Representações sociais de lingerie: um estudo com alunas e instrutores/colaboradores do SENAI Espaço da Moda e com empresários do setor de Nova Friburgo/RJ

Ana Carla Torres

Doutoranda, Estácio / anacarla.torres@gmail.com

Orcid: 0000-0003-1828-6417 | http://lattes.cnpq.br/9119893202228651

Rita de Cássia Pereira Lima

Doutora, Université René Descartes - Paris V / ritaplima2008@gmail.com

Orcid: 0000-0002-3055-4915 | http://lattes.cnpq.br/4292907705126288

Enviado: 28/08/2023 | Aceito: 12/06/2024

Representações sociais de lingerie: um estudo com alunas e instrutores/colaboradores do SENAI Espaço da Moda e com empresários do setor de Nova Friburgo/RJ

RESUMO

A pesquisa foi desenvolvida na região de Nova Friburgo/RJ, conhecida como polo de moda íntima. Devido à presença constante do tema nesse ambiente social, considerou-se relevante compreender a construção de significados sobre lingerie por grupos diversos na cidade, com fundamentação na Teoria das Representações Sociais, desenvolvida por Serge Moscovici. Nesse contexto, o objetivo do presente estudo é investigar representações sociais da lingerie por alunas e instrutores/colaboradores do SENAI Espaço da Moda e por empresários em Nova Friburgo/RJ. Foram realizadas 10 entrevistas semiestruturadas com cada grupo, analisadas com o apoio da análise de conteúdo temática. Para as alunas, lingerie é “trabalho”, essencial para a sobrevivência; para os instrutores/colaboradores, é sinônimo de “liberdade”; e, para os empresários, é o “DNA” da cidade, pois proporciona solidez para as empresas. A pesquisa revelou que a lingerie pode ser compreendida por meio de suas representações, expressas em processos sociocognitivos de grupos que refletem sua história e seu contexto social.

Palavras-chave: representações sociais. moda. lingerie.

Social representations of lingerie: a study with students and instructors/employees of SENAI Espaço da Moda and with entrepreneurs from the Nova Friburgo/RJ sector

ABSTRACT

Social representations of lingerie: a study with students and instructors/employees of SENAI Espaço da Moda and with entrepreneurs from the sector of Nova Friburgo Due to the constant presence of the theme in this social environment, it was considered relevant to understand the construction of meanings about “lingerie” by different groups in the city, based on the Theory of Social Representations, developed by Serge Moscovici. In this context, the objective of the study is to investigate social representations of lingerie by students and instructors/employees of SENAI Espaço da Moda and by entrepreneurs in Nova Friburgo/RJ. 10 semi-structured interviews were carried out with each group, analyzed with the support of thematic content analysis. For students, lingerie is “work”, essential for survival; for instructors/collaborators it is “freedom”; and for businessmen it is the “DNA” of the city, which provides solidity for companies. The research revealed that lingerie can be understood through its representations, expressed in sociocognitive processes of groups that reflect their history and social context.

Keywords: social representations. fashion. lingerie.

Representaciones sociales de la lencería: un estudio con estudiantes y docentes/empleadas del SENAI Espaço da Moda y con empresarias del sector Nova Friburgo/RJ

RESUMEN

Representaciones sociales de la lencería: un estudio con alumnas e instructoras/empleadas del SENAI Espaço da Moda y con emprendedoras del sector de Nova Friburgo Debido a la constante presencia del tema en ese medio social, se consideró relevante comprender la construcción de significados sobre “lencería” por diferentes grupos de la ciudad, a partir de la Teoría de las Representaciones Sociales, desarrollada por Serge Moscovici. En ese contexto, el objetivo del estudio es investigar las representaciones sociales de la lencería por parte de estudiantes y docentes/empleadas del SENAI Espaço da Moda y de empresarios de Nova Friburgo/RJ. Se realizaron 10 entrevistas semiestructuradas con cada grupo, analizadas con el apoyo del análisis de contenido temático. Para las estudiantes, la lencería es “trabajo”, fundamental para la supervivencia; para los instructores/colaboradores es “libertad”; y para los empresarios es el “ADN” de la ciudad, que da solidez a las empresas. La investigación reveló que la lencería puede ser comprendida a través de sus representaciones, expresadas en procesos sociocognitivos de grupos que reflejan su historia y contexto social.

Palabras clave: representaciones sociales. moda. lencería.

1. INTRODUÇÃO

Em 1911, durante o período de industrialização, iniciou-se a instalação de indústrias têxteis em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Em 1925, foi fundada a fábrica da Filó S.A., fundamental no cenário da industrialização e da produção de lingerie na história da cidade, que passou por um forte crescimento no setor têxtil entre as décadas de 1930 e 1980 (CEREJA E PEREIRA, 2015).

Entre 1980 e 1990, inúmeras empresas nacionais encerraram suas atividades ou reduziram drasticamente seu quadro de funcionários, incluindo a Filó S.A. Com a crise instaurada, inúmeras costureiras de lingerie perderam seus empregos. Casadas com conhecedores dos processos de outras indústrias, como a metalurgia, juntaram esses conhecimentos e abriram novos negócios, nascendo assim as indústrias de confecção de Nova Friburgo e o título de Capital da Moda Íntima (SEBRAE, 2007). Dessa forma, diversos pequenos negócios foram criados, configurando o Arranjo Produtivo Local (APL), nome dado à concentração da mesma atividade econômica em um determinado local. A região obteve esse título em 1995, atraindo, consequentemente, diversos investimentos (BARBOSA, 2016).

Num contexto mais abrangente, a lingerie pode ser considerada um universo singular devido às suas peças funcionais que modelam o corpo, à sua história que retrata as tendências da moda e às suas modelagens que englobam revoluções, tradições e culturas, associadas ao conforto, à proteção, ao suporte anatômico e à sensualidade. O seu uso reflete estilos de vida, desejos e fantasias. É esperado que, no contexto de Nova Friburgo, ocorram práticas relacionadas a esse objeto, com a produção e o compartilhamento de significados e explicações. A lingerie, em particular, pode gerar comunicações e opiniões diversas, com grande força simbólica, sinalizando ser um tema de pesquisa relevante para a sociedade, envolvendo estudantes, empresários e profissionais de instituições educacionais. Este é um contexto favorável para estudos de representações sociais, pois mobiliza a construção de significados por diversos grupos.

Ao estudar representações da psicanálise na sociedade francesa na segunda metade do século XX, com base na Psicologia Social, Moscovici (2012) propõe a Teoria das Representações Sociais (TRS) como um referencial útil na verificação de como um conhecimento do senso comum é comunicado no interior de determinados grupos e como o indivíduo é influenciado pelas opiniões desses grupos, ao mesmo tempo em que também influencia o próprio grupo de maneira contínua. As representações sociais visam tornar familiar algo desconhecido, compreender como fenômenos são interpretados por indivíduos e grupos, ancorados em valores, crenças e teorias que circulam na sociedade. Como afirma Moscovici (2007, p. 58):

As representações que nós fabricamos – duma teoria científica, de uma nação, de um objeto, etc – são sempre o resultado de um esforço constante de tornar real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um sentimento de não familiaridade. E através delas nós superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que era abstrato torna-se concreto e quase normal (...) as imagens e idéias com as quais nós compreendemos o não-usual apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e com o qual já estávamos familiarizados.

Com essa fundamentação, considerou-se o campo de pesquisa específico, situado no contexto singular de Nova Friburgo, onde a indústria de lingerie se estabeleceu com sucesso, gerando práticas e comunicações cotidianas que têm contribuído, ao longo dos anos, para manter o tema em evidência. Diante desse contexto socioeconômico em que a moda íntima ocupa um lugar central, o presente estudo objetivou investigar as representações sociais de lingerie elaboradas por alunas e colaboradores/instrutores dos cursos de moda íntima oferecidos pelo SENAI Espaço da Moda, localizado na cidade, bem como por empresários desse setor na região. O contexto de Nova Friburgo propicia relações sociais entre os indivíduos, influenciando suas vidas nos âmbitos econômico, social e cultural. Em um contexto que abrange condições específicas relacionadas à lingerie, podem existir diversas representações da sociedade e do indivíduo, conforme seu grupo de pertencimento. O presente artigo objetiva expor tais aspectos.

2 LINGERIE: OBJETO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL

O universo da lingerie engloba desde peças de suporte funcional até itens de desejo, acompanhando a evolução histórica e incorporando tendências que se alinharam às demandas do mercado consumidor. A lingerie abrange temas como igualdade de gênero, sexualidade, moralidade e estilo e, assim como na moda, os acontecimentos históricos, econômicos, políticos e culturais influenciam e impactam o desenvolvimento das peças.

A roupa íntima teve sua origem com modelagens rudimentares chamadas Loinchotes. Em 1770, as primeiras roupas íntimas remodelavam a silhueta feminina com espartilhos sobre as vestes, influenciando a postura das mulheres da alta sociedade (MEDEIROS, 2010). Nos séculos XVII e XVIII, as mulheres usavam ceroulas e, a partir daí, surgiram as primeiras formas de calcinhas, então confeccionadas em linho branco, reforçando o pudor. A rainha Vitória (1837-1901) nutria grande apreço pelo moralismo puritano e incentivou todos aqueles com condições financeiras a adotarem o uso do branco. Contudo, essas peças exigiam esforço na lavagem e seguiam um processo meticuloso de sete etapas: imersão em solução alcalina, adição de sabão, enxágue com água quente fervida, engomagem, torção, secagem em varal e passagem a ferro (HAWTHORNE, 2009).

Em 1871 surgiram as crinolinas, peças feitas de crina de cavalo como matéria-prima, que davam balanço aos quadris e empinavam o traseiro, substituindo as estruturas de aço desenvolvidas na Grã-Bretanha. O século XIX foi marcado pela insurgência de algumas mulheres contra o uso da crinolina, devido à sua natureza inflamável e aos danos que causava aos órgãos internos. Amelia Bloomer, precursora desses questionamentos e defensora dos direitos das mulheres, difundia suas opiniões acerca das reformas necessárias no vestuário feminino, visando peças que proporcionassem maior liberdade nas tarefas cotidianas (HAWTHORNE, 2009).

Entre 1820 e 1850, surgiu nas Américas a pantalette, uma espécie de calção adornado com babados nas extremidades das pernas. As peças possuíam poucos adornos ou bordados, visando não atrair atenção para o que as mulheres preservavam como seu bem mais precioso: o próprio corpo. Esse período também foi marcante na indumentária feminina, pois o vestuário íntimo era composto por sete camadas de roupas: uma camisola de linho; calções e cintas; um corpete; as armações e as anáguas; a crinolina; as anáguas sobre a crinolina; e o vestido (MEDEIROS, 2010).

Em 1840, surgiram também as calças com abertura frontal para facilitar o uso do banheiro. Para o público masculino, em 1860, foi criada a San Pantaleone, uma cueca que cobria as nádegas e que, posteriormente, evoluiu para a Kinkeboxer. Em 1851, surgiram as máquinas de costura e, em 1860, iniciou-se o processo de pronta-entrega, responsável pela venda de peças já confeccionadas que eram mantidas em estoque. Em 1889, surgiu a primeira empresa especializada em etiquetas para identificação de peças, a J&J Cash Ltd., sediada em Coventry, condado do Reino Unido. Era uma empresa tradicional de tecelagem e comércio de faixas e fitas que passou a se dedicar à confecção de peças em algodão para roupas íntimas e apliques. Posteriormente, entrou no ramo de etiquetas para identificação personalizada de produtos, encomendadas em armarinhos e lojas de tecidos (HAWTHORNE, 2009).

Em 1870, as crinolinas caíram em desuso e surgiram as anquinhas, dando continuidade à silhueta feminina ao manter os quadris proeminentes. Já em 1880 inicia-se o culto à saúde, refletido nas peças com cores vibrantes, como os espartilhos usados por cima das roupas, fazendo as cinturas chegarem a até 48 cm. Em 1900, as meias surgiram no vestuário, sempre bordadas, e, na década de 1920, tornaram-se curtas devido às roupas esportivas da época. Devido à necessidade de maior mobilidade para andar de bicicleta, as peças evoluíram para bermudas folgadas ou saias-calça (HAWTHORNE, 2009).

Adentrando o século XX, inaugurou-se a era dos corpetes de algodão em virtude da prática esportiva, abrindo caminho para o surgimento da peça que viria a ser o sutiã na década de 1980, proporcionando leveza e praticidade, sem a necessidade do auxílio de terceiros para vesti-lo. Em 1901, ocorreu um acontecimento marcante na história: o falecimento da rainha Vitória. Seu filho Eduardo, que assumiu o poder, apreciava silhuetas femininas e reintroduziu, para a nobreza, a moda das ceroulas e camisolas com espartilhos. Em 1911, essa opulência chegou ao fim, dando origem às saias justas, com modelagem ajustada e comprimento até o tornozelo (HAWTHORNE, 2009).

No período pós-Primeira Guerra Mundial, as peças de roupa íntima passaram por uma simplificação, reforçando o abandono do espartilho e introduzindo uma mistura de peças inspiradoras: mais coloridas ou em tons de pele; menores para dançar o tango; camisolas envelope, precursoras do baby doll; e sutiãs (MEDEIROS, 2010). Em 1915, a camiseta íntima foi substituída por uma faixa presa por três botões, fechando o gancho da calça. Já em 1920, com as melindrosas dançando o Charleston em vestidos curtos, surgiu a roupa íntima usada como conjunto de duas peças, proporcionando maior confiança e liberdade para a dança (HAWTHORNE, 2009).

Em 1930, substituindo o algodão como principal matéria-prima, surgem as calcinhas de chiffon e seda, com delicados bordados ao estilo francês, popularizadas pelas atrizes hollywoodianas que exibiam suas silhuetas curvilíneas. As peças sofreram alterações na modelagem, com cortes mais enviesados, trazendo maior leveza e conforto. Surgiram também peças especiais para as mulheres que trabalhavam na guerra, além das confeccionadas em rayon, que substituíram a seda no final da referida década (MEDEIROS, 2010).

Em 1940, período de guerra no qual havia restrições para a compra de tecidos, utilizavam-se como matéria-prima sacos de arroz, algodão, farinha e açúcar. Com a recessão, a criatividade trouxe inovação para o setor com o uso de nylon dos paraquedas, conferindo leveza e durabilidade, sem a necessidade de passar a ferro. No período pós-guerra, essas peças foram remendadas, tricotadas e reaproveitadas ao máximo devido à escassez de tecidos (HAWTHORNE, 2009). Também surgiram peças mais vistosas e menores como referência ao Moulin Rouge, com as anáguas rendadas chamadas de francesas (MEDEIROS, 2010).

Em 1950, estilistas resgataram a feminilidade com peças volumosas, exibindo tecidos que haviam sido escassos durante a guerra. A Dior conquistou o mundo da moda com o New Look, sendo a silhueta feminina comparada a uma rosa (MEDEIROS, 2010). Nesse momento, a lingerie acompanhou a inserção das sungas no vestuário feminino (HAWTHORNE, 2009). Na década de 1960, as minissaias foram introduzidas por Mary Quant e se tornaram uma verdadeira sensação. Dessa forma, a lingerie foi adaptada, incluindo as cintas-liga, o que proporcionou maior liberdade e conforto (MEDEIROS, 2010). Com o surgimento dos tecidos strech, peças menores surgiram, como as calcinhas tipo biquíni. Na década de 1970, os sutiãs adquiriram novos significados além do vestuário, associando-se a manifestações contra as restrições impostas às mulheres (HAWTHORNE, 2009).

Na década de 1980, as roupas íntimas femininas eram confeccionadas em tons pastéis para combinar com os tailleurs de ombros marcados. Os homens tornaram-se mais exigentes, optando pelas elegantes modelagens das cuecas europeias (SCOTT, 2013). O período foi caracterizado pela euforia na busca pelo bem-estar e pela prática constante de exercícios físicos, ocasião em que o body surgiu como peça única, utilizada desde as aulas de aeróbica até as saídas para os coquetéis. Além disso, ocorreu o fenômeno Madonna, popularizando a lingerie através do lançamento de seus videoclipes (SENAI, 2014).

Na década de 1990, destaca-se a simplicidade, com lingerie branca, de algodão e desenvolvida para ser usada com jeans. Quem não se recorda das campanhas publicitárias da Calvin Klein, nas quais os modelos apareciam trajando somente lingerie e jeans (SENAI, 2014)? Há uma crescente conscientização a respeito das questões ambientais e da busca por peças confortáveis e inovadoras, como a da Gossard, que reinventou o sutiã com o Ultra Bra. Posteriormente, em 1995, a famosa marca de lingerie Victoria’s Secret inovou com um desfile de modelos representadas como anjos (SCOTT, 2013).

A partir do ano 2000, o modelo push-up introduziu um novo panorama para os sutiãs, transformando-os em autênticas obras-primas da engenharia de modelagem. Esses produtos passaram a ser desenvolvidos com recursos tecnológicos de ponta, incluindo a utilização de realidade virtual em seu processo de criação. De acordo com o SENAI (2014, p. 65), observa-se que, a partir desse momento, a busca por lingerie será realizada cada vez mais por pessoas que procuram “peças segmentadas capazes de promover a valorização de suas próprias formas”. As modelagens inovadoras e as tecnologias avançadas aperfeiçoam constantemente a lingerie.

A partir de 2020, a lingerie passou a estar alinhada às tendências de sustentabilidade e tecnologia, com matérias-primas mais sofisticadas e a incorporação de nanotecnologia, como cápsulas contendo hidratantes, agentes antibacterianos, analgésicos ou repelentes. Desde então, utilizam-se equipamentos de modelagem 3D e softwares de encaixe, que evitam o desperdício de matéria-prima. As peças de lingerie tornaram-se relevantes no universo da moda, que agora passa a exibir a roupa íntima como parte do visual exterior.

A síntese apresentada numa perspectiva temporal sobre peças pequenas, porém historicamente significativas, como objetos funcionais, de desejo, de negócio, de valores e de histórias, justifica a proposta deste estudo quanto à investigação das representações sociais da lingerie em diferentes grupos no contexto de Nova Friburgo.

3 REFERENCIAL TEÓRICO- METODOLÓGICO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Serge Moscovici, ao elaborar a Teoria das Representações Sociais (TRS), evidenciou a necessidade de a psicologia social se constituir como uma ciência das interações, tendo como foco principal de seu interesse as representações sociais. Segundo o autor, o objeto de estudo primordial da psicologia social deveria ser caracterizado pelas representações sociais, um conceito inovador e robusto que não se originava de outras ciências, possuindo linguagem própria e coerente como resultado da ação e das interações humanas. Essa proposta de Moscovici acrescentou à psicologia social a inclusão de estudos com maior frequência de métodos qualitativos, além dos usuais quantitativos, clássicos na psicologia social da época. Poderiam ser abordados, ainda, pontos relevantes como a comunicação, a relação entre atitudes e preconceito, e a importância do senso comum, por se tratar de temas relacionados à ciência do comportamento (PALMONARI, 2009).

As sociedades apresentam dois tipos de pensamento: o reificado, explicado pela ciência, e o consensual, pertencente ao senso comum. Ambos se relacionam em um sistema cognitivo por meio do qual os indivíduos procuram compreender e processar informações na construção do conhecimento (MOSCOVICI, 2012). Em sua obra La Psychanalyse, son image et son public (1961), traduzida inicialmente como “A Representação Social da Psicanálise” (1978) e, posteriormente, como “A Psicanálise, sua Imagem e seu Público” (2012), Moscovici apresentou a fundamentação teórica das representações sociais por meio de um estudo que elucida a inter-relação entre o objeto e os sujeitos que constroem e apreendem o conhecimento sobre algo novo. Essa construção é dinâmica e se dá por prévios conhecimentos que os sujeitos utilizam para deixar o novo se tornar familiar (MOSCOVICI, 1978/2012).

A teoria contempla dois processos formadores das representações sociais, expressando suas características e apresentando um conjunto de ferramentas para apoiar processualmente os estudos dos mecanismos sociais e psicológicos na construção do conhecimento, denominados “objetivação” e “ancoragem” (ALVES-MAZZOTTI, 1994). Esses dois processos são fundamentais para a formação de qualquer representação, proporcionando um consenso nos grupos sociais, constantemente confrontados com as rápidas mudanças de cenários na contemporaneidade (MOSCOVICI, 2004).

A objetivação é o processo que visa concretizar conceitos abstratos, podendo ser descrita em três fases: i) a construção seletiva, pela qual os indivíduos se apropriam do conhecimento por meio de experiências prévias, construindo sua realidade; ii) a esquematização estruturante, através da qual o indivíduo recorre aos dados preexistentes para otimizar sua compreensão; e iii) a naturalização, segundo a qual o abstrato se torna concreto, cristalizando uma nova realidade. É na esquematização estruturante que surge o núcleo figurativo, uma estrutura imagética que representa o resultado da organização de associações realizada pelos sujeitos (ALVES-MAZZOTTI, 1994, apud JODELET, 1990). O núcleo figurativo é a estrutura que representa, de forma esquemática, a coordenação dos discursos dos grupos e suas inter-relações (LIMA; CAMPOS, 2020).

De acordo com Mazzotti (2008, 2003, 2002), o denominado núcleo, esquema ou modelo figurativo constitui a essência que sintetiza o significado da representação social acerca de um objeto específico. Segundo o autor, o núcleo figurativo pode ser identificado através de figuras de linguagem e pensamento. Mazzotti (2002) afirma ainda que a identificação das metáforas é primordial para a apreensão do núcleo figurativo das representações sociais, visto que elas condensam e articulam significados de maneira eficaz. Portanto, os núcleos das representações sociais atuam, visto que estabelecem e gerenciam os predicados e lugares-comuns.

A ancoragem é o processo que identifica o enraizamento social, ou seja, como se atribui sentido ao objeto por meio de um sistema preexistente de conhecimentos, estando intrinsecamente ligada à objetivação. É por meio dela que relacionamos os novos fatos aos conceitos já adquiridos, buscando classificar essa novidade e torná-la familiar (JODELET, 2001).

Esse processo, que evidencia as relações entre o indivíduo e os membros de seu grupo, ocorre por meio de seus valores e crenças, os quais, por sua vez, expressam identidades e representações. A ancoragem reafirma a identidade e o sentimento de pertencimento do indivíduo. Denise Jodelet (1990) apresenta as três funções da ancoragem: i) a função cognitiva de integração da novidade; ii) a função de interpretação da realidade; e iii) a função de orientação das condutas e das relações sociais (ALVES-MAZZOTTI, 1994 apud JODELET, 1990).

A partir da década de 1980, a teoria estabeleceu conexões com outras disciplinas, em virtude das novas abordagens teóricas que ampliaram suas contribuições e impulsionaram seu desenvolvimento (SÁ, 1998). O extenso trabalho de Jodelet no desenvolvimento da teoria, com sua obra “Loucuras e Representações Sociais” (2005) publicada no Brasil, explorou e divulgou amplamente as potencialidades das representações sociais.

Pode-se afirmar que a TRS possui um caráter contemporâneo, pois, além de estar em constante evolução com o desenvolvimento de novas abordagens, é amplamente utilizada por diversas áreas do conhecimento. É nessa perspectiva de representar o fenômeno, por meio de expressões originadas de posições sociais, conhecimentos, crenças, produções coletivas e sistemas de formação simbólicos, que se compreende a atuação das representações sociais em diversas áreas do conhecimento (JODELET, 2016).

No âmbito dos estudos de moda, pesquisas foram realizadas com base na abordagem teórico-metodológica das representações sociais, como a análise das campanhas publicitárias da empresa Benetton (DE ROSA, 2001).

Destacam-se, ainda, as seguintes pesquisas: de Borges (2018), com a “Representação Social de Ser Profissional na Área da Moda por Alunos, Professores e Empresários no Rio de Janeiro, São Paulo e Nova York”; de Rodrigues (2018), sobre as “Representações Sociais da Formação do Graduado em Moda por Empresários do Setor do Rio de Janeiro”; e de Torres e Lima (2015) acerca das “Representações Sociais de Alunos e Professores do Curso de Moda a respeito do Mercado Consumidor”.

A lingerie ainda é um tema recente nos estudos de representações sociais, sem trabalhos e pesquisas publicados até o momento. Ampliar referências que refletem contribuições para seu setor de atuação reforça a necessidade de fortalecer estudos de representações na temática.

4 DA PESQUISA

No site do Observatório de APLs do Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), há dois APLs de moda íntima registrados em âmbito nacional: Freicheirinha, no Ceará, com grau classificado com o indicador de eficiência “C”, ainda em desenvolvimento, e Nova Friburgo, classificado com grau “A”. O APL reforça a seleção da localidade, possibilitando a observação de um campo estruturado no objeto. Em meio ao ambiente de rede deste APL, localiza-se na cidade uma escola especializada no ensino e aprendizagem do segmento de lingerie, o SENAI Espaço da Moda, campo da presente pesquisa.

Nova Friburgo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2019), é um município do estado do Rio de Janeiro com população de aproximadamente 200 mil habitantes. Suas principais atividades econômicas baseiam-se na metalurgia, nas indústrias têxteis, na confecção de lingerie, na oleicultura e no turismo. A cidade se destaca por possuir a maior concentração de empresas do segmento de lingerie. Segundo Rangel e Paula (2012, p. 189) apud Lemos, Albagli e Szapiro (2004):

O setor têxtil e de confecções é composto basicamente por micro e pequenas empresas, com ênfase em confecção de moda íntima (…). As vendas para o mercado interno são feitas através de canais variados: lojas próprias, encomenda de grandes varejistas e, principalmente, atravessadores e ‘sacoleiras’, os quais respondem por cerca 70% do escoamento da produção.

Quanto aos sujeitos da pesquisa, participaram das entrevistas semiestruturadas individuais: i) dez alunas indicadas pela escola SENAI Espaço da Moda; ii) dez instrutores e colaboradores do SENAI Espaço da Moda, incluindo coordenador, bibliotecário, analista técnico e pedagogo; e iii) dez empresários do setor de moda íntima da região, representantes de empresas de pequeno, médio e grande porte.

A entrevista, de acordo com Bogdan e Biklen (1994, p. 134), “é empregada para coletar dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, possibilitando ao pesquisador desenvolver intuitivamente uma concepção sobre como os indivíduos interpretam aspectos do mundo”. O roteiro de entrevistas incluiu uma questão de indução de metáforas (ANDRADE, 2006), fundamental para a análise dos dados obtidos e priorizada no artigo: “Se lingerie pudesse ser outra coisa, por exemplo, um animal, um vegetal ou um mineral, o que seria e por quê?”.

O interesse pela compreensão do simbólico, dos fenômenos e da orientação das práticas dos indivíduos foi um campo aberto pela abordagem qualitativa e pelas teorias construtivistas que, ao longo da história da ciência, propiciaram o crescimento de estudos das representações sociais, estabelecendo um novo paradigma nas pesquisas de psicologia social (ALVES-MAZZOTTI, 1994). Portanto, as pesquisas que empregam a abordagem qualitativa das representações sociais são essenciais para compreender como os indivíduos realizam suas ações com base em suas crenças, sentimentos e valores, atribuindo um significado que precisa ser revelado (ALVES-MAZZOTTI e GEWANDSZNAJDER, 2002).

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Para a análise do material obtido por meio das entrevistas, optou-se pela técnica de análise de conteúdo. Entender o que os grupos conhecem e assimilaram sobre lingerie, considerando suas vivências, convicções e valores individuais, pode ser compreendido através de interações comunicativas. De acordo com Bardin (1977), essa técnica nos permite compreender como essas negociações sociais ocorrem.

No material, foram identificados quatro eixos temáticos nos três grupos: (i) a família e seu contexto em relação ao objeto; (ii) a escola SENAI Espaço da Moda e seu papel nessa relação; (iii) o trabalho como prática do objeto de pesquisa; e (iv) a cidade enquanto polo de lingerie. A seguir, serão apresentados e analisados os resultados dos três grupos separadamente, buscando-se estabelecer relações entre os eixos temáticos, as metáforas expressas pelos participantes e suas respectivas justificativas.

Grupo 1 - Alunas

As metáforas, em consonância com a análise de conteúdo das entrevistas, revelam a lingerie como uma fonte promissora de trabalho, gerando recursos e renda. A maioria fez referência à “água”, por ser esta uma fonte vital de sobrevivência. Para esse grupo, sob a influência familiar e o contexto de sua inserção nos estudos e futura atuação no polo, o que norteia as explicações sobre a lingerie é sua associação direta com um trabalho que proporcionará o sustento. O Quadro 1 apresenta as metáforas desse grupo:

Quadro 1. Alunas: Se lingerie pudesse ser algo diferente, como um animal, um vegetal ou um mineral, o que seria e por quê?

METÁFORA

JUSTIFICATIVA

Água

Seria a água porque sem ela a gente não é nada e hoje, se você tirasse a lingerie de Nova Friburgo, a gente não iria sobreviver.

Água

Água, porque você precisa dela para sobreviver e acho que os moradores aqui de Friburgo precisam da lingerie porque já virou aquilo ali, você segue uma profissão e você gosta daquilo, você respira aquilo, a gente precisa da lingerie para sobreviver, do polo em si.

Água

Uma cachoeira, porque é vida e possui um curso natural.

Água

Mineral, como a água, porque é vida (...).

Água

Nossa! Ela seria um mineral, água que a gente precisa em tempo integral.

Carne

Às vezes eu tento viver sem, tento evitar [...] Na minha parte profissional, não no dia a dia, eu tento evitar às vezes, tento deixar pra lá: “ah, não quero esse trabalho...” Mas não dá, você acaba fazendo, não tem como.

Gato

[...] é completamente independente, porém ele é completamente leal a seu dono [...] Ele sente o que a pessoa sente, o que o dono dele está sentindo.

Bichinho de Estimação

Ela poderia ser o meu bichinho de estimação, que está ali sempre comigo.

Minério

Um mineral, porque o mineral é muito importante para a movimentação da economia, que precisa do minério. Eu acredito que a lingerie também é importante porque quem vive sem uma lingerie?

Diamante

[...] ela pode começar básica e aí entra na minha área de modelagem. A gente parte de uma base e a gente lapida aquilo no infinito. O céu é o limite e tem o sentido conotativo, figurado. Ela leva muitas pessoas de um lugar zero. As pessoas começam do zero e conseguem chegar no máximo que elas forem capazes.

Fonte: Desenvolvido pela pesquisadora.

Retomando as falas das entrevistas com as alunas, exemplos e histórias marcaram o vínculo familiar com a lingerie como fonte de renda: “Então, a minha mãe é costureira, a minha avó era costureira, como a maioria das mulheres aqui em Friburgo, e eu cresci nesse meio de costura, de tecidos e tudo o mais (S2, 2021)”.

A lingerie, intrinsecamente vista como fonte de renda, motivou as alunas a buscarem conhecimentos técnicos para seu desenvolvimento profissional. Portanto, a escola foi um ambiente inspirador que se somou às experiências já existentes, tendo valor pelo crescimento profissional que proporciona, como afirma S5 (2021): “é uma porta de entrada pra você entrar no mercado de trabalho. Você ter um diploma do SENAI tem muito peso”.

Esse polo é o ambiente que abrange a história, os personagens e as indústrias relacionados ao setor, influenciando positivamente o segmento de lingerie. Nova Friburgo é um importante polo de trabalho, sendo um local onde muitos almejam atuar ou já atuam, conforme S10 (2021): “(...) acredito que mais da metade da população feminina de Friburgo trabalhe em confecção ou trabalhe em comércio de lingerie”.

Os resultados obtidos com esse grupo expressam, como hipótese interpretativa, o núcleo figurativo da representação social de lingerie, conforme ilustrado na Figura 1.

Figura 1. Núcleo figurativo da representação social de lingerie pelas

alunas do SENAI Espaço da Moda – uma hipótese interpretativa.

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Desenvolvido pela pesquisadora.

Na TRS, o núcleo figurativo integra o processo de objetivação, com forte caráter imagético. A análise de conteúdo, associada às metáforas, revela que o “trabalho” é o termo central que estrutura os discursos desse grupo, estando intrinsecamente ligado à influência familiar, ao contexto urbano e à subsistência por meio da indústria de lingerie.

Grupo 2 – Colaboradores e Instrutores

Entre colaboradores e instrutores, o que predominou nas justificativas das metáforas foi a noção de liberdade, que pode ser sintetizada no termo “asas”. Em consonância com os depoimentos nas entrevistas, a lingerie está associada à criatividade no trabalho, permitindo que se faça o que se aprecia e se desenvolva profissionalmente. O Quadro 2 apresenta as metáforas desse grupo:

Quadro 2. Colaboradores e instrutores: Se lingerie pudesse ser algo diferente, como um animal, um vegetal ou um mineral, o que seria e por quê?

METÁFORA

JUSTIFICATIVA

Pássaro

Passarinho, porque ela está muito perto. Pode ser íntima, mas também pode ser sedutora, daqueles passarinhos que a gente nem consegue chegar perto que ele voa.

Pássaro

Seria um pássaro porque poderia voar. Você vê que lingerie tem em todos os lugares, todo mundo usa uma lingerie, ou uma lingerie de marca, ou uma de fundo de quintal. Seria um pássaro. O pássaro vai de uma cidade pra outra, visita todos, né?

Pássaro

Eu adoro passarinho. Eu não quero ver um passarinho preso. Eu acho que o passarinho é a coisa mais linda que tem [...] é aquilo, com a lingerie, você pode voar, dar asas à imaginação (risos).

Pássaro

Quando a gente pensa que não vai existir mais nenhuma ideia, a gente ressurge, vem um monte de ideia, uma coisa chama outra e aí uma peça que você fez há muito tempo você relembra dela, dá uma repaginada e muda uma história, traz para outro contexto. Ideia nunca falta, então você voa, viaja muito na imaginação. Eu acho que seria um pássaro nesse sentido.

Pavão

Seria um pássaro, porque ele é bem elegante. Eu gosto bastante de pavões pela elegância, sempre “em pezinho”.

METÁFORA

JUSTIFICATIVA

Pavão

Um animal com curvas [...] Um pavão que é enfeitado. Um pavão é um animal enfeitado e pode brilhar.

Bicho-da-seda

A gente logo pensa em um animal. Eu acho que ela seria um bicho-da-seda ou lagarta. Eu acho que pelos processos e pelo trabalho que dá pra ser feito. Que depois pode voar.

Aguia

Talvez uma águia? Porque aí a gente se sente mais empoderada e mais livre.

Planta

As plantas do meu jardim, pelo cuidado que a gente precisa ter.

Água

Em Friburgo a gente depende da lingerie como da água. Ela faz parte do nosso dia a dia, da nossa vida desde quando a gente se entende por gente. Se ela não é o seu ganha pão, ela é o ganha pão de um vizinho, o ganha pão de algum familiar, é questão de sobrevivência.

Fonte: Desenvolvido pela pesquisadora.

Esse grupo também manifesta influências familiares no interesse por lingerie. Por exemplo, “Minha sogra mesmo é fruto da Filó. Ela tem mais duas ou três irmãs que lidam com lingerie e todas elas passaram pela Filó” (S22 – 2021). A escola, ambiente profissional desse grupo, é um ponto de referência. Os participantes manifestaram orgulho em atuar na instituição e de contribuir para a formação dos alunos. S21 (2021) afirma: “Essas pessoas não teriam tanta empregabilidade quanto têm hoje. Acho que o nosso papel é fundamental, não só de passar o conhecimento, mas de empregar mesmo”.

As influências profissionais, o ambiente favorável e a escola como campo de atuação reforçam a conexão da lingerie com a liberdade:

É algo a mais. É aquela coisa: você chegou em casa depois de um dia de trabalho de uma às dez, aí tem aquela lingerie que você coloca pra o trabalho e tem aquela lingerie que você coloca pra sair, então tem a história: ‘vou pegar aquela lingerie ali que hoje!!’. Tem aquela também que: ‘hoje eu não tô muito legal, é essa aqui que vai me dar um... Up’. S25 (2021).

Retomando a Teoria das Representações Sociais (TRS), como feito para o Grupo 1, a Figura 2 ilustra, como hipótese interpretativa, o núcleo figurativo da representação social de lingerie para colaboradores e instrutores, com base na análise das entrevistas articuladas às metáforas.

Figura 2. Núcleo figurativo da representação social de lingerie pelos instrutores/colaboradores do SENAI Espaço da Moda – uma hipótese

interpretativa.

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Desenvolvido pela pesquisadora.

A Figura 2 exibe o termo “asas” coordenando as explicações do Grupo 2 acerca de lingerie, associado a “escola”, “trabalho” e “corpo”. Esses elementos possibilitam familiarização com o objeto de representação. De acordo com Moscovici (1998), os aspectos selecionados no processo de objetivação são condensados em um núcleo figurativo e imagético. Dessa forma, os grupos sociais constroem coletivamente, em torno do objeto, suas próprias redes de significados.

Grupo 3 – Empresários

Entre os três grupos, o dos empresários foi aquele em que os significados das metáforas se mostraram mais dispersos, o que demandou uma busca maior por termos organizadores das falas nas entrevistas. O Quadro 3 apresenta as metáforas do grupo, nas quais a solidez proporcionada pela economia da cidade em torno do setor será mais enfatizada (metáfora da “rocha”), devido à intensidade com que esse tema foi abordado nas entrevistas. Nesse contexto, a lingerie foi enfatizada como parte do “DNA” da empresa, algo intrínseco, que “vem de berço”, ou seja, está enraizado na tradição familiar.

Quadro 3. Empresários: Se lingerie pudesse ser algo diferente, como um animal, um vegetal ou um mineral, o que seria e por quê?

METÁFORA

JUSTIFICATIVA

Pedra

[...] porque é uma coisa que a pessoa consegue transformar. Ela consegue ter um retorno, podendo até ser preciosa.

Pedra

Porque ela consolida uma coisa bonita.

Rocha

[...] rocha grande e imponente, até porque eu gosto muito também de subir em pedra de altura porque isso é você tentar enxergar de cima, sabe? Eu acho que a lingerie proporciona isso.

Rocha ou ouro

Rocha ou ouro. Porque ela está enraizada e tem um valor bem grande na nossa cidade.

Mineral

O mineral me encanta porque tem uma estrutura sólida, rigidez, e, ao mesmo tempo, a oportunidade de transformação e o valor que aquilo pode ter se for lapidado.

Tigreza

Seria mais um pacote de presente, porque guarda alguma coisa preciosa [...] Tem a questão meio animal, porque ali representa a feminilidade da mulher e a importância que ela pode ser.

Onça

Seria uma onça feroz que ataca e atinge tudo.

Animal de estimação

Eu vejo uma coisa de conforto, aconchegante, que te abraça [...] Um bichinho que te abraça, um gatinho pequenininho, um cachorrinho. Eu vejo conforto.

Gato

Tem que ser confortável. Eu tenho horror de sair com uma calcinha que esteja me machucando ou com um sutiã que esteja me apertando [...] mesmo que seja bonito, porque o bonito nem sempre é confortável.

Flor

Seria beleza, seria intimidade, seria um produto que pudesse passar isso, seria sedução, seria autoestima, seria bem-estar.

Fonte: Desenvolvido pela pesquisadora.

No Grupo 3, os depoimentos dos entrevistados sobre lingerie envolvem a convivência com familiares e funcionários da indústria local. Alguns expressaram que foram compelidos ou incentivados a ingressar nos negócios familiares. Surge também um sentimento de gratidão pelo que essa indústria proporciona e respeito pela solidez do setor na região. Nesse contexto, a indústria de lingerie, transmitida de geração em geração, foi considerada por alguns entrevistados como a “essência” da cidade, proporcionando estabilidade financeira às famílias e oportunidades de crescimento profissional.

Os empresários também ressaltaram a importância da escola como um espaço para a busca de informações qualificadas, apoiando o desenvolvimento dos negócios e o ambiente de trabalho, além de proporcionar crescimento pessoal e profissional: ”As pessoas aqui foram começando sem dinheiro, sem expertise. Foi muito bonita a forma como a cidade foi se especializando, ficando mais profissional.” (S11, 2021).

Quanto ao polo industrial, é possível notar a relevância da rede de empresários para a economia, intrínseca à história da cidade. S12 (2021) afirma: “Os imigrantes vieram pra cá e começaram a fazer. Está no sangue do friburguense a lingerie”. Já para S15 (2021), “Friburgo respira moda íntima o tempo inteiro. Todos têm uma confecção, todos trabalham com algo relacionado à moda íntima, evidenciando a lingerie como o DNA da cidade e como base sólida e firme na construção dos valores sobre o tema.

Retomando a TRS, a Figura 3 apresenta o núcleo figurativo da representação social de lingerie para os empresários como uma hipótese interpretativa.

Figura 3. Núcleo figurativo da representação social de lingerie pelos empresários do setor na região de Nova Friburgo – uma hipótese interpretativa.

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Desenvolvido pela pesquisadora.

A Figura 3 demonstra que o “DNA” condensa e organiza as declarações do Grupo 3 sobre lingerie como algo sólido, transmitido de geração em geração, proporcionando estabilidade no trabalho e para as famílias. Os elementos da objetivação foram assim expostos no esquema acima. Trata-se de uma estrutura imagética como forma de apresentar o resultado da organização de associações realizada pelos sujeitos (ALVES-MAZZOTTI, 2008).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das contribuições do estudo na perspectiva psicossocial foi demonstrar que as construções simbólicas podem variar entre grupos, mesmo quando situados em contextos semelhantes. Os participantes do estudo revelaram opiniões, conhecimentos, construções e ressignificações acerca da lingerie que podem convergir ou divergir entre si. Para as alunas, o termo que organiza os discursos é o “trabalho”, enquanto para os instrutores e colaboradores são “asas” e, para os empresários, o “DNA”. Em outras palavras, nos estudos de representações sociais, diversas interpretações sobre o objeto podem ser elaboradas com base em posições sociais, experiências e relações grupais, identitárias e com o próprio objeto, ainda que elementos comuns coexistam entre os indivíduos/grupos.

A divulgação do tema em Nova Friburgo e sua compartilhamento entre os participantes da pesquisa proporcionaram a oportunidade de verificar a existência de representações desse objeto, compreendendo que é um fenômeno singular para aqueles que vivenciam a lingerie em seu dia a dia. Os resultados expressam significados construídos por diferentes grupos na cidade, e sua divulgação pode contribuir tanto para o setor do mercado de lingeries, para além do contexto local, quanto para uma abordagem psicossocial do tema em estudos acadêmicos.

A pesquisa revelou que a lingerie pode ser considerada uma forma de linguagem, baseando-se em fatos levantados sobre sua história, suas transformações, modos e formas de expressão, convicções e desafios ao longo dos anos no que diz respeito à representação do feminino e do masculino, articulando as diversas perspectivas dos indivíduos entrevistados. A lingerie tornou-se objeto de estudo nesta pesquisa por proporcionar valores para além do simples vestuário, funcionando como oportunidade de uma carreira profissional ou de um negócio de família e representando a continuidade de uma tradição. Essa apropriação dos sujeitos de Nova Friburgo situa o tema como elemento articulador de mensagens em torno de um objeto ligado ao universo econômico, com ressignificação por gerações de familiares. É importante destacar que os comentários sobre lingerie como item de vestuário associado ao gênero não foram os mais recorrentes. As recorrências foram sobre a lingerie como oportunidade de geração de renda, formação de carreira, manutenção dos negócios familiares e, pelo contexto da cidade, importante polo industrial de moda íntima.

O conjunto dos resultados demonstrou que a lingerie é um tema emergente no campo das representações sociais e necessita de estudos mais aprofundados. Para pesquisas dessa natureza, procurou-se demonstrar a relevância histórica e sociocultural do contexto no qual se insere o objeto de representação, neste caso, o município de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Como fundamentação teórico-metodológica, a TRS reforçou sua característica de permitir uma variedade de estudos, principalmente sobre objetos contemporâneos com impacto na sociedade. Dessa forma, espera-se ter contribuído para reflexões acerca das representações sociais da lingerie em um contexto específico, suscitando novas pesquisas que possam agregar conhecimentos tanto acadêmicos quanto mercadológicos no âmbito da moda.

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