Dez anos do software livre Valentina
Ten years of Valentina free software
Diez años del software libre Valentina
Roman Telezhynskyi
Estudou programação e mora numa pequena cidade da Ucrânia
contact@smart-pattern.com.ua
Smart pattern
Juan Sebastián Restrepo González
Doutor em Economia Doméstica, Universidade Federal de Viçosa / jsrestre@gmail.com
Orcid: 0000-0001-8085-0985/ http://lattes.cnpq.br/7246889507894096
Neide Maria de Almeida Pinto
Doutora em Ciências Sociais, Universidade Federal de Viçosa / nalmeida@ufv.br
Orcid: 0000-0002-8713-5471/ http://lattes.cnpq.br/9078207930978711
Entrevista realizada por e-mail, no dia 16 de outubro de 2023.
Enviado: 01/11/2023 // Aceito: 22/08/2024
APRESENTAÇÃO
Na oferta de softwares para a modelagem digital de vestuário, dominada por soluções caras e voltadas à grande indústria, o software livre Valentina (Fig. 1) se apresenta como uma alternativa de distribuição gratuita e código aberto para as pequenas empresas e designers independentes. O software utiliza modelagem paramétrica na construção dos moldes digitais, característica herdada dos métodos tradicionais de modelagem. No Brasil, o software tem ganhado visibilidade desde 2020 com a publicação de conteúdo em português e a criação de grupos em redes sociais. Nesta entrevista com Roman Telezhynskyi, desenvolvedor do Valentina, indagamos pelas relações entre política e tecnologia, as formas de participação da comunidade, os maiores desafios assumidos ao longo dos dez anos de existência do software e a visão de futuro do projeto.
Figura 1. Interface principal do software Valentina.
Fonte: Elaboração própria.
ENTREVISTA
Inicialmente gostaríamos de nos solidarizar com você e com todas as pessoas que estão sofrendo com as consequências da atual guerra na Ucrânia. Nossa primeira pergunta tem relação com esse assunto. Como tem afetado a guerra o desenvolvimento do software?
É inegável que a guerra na Ucrânia teve um impacto significativo no desenvolvimento do projeto Valentina. Nos primeiros meses após a invasão, achei incrivelmente difícil me concentrar na programação e fazer avanços no código. Afortunadamente, a cidade em que moro não foi diretamente afetada pela ocupação, mas viver em um ambiente de incerteza está longe de ser o ideal para o desenvolvimento contínuo do software.
No momento, estamos lidando com dois problemas principais decorrentes do conflito em andamento. Em primeiro lugar, há a situação econômica. O custo de vida tem aumentado constantemente, tornando cada vez mais difícil a alocação de recursos para o projeto. Em segundo lugar, a incerteza de viver em uma zona de guerra representa uma ameaça genuína. Sou o único desenvolvedor por trás deste projeto, e a preocupação é que minha ausência devido a circunstâncias imprevistas possa comprometer o futuro do Valentina.
Vimos que algumas ações foram tomadas após o início da guerra. Como você entende a relação entre tecnologia e política?
Fico feliz que você tenha notado as ações que tomei em resposta à situação, e você está certo ao percebê-las como uma forma de posicionamento político. Não fiz notificações explícitas sobre essas mudanças porque acredito firmemente que as ações podem expressar mais do que as palavras. A relação entre tecnologia e política é complexa e entrelaçada. O código aberto, em particular, tem a ver tanto com as relações entre as pessoas quanto com a própria tecnologia. A política inevitavelmente desempenha um papel no mundo da tecnologia e é uma presença constante.
As mudanças recentes que fiz foram uma resposta direta à invasão na Ucrânia. O acréscimo da bandeira ucraniana ao logotipo do Valentina foi para representar a origem do projeto e mostrar apoio ao meu país durante estes tempos difíceis. Restringir o uso do software em computadores instalados na Rússia foi uma decisão que tomei depois de me sentir traído por pessoas daquele país (…). Se eles não parecem se importar com o fato de eu estar vivo ou morto, optei por agir como se eles não existissem. O idioma também é um fator essencial, e eu quero ajudar as pessoas a se libertarem da influência russa. Se alguém na Rússia quiser usar o Valentina, deverá estar disposto a se abster de usar o idioma russo em seu computador. Consequentemente, meu alvo são mais os ucranianos que falam russo do que os próprios russos. É essencial esclarecer que ainda apoio o código aberto, e os russos mantêm o direito de acessar, modificar e usar meu código. No entanto, tomei a decisão de não os apoiar ativamente à luz dos eventos recentes e de minhas próprias experiências.
Pode-nos contar quais foram os principais desafios para o desenvolvimento do software Valentina nesses dez anos de existência?
Quando iniciei este projeto, ele nasceu de uma necessidade pessoal de uma ferramenta de criação de moldes, e eu não tinha grandes planos nem uma compreensão profunda de como ele deveria funcionar. A abordagem que adotei – modelagem paramétrica - não era a mais comum no setor. É um processo com uso intensivo de matemática que depende dos sistemas e métodos de criação de moldes existentes. Isso representou um desafio porque (…) os usuários precisam ter conhecimento desses sistemas ou desenvolver um que funcione para eles.
Apesar desses dez anos de desenvolvimento, vários desafios persistem. Um dos principais é o número limitado de usuários que contribuem com o código fonte. Embora não haja escassez de usuários, a maioria opta por permanecer como usuários passivos, evitando participar ativamente de discussões ou contribuir para a criação de manuais gratuitos, por exemplo. Também não há escassez de novas ideias e solicitações de recursos, mas a falta de pessoas com as habilidades necessárias para implementá-las é um problema persistente. Em essência, os usuários geralmente não aproveitam todo o potencial que a natureza de código aberto do projeto oferece.
Quais têm sido os principais desafios para o posicionamento do software Valentina na indústria da modelagem digital?
Na minha opinião, a indústria da modelagem digital continua um tanto estagnado e resistente às mudanças. As maiores indústrias participantes do ramo dependem predominantemente de sistemas CAD caros, e o Valentina, com sua abordagem exclusiva, não é uma escolha comum entre elas. Os fabricantes de moldes podem ser bastante conservadores, priorizando a estética em detrimento da tecnologia de produção. Eles podem não ser entusiastas da matemática ou do desenvolvimento de software, o que limita a adoção dos moldes paramétricos do Valentina. Além disso, o setor tende a reter conhecimento, pois teme a potencial concorrência. Essa falta de colaboração impede ainda mais o desenvolvimento de soluções abrangentes para atender às necessidades da indústria.
Em resumo, parece haver um interesse limitado do setor em adotar abordagens como a do Valentina. O software ainda é um trabalho em andamento, com compatibilidade limitada com os sistemas CAD existentes devido aos formatos proprietários de troca de dados. A relutância das empresas em se adaptar às novas tecnologias e colaborar em soluções comuns continua sendo um desafio significativo para o posicionamento da Valentina no ramo da modelagem digital.
Como o projeto Valentina assume os valores e princípios do software livre?
Em termos da adesão do Valentina aos valores e princípios do Software Livre, devo admitir que nossa comunidade nem sempre aproveita todo o potencial por trás desses princípios. Às vezes, parece que sou o primeiro cristão em uma nova tribo, pregando o evangelho do código aberto. Entretanto, esses princípios continuam sendo incrivelmente importantes para mim, pessoalmente. As pessoas podem não reconhecer imediatamente os benefícios desses princípios porque não se sentem reprimidas ou limitadas. Ao mostrar a elas um caminho alternativo, esperamos destacar a importância desses princípios e incentivar uma adoção mais ampla dos valores do software livre na comunidade Valentina.
Quais são as formas em que a comunidade mais se envolve com o desenvolvimento do Valentina?
O aspecto mais valioso da comunidade Valentina é o retorno que recebemos. Tenho a sorte de ter uma base de usuários engajada e apaixonada que realmente quer ver o Valentina melhorar. Relatórios de erros, solicitações de recursos e todas as formas de retorno desempenham um papel fundamental na orientação da direção do desenvolvimento do software. Um desafio significativo na participação é o idioma. Infelizmente, se os usuários não souberem inglês, pode ser difícil para mim oferecer suporte. É digno de nota que a comunidade do Valentina tende a estabelecer várias plataformas locais de discussão. Embora eu tenha conhecimento de algumas delas, não participo ativamente.
Como o Valentina está se preparando para a criação de modelos 3D ou para a integração com outros softwares de simulação 3D?
O conceito de tecnologia 3D não é novo para mim, as pessoas começaram a mencioná-lo logo após a apresentação pública do Valentina. Embora meu foco principal sempre tenha sido o aspecto da produção, vejo potencial em uma melhor integração com os softwares de simulação 3D, especialmente para a verificação do ajuste dos moldes. Como um passo nessa direção, tenho trabalhado para aprimorar a exportação do formato DXF, que é amplamente usado para a troca de dados com softwares de simulação 3D. Entretanto, é essencial esclarecer que essa integração não é minha principal prioridade no momento.
Existe o interesse de integrar ferramentas de inteligência artificial no Valentina?
Só recentemente comecei a contemplar o desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial, especialmente no contexto da compreensão da correlação entre as medições humanas e a criação de moldes bem ajustados. Como isso ainda está nos estágios iniciais de consideração, é muito cedo para fornecer uma resposta definitiva com relação ao interesse em integrar ferramentas de inteligência artificial no Valentina.
Quais são os conhecimentos prévios que uma pessoa precisa ter para poder usar o software? Qual considera que é a melhor forma de aprender a usar o Valentina?
Do meu ponto de vista, o Valentina não substitui a necessidade de conhecimento prévio de modelagem. Ele é uma ferramenta que requer um certo conjunto de habilidades para ser usada com eficácia. Os usuários devem ter uma base em matemática, pensamento lógico e capacidade de programar cálculos simples, pois o objetivo principal do Valentina é criar moldes paramétricos. Se o seu objetivo estiver limitado a um único tamanho, outras ferramentas com menos restrições podem ser mais adequadas e eficientes. Para aprender o Valentina, a prática é fundamental. É essencial familiarizar-se com um método de criação de moldes que ofereça resultados satisfatórios e aprender a traduzir as instruções desse método para o software. Essa abordagem prática, combinada à utilização de recursos disponíveis como vídeos, tutoriais e livros digitais e a participação em grupos de mídia social podem ajudar muito a dominar o Valentina.
AGRADECIMENTOS
Esta entrevista fez parte da pesquisa de doutorado “Transformações digitais da confecção têxtil em domicílio no Brasil: práticas e percursos de apropriação de um software livre para a modelagem de vestuário”, defendida no programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica (UFV), trabalho que foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, pelo qual expressamos nosso sincero agradecimento.