Moda e Biopoder: A Nudez nas Performances de Vanessa Beecroft
(1996-2003)
Ana Cleia Christovam Hoffman
Doutora em Educação, Universidade Feevale / anahoffmann@feevale.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5514-9545 / Lattes: https://lattes.cnpq.br/8380090076778971
Enviado: 22/05/2023 // Aceito: 19/03/2024
Moda e biopoder: a nudez nas performances de Vanessa Beecroft
(1996-2003)
RESUMO
O artigo apresenta a discussão sobre moda e biopoder por meio da nudez presente nas performances da artista italiana Vanessa Beecroft para grandes marcas de moda entre 1996 e 2003 via revisão bibliográfica integrativa. Questiona de que maneira a moda se projeta no corpo e excede a matéria e o vestido no contemporâneo. O corpo ocupa papel central dentro das inúmeras representações visuais veiculadas na mídia. Parâmetros classificam e regulam os corpos. Modelos são idealizados e propagados em páginas de revistas, jornais, nas redes sociais etc. Sabe-se que o biopoder regula a vida e isto significa regular as práticas discursivas sobre o corpo. Como resultados, compreende-se que o corpo documenta relações de poder, que o constituem dentro de discursos que o regulam, ora produzindo subjetividades transitórias, ora dessubjetivando o corpo, permeando as práticas disciplinares e os saberes que dão forma e o normatizam.
Palavras-chave: Moda; Nudez; Vanessa Beecroft.
Fashion and biopower: nudity in Vanessa Beecroft Performances
ABSTRACT
The article presents a discussion on fashion and biopower, through the nudity present in the performances of Italian artist Vanessa Beecroft for major fashion brands between 1996 and 2003 via an integrative bibliographical review. It questions how does fashion project itself onto the body and exceed matter and dress in the contemporary world. The body occupies a central role within the countless visual representations conveyed in the media. Parameters classify and regulate bodies. Models are idealized and propagated in magazines, newspapers, on social networks, etc. Biopower is known to regulate life and this means regulating discursive practices about the body. As a result, it is understood that the body documents power relations, which constitute it within discourses that regulate it, sometimes producing transitory subjectivities, sometimes desubjectivizing the body, permeating disciplinary practices and the knowledge that shapes and standardizes it.
Keywords: Fashion; Nudity; Vanessa Beecroft.
Moda y biopoder: la desnudez en las performances de Vanessa Beecroft
RESUMEN
El artículo presenta una discusión sobre moda y biopoder, a través de la desnudez presente en las performances de la artista italiana Vanessa Beecroft para grandes marcas de moda entre 1996 y 2003, mediante una revisión bibliográfica integradora. Pregunta cómo se proyecta la moda sobre el cuerpo y supera la materia y el vestido en el mundo contemporâneo. El cuerpo ocupa un lugar central en las innumerables representaciones visuales que transmiten los medios de comunicación. Los parámetros clasifican y regulan los cuerpos. Los modelos se idealizan y propagan en las páginas de revistas, periódicos, redes sociales, etc. Se sabe que el biopoder regula la vida y esto significa regular las prácticas discursivas sobre el cuerpo. Los resultados muestran que el cuerpo documenta relaciones de poder, que lo constituyen dentro de discursos que lo regulan, a veces produciendo subjetividades transitorias, a veces desubjetivando el cuerpo, permeando las prácticas disciplinares y los saberes que lo configuran y normalizan.
Palabras clave: Moda; Desnudez; Vanessa Beecroft.
1. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se desenvolve nos campos da moda, arte, filosofia e cultura visual. Este artigo tem como foco principal a discussão sobre moda e biopoder. O corpo nesta pesquisa é concebido não apenas como uma estrutura fisiológica, mas como materialidade discursiva, que não pode ser vista fora dos efeitos sociais, históricos e ideológicos. Trata-se, portanto, de formações discursivas. A expressão foucaultiana “rachar as coisas, rachar as palavras” (Deleuze, 1992, p. 113) é usada para analisar os estados mistos, os agenciamentos e o que Michel Foucault chamava de dispositivos. Desembaraçar o liame significava criar suas próprias rachaduras (ou dobras). Por isso, era necessário “pegar as coisas onde elas crescem: pelo meio” (Deleuze, 1992, p. 109), ainda que, paradoxalmente, este meio se situasse na borda ou na superfície das formações históricas. Assim, a pesquisa não visa criar categorias ou classificações, mas sim compreender como as camadas subjetivas se entrelaçam e se fundem ao abordar o tema em questão.
Neste bordejar, quando transposto para o campo da moda, ao “rachar as palavras”, questiona-se de que maneira a moda se projeta no corpo e transcende a matéria e o vestuário no contemporâneo. Por meio de uma revisão bibliográfica integrativa, este artigo analisa a nudez presente nas performances da artista italiana Vanessa Beecroft para grandes marcas de moda. Esta metodologia permite integrar o olhar do pesquisador ao referencial teórico. O aporte teórico da pesquisa inclui autores como Agamben, Bologne, Derrida e Foucault, que discutem o corpo a partir de questões filosóficas e culturais, auxiliando-nos a analisar a moda sob novas perspectivas.
Em seguida, discute-se brevemente o corpo na cultura ocidental, analisando a nudez sob a perspectiva do pudor, especialmente considerando sua importância cultural. Em seguida, o texto apresenta as performances da artista Vanessa Beecroft, cuja principal característica é trazer à tona questões relacionadas ao corpo e suas práticas.
Observa-se que o corpo desempenha um papel central nas diversas representações visuais veiculadas pela mídia, onde parâmetros específicos classificam e regulam os corpos. Assim, modelos idealizados são propagados em revistas, jornais, redes sociais e outras mídias. Esse mecanismo de captura, característico da moda, faz com que praticamente nada escape em termos sociológicos. O corpo é resultado de um conjunto de determinações que envolvem complexas formações discursivas, intrinsecamente ligadas a efeitos sociais, históricos e ideológicos. O biopoder regula a vida, o que implica regular as práticas discursivas sobre o corpo.
Como resultado, entende-se que o corpo reflete relações de poder, sendo constituído por discursos que o regulam. Esses discursos ora produzem subjetividades transitórias, ora dessubjetivam o corpo, permeando práticas disciplinares e saberes que o moldam e normatizam, muitas vezes negando os elementos subjetivos que o compõem.
2. O CORPO DA CULTURA E A CULTURA DO CORPO
O corpo, forjado pela cultura, pelas imagens, pela roupa e por tantos outros artifícios, só pode ser experimentado e compreendido a partir dos espaços políticos e das relações de poder. “São nossos corpos que indicam, por meio da fala, da postura e da aparência, nossas identidades” (Zordan & Hoffmann, 2014, p. 289). É em torno do século XVIII que o corpo começa a ser objeto de atenção. O desenvolvimento das ciências biomédicas, a descoberta da assepsia, o estabelecimento da medicina moderna (cujo domínio exclusivo é o corpo), a organização da história natural e as disciplinas higienistas que se instalam na burguesia ascendente faz com que o corpo passe a ser visto como campo de interesse nos processos de socialização (Foucault, 1987).
Embora o Iluminismo tenha modificado o lugar ocupado pelo corpo, que deixa de ser “receptáculo da alma” ou mera “carne tentadora”, o corpo, agora visto como um organismo que obedece às leis da natureza, ainda é inferiorizado pelo primado do cogito, faculdade humana considerada superior. Embora as ciências naturais tenham elevado sua importância ainda na primeira metade do século XX, o corpo continuava sendo visto como um domínio exclusivamente biológico, território dos instintos e resquício de nossa animalidade. É a psicanálise, com o estabelecimento do conceito de inconsciente, que rompe com o absolutismo do cogito, propagando a concepção da importância fundamental dos instintos em nosso funcionamento psíquico.
Controlar o corpo é controlar a própria vida. Trata-se do surgimento daquilo que Foucault (2012) chamou de biopoder: o poder exercido sobre a vida por meio de discursos dirigidos ao corpo, incluindo práticas recomendadas, medicalização, controle da natalidade e disciplinamento físico. O conceito de biopoder, desenvolvido por Foucault entre 1974 e 1979, aborda, entre outras questões, uma anátomo-política do corpo, que visa extrair dele sua força produtiva.
Além dos hábitos de higiene, o uso de determinadas vestimentas e acessórios, as exigências estéticas e a necessidade de adequação a um modelo de corpo propagado como desejável são formas muito sutis de disciplinamento às quais estamos sujeitos. A biopolítica, que age no conjunto da população, atua regulando esses comportamentos.
De um lado, da parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia de energias. Do outro, o sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que induz (Foucault, 2012, p. 158).
É nessa acepção de corpo mediado pela linguagem que Dallery (1997, p. 64) afirma: “O corpo humano é um texto, um signo, e não apenas um pedaço de matéria carnal”. O corpo, estruturado pelo discurso, é generificado (masculino ou feminino), classificado e territorializado conforme as codificações culturais vigentes. “Os significados do corpo no discurso realmente moldam a materialidade do corpo real e seus desejos complementares” (Dallery, 1997, p. 69).
A grande oferta de desejos que vivenciamos na sociedade contemporânea exerce um poder “muito mais tênue” sobre o corpo. Não há uma coerção explícita, mas uma estimulação excessiva, a ponto de sermos “seduzidos” pelas normas ditadas para o corpo. No entanto, essa incitação não exclui os assujeitamentos e o poder disciplinar sobre os corpos. Atualmente, esse poder é exercido por meio de discursos amplamente propagados pela mídia: modelos de corpos, ideais de beleza, uso de cosméticos, necessidade de exercícios físicos, ênfase na sexualidade e obrigatoriedade do orgasmo. São corpos que indicam identidades por meio da fala, da postura e da aparência.
Os corpos sofrem a época em que vivem, estão subordinados a padrões, suas desordens são descritas de acordo com a vigência de saberes típicos do contexto no qual estão inseridos. O corpo passa a ser compreendido como produto cultural, e essa ideia é muito particular na obra de Michel Foucault, na qual encontramos a análise das inscrições históricas que regulam as práticas e os discursos sobre o corpo, um corpo que é efeito do poder (Zordan; Hoffmann, 2014, p. 288).
O filósofo francês afirmou, em entrevista, que “nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal do que o exercício do poder” (1996, p. 147), acrescentando que “o poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no corpo” (1996, p. 146). No que diz respeito à época atual, a concepção foucaultiana argumenta que não é a repressão, mas sim a incitação, que leva o corpo a sujeitar-se à normatividade.
O corpo é, portanto, considerado o locus da identidade: “aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si: em consequência, esperamos que o corpo dite a identidade, sem ambiguidades nem inconstância” (Louro, 1999, p. 14). Embora a sociedade seja “treinada” para reconhecer as marcas identitárias dos sujeitos e classificá-los de acordo com as formas que eles corporificam, Louro (1999, p. 15) observa que “os corpos não são, pois, tão evidentes como usualmente pensamos. Nem as identidades não são uma decorrência direta das ’evidências’ dos corpos”.
O que define uma identidade são elementos que, mesmo quando codificados dentro de parâmetros amplamente conhecidos, podem ser alterados pelos mais diversos fatores. O próprio corpo, altamente modificável e instável, pode fornecer informações ambíguas e imprecisas sobre a identidade do indivíduo. Dessa forma, as alterações sofridas pelo corpo ao longo do tempo, os possíveis impactos que ele pode sofrer, a expressão de seus afetos e os humores que o acometem traduzem diversos significados em relação à identidade. Esta, por sua vez, também é inconstante e varia de acordo com as vicissitudes da história de cada indivíduo.
2.1 O Nu e o Vestido na Cultura Ocidental sob a Ótica do Pudor
A perspectiva de Agamben (2014, p. 91) guia esta pesquisa: “a nudez na nossa cultura é inseparável de uma assinatura teológica”. Ainda assim, em uma acepção mais ampla, é possível observar como a nudez carrega múltiplos significados ao longo de sua historiografia. O corpo nu, como recurso cênico na moda e na performance, não tem função meramente contemplativa, mas também política e erótica. A partir do seu caráter ontológico, desde a Pré-história, corpos nus são representados na arte, evidenciando sua presença e persistência em diversas culturas. Dessa forma, o nu refletiu aspectos e padrões sociais de determinadas épocas e costumes.
Sabe-se ainda que o “o corpo tornou-se um objeto de moda altamente privilegiado” (Svendsen, 2010, p. 85). A cultura juvenil e o consumo de massa trouxeram novas facetas à relação entre nudez e vestuário na moda contemporânea. Esta apresenta uma conotação jovem e um estilo de vida supostamente emancipado, oferecendo um banquete self-service de estilos à disposição, que produz subjetividades padronizadas. Em 1997, o fotógrafo americano Greg Friedler iniciou um projeto que resultou no livro Naked New York, publicado no ano seguinte. Mesquita (2004) destaca que neste trabalho, Friedler registrou pessoas de diversos estilos, tipos físicos e classes sociais, tanto vestidas quanto nuas. Ali se percebe como corpos recobertos assumem múltiplos sentidos quando submetidos a um conjunto de códigos, neste caso, os códigos do vestir.
Os modos de vestir, se adornar, de interferir sobre os corpos, são elementos que se compõem com os outros vetores, os quais os modos de ser, os modos de relação em si: as subjetividades. A subjetividade varia seus modelos dominantes, a partir da oscilação das forças que estão compondo e recompondo seus contornos (Mesquita, 2004, p. 15).
Sabe-se que corpos são vestidos e despidos para atender a determinadas culturas. Mesmo sob a ótica do adorno, a decoração corporal também atende a preceitos morais. “Por ser simultaneamente e de algum modo um objeto de notável valor, o adorno sintetiza o ter e o ser dos sujeitos” (Simmel, 2008, p. 61).
As roupas rescrevem o corpo, dão-lhe uma forma e uma expressão diferente. Isto se aplica não só ao corpo vestido, mas também ao despido – ou mais precisamente, o corpo despido está sempre também vestido (Svendsen, 2010, p. 87).
A partir dessa perspectiva, Jean-Claude Bologne, Jacques Derrida e Giorgio Agamben discorrem sobre o pudor e a nudez, refletindo sobre seus aspectos e padrões sociais em diferentes contextos. Compreendemos que, tanto na cultura cristã ocidental quanto em outras culturas, o nu constrange e, na esfera do pudor, delimita a fronteira entre o que pode ser considerado civilizado ou não. É a vergonha de se confrontar com algo que deveria permanecer oculto na escuridão.
Embora seja difícil datar a origem da nudez, a história traz apontamentos que mostram suas diferenças entre as culturas.
O homem é o único animal que não se aceita como veio ao mundo e, ao contrário dos outros seres vivos, tenta modificar sua aparência durante inúmeras etapas de sua vida. [...] Seu corpo nu e indefeso clama por cuidados (Sabino, 2011, p. 11).
Bologne (1986) estabelece critérios para distinguir entre o que é considerado civilizado e o que é visto como animalesco nas sociedades contemporâneas. Derrida (2002) explora o conceito de verdadeira nudez ao se ver despido diante de seu gato, que não reconhece aquele corpo como nu. Logo, não se pode estar tão nu quanto diante de um ser que desconhece a nudez, visto que o constrangimento é impulsionado pelo uso da razão e possui nome adequado: pudor. Assim, viver a nudez pode ser uma experiência ontológica de percepção de si mesmo e da própria finitude, variando de acordo com as culturas e a história. No que concerne a esse ponto, citam-se os atletas que competiam nus na Grécia dos tempos homéricos, os banhos públicos na França dos séculos XVI e XVII, durante o reinado de Luís XIV, e os povos indígenas no Brasil que, antes da chegada dos europeus, exibiam o corpo nu sem constrangimento.
Agamben (2014) aborda o conceito da “veste de graça”, referindo-se ao nu de Adão e Eva. A perda dessa veste representa também a perda do véu do pudor. Ao se confrontar com o nu de Derrida, seria este, para o gato, uma veste de graça, por não reconhecer, pelo uso da razão, aquele corpo como nu? Eis aqui um espelho impossível, pois animal e homem são distintos, e a nudez pressupõe a ausência de vestes. ”A nudez só se dá depois do pecado” (Peterson, 1995 apud Agamben, 2014, p. 93). Esta frase de Erik Peterson, reproduzida por Agamben (2014), coloca o leitor frente a frente com uma teologia da veste, na qual a narrativa do Gênesis apresenta Adão e Eva como protagonistas do pecado. Contudo, nessa alegoria bíblica, antes do pecado, Adão e Eva não usavam vestes humanas. Porém, não estavam nus, mas cobertos pelo que se chamava veste de graça.
É dessa veste sobrenatural que o pecado os despe, e eles, desnudados, são forçados, em primeiro lugar, a se cobrirem, confeccionando, antes, com suas mãos uma tanga de folha de figueira (Agamben, 2014, p. 92).
Ironicamente, a folha da figueira, um dos atributos simbólicos de Dioniso, realça aquilo que se pretende esconder. Nesse caso, a condição dessa veste está inevitavelmente relacionada ao pudor, uma das funções primordiais da roupa. Cabe ainda atribuir essa atividade como primordial, antecedendo até mesmo a função de proteger o corpo: “o homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. Só seria homem ao tornar-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não está mais nu” (Derrida, 2002, p. 18). Entretanto, não havia uma consciência de bem e mal. Talvez por isso, nus sem saber que estavam nus, desconheciam a condição do que era estar vestidos.
Quando Derrida (2002) aponta o constrangimento do ser humano ao se deparar nu diante de um animal de estimação, a discussão estabelecida é sobre o pudor e a preservação da decência pública. Nesse contexto, o vestuário corresponde a uma técnica para contornar esse pudor. Logo, a consciência da nudez no ser humano é também uma consciência moral, uma vez que nenhuma outra espécie animal utiliza vestimentas. O aspecto metafísico da perda da veste de graça, segundo Agamben, confronta o homem com seu corpo e, consequentemente, com a natureza humana que o desglorifica.
Historicamente, a cultura cristã manifesta a negação e o desprezo pelo corpo como uma forma de negar a própria vida. Do corpo, negam-se os instintos em prol de um ideal que, por vezes, se coloca a serviço dos preceitos cristãos. Machado (2009) demonstra que a filosofia platônica está permeada pela negação da vida. Ao tratar de uma filosofia da representação, Machado (2009, p. 41) distingue, por meio da dualidade, “essência e aparência, inteligível e sensível, original e cópia, ideia e imagem”. Essa distinção estabelece a crença em dois mundos, onde a essência se sobrepõe à aparência, e a ideia à imagem. O primeiro elemento de cada par é considerado superior, representando um modelo ideal e inatingível de perfeição, em contraste com o segundo elemento, visto como uma cópia imperfeita.
A noção de modelo não intervém para se opor ao mundo das imagens em seu conjunto, mas para selecionar as boas imagens, as que se lhe assemelham do interior, os ícones, e eliminar as más, os simulacros. Todo o platonismo é construído sobre essa vontade de expulsar os fantasmas e simulacros (Deleuze, 2006 apud Machado, 2009, p. 48).
No cristianismo, esse ideal inatingível é Deus. Tomando o pensamento platônico como origem da representação, através de sua teoria das ideias ou formas, todo o ideal cristão está relacionado a uma moral. Em Crepúsculo dos Ídolos, Friedrich Nietzsche aborda o conceito de má consciência, geradora de culpa, cujo instinto leva à punição, ao julgamento e à busca pelo culpado. Ele argumenta que “o cristianismo é uma metafísica do carrasco” (NIETZSCHE, 2008, p. 35). Afirma ainda que, a partir disso, ele próprio denominou platonismo invertido a “subversão da filosofia da representação” (Machado, 2009, p. 34) e a crítica à produção de identidade. Se na alegoria de Adão e Eva o pecado está no corpo, Nietzsche (2013, p. 234) descreve como o cristianismo enxerga o corpo:
[...] vocês mascaram a sua alma: a nudez seria escandalosa para sua alma. Ora, aprendam, portanto, porque um deus está nu! Ele não tem vergonha de nada. Ele é mais poderoso nu! [...] O corpo é algo de mal; a beleza, uma coisa do diabo: magro, horrível, faminto, negro, sujo, assim deve parecer o corpo. Infeliz dos desafortunados para quem o corpo parece mal e, a beleza, diabólica!
Esconder o “horror” da natureza humana é a grande questão da nudez, visto que essa natureza é tradicionalmente representada como nua ou como “nua corporeidade” (Agamben, 2014, p. 100). Por isso, na cultura ocidental, a nudez não pode ser vista separadamente da assinatura teológica que lhe é conferida. Isso implica discutir o que é permitido ou não ao corpo, submetendo-o a uma biopolítica e a uma moral corporal.
Na expressão “nua corporeidade” de Agamben (2014), compreende-se o abandono do corpo glorioso, do corpo cheio de graça. Assim, a nudez se estabelece como uma questão inerente à natureza humana e fonte de culpa, na qual o corpo perde suas virtudes. Percebe-se que a nudez não é um estado, mas um acontecimento pertencente ao tempo e à história, e não ao ser. Por isso, a nudez é difícil de ser apreendida. Quando Agamben (2014, p. 112) afirma que “o corpo mais gracioso é o corpo nu cujos atos circundam com uma veste invisível, escondendo completamente sua carne, embora esta esteja totalmente exposta aos olhos dos espectadores”, ele sugere que a nudez pode ser entendida como pura visibilidade e presença. Trata-se de uma nudez que a consciência humana cobriu quando o estado natural foi subtraído.
Para Aldersey-Williams (2016, p. 259), “na arte do nu, o homem ganha uma virtude simbólica em detrimento da identidade pessoal”. O autor argumenta que as estátuas clássicas da arte renascentista retratavam a figura humana por meio de um corpo idealizado - atlético, nu e em excelente forma física - para indicar que o indivíduo homenageado era um cidadão exemplar. Como exemplo, cita-se o David de Michelangelo, cuja genitália era representada em tamanho menor que o natural, por ser considerada algo vulgar. De modo semelhante, “durante os períodos clássico e neoclássico, artistas preferiram evitar toda essa questão, por meio do uso da pose pudica ou de um tecido estrategicamente drapeado” (Aldersey-Williams, 2016, p. 261).
Na obra O Nascimento de Vênus de Sandro Botticelli (1445-1510), pintada em 1483, essas características ficam evidentes ao retratar a figura feminina nua, porém cobrindo suas partes íntimas (Aldersey-Williams, 2016) O pano envolto ao corpo se assemelha a uma fita de Möbius, na qual sua “superfície exterior está em continuidade com sua superfície interna: ela envolve o mundo inteiro e faz com que o que está dentro esteja fora e o que está fora fique dentro” (Deleuze, 2011, p. 12). Ambos são essenciais ao complexo indivíduo-mundo, pois liberam seu duplo incorporal, revelando sua importância na superfície.
Assim, o nu, como representação de uma veste de graça invisível, ainda constitui uma representação da figura humana. É possível perceber uma identidade do corpo que, mesmo desnudo, conserva sua forma. São silhuetas gordas e magras, às quais se atribuem códigos implacáveis e severos. Seus valores são outorgados a partir do momento em que sua aparência é condenada.
3. MATERIAIS E MÉTODOS
O século XX marcou o auge da arte da performance e sua estreita relação com os movimentos de vanguarda artística. Nesta época, os artistas utilizavam a performance como uma forma de libertação dos meios artísticos dominantes, como a pintura e a escultura (Goldberg, 2006). Este manifesto contra as artes já estabelecidas se estendia para além dos museus e galerias, invadindo ruas, bares e cafés, o que demonstrava o caráter livre dessa manifestação.
Vanessa Beecroft é natural de Gênova, na Itália. Inicialmente, cursou Arquitetura no Liceo Artistico Nicolò Barabino e, posteriormente, Pintura na Accademia di Belle Arti di Brera, em Milão. Artista multifacetada, seus trabalhos abrangem fotografia, pintura, vídeos e performances. Desde 1993, realiza experimentos públicos em grande escala. Os materiais analisados para exemplificar a relação entre moda e nudez são um conjunto de performances realizadas de 1996 a 2003 em colaboração com marcas de moda. São performances com dezenas de modelos femininas nuas ou seminuas que, além das problematizações políticas evidentes, colocam em perspectiva a arte relacional e a moda. As performances intituladas sequencialmente (VB01, VB02 e assim por diante), questionam os liames do poder sobre a vida e o corpo através de proposições poéticas.
Além disso, os desfiles performáticos e as performances na moda tornaram-se muito comuns a partir da década de 1990 e início dos anos 2000. Na atualidade, eles continuam aproximando arte e moda. É uma estratégia de marketing poderosa que lida com a estetização do mundo. Nas palavras de Lipovetsky e Serroy (2013, p. 42-55), trata-se de uma nova fase do capitalismo:
A fase cultural do capitalismo é regida por uma lógica de performance no sentido artístico do termo [...] a moda como arte total que mistura todas as artes, a moda como arte viva, e não mais simples apresentação de roupas.
Os figurinos das performances da artista transitam entre o nu e o vestido, utilizando artefatos da moda cujo capital simbólico permeia a cultura visual.
O corpo torna-se o principal suporte de expressão do poder do ser humano quanto a si próprio, à sua subjetividade e até mesmo quanto ao seu destino, num momento de extremas e constantes desestabilizações (Mesquita, 2004, p. 64).
Observa-se que a problematização circula entre os corpos e os padrões estéticos, frequentemente por meio da nudez e das roupas. Estudos de gênero transitam na moda através das grandes marcas do mercado (como Sisley, Saint Laurent, Valentino, Louis Vuitton e Gucci) e colaborações com artistas como Kanye West em suas apresentações Yeezy. Essas marcas utilizam performances como estratégia de marketing, criando imagens impactantes.
É nesta década também que o corpo e os padrões de beleza passam a ser amplamente discutidos e difundidos. No cinema, filmes como As Patricinhas de Beverly Hills retratam a cultura visual da época e seus valores, incluindo o auge da cirurgia plástica. A sociedade estabelecia que o ideal de beleza era ser magro e, consequentemente, a moda exibia corpos padronizados dentro e fora das passarelas.
Vanessa Beecroft foi criadora de uma linguagem artística única em suas ações performáticas. Ela aborda diretamente temas centrais para a cultura contemporânea global: identidade, multiplicidade, corpo e sexualidade. Nesse processo, mescla glamour com história da arte. Tornou-se reconhecida por ações envolvendo múltiplas modelos que encenam rituais de ser e aparecer. Seu trabalho foi divulgado em diversos países e exibido nos principais museus e galerias de arte. A artista envolve o público em um confronto direto, levando ao limite a tensão de um acontecimento simultaneamente único, real e abstrato.
Com o objetivo de analisar performances selecionadas de Beecroft, este estudo utilizou uma metodologia de revisão bibliográfica integrativa. Essa abordagem permitiu contextualizar e analisar as possibilidades presentes no trabalho da artista, podendo ser considerada também uma pesquisa experimental. Esta abordagem abre espaço para a empiria e a subjetividade da pesquisadora, que também atua como professora, figurinista e performer, tendo o corpo como seu território de pesquisa.
O material coletado para o levantamento compreende fontes científicas como livros, artigos e teses que discutem o corpo e a nudez, principalmente sob a perspectiva do pudor como questão central na cultura, que influencia os demais modos de pensar o corpo. Os principais autores da pesquisa são Agamben (2014), Foucault (1987, 1996, 2012), Derrida (2002) e Bologne (1986). Com estes pensadores, são introduzidos conceitos importantes como: biopoder, nudez e pudor. Além da revisão de literatura, foram utilizadas fontes de divulgação de ideias por meio de sites e jornais eletrônicos, principalmente o site com o portfólio das imagens de Vanessa Beecroft e entrevistas concedidas por ela ao The New York Times (cf. Smith, 2016).
Entre as performances selecionadas para discussão, destacam-se: VB16 (1996), VB35 (1998), VB 45 (2000), VB52 (2003). O que motivou a seleção foi a relação entre o corpo nu e o vestido, evidenciando como esses corpos estão desterritorializados, sem fronteiras definidas. Para isso, foram construídas duas categorias analíticas, denominadas linhas de pensamento: subjetividades transitórias e corpos dessubjetivados.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO – MODA E NUDEZ NAS PERFORMANCES DE VANESSA BEECROFT
Para explicar as subjetividades transitórias, a primeira das duas categorias analíticas, retoma-se o corpo vestido, mesmo que por objetos muito específicos. A bota de cano longo, a lingerie e o biquíni atuam na produção de um apagamento das modelos. Os adornos parecem ser usados não para produzir distinção e diferenciação, mas intencionalmente para homogeneizar. A segunda categoria construída, o corpo dessubjetivado, é representada pela nudez recorrente. Essa repetição da nudez parece ter o efeito de tornar os corpos das modelos invisíveis. Os corpos são condicionados a uma determinada forma de materialização, e o poder permeia os menores gestos. Sua materialidade discursiva cria o que se pode chamar de moda-norma-sujeito.
Em Vanessa Beecroft: Performances 1993-2003, Beccaria (2003) afirma que uma das características marcantes das performances era a grande disciplina no olhar das modelos. Esta característica é comum à maioria das performances, conforme descrito pela autora. Embora o olhar das modelos se dirigisse ao público, não era receptivo. Consequentemente, elas não retribuíam os olhares dos espectadores (Beccaria, 2003).
Na Figura 1, a performance “VB16”, que inaugurou a galeria Deitch Projects em Nova York em 1996, apresenta modelos femininas usando lingerie e meias de nylon, devido à dificuldade em exibir a nudez originalmente prevista na performance. Todas as modelos usam uma peruca loira de cabelos curtos e volumosos. Por mais que revelassem a diversidade de corpos e tons de pele (brancos e negros), ainda assim lembravam bonecas, dada a padronização dos corpos. O mesmo corpo esguio se repete, como uma assinatura do artista.
[...] um grupo de mulheres usando roupas íntimas de nylon em tom de carne (minha maneira de sublimar a nudez), algo que acabaria se tornando uma assinatura minha, tendo nos anos seguintes muita dificuldade em mostrar nudez (Beccaria, 2003, s.p., tradução nossa).
Figura 1. Performance VB16 Deitch Projects, NY, 1996
Fonte: Smith (2016, s.p.).
Sob a perspectiva do biopoder e da regulação dos corpos, a vigilância, os juízos e as punições são exercidos sobre eles. Suas “submissões ativas”, aguardando pareceres favoráveis, estão sujeitas a julgamentos que o incluem ou excluem, influenciando sua participação nos espaços políticos e nas relações de poder.
Em geral, nas performances de Vanessa Beecroft, a nudez evoca a liberação de novos signos e desloca o obscurantismo teológico para um tom contestatório. Como resultado, ela enfrentou consequências, recebendo mais uma recusa quanto à exibição dos corpos nus. Nas palavras da artista,
[…] apesar dos esforços determinados, não tive permissão para mostrar nudez total no Museu Guggenheim, mas fui forçada a usar um Tom Ford para o guarda-roupa da Gucci. Tom Ford também não concordou em exibir nudez. Ele não achou que era uma boa ideia (Beecroft, 1998, s.p. tradução nossa).
Na Figura 2, que ilustra a performance “VB35” exibida no Guggenheim Museum em 1998, as modelos usavam biquínis e sandálias da marca Gucci, famosa mundialmente. Além da nudez, as performances coletivas em parceria com grandes marcas do universo da moda também se tornaram uma assinatura em seus trabalhos. Essas colaborações compõem a caracterização visual das modelos em performance.
Figura 2. Performance VB35 para Gucci, no Solomon Guggenheim Museum, NY, 1998Fonte: Beecroft (1998, s.p.).
Neste jogo entre a imagem do nu e do vestido, nota-se que a nudez expõe a consciência moral de uma sociedade burguesa e conservadora, que, por meio de seu uso em demasia, já foi capturada pelas estratégias biopolíticas do corpo. Como indicado anteriormente, seja nu ou vestido, nada é mais material ou corporal que o exercício do poder (Foucault, 1996). Esta concepção demonstra que o poder se exerce sobre o corpo e a vida, manifestando-se nas visões culturais de cada época. O poder disciplinar penetra o cotidiano e produz subjetividades a partir dos menores gestos passíveis de análise e padronização, como é o caso dos corpos e das vestes que moldam a plasticidade da performance.
Retomando a discussão sobre a nudez nas ações de Vanessa Beecroft, um ponto pertinente é que algumas de suas performances, que lidavam com corpos nus, se falseavam através de uma segunda pele translúcida (Figura 3). Ou seja, ela explorava a nudez de modo a revelar o efeito singular deste nu-vestido. Foi o que ocorreu em “VB45”, performance realizada na abertura da Kunsthalle Wien em Viena, em 2001.
Figura 3. Performance VB45 para Helmut Lang, Viena, 2001Fonte: Smith (2016, s.p.).
Tratava-se de uma “performance baseada em uma composição minimalista e que lembra um exército, um Donald Judd ou uma pintura minimalista” conforme observa Smith (2016, s.p., tradução nossa). Todas as modelos usavam botas pretas de couro da marca Helmut Lang e uma segunda pele translúcida que imitava um corpo nu. Para Simmel (2008, p. 64-65), “o adorno deve ampliar o indivíduo graças a algo de supra-individual que irradia para todos e por todos os lados é acolhido e admirado”. No entanto, na performance, a bota como acessório repetitivo tem o efeito imaterial de apagar a individualidade das modelos, impedindo sua diferenciação. Nesta performance minimalista, a artista explora o nu na moda por meio de uma abordagem asséptica, influenciada pelas estratégias biopolíticas da época em que a performance acontece. Os corpos não são eróticos, mas apresentam um padrão visual recorrente: magro, branco, esguio e quase anoréxico. A escolha não é despretensiosa. Há nisso um paradoxo: busca-se afirmar uma distinção social através do uso de marcas de luxo, mas, na realidade, como observado, esse comportamento acaba por homogeneizar e massificar socialmente.
A branquidade é um conceito analisado na revista Vogue entre 2001 e 2010, com foco no corpo feminino, conforme abordado na pesquisa A branquidade em Vogue (Paris e Brasil): imagens da violência simbólica no século XXI. Na tese, Novelli (2014) investiga como os corpos brancos são representados no discurso da moda. Demonstra como revistas de moda perpetuam a violência simbólica, questionando a erotização do corpo e evidenciando o entrecruzamento cultural de gênero e classe.
[…] mostrando como ela se manifesta simultaneamente pelo desejo colonizador masculino dos fotógrafos de Vogue e por determinadas representações de classe para naturalizar o corpo [branco] da moda e garantir o reconhecimento de sua legitimidade (Novelli, 2014, p. 122).
Apesar das diversas narrativas e modos de visibilidade que marcaram diferentes contextos históricos e políticos, desencadeando transformações sociais e rupturas estéticas, o corpo feminino branco ainda predomina no universo das imagens de moda. Novelli (2014, p. 42) chama de “‘esvaziamento’ da cor branca como identidade cultural”.
Pode-se ainda acrescentar que esses grupos supostamente homogêneos não se sustentam, pois há limites individuais em cada corpo. Este limite é singular e afirma a unicidade dos corpos. Se inicialmente vemos corpos submetidos a um adestramento que visa extrair suas forças, essa mesma força, paradoxalmente, amplia-se ao mostrar o limite do corpo. Na ação, o corpo vai se decompondo, desfazendo a paisagem e deixando escapar sua singularidade na exaustão. O corpo-máquina encontra sua anátomo-política, que permeia o desenvolvimento contemporâneo das tecnologias envolvendo processos vitais humanos e a transformação dos espaços.
A ascese performática do corpo tornou-se uma forma de autoafirmação, como uma extensão do eu que busca uma manifestação temporária para destacar sua presença no mundo entre seus semelhantes.
Na Figura 4, a ação performática “VB52”, realizada em 2003 no Castello di Rivoli, exibe prescrições sobre a mulher, incluindo o que ela deve comer e como deve ser. A dieta atua como uma ascese performática sobre o corpo, construindo um aparato moral que determina o que pode e o que não pode ser ingerido. A artista idealizadora descreve a motivação e o desenvolvimento desta manifestação:
Em uma mesa de vidro sentava-se um grupo de trinta mulheres, modelos nuas, veteranas de apresentações anteriores, mulheres relacionadas ao castelo ou aristocratas locais. As mulheres, seguindo minha dieta, comeram por três dias consecutivos alimentos servidos e divididos por cores: amarelo, laranja, vermelho, roxo, marrom, branco, verde, marrom e multicolorido. Minha mãe estava na apresentação, e havia várias relações de mãe e filha. O público, que não podia comer, assistia ao grupo e à interação deles com a comida. Esta performance é uma alusão ao meu Livro de comida, um diário alimentar que guardei de 1983 a 2003 em que anotei obsessivamente tudo o que comi como prova de que não tinha cometido nenhum crime, mas ainda assim não conseguia viver no meu corpo em paz (Smith, 2016, s.p., tradução nossa).
Figura 4. VB52 Castello di Rivoli, Turim, 2003Fonte: Smith (2016, s.p.).
Nota-se que em “VB52” os corpos nus apresentam alguns ornamentos que não buscam diferenciação. No pulso, no tornozelo e no pescoço, um debrum de tecido franzido forma babados na cor nude. Supõe-se que tenham como objetivo exercer pouco ou nenhum destaque em relação à pele. A nudez é, em si, um figurino, pois vem precedida da moral de um corpo construído como objeto de arte. A nudez é o figurino escolhido para a cena. Para além da nudez física, a moda atua no corpo social sob a égide da biopolítica, produzindo modos de vida que ora escapam às aparências hegemônicas, ora reforçam discursos disciplinares. A materialidade dos corpos é parte do investimento sobre eles e produz novas subjetividades. Esta produção passa, obrigatoriamente, pelas relações de poder, seja produzindo resistências, seja produzindo assujeitamentos. Na moda, essa disciplina que recai sobre o corpo é evidente. O investimento material se manifesta no vestuário, maquiagens, procedimentos estéticos, cirurgias plásticas e próteses diversas (cílios, lábios, unhas, seios etc.), além de atividades físicas e outras formas de padronização dos indivíduos. Ao agir sobre os aspectos mais concretos do corpo, busca-se estabelecer a criação de corpos dóceis (Foucault, 1987).
Entende-se que o corpo reflete relações de poder, sendo moldado por discursos que o regulam. Esses discursos ora produzem subjetividades transitórias, ora despersonalizam o corpo, permeando práticas disciplinares e saberes que o normatizam, por vezes negando os elementos subjetivos que o constituem. Nesse contexto, a moda desempenha um papel fundamental como dispositivo das aparências, sendo o corpo o principal meio de afirmação pessoal.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao retomar o objetivo deste artigo, que tem como foco principal a discussão sobre moda e biopoder por meio da nudez presente nas performances de Vanessa Beecroft, entende-se que a moda se projeta no corpo e transcende a matéria e o vestuário no contexto contemporâneo. Por meio da nudez, podem-se acolher todas as funções: erótica, estética e de estranheza inquietante. Paradoxalmente, a formação discursiva do corpo nu não está imune a julgamentos, pois este pode ser magro, gordo, alto ou baixo, produzindo seus próprios códigos a partir de suas expressões corporais. O nu também produz identidades, reforça padrões anatômicos e conserva formas estabelecidas em termos de organismo, subjetividade e aculturação.
Com isso, percebe-se que, ao analisar o nu, não são apenas as representações artísticas que despertam interesse. Tanto nas performances de Vanessa Beecroft quanto em obras de arte clássicas, como O Nascimento de Vênus de Botticelli, a representação da humanidade através da nudez e do nu vestido evidencia uma moda que transcende o corpo e a matéria, projetando-se além das vestes no contexto contemporâneo. A arte explora o espectro entre a nudez e o vestuário na moda. Mais especificamente, a arte da performance transcende as estratégias de marketing e comunicação de grandes marcas, problematizando questões urgentes da estetização na atualidade.
A obra, que retrata o padrão corporal da década de 1990, evidencia sua proximidade com os ideais ainda perpetuados em pleno século XXI. Atual, a obra expõe os limites morais não apenas do padrão corporal, mas também da percepção social sobre a nudez. Sabe-se que o biopoder regula a vida. Isso significa regular as práticas discursivas sobre o corpo. O corpo documenta relações de poder que o constituem. Essas relações estão inseridas em discursos reguladores, que permeiam as práticas disciplinares e os saberes normatizadores do corpo.
Na estetização do contemporâneo, a moda revela quão paradoxal se torna seu sistema. Isso ocorre porque, embora parta de uma premissa de individualização dos corpos, a moda os homogeneíza através de padrões e fórmulas do bem viver, que são, na verdade, mecanismos de controle baseados na aparência. São as “disciplinas da aparência” que, na atualidade, ditam as exigências impostas ao corpo. O disciplinamento contemporâneo sobre o corpo obedece a regras estabelecidas principalmente por imagens. É predominantemente sobre o corpo feminino que esta disciplina se impõe, por meio dos ditames da aparência e das regras para obtenção do visual desejado.
REFERÊNCIAS
ALDERSEY-WILLIAMS, Hugh. Anatomias: uma história cultural do corpo humano. São Paulo: Record, 2016.
AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Editora, 2014.
BARNARD, Malcom. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
BECCARIA, Marcela. Vanessa Beecroft: Performances 1993-2003. Milão: Skira, 2003.
BEECROFT, Vanessa. Performance. 1998. Disponível em: https://vanessabeecroft.com/performance. Acesso em: 12 jun. 2023.
BOLOGNE, Jean-Claude. História do pudor. Rio de Janeiro: Elfos, 1986.
DALLERY, Arleen. A política escrita do corpo: écriture féminine. In: BORDO, Susan; JAGGAR, Susan R. Gênero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 6. ed. Campinas: Papirus, 2011.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Unesp, 2002.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber; tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012.
FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
GOLDBERG. Rose Lee. A arte da performance: do futurismo ao presente. Tradução de Percival Panzoldo de Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
MESQUITA, Cristiane. Moda Contemporânea: quatro ou cinco conexões possíveis. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar a marteladas. Tradução de Antônio Carlos Braga. 2. ed. São Paulo: Escala, 2008.
NOVELLI, D. A branquidade em Vogue (Paris e Brasil): imagens da violência simbólica no século XXI. 2014. 345 f. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/123183. Acesso em: 19 fev. 2024.
SABINO, Marco. História da moda. Petrópolis: Havana, 2011.
SIMMEL, Georg. Filosofia da moda e outros escritos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Texto Grafia, 2008.
SMITH, Roberta. The Very Best of Vanessa Beecroft. New York Times. 2016. Disponível em: https://www.nytimes.com/slideshow/2016/05/19/t-magazine/the-very-best-of-vanessa-beecroft/s/19tmag-beecroft-slide-RATN.html. Acesso em: 10 fev. 2023.
SVENDSEN, Lars. Moda, uma filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
ZORDAN, Paola Basso Menna Barreto Gomes; HOFFMANN, Ana Cleia Christovam. Movimentos das identidades e subjetividades na produção de modos de vida. E-ISSN 2177-5796. Quaestio – Revista de Estudos em Educação, Sorocaba, v. 16, n. 2, 2014. Disponível em: https://periodicos.uniso.br/quaestio/article/view/2082. Acesso em: 10 fev. 2023.