; (II) verificar como as funções práticas e as estético-simbólicas são equilibradas em tais artigos.
2. DEFICIÊNCIA, INTERSECCIONALIDADE E MODA INCLUSIVA
2.1 Dados sobre Pessoas com Deficiência no Brasil
Não existe consenso sobre o conceito de deficiência e seus modelos de análise, o que pode tornar questionáveis os resultados de pesquisas e censos sobre a população de pessoas com deficiência (Mota; Bousquat, 2021). Mesmo assim, tais pesquisas fornecem bases para a descrição de pessoas com deficiência no cenário brasileiro. Tendo como referência os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE (2023) estima que, em 2022, as pessoas com deficiência representavam 8,9% da população brasileira, somando 18,6 milhões de indivíduos. Há prevalência, respectivamente, de deficiência física, visual, intelectual, psicossocial e auditiva, sendo que em torno de 38% das pessoas com deficiência apresentam deficiência múltipla. A maior parte das pessoas com deficiência no Brasil são idosos com mais de 70 anos (81,5%) e os dados do IBGE (2023) sugerem haver progressivo aumento do percentual de pessoas com deficiência conforme se avança pelas faixas etárias, como demonstrado na Figura 1.
Figura 1. Percentual de pessoas com deficiência no Brasil por faixa etária
Fonte: Adaptado de IBGE (2023, p. 13)
Além da idade, os dados do IBGE (2023) indicam haver o entrelaçamento da deficiência com outros marcadores sociais. A deficiência é mais comum entre mulheres - 10% das mulheres brasileiras tem deficiência, contra 7,7% dos homens – e pessoas racializadas - 9,5% das pessoas pretas e 8,9% as pessoas perdas tem deficiência, contra 8,7% das pessoas brancas. Pessoas com deficiência também apresentam piores taxas no que diz respeito ao ensino: as taxas de analfabetismo são mais altas (19,5%) do que entre as pessoas sem deficiência (4,1%) em todas as faixas etárias, enquanto as taxas de frequência escolar e de escolarização são mais baixas. As taxas relacionadas a emprego e renda também são piores entre pessoas com deficiência quando comparadas à população sem deficiência: apenas 29,2% das pessoas com deficiência acima dos 14 anos trabalham e seu rendimento médio é quase mil reais inferior ao de pessoas sem deficiência. As taxas de emprego são piores entre mulheres com deficiência (25,5%) do que entre homens com deficiência (35,1%), o que indica o entrecruzamento de barreiras relacionadas ao gênero e à deficiência.
2.2 Estudos sobre Deficiência e Interseccionalidade
Durante muitos séculos, as pessoas com deficiência foram estigmatizadas ora pela exclusão e demonização, ora pelo assistencialismo e idealização (Ignarra; Saga, 2022; Arantes; Bussinguer; 2024). O tratamento dado às pessoas com deficiência começou a mudar sobretudo a partir das duas grandes guerras mundiais, com o desenvolvimento do modelo médico da deficiência, que a considera um problema individual que precisa ser tratado ou até mesmo curado para que a pessoa atenda a padrões socialmente estabelecidos (Bampi; Guilhem; Alves, 2010; Bisol; Pegorini; Valentini, 2017; Mota; Bousquat,2021; Arantes; Bussinguer; 2024).
A área multidisciplinar de estudos sobre deficiência surgiu nos anos 1970 em contraponto ao modelo médico, que logo se tornou hegemônico. Vinculada à luta das pessoas com deficiência, em alinhamento ao lema “nada sobre nós, sem nós” (Arantes; Bussinguer; 2024), essa área de estudos desenvolveu o modelo social da deficiência, que entende ser a deficiência um problema socialmente construído, visto que, muitas vezes, é a estrutura social que impõe barreias ao exercício das capacidades de pessoas com deficiência (Bampi; Guilhem; Alves, 2010; Bisol; Pegorin; Valentini, 2017; Mota; Bousquat, 2021). A partir dos anos 2000, após a difusão dos estudos sobre deficiência para o Sul Global, o modelo social da deficiência passou a ser questionado e revisto para considerar o entrelaçamento da deficiência com outros marcadores sociais, como gênero e raça (Bisol; Pegorini; Valentini, 2017; Mota; Bousquat, 2021; Carniel. Dias; Lacruz, 2023).
A interseccionalidade, portanto, passou a ser considerada como meio para implementar o modelo social da deficiência, pois contextualiza a realidade de cada indivíduo (Arantes; Bussinguer; 2024). Em decorrência do preconceito, as pessoas com deficiência costumam ser consideradas como um grupo padronizado, conforme apontam Maristela Arantes e Elda Bussinguer (2024). Isso invisibiliza os demais marcadores sociais de uma pessoa com deficiência e coloca a deficiência em destaque sobre todas as demais identicidades sociais do indivíduo (Ignarra; Saga, 2022). A perspectiva interseccional tem como objetivo combater essa visão, contemplando todos os marcadores sociais de pessoas com deficiência em propostas de plena inclusão social (Arantes; Bussinguer; 2024; Chaveiro, 2024).
2.3 Moda e Design Inclusivo
A inclusão social é uma pauta importante do design contemporâneo, contemplada na abordagem de design inclusivo, desenvolvida nos anos 1990. O design inclusivo reconhece a diversidade humana e visa projetar produtos e serviços para todas as pessoas, considerando suas singularidades (Guimarães; Moura; Domiciano, 2022). De maneira semelhante, a proposta da moda inclusiva é desenvolver produtos de moda que possam ser utilizadas por todas as pessoas, com ou sem deficiência, aliando as questões de moda e estilo a aspectos funcionais, como conforto. Buscando democratizar a moda, propostas inclusivas podem promover a autoestima e o autocuidado de todas as pessoas, sem distinções (Auler, 2014). Atualmente, contudo, pessoas com deficiência ainda enfrentam dificuldades para acessar produtos de moda e, por meio deles, construir e comunicar sua identidade pessoal (Ferreira; Mender, 2015). Faltam, portanto, soluções que promovam plena inclusão social no âmbito da moda, as quais precisam considerar não apenas aspectos funcionais e de usabilidade, mas também a relação afetiva que pode ser estabelecida entre pessoas e produtos (Ferreira; Mender, 2015).
3. MÉTODO
Para investigar como a subjetividade e a interseccionalidade de pessoas com deficiência têm sido abordadas em artigos brasileiros sobre moda inclusiva, foi conduzida revisão bibliográfica descritivo-exploratória, de natureza básica e abordagem quanti-qualitativa. A pesquisa foi conduzida em duas etapas: (I) revisão assistemática da literatura referente aos estudos sobre deficiência e à realidade de pessoas com deficiência no Brasil; (II) revisão integrativa da literatura sobre moda inclusiva e deficiência. A revisão assistemática da literatura compreendeu artigos científicos, livros escritos por pessoas com deficiência, relatórios de pesquisa e dados de órgãos públicos brasileiros. Já a revisão integrativa da literatura, empreendida na segunda etapa da pesquisa, consistiu na busca por artigos científicos sobre o tema “moda inclusiva e deficiência”. A revisão integrativa consiste em pesquisar um tema específico na literatura, o que permite ampla compreensão desse tema e síntese dos trabalhos analisados (Biblioteca Professor Paulo de Carvalho Mattos, 2015; Grupo Ânima Educação, 2014).
O quadro a seguir descreve o planejamento da revisão integrativa, que teve como base Tranfield, Denyer e Smart (2003), Dresch, Lacerda e Antunes Júnior (2015) e Conforto, Amaral e Silva (2011). As buscas foram realizadas em julho de 2024 e tiveram início com o teste de diversas combinações de palavras-chave e operadores booleanos, até serem definidos os strings de busca apresentados no Quadro 1, os quais proporcionaram resultados mais objetivos.
Quadro 1. Planejamento da revisão integrativa da literatura
Tema |
Moda inclusiva e deficiência |
Periódicos de design (Qualis A3 ou superior) |
Estudos em Design, Design e Tecnologia, Projetica, Infodesign, Strategic Design Research Journal, Mix Sustentável, Educação Gráfica, Human Factors Design, DAPesquisa, DAT Journal |
String de busca |
moda AND ((deficiência OR deficiente) OR “design inclusivo” OR “design universal”) |
Periódicos de moda |
Modapalavra; dObra[s];, Revista de Ensino em Artes, Moda e Design; Iara |
String de busca |
(deficiência OR deficiente) OR “design inclusivo” OR “design universal” |
Critérios de inclusão |
Artigos completos |
Publicações realizadas a partir de 2014 |
|
Temática principal relacionada a moda, inclusão e deficiência. |
|
Filtros aplicados |
1. Leitura de título e resumo |
2. Leitura da introdução, método, resultados e considerações finais |
Fonte: A Autora (2024)
Na realização das buscas, optou-se por utilizar palavras-chave como “design inclusivo” e “design universal”, em vez de “moda inclusiva”, por constatar-se que muitas publicações sobre moda dão preferência ao termo “design inclusivo” ou relacionam o design universal à moda inclusiva (e.g., Auler, 2014). Foram selecionados como bases de dados os repositórios eletrônicos de periódicos brasileiros de moda e design. Como o número de periódicos de design é grande, optou-se por consultar apenas periódicos com classificação Qualis igual ou superior a A3.
A discussão dos resultados da revisão integrativa visa identificar ênfases e lacunas teóricas ou práticas sobre o tema pesquisado (Grupo Ânima Educação, 2014). Para tal, os artigos selecionados foram fichados utilizando tabelas comparativas (Gibbs, 2009) e analisados por meio de codificação categórica, com categorias definidas a priori (Dresch; Lacerda; Antunes Junior, 2015), sendo elas: autores; ano de publicação, instituição de ensino, periódico; objetivo da pesquisa; método; participação de pessoas com deficiência; descrição do público enfocado (tipo de deficiência, faixa etária, gênero, raça, renda e “outros”); funções de design abordadas (práticas e/ou estético-simbólicas); discussão de questões relacionadas à interseccionalidade.
4. RESULTADOS
A condução das buscas nas bases dos periódicos pré-selecionados teve como resultado os números apresentados no Quadro 2. Após a leitura do título e do resumo dos artigos que retornaram após as buscas, foram selecionados para análise 17 trabalhos, em sua maioria publicados em periódicos de moda como ModaPalavra (35,3%) e Revista de Ensino em Artes, Moda e Design (29,4%). Cabe ressaltar que se constatou que o resultado negativo nas buscas realizadas no periódico Projetica deve-se, provavelmente, a alguma falha em seu sistema de busca, que não retornou resultados mesmo para pesquisas utilizando palavras-chave isoladas como “moda” ou “deficiência”.
Quadro 2. Resultado das buscas realizadas
Periódico |
Resultados |
Filtro |
ModaPalavra |
15 |
6 |
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design |
19 |
5 |
dObra[s] |
3 |
1 |
Iara |
1 |
1 |
Design & Tecnologia |
3 |
1 |
DAt Journal |
2 |
1 |
DaPesquisa |
1 |
1 |
Estudos em Design |
1 |
1 |
Human Factors Design |
4 |
0 |
Mix Sustentável |
1 |
0 |
Strategic Design Research Journal |
0 |
0 |
Educação Gráfica |
0 |
0 |
Infodesign |
0 |
0 |
Projetica |
0 |
0 |
Total |
50 |
17 |
Fonte: A Autora (2024)
A autoria dos artigos selecionados é, em sua maioria, de mulheres: oito foram escritos exclusivamente por mulheres (47%), outros oito são resultado de coautoria entre homens e mulheres (47%) e apenas um foi escrito unicamente por um homem (5,9%). Nas publicações, não constam informações que permitam identificar se os artigos foram escritos por pessoas racializadas, com deficiência ou outros marcadores sociais. Dentre as autoras e autores, destacam-se, com dois artigos cada: Icléia Silveira (Turcatto; Silveira, 2021; Sousa; Maciel; Silveira, 2023); Bruna Brogin, Eugenio Merino e Vilson João Batista (Brogin; Merino; Batista, 2014a; 2014b).
Bruna Brogin e seus coautores (Brogin; Merino; Batista, 2014a; 2014b) destacam-se como pioneiros na área, junto com Ana Carolina Martins e Apoena da Silva (2014). A distribuição temporal das publicações é apresentada na imagem a seguir, que mostra ter havido picos no primeiro ano da linha do tempo, 2014, e em 2017, quando três artigos foram publicados. No geral, tem-se um ou dois artigos sobre o tema moda inclusiva e deficiência publicados por ano, número considerado baixo para o avanço dessa área de pesquisa. No entanto, percebe-se haver consistência, visto que apenas em 2020 não houve identificação de artigos sobre o tema.
Figura 2. Ano de publicação dos artigos identificados
Fonte: A Autora (2024)
A maioria dos artigos foi escrita por pessoas com afiliação a instituições públicas de ensino localizadas nas regiões Sul e Sudeste, com destaque para os estados de Santa Catarina (35,3%), São Paulo (35,3%), Paraná (17,6%) e Rio Grande do Sul (11.8%). Quanto às instituições de ensino, destacam-se: a Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade do Estado de Santa Catarina, com três artigos cada; a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, a Universidade Anhembi-Morumbi e a Universidade Estadual de Maringá, com duas publicações cada. Apenas dois artigos (Sousa; Xavier; Albuquerque, 2017; Martins; Teixeira; Filgueira, 2019) podem ser associados aos seguintes estados do Nordeste: Pernambuco, Paraíba e Ceará. Uma única publicação (Ferreira; Venturell, 2021) apresenta coautora afiliada a uma instituição de ensino localizada na região Centro-Oeste, mais especificamente no Distrito Federal. Não foram identificadas publicações oriundas de pesquisas realizadas na região Norte.
Grande parte dos artigos selecionados (47%) tinha como foco o desenvolvimento de produtos de moda ou tecnologias assistivas, enquanto cinco (29,4%) consistiam em revisões bibliográficas, das quais apenas uma (Oliveira; Okimoto, 2022) era sistemática. Quatro artigos conduziram pesquisa de campo com propósitos diversos: Juliana Bononi e Cássia Domiciano (2018) investigaram como tem-se utilizado o vestuário para estimular o tato de crianças com deficiência visual; Geraldo Lima Júnior (2018) desenvolveu método de ensino inclusivo de projeto de moda para pessoas com deficiência visual; Fernanda Martins, Maria Fabíola Teixeira e Araguacy Figueiras (2019) apresentaram relato de experiência relativo à realização de seminário sobre moda inclusiva e deficiência; Jessica Schneider et al. (2017) investigaram a relação de pessoas com deficiência visual com a moda e realizaram testes de etiquetas têxteis em Braile.
Somente as pesquisas que adotaram como método principal a revisão bibliográfica não envolveram a participação de pessoas com deficiência. Dentre as demais (70,6%), apenas uma teve participação indireta, por meio de profissionais de saúde e responsáveis de crianças com deficiência. As técnicas de coleta de dados mais utilizadas (Figura 3) foram entrevistas e questionários. Dois artigos não especificaram os procedimentos metodológicos relacionados à participação de pessoas com deficiência. Na maioria dos casos, a participação foi, essencialmente, consultiva, pois apenas quatro artigos relataram a realização de teste de produtos de moda ou tecnologias assistivas junto a pessoas com deficiência. Em seis artigos, o recrutamento de participantes se deu por intermédio de instituições ou associações que atendem pessoas com deficiência. Quatro artigos não especificaram o tamanho da amostra de participantes, que, nos demais casos, variou de duas a 30 pessoas, sendo as amostras mais recorrentes as de nove e de 22 participantes.
Figura 3. Participação de pessoas com deficiência nas pesquisadas analisadas
Fonte: A Autora (2024)
A deficiência é a principal característica utilizada para delimitar o público das propostas de moda inclusiva apresentadas ou discutidas (Figura 4). Nesse sentido, destacam-se a deficiência visual (53%) e a deficiência física (23,5%). Mesmo os quatro artigos que abordam deficiência de modo geral forneceram exemplos ou exploraram argumentos que remetem sobretudo às deficiências física e/ou visual. Nove artigos (53%) não indicaram uma delimitação específica de público no que diz respeito à faixa etária ou ao gênero. Quando há especificação de gênero, predomina o feminino, com quatro artigos, mas há casos em que se considerou tanto o feminino quanto o masculino. Há apenas uma ocorrência de público exclusivamente masculino. No que diz respeito à faixa etária, uma publicação mencionou trabalhar com mulheres adultas, sem especificar idade. Outros quatro artigos enfocaram público entre ١٨ e ٥٠ anos. Na maioria desses casos, foi selecionada uma faixa etária bem delimitada, com variações de oito até 16 anos, mas em um caso há variação de 31 anos. Três trabalhos enfocaram o público infantil, porém dois deles selecionaram faixa etária muito ampla para essa fase da vida: de três a 12 anos e de cinco a 14 anos.
Figura 4. Descrição de público contida nos artigos identificados
Fonte: A Autora (2024)
Especificações de público relacionadas a renda, classe social ou escolaridade (Quadro 3) são mais escassas, presentes em apenas quatro publicações (23,5%). Sobre estes fatores, Driélli Oliveira et al. (2015) apontaram que a acessibilidade, na moda inclusiva, também precisa ser considerada no que diz respeito a custos, pois as pessoas com deficiência no Brasil são, em sua maioria, trabalhadores da classe média.
Quadro 3. Descrição do público quanto a renda, classe social ou escolaridade
Referência |
Descrição do público |
Bononi e Domiciano (2018) |
Somente um, de nove familiares consultados, possuía ensino superior completo |
Lima Júnior (2018) |
Estudantes de graduação em Design de Moda |
Schneider et al. (2017) |
Maioria dos participantes era estudante ou apresentava ensino médio completo |
Martins e Silva (2014) |
Maioria apresentava renda mensal entre 2 e 3 salários mínimos (63%); expressiva quantidade de estudantes (35%); metade das questionadas era casada (50%) |
Fonte: A Autora (2024)
Nenhum artigo especificou a identidade racial do público investigado. Brogin, Merino e Batista (2014b) apenas apresentaram dados indicando que a maioria das pessoas com deficiência no Brasil apresenta também marcadores de raça, assim como de gênero, idade e condição socioeconômica. Dessa forma, o artigo supracitado aponta questões relacionadas à interseccionalidade, mas sem se aprofundar, focando em aspectos ergonômicos e funcionais relacionados à personalização de roupas para pessoas com deficiência.
Poucos artigos exploraram outros aspectos descritivos do público com deficiência. Julia Ritter, Claudia Schemes e Renata Noronha (2024, p. 9) descreveram que as duas mulheres entrevistadas se identificaram como “ativistas com foco na resolução das problemáticas enfrentadas pela mulher cega”. Ana Caroline Martins e Apoena Silva (2014) indicaram o estado civil das 30 mulheres com deficiência visual entrevistadas, sendo metade delas casadas. As autoras supracitadas também investigaram as preferências estético-simbólicas das participantes no que se refere a estilo pessoal e moda íntima.
Seis artigos (35,3%) enfocaram as funções práticas do design, sobretudo relacionadas à ergonomia física. As demais onze publicações (64,7%) exploraram as funções estético-simbólicas. Dessas publicações, oito discutiram, aplicaram ou testaram tecnologias assistivas que permitam às pessoas cegas a apreensão de diversas caraterísticas da roupa, tanto práticas, como tamanho, quanto estético-simbólicas, como cor. Um artigo, de Mariana Roncoletta (2016), explorou o prazer proporcionado por sapatos adaptados para mulheres com diferença no tamanho de membros inferiores, associando uma adaptação de função prática às funções estético-simbólicas. Contudo, Roncoletta (2016) não apresentou aspectos da subjetividade das participantes da pesquisa. Assim, torna-se difícil distinguir quando um resultado negativo no que diz respeito à percepção do prazer proporcionado pela adaptação de um calçado está relacionado à execução do projeto ou a questões relativas, por exemplo, à aceitação da própria deficiência, aspecto não explorado no artigo para além da seguinte citação, presente nas considerações finais: “ao relacionar as esferas dos prazeres com o contexto das usuárias, compreendeu-se que suas vivências interferem na percepção dos prazeres e na inclusão sociocultural” (Roncoletta, 2016, p. 236).
Apenas dois artigos dedicaram-se a discutir de maneira aprofundada os aspectos estético-simbólicos de produtos de moda destinados a pessoas com deficiência. Julia Cunha et al. (2019) reforçaram a necessidade das funções estético-simbólicas para promover a integração social, a autoestima e a autoconfiança de pessoas com deficiência. A autora supracitada e seus colegas ressaltaram que projetos de tecnologias assistivas costumam ignorar tais aspectos, enfocando as funções práticas, o que contribui para a estereotipação de pessoas com deficiência, pois não consideram as características subjetivas e a diversidade desse público. Assim, propuseram as seguintes diretrizes para projetos de tecnologias assistivas: (I) pesquisar o perfil do usuário e saber seus gostos, desejos e aspirações; (II) não camuflar o produto com miniaturização, cor de pele ou transparências; (II) possibilitar a personalização do produto ou oferecer diversidade de modelos; (IV) adotar características estético-simbólicas relacionadas à moda.
Selediana Godinho (2017) enfatizou a importância da aparência para pessoas com deficiência e o seu desejo de se sentirem belas e incluídas socialmente por meio da moda, uma vez que a deficiência marca a construção da imagem pessoal. Isso porque padrões de beleza promovem a exclusão de corpos com deficiência, que costumam ser excluídos também no âmbito da moda. A pesquisa de Jessica Schneider et al. (2017) corroborou as afirmações de Godinho (2017). Todas as nove pessoas com deficiência visual entrevistadas por Schneider et al. (2017) consideravam a aparência uma característica pessoal fundamental, reconhecendo a importância de se vestirem bem não apensa para evitar passar uma mensagem de desleixo, mas também para se sentirem bonitos ou bonitas. Assim, a estética é o segundo aspecto mais importante na decisão de compra de vestuário desse público, após o preço (Schneider et al.,2017). Ana Caroline Martins e Apoena Silva (2014) também indicaram a preocupação com a aparência por parte de todas as 30 mulheres com deficiência visual entrevistadas, que buscavam o autocuidado e a admiração de outras pessoas ao utilizar peças íntimas.
A despeito do interesse de pessoas com deficiência por moda, esse setor costuma excluí-las, como afirmou Godinho (2017). A falta de recursos de acessibilidade, por exemplo, tira a autonomia de pessoas com deficiência visual na sua relação com a moda, tendo, muitas vezes, de recorrer à ajuda de outras pessoas para comprar, coordenar, manter e organizar suas roupas (Schneider et al., 2017). O segmento de moda inclusiva para pessoas com deficiência, segundo Martins, Teixeira e Filgueiras (2019), tem sido negligenciado, com poucas empresas investindo nesse nicho, muitas delas priorizando a funcionalidade em vez da estética, o que limita a oferta de opções de vestuário acessíveis para pessoas com deficiência que considerem tanto suas necessidades práticas quanto subjetivas.
Os resultados da revisão sistemática da literatura conduzida por Rodrigo Oliveira e Maria Lúcia Okimoto (2020) corroboram a carência de soluções que efetivamente considerem as necessidades das pessoas com deficiência. No que diz respeito a tecnologias assistivas relacionadas a moda e deficiência visual, há carência recursos de personalização de aplicativos que considerem as especificidades de diferentes públicos de acordo com o gênero e a faixa etária, por exemplo. Ademais, os autores supracitados indicaram haver distanciamento entre profissionais que desenvolvem tecnologias assistivas e pessoas com deficiência, uma vez que poucos testes com usuários foram realizados nos estudos analisados, existindo necessidade de estudos mais amplos e profundos. Sobre essa questão, Martins, Teixeira e Filgueiras (2019) reforçaram a necessidade de participação de pessoas com deficiência em projetos que envolvam moda inclusiva. As autoras também indicaram haver interesse de estudantes, profissionais e pessoas com deficiência pelo tema moda inclusiva, o qual precisa ser mais debatido para que ocorra a quebra dos paradigmas que promovem a exclusão.
5. DISCUSSÃO
A maioria dos artigos identificados relatou pesquisas conduzidas nas regiões Sul e Sudeste, podendo-se inferir que as publicações analisadas não representam a diversidade das pessoas com deficiência em cada região e estado brasileiro. Sobre a autoria dos artigos, pode-se apenas identificar que a maioria contava com o trabalho de pesquisa de ao menos uma mulher, mas não foi possível verificar se os autores e as autoras apresentam outros marcadores de gênero que poderiam trazer diferentes vieses para suas pesquisas sobre moda inclusiva.
A linha do tempo dos artigos identificados sugere haver poucas publicações a cada ano sobre moda inclusiva, sendo três o número máximo. Ainda que haja constância nas publicações, o que sugere a permanência da importância dos temas inclusão e deficiência na pesquisa em moda, considera-se necessário haver aumento no número de pesquisas para que essa área possa se desenvolver e ganhar a relevância necessária para a promoção de inclusão social de pessoas com deficiência no âmbito da moda.
A maioria (70,6%) das pesquisas relatadas nos artigos analisados apresentava natureza aplicada e contou com a participação de pessoas com deficiência, o que é um aspecto positivo. Ainda que, de certa forma, tais artigos estejam em consonância com o lema da luta das pessoas com deficiência por inclusão social - “nada sobre nós, sem nós” (Arantes; Bussinguer; 2024) -, a participação, na maioria dos casos, objetivou apenas coletar dados, sem participação ativa, visto que apenas quatro dos 17 artigo realizaram testes de produtos.
As amostras de participantes foram, em geral, pequenas e consideraram como principal critério de seleção a deficiência de quem participaria, visto que há artigos que não especificaram sequer gênero ou faixa etária dos participantes. As deficiências mais consideradas nos artigos foram, respectivamente, a visual e a física, havendo carência de publicações que considerem a relação com a moda e as necessidades específicas de pessoas com outras deficiências. A maioria das publicações identificou o gênero dos participantes, em sua maioria feminino, condizendo com dados do IBGE (2023), que mostram haver mais mulheres do que homens entre as pessoas com deficiência. Alguns artigos, contudo, investigaram tanto homens quanto mulheres. No que diz respeito à faixa etária, a maioria das especificações se concentrou, respectivamente, nos públicos adulto e infantil, por vezes agrupando pessoas ou crianças em fases da vida muito diferentes. Nenhum artigo enfocou o público idoso, apesar de este ser predominante entre as pessoas com deficiência, segundo dados do IBGHE (2023). Os resultados da revisão integrativa aqui relatada corroboram, portanto, os resultados da revisão sistemática de Rodrigo Oliveira e Maria Lúcia Okimoto (2020), sobre moda e tecnologias assistivas para pessoas com deficiência visual, que apontaram a carência de tecnologias que considerem as especificidades do público em relação a gênero e idade.
Apenas quatro dos 17 artigos especificaram a renda, classe social ou escolaridade das pessoas com deficiência que participaram da pesquisa, sendo que em dois casos a amostra não representou a maior parcela da população com deficiência no que diz respeito à escolaridade Considerando que, segundo os dados do IBGE (2023), a grande maioria das pessoas com deficiência é de baixa renda, esse é um fator que deve ser considerado ao desenvolver produtos inclusivos, de modo a garantir que sejam, de fato, acessíveis em termos econômicos. A acessibilidade das informações de moda também precisa ser considerada, visto a baixa escolaridade da maioria da população com deficiência no Brasil. Esse é um aspecto relevante principalmente no caso de pessoas com deficiência visual, quando existe a necessidade de traduzir diversas informações visuais da moda e do vestuário.
A maioria dos artigos identificados enfocou as funções práticas de produtos de moda ou a funcionalidade de recursos assistivos na tradução de estímulos visuais para pessoas com deficiência visual. Apenas dois artigos apresentaram considerações sobre a relação que pessoas com deficiência estabelecem com a moda, destacando a importância que dão à aparência. De maneira semelhante, algumas publicações apontaram a moda como meio de promover o autocuidado e elevar a autoestima de pessoas com deficiência, fatores considerados essenciais para a inclusão social (Oliveira; Okimoto, 2020; Martins; Silva, 2014; Martins; Teixeira; Filgueiras, 2019; Cunha et al., 2019; Godinho, 2017). Nesse sentido, a obra de Cunha et al. (2019) se destaca dentre as demais por propor importantes diretrizes não apenas para o desenvolvimento de tecnologias assistivas, mas para produtos de moda inclusivos no geral, pois reforça a necessidade de investigar em profundidade o perfil do público de pessoas com deficiência e de explorar aspectos relacionados às funções estético-simbólicas dos produtos.
De maneira geral, portanto, os artigos sobre moda inclusiva pecam na descrição do público de pessoas com deficiência, não considerando sua interseccionalidade e subjetividade. Se a moda tradicional exclui corpos fora do padrão, como apontado por Godinho (2017), os esforços em prol de uma moda mais inclusiva precisam considerar não apenas o corpo com deficiência, mas também a subjetividade das pessoas com deficiência, atravessadas por múltiplos marcadores sociais. Isso é ainda mais importante no âmbito da moda, no qual as funções estético-simbólicas, muitas vezes, são mais importantes do que as funcionais. Pessoas com deficiência desejam não apenas conforto e funcionalidade, mas se expressar por meio da moda, construindo sua imagem pessoal para comunicar quem são para além de sua deficiência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa bibliográfica assistemática apresentada neste artigo ressaltou a importância de se considerar a interseccionalidade e a subjetividade de pessoas com deficiência para promover plena inclusão social. Por isso, a moda inclusiva precisa considerar não apenas funções práticas relacionadas à adaptação de produtos para corpos diversos, mas também as funções estético-simbólicas, que precisam estar presentes nos produtos de moda destinados a atender as necessidades de pessoas com deficiência.
A revisão integrativa conduzida, no entanto, revelou que a interseccionalidade e a subjetividade de pessoas com deficiência não têm sido devidamente consideradas nas publicações científicas brasileiras sobre moda inclusiva. Nessa área, a deficiência tem sido o principal fator de identificação do público, cujo recorte e amostra de pesquisa precisa ser mais preciso no que diz respeito a gênero e idade. Ademais, é necessário explorar não somente o público feminino, como também o masculino e o agênero, além do público de pessoas idosas.
Os estudos sobre moda inclusiva precisam compreender a pessoa com deficiência para além da sua condição de deficiência, delimitando melhor as especificações de público no que diz respeito a outros marcadores sociais e preferências relacionadas a aspectos estético-simbólicos, como estilo e interesses culturais. Considerar a pessoa com deficiência em sua plenitude permitiria desenvolver produtos de moda mais inclusivos, não apenas porque atenderiam melhor às necessidades de pessoas com deficiência, mas também porque teriam maior potencial de atrair pessoas sem deficiência que, em alguma medida, se identifiquem com as funções estético0-simbólicas exploradas no produto. Contudo, as funções práticas têm sido as mais enfatizadas na pesquisa sobre moda inclusiva, mesmo quando são associadas às funções estético-simbólicas. Mais pesquisas são necessárias, portanto, para investigar o impacto que os diferentes marcadores sociais apresentam na relação estabelecida entre moda e pessoas com deficiência e como as funções estético-simbólicas podem ser exploradas no desenvolvimento de soluções mais inclusivas.
A pesquisa aqui relatada apresenta limitações relacionadas ao seu escopo, não tendo considerado teses e dissertações brasileiras ou o contexto internacional de pesquisas científicas sobre deficiência e moda inclusiva. Outras revisões bibliográficas podem suprir tais lacunas; contudo, recomenda-se a realização de pesquisas de campo com participação ativa de pessoas com deficiência para investigar em profundidade os aspectos apontados no parágrafo anterior. Com este artigo, espera-se incentivar mais pessoas, de diferentes localidades brasileiras, a desenvolver pesquisas, produtos e negócios relacionados à moda inclusiva, levando em consideração a interseccionalidade e a subjetividade das pessoas com deficiência.
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