Narrativas de vestir: moda e intermidialidade em O conto da aia, de Margaret Atwood
Leticia Barros Soares
Mestranda, Universidade Estadual do Oeste do Paraná / lebarrossoares@gmail.com.
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Lidiane Cossetin Alves
Doutoranda, Universidade Estadual do Oeste do Paraná/ lidicossetin@yahoo.com.br.
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Acir Dias da Silva
Doutor, Universidade Estadual do Oeste do Paraná/ acirdias@yahoo.com.br.
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Narrativas de vestir: Moda e Intermidialidade em O conto da aia, de Margaret Atwood
RESUMO
Neste texto, apresenta-se a união das mídias literária e de moda na construção de significados sociais, partindo da obra O conto da aia (ATWOOD, 2017) adaptada para um desfile de moda pela marca Vaquera, atrelada à série homônima ao livro. Objetiva-se avaliar as relações intermidiáticas entre a construção narrativa e as roupas da passarela, associando a criticidade da obra literária à adaptação costurada em moldes e tecidos. Recorre-se à Calanca (2011), Clüver (2012), Chevalier e Gheerbrandt (2001), Heller (2013), Moser (2006), Rajewsky (2005), entre outros: a intermídia propulsiona as relações entre moda e literatura como constructos de sentidos sociais. Analisando elementos verbo-visuais das vestimentas – da literatura ao desfile, contemplados na série –, observa-se que os trajes do desfile (re)constroem a crítica narrativa de Atwood, transpondo à indumentária cores, tecidos e modelagens que discutem conceitos historicamente produzidos acerca dos gêneros e seus papéis sociais, problematizando o silenciamento imposto às mulheres desde a narrativa literária.
Palavras-chave: Literatura e Moda. Intermidialidade. O conto da aia.
Narratives to wear: Fashion and intermidiality on Margaret Atwood’s The Handmade’s Tale
ABSRTACT
Presented here is the union of literature and fashion as media in the construction of social meaning, from The Handmaid’s Tale (ATWOOD, 2017) adapted to Vaquera’s fashion show, connected to the TV show. The objective is to evaluate the intermedia relations between the narrative construction and the runway clothes, associating the criticality of the literary work to the adaptation, sewn into molds and fabrics. It was resorted to Calanca (2011), Clüver (2012), Chevalier and Gheerbrandt (2001), Heller (2013), Moser (2006), Rajewsky (2005), among others: the intermedia propels the relations between fashion and literature as social constructs. Analyzing the clothing’s verb-visual elements - from literature to runway, tied into the series -, it has been observed that runway attires (re)construct Atwood’s narrative criticism, traversing to the garments’ colors, fabrics, and modelings that argue historically produced concepts regarding genders and social roles, problematizing the muzzling imposed to women since its literary narrative.
Keywords: Literature and Fashion. Intermidiality. The Handmaid’s Tale.
Narrativas de vestir: Moda y Intermedialidad en El cuento de la criada, de Margaret Atwood
RESUMEN
Este artículo presenta la yuxtaposición de las medias literarias y moda en la construcción de significados sociales, partiendo de la obra El cuento de la criada (ATWOOD, 2017) adaptada para un desfile de moda por la marca Vaquera, relacionada con la serie homónima al libro. Se objetiva analizar las relaciones de intermedialidad entre la construcción narrativa y de las ropas de pasarela, asociando la criticidad de la obra literaria con la adaptación costurada en moldes y tejidos. Se recurrió a Calanca (2011), Clüver (2012), Chevalier y Gheerbrandt (2001), Heller (2013), Moser (2006), Rajewsky (2005), entre otros: la intermedia propulsa las relaciones entre moda y literatura como constructos de sentidos sociales. Analizando elementos verbo-visuales de las vestimentas – de la literatura al desfile, concentrados en la serie –, se observó que los trajes del desfile (re)construyen la crítica de la narrativa de Atwood, transpondo a la indumentaria colores, tejidos y modelajes que discuten conceptos históricamente producidos acerca de los géneros y sus papeles sociales, problematizando el silenciamiento impuesto a las mujeres desde la narrativa literaria.
Palabras clave: Literatura y Moda. Intermedialidad. El cuento de la criada.
1 INTRODUÇÃO
Eu me levanto da cadeira, avanço meus pés para a luz do sol, sem salto para poupar a coluna e não para dançar. As luvas vermelhas estão sobre a cama. Pego-as, enfio-as em minhas mãos, dedo por dedo. Tudo, exceto a touca de grandes abas ao redor da minha cabeça, é vermelho: da cor do sangue, que nos define. A saia desce à altura de meus tornozelos, rodada, franzida e presa a um corpete de peitilho liso que se estende sobre os seios, as mangas são bem largas e franzidas. As toucas brancas também seguem o modelo padronizado; são destinadas a nos impedir de ver e também de sermos vistas. Nunca fiquei bem de vermelho, não é a minha cor.
(Atwood, 2017, p. 16)1.
A moda, mesmo que discretamente, é apresentada nos textos literários. A partir da descrição das peças e seus detalhamentos ao longo da narrativa escrita, conseguimos observar desde os modos de vida, locais ou épocas em que a diegese ocorre, as características de humor ou personalidade das personagens, tal como o prosseguimento do desenvolvimento do personagem e sua categorização (personagens complexos, planos, com ou sem desenvolvimento no arrolamento narrativo etc.), entre outros pontos relevantes para a construção intratextual nas obras. Outrossim, no entrelaçar das linhas intra e extratextuais se constroem ou desmantelam os significados e críticas que envolvem toda a vestimenta apresentada na literatura: o sentido social contextual é transposto à ficção, que também torna a (re)significar a realidade – é continuum.
As pesquisas que envolvem moda e literatura criam perspectivas críticas e novas possibilidades de estudo. Assim, o método analítico para o desenvolvimento deste texto considera literatura e moda como mídias, com base na abordagem dos estudos sobre intermídia. Portanto, elegeu-se as relações costurados entre arte e mídia, englobando o cenário da moda para comparar, de forma específica, a transposição de conceitos expostos na distopia do livro O conto da aia, de Margareth Atwood ([1985] 2017), para o desfile de moda homônimo, patrocinado pelo streaming Hulu e criado pela marca Vaquera, em 2017 – âmbitos estabelecidos como temática e objetivo central desta pesquisa científica.
O presente artigo tem como objetivo analisar as construções críticas dispostas a partir das relações intermidiáticas entre a construção narrativa e as roupas da passarela, associando a criticidade da obra literária à adaptação costurada em moldes e tecidos. Especificamente, buscou-se relacionar o livro e o desfile de moda, com apoio das criações para a série de TV, entrelaçando o desenvolver das narrativas às linhas da vestimenta – apresentadas como mídias verbais e mídias visuais, respectivamente –, compreendendo ainda a relevância da moda para a definição social, bem como forma de reforçar, problematizar e (re)construir estereótipos.
Entende-se que os campos apresentados são considerados como mídias, partindo-se da premissa de que a adaptação intermidiática da literatura à televisão e à moda pode ocorrer de modo a questionar as construções históricas sobre os papéis sociais de gênero.
Os trajes desenvolvidos para as passarelas alinhavam sentidos e significados a cores e moldes, trazendo para o contexto da vivência da realidade as discussões da narrativa distópica de Margaret Atwood, com detalhes. Um dos objetivos do desfile da marca Vaquera era divulgar a série, produzida com base na obra literária, e tecer críticas à sociedade atual, por meio da opressão traduzida pela vestimenta.
Partindo dessa concepção, analisou-se, na transposição da obra às passarelas, as descrições de vestuário apresentadas na mídia literária, bem como os significados críticos criados através das peças desfiladas, seguindo relações possibilitadas pela intermidialidade. Em conjunto e para definições metodológicas e argumentativas desta pesquisa, evidencia-se os estudos de Calanca (2011) e Salles (2015) acerca das conceituações sobre a moda. Ainda mais, são relacionadas discussões sobre a construção literária acerca das personagens, especificamente no que tange à vestimenta, consideradas metodologicamente como intermidialidade – conceito intrínseco à intertextualidade (SAMOYAULT, 2008) –, alicerçadas do ponto de vista teórico principalmente em Clüver (2012) e Rajewski (2005).
Assim, o presente artigo subdivide-se em duas seções que se complementam: a primeira dialogando com as tessituras entre literatura e moda por meio da conceituação de intermidialidade; e a segunda com as análises do desfile de moda da marca Vaquera que transpõe a mídia verbal literária à mídia visual da passarela. Encerra-se este estudo com a evidenciação das argumentações discorridas ao longo das supramencionadas seções.
2. LINHA ESCRITA E LINHA COSTURADA: A TESSITURA DA INTERMIDIALIDADE
2.1 Intermidialidade e transposições
Desde a noção das mídias consideradas como tradicionais – pinturas, narrativas, jornais, rádios, entre outros – até o que conseguimos estabelecer como exemplos de intermídias – obras cinematográficas, exposições interativas, e-books ou áudio-books, dentre infinitas possibilidades – discute-se sobre os o encontro de mídias distintas. Clüver (2012) postula que tais intersecções sempre existiram em diversos períodos históricos e culturais, sendo parte do que conhecemos como “arte”. Na atualidade, a união de diferentes mídias e interatividades ocorre com naturalidade.
Desse modo, partimos da concepção de Rajewsky (2005) ao abordar que a “intermídia designa as configurações relacionadas ao cruzamento de fronteiras entre mídias” (RAJEWSKY, 2005, p. 5, tradução nossa)1. Isto posto, para que exista o conceito de intermidialidade, é preciso tratar da mídia – afinal, ambas coexistem (Ghirardi; Rajewsky; Diniz, 2020). Entre os conceitos de mídia, Wolf (2005 apud Ghirardi; Rajewsky; Diniz, 2020) apresenta o termo como todos os meios de propagar conteúdos culturais.
Nesse cenário, evidencia-se o conceito de intertextualidade como intrínseco ao conceito de intermidialidade (Clüver, 2012, p. 17), pois nos “‘intertextos’ de qualquer texto (em qualquer mídia) sempre há referências (citações e alusões) a aspectos e textos de outras mídias”.
O processo que gera uma mídia engloba aspectos variados, que partem desde a concepção da ideia – local produtivo da abstração humana – até sua concretização – transposição do ideal abstrato da criatividade a determinada linguagem: tal processo da abstração à concretude é, por si só, o início da tessitura intermidiática. Ademais, para Gaudreault e Marion (2012), é possível que existam diferenças no âmbito semiótico e na materialização midiática na passagem intermidiática, ainda que sejam complementares no produto intermídia.
O conceito de intermídia de Irina Rajewsky (apud Clüver, 2012), consoante aos supracitados, refere-se ao processo de alteração da genética do texto existente, partindo de uma mídia para outra, em conformidade com as possibilidades existentes. Assim, dissertar sobre a intermidialidade é um trabalho de nível intelectual tão relevante quanto os resultados que o tema traz (Moser, 2006).
Neste sentido, ao tratar-se das intermídias no presente estudo, disserta-se conjuntamente sobre as intertextualidades em seus campos de signos analisados (Samoyault, 2008): se a ação criativa da autoria – da obra literária, da obra de arte, do desfile de moda ou, ainda, de uma série de televisão – é a união de todas as referências já consumidas pela autoria, as transposições de textos verbais aos visuais são, ao mesmo tempo, intertextos e intermídias. Ainda que existam variados modos de exercer a intertextualidade, no caso apresentado nesta pesquisa é evidenciado o texto verbal da obra de Atwood (2017) como objeto impulsionador das intermídias que o seguem: a série de TV, em intertextualidade crítica visual; bem como a adaptação ao desfile de moda da marca Vaquera, que evoca com intensidade os signos textuais de modo visual, transcendendo a obra original em levantamentos de críticas e problemáticas.
1.2 Moda: uma mídia de emergência social
O surgimento da indumentária partiu da necessidade do ser humano de se proteger; com o passar do tempo, as modelagens das roupas, seus tecidos e significados seguiram a influência e o desenvolvimento das sociedades, ganhando outras características e complexidades. Dessa maneira, pode-se afirmar que entender a moda é, também, compreender o arrolamento das relações sociais e o que elas representam (Roche, 1999 apud Calanca, 2011).
Assim, a história do vestuário “não é um simples inventário de imagens, mas um espelho do articulado entrelaçamento dos fenômenos socioeconômicos, políticos, culturais e de costume que caracterizam determinada época” (Calanca, 2011, p. 27). Portanto, ao passo em que os sujeitos empregam suas vestimentas, pode-se observar a historicidade da expressividade das condições político-econômicas de cada sociedade e cultura
Neste sentido, Salles (2015) divide a moda em duas categorias: o vestuário ou um mecanismo lógico ou ideológico. Logo, a vestimenta e suas importâncias podem ser delimitadas a partir das condições econômicas e sociais, tal como asseveradas, delimitadas e/ou intensificadas como mecanismo político, ideológico; ao fim, ambas classificações condizem com a cultura da sociedade que se discute. Para Chevalier e Gheerbrandt (2001), no que tange ao símbolo do vestuário como costume e história cultural,
A roupa é um símbolo exterior da atividade espiritual, a forma visível do homem interior. Entretanto, o símbolo pode transformar-se num simples sinal destruidor de realidade quando o traje é apenas um uniforme sem ligação com a personalidade (Chevalier; Gheerbrandt (2001, p. 943).
Com base no conceito de moda, Manovich (2001) discorre sobre a existência de novas mídias criadas a partir de adaptações culturais. Salles (2015, p. 11) afirma que “a moda transforma-se em nova mídia tanto do ponto de vista das mudanças em nível tecnológico quanto como reorganização de tendências culturais”. Assim sendo, a essência da moda se expande para além dos significados individuais, responsabilizando-se pela difusão de ideologias e posições político-econômicas, sociais e culturais.
2.3 O conto da aia e as mídias narrativas das vestimentas
A obra distópica, O conto da aia, da autora canadense Margareth Atwood, foi publicada em 1985 e, posteriormente, adaptada para áudio, cinema, rádio, espetáculos e televisão (Ferreira, 2019). Em 2017, a rede de streaming Hulu cruzou os fios e tecidos da obra literária e produziu uma adaptação para a TV em forma de série. De acordo com a sinopse do livro.
O romance distópico O conto da aia, de Margaret Atwood, se passa num futuro muito próximo e tem como cenário uma república onde não existem mais jornais, revistas, livros nem filmes. As universidades foram extintas. Também já não há advogados, porque ninguém tem direito a defesa. [...]. Nesse Estado teocrático e totalitário, as mulheres são as vítimas preferenciais, anuladas por uma opressão sem precedentes. O nome dessa república é Gilead, mas já foi Estados Unidos da América. Uma das obras mais importantes da premiada escritora canadense, conhecida por seu ativismo político, ambiental e em prol das causas femininas, O conto da aia foi escrito em 1985 [...] Margaret Atwood leva o leitor a refletir sobre liberdade, direitos civis, poder, a fragilidade do mundo tal qual o conhecemos, o futuro e [...] o presente (Rocco, 2017, s/p).
O enredo narrativo apresenta a república de Gilead, um governo totalitário fundamentalista. Nessa realidade, as condições políticas, econômicas e sociais são associadas e submetidas a constructos teocráticos, divididos hierárquica e patriarcalmente. As mulheres, em grande parte, inférteis, são separadas por grupos ou castas que atendem aos homens, ao governo e à religião; para que exista a continuidade da sociedade, as mulheres capazes de engravidar tornam-se escravas de reprodução, submetidas a estupros condizentes com seus ciclos de fertilidade: são as aias.
Entre inúmeras divisões políticas e sociais da população de Gilead, as mulheres podem ser divididas em Tias, Esposas, Marthas e Aias – existem, ainda, as não-mulheres, aquelas que “não podem ter filhos, as homossexuais, viúvas e feministas, condenadas a trabalhos forçados” (Rocco, 2017) e, por último, sujeitas que são escravas sexuais em estabelecimentos clandestinos, pessoas tais não consideradas existentes na sociedade gileadiana.
Ainda mais, nesta sociedade de classes e castas sociais, as mulheres também são divididas por meio das cores monocromáticas das roupas e suas modelagens, que marcam e evidenciam suas ocupações e condições sociais e servis. As Tias representam uma extensão débil do governo teocrático patriarcal; responsáveis pelo ensino e dogmatização das Aias, intensificam as questões religiosas para implementar valores éticos e morais na realidade de Gilead, utilizando de tortura física e psicológica, abusos intensos e assassinatos resguardados pelas leis. As Tias utilizam vestidos de cor cáqui “com bolsos de estilo militar no peito” (Atwood, [1985] 2017, p. 143), ou seja, apesar de usarem vestidos, eles contêm detalhes masculinizados e repressores, utilizados para conferir seriedade e poder semelhante ao poder patriarcal a esse grupo específico de mulheres.
As Esposas são mulheres casadas com os governantes ou homens de importância na sociedade de Gilead. A elas, o significado maior de existência é a espera de um filho que possa dar prosseguimento à família. Detentora e protetora dos valores éticos e morais difundidos pelas Tias, as Esposas tornam-se governantas de suas casas, com Marthas e Aias sob seus comandos e vontades. Hierarquicamente, as Esposas devem servidão aos maridos, à casa e aos filhos, quando os tiver. Elas são apresentadas com “longo traje cerimonial azul-claro, inconfundível” (Atwood, [1985] 2017 p. 22).
As Marthas são mulheres que cuidam das casas das Esposas: não são mulheres de fé e ensino (Tias) e tampouco mulheres capazes de reprodução (Aias), mas com conhecimento e força braçal suficiente para executar tarefas domésticas que não condizem com a superioridade da classe de sua senhora, a Esposa a quem serve. Em resposta às castas de hierarquia social, as Marthas servem às Esposas, devem respeito às Tias, estão em condição semelhante às Aias – e, ainda assim, as subjugam por crerem estar em condições sociais superiores às mulheres reprodutoras. As Marthas são diferenciadas por vestidos verdes desbotadas compridas, para calar as formas do corpo, comparada a roupas cirúrgicas, e um avental de peitilho (Atwood, [1985] 2017).
Nessa sociedade em que poucas mulheres podem ter filhos, aquelas que são férteis se tornam Aias, casta da narradora Offred2. Hierarquicamente, são submetidas os governantes e suas respectivas Esposas, possuem as Tias como legisladoras e executoras das leis pautadas na moral e na ética teocrática. Sua função social é procriar e entregar a prole à família a qual serve, sendo designada a outra casa e família após findado o período de amamentação, reiniciando o ciclo:
As mulheres de Gilead não têm direitos. Elas são divididas em categorias, cada qual com uma função muito específica no Estado. A Offred coube a categoria de aia, o que significa pertencer ao governo e existir unicamente para procriar, depois que uma catástrofe nuclear tornou estéril um grande número de pessoas (Rocco, 2017).
Assim, considerando que cada personagem é simbolizada por estereótipos reforçados pelas vestimentas que as categorizam e explicitam seu papel social, as aias, neste caso, utilizam a cor vermelha, roupas que cobrem todo o corpo e viseiras brancas, que as permitem olhar apenas para a frente. Neste contexto, uma transposição midiática – ou de intertextualidades, quando considerados os signos verbais aos visuais –, ocorre quando a mídia verbal da obra O conto da aia (ATWOOD, [1985] 2017) é adaptada à mídia visual cinematográfica, que carrega os elementos textuais da obra literária, ampliando a discussão, no produto cinematográfico, sobre a carga simbólica de categorização das mulheres.
A Figura 1 destaca a personagem da série de TV, Offred com sua vestimenta de aia; ao lado, há o figurino utilizado na série de TV, fiel ao descrito na obra literária.
Figura 1. Offred, a protagonista e o figurino das aias desenvolvido para a série de TV.
Fonte: Entertainment Weekly (O CONTO, 2017); The New York Times/Hulu (2017).
A narrativa conta com o fluxo de consciência da narradora que alterna entre acontecimentos do presente e passado. Ademais, pode-se perceber que, quando Offred volta ao passado, temos uma narração rápida, melancólica e com acontecimentos acelerados, como lembranças do tempo de outrora; assim sendo, tais lembranças remetem à liberdade, descrita, significada e asseverada por meio de suas roupas: “Então eu penso: eu costumava me vestir assim. Isso era liberdade” (Atwood, 2017, p. 40). Quando a história se desloca para Offred em seu momento presente, a narrativa se torna lenta, bastante descritiva, porque é uma vivência “pesada” e, portanto, indesejada.
A visão que Margaret Atwood incumbiu à vestimenta das aias na mídia verbal, a obra literária narrativa, foi inspirada por diversas referências culturais da autora: desde acessórios da era vitoriana – que, em nossa sociedade contemporânea e ocidental, podem simbolizar recato e pudor –, como o xador3, usado pela autora em uma viagem ao Afeganistão; assim como a cor vermelha utilizada por prisioneiros de guerra canadense, por ser mais visível na neve (New York Times, 2017).
A Figura 2, que segue, apresenta o processo criativo acerca da adaptação da mídia literária verbal à mídia televisiva visual:
Figura 2. Esboço das roupas das aias pela designer Ana Cabtree
Fonte: British Vogue (2017).
Para a primeira temporada da série de TV, a designer Ana Cabtree foi responsável pela transposição do texto/mídia verbal de Atwood para os tecidos, textos/mídias visuais: “Todo subgrupo precisava de um uniforme para eliminar qualquer individualidade, então as cores foram uma forma de identificar isso” (Newbold, 2017, tradução nossa)4, especifica a estilista para a British Vogue.
Evidencia-se, ainda, que a narrativa distópica de Atwood é marcada por personagens feministas que foram rigorosamente silenciadas e punidas, mas que mantiveram em sua consciência alto senso crítico à sociedade. Em entrevista ao jornal El País (Fernandéz, 2021), a autora disse acreditar que “toda distopia fala do presente. [...] Toda utopia contém uma distopia” (Fernandéz, 2021).
Consequentemente, Clüver (2017) sinaliza que as transposições midiáticas ocorrem como a arte sempre fizera na união de uma ou mais obras, bem como quando Samoyault (2008) designa a união dos signos como intertextualidade, desde as mais diversas delimitações (textuais, visuais, sonoras); a ação de Margareth Atwood utilizar do vestuário do Afeganistão e dos acessórios da era vitoriana; a eleição de Ana Cabtree ao seguir os detalhes de vestuários da mídia verbal pormenorizadamente na adaptação visual televisiva; são, as três construções, mesmo que em diferentes graus, modos de intermidialidades responsáveis com a carga simbólica e cultural, representadas de maneira crítica em todas as transposições.
3 O DESFILE DA VAQUERA: MÍDIAS CRÍTICAS E PROBLEMÁTICAS NARRATIVAS VERBO-VISUAIS
O método analítico do presente estudo abrange as noções de interrelações artísticas a partir do constructo de intermídia, propulsionado pela intertextualidade d’O conto da aia (Atwood, [1985] 2017) ao desfile de moda da marca coletiva Vaquera. Destarte, analisa-se as criticidades transpostas das mídias verbais às mídias visuais, considerando-se a análise das vestimentas e a crítica presente em ambas as mídias, isto é, em suas transposições. Para tanto, utilizou-se de métodos qualitativos, recorrendo-se à Calanca (2011), Heller (2013), Chevalier e Gheerbrandt (2001), entre outros, por meio da descrição interpretativa e da abordagem comparativa das referidas mídias.
Em 2017, ano de estreia da série O conto da aia, a Hulu, empresa produtora, fez uma sequência de ações publicitárias como forma de promover o novo lançamento. Entre elas, destaca-se o desfile de moda da marca Vaquera, baseado na narrativa distópica.
A Vaquera é um coletivo norte-americano fundado em 2013 por Patric DiCaprio, David Moses, Bryn Taubensee e Claire Sully, objetivando ser independente e subversivo, sediado em Nova Iorque. Em seu site, a marca é delimitada por seus criadores com o objetivo de “subverter o luxo e contar histórias com roupas” (Vaquera, 2023, tradução nossa)5. Caracteriza-se conceitualmente por elementos “fantásticos, visionários e de gosto quase impraticáveis” (Subair, 2023, tradução nossa)6. De acordo com entrevista ao The New York Times (Vineyard, 2017), a Vaquera apenas aceitou fazer o desfile porque considerou coerentes as críticas das obras verbo-visuais sobre opressão, discriminação e empoderamento: elementos que fazem parte da coletividade Vaquera em suas criações.
O desfile realizado em 2017 aconteceu em uma sinagoga neogótica em Lower West Side, em Nova Iorque, e as roupas utilizadas pelas modelos não foram disponibilizadas para a venda. Jocelyn Silver (2017), em um artigo publicado no site Dazed, afirmou que “cada composição representou um simbolismo cuidadoso, contendo diversos detalhes tanto do livro de Margaret Atwood quanto da série produzida pela Hulu” (Silver, 2017, tradução nossa)7. Ressalta-se, destarte, que a distopia crítica presente na mídia verbal literária é pensada e costurada aos elementos e mídias visuais presentes nas roupas, em relações de intertextualidades: alinhavam-se as problemáticas, modelam-se as críticas.
O cruzamento de fronteiras possibilita a transposição de uma mídia à outra (Clüver, 2017) e permite, neste caso da moda, vários “percursos semânticos, que dão lugar a outras tantas linguagens simétricas, ou seja, extensões de significado” (Calanca, 2011, p. 12). Assim, não apenas transpõem-se textos e mídias do verbal ao visual, mas transitam as problemáticas acerca do silenciamento das mulheres dissertados desde a estética narrativa da obra literária, até a estética visual da obra de moda.
Figura 3. Modelo utilizando roupa criada para o desfile
Fonte: Vaquera (2017). Fotografia de Michael Hauptman.
Quando Offred sinaliza que deixa de existir como sujeita na sociedade e na casa em que habita e serve, sinaliza: “Possivelmente ela [a esposa] porá uma das mãos sobre meu ombro, para se firmar, como se eu fosse uma peça de mobília. Já fez isso antes” (ATWOOD, [1985] 2017, p. 97). Assim, a transposição midiática da literatura à moda ocorre tal como apresentado na Figura 3: a roupa da modelo é composta por almofadas, indicando que é um sofá, que faz parte da mobília.
Sendo assim, como os móveis não têm voz, não se expressam, tampouco têm sentimentos, ficam em casa apenas como decoração e esperando que os utilizem, tornam-se servos calados das vontades de quem os possui. A narrativa descreve as roupas das aias com a cor vermelha. De acordo com Heller (2013), o vermelho serve como um corretivo, ou alerta, mas
O vermelho é também a cor da justiça: durante
séculos, as sentenças haviam estabelecido que sangue com sangue se paga. Nas cidades medievais, bandeirolas vermelhas eram içadas nos dias em que fosse acontecer um julgamento. O juiz assinava as sentenças de morte com tinta vermelha. Os carrascos se vestiam de vermelho (Heller, 2013, p. 125).
Além disso, quando Chevalier e Gheerbrandt (2001) dissertam sobre o significado do vermelho ao longo das culturas e histórias humanas, destacam sua universalidade como dualidade de vida e morte, como expressividade do sagrado e do profano:
Universalmente considerado com o símbolo fundamental do princípio de vida, com sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho, cor de fogo e de sangue, possui [...] ambivalência simbólica [...]. o vermelho-escuro [...] é noturno, fêmea, secreto [...]; representa não a expressão, mas o mistério da vida. [...] seduz, encoraja, provoca [...], alerta, detém, incita à vigilância e, no limite, inquieta [...]. [O vermelho convida] à transgressão da mais profunda proibição [...], a proibição lançada sobre as pulsões sexuais, a libido e os instintos passionais (Chevalier; Gheerbrandt, 2001, p. 946).
Sendo assim, costura-se a crítica da dualidade representada não apenas na cor da vestimenta da aia, mas principalmente seu significado social na narrativa literária: ela é a serva que detém a vida, que serve unicamente ao progresso e continuidade da família de seu comandante; mas que pode sugerir o perigoso convite para burlar as regras políticas, econômicas, sociais, morais e éticas presentes na mídia narrativa: ela também é o convite ao proibido. De mesmo modo, à mídia visual do desfile de moda são transpostos tais significados da narrativa, alinhavando o perigoso vermelho das aias ao silenciamento das mulheres gileadianas – e, por que não, de algum modo, as mulheres de toda a história humana?
No conto, a cor vermelha gera repulsa nas esposas dos comandantes, pois as aias podem fazer algo que mais ninguém é capaz – gerar filhos. Em uma sociedade marcada pela infertilidade, as aias eram as mulheres “abençoadas com o fruto” – em expressões da narrativa literária –, vestindo o vermelho, “a cor do sangue e da vida, [...] a cor do imoral, [...] a cor das correções, do controle e da justiça” (HELLER, 2013, p. 14). Já às Marthas, a cor vermelha gera uma espécie de medo, porque elas não desejam ser submetidas à função desempenhada pelas aias: “Mas o cenho franzindo não é nada pessoal contra mim: é o vestido vermelho que ela desaprova, e o que ele representa. Ela acha que pode ser contagioso, como uma doença ou algum tipo de má sorte” (Atwood, [1985] 2017, p. 18).
Figura 4. Modelo utilizando roupa criada para o desfile
Fonte: Vaquera (2017). Fotografia de Michael Hauptman.
Ressalta-se, na Figura 4, a modelo usando um vestido vermelho e com mangas muito mais longas que seus braços. Na frente, percebe-se uma modelagem que se assemelha a um avental e, até mesmo, gera semelhança às batas utilizadas por pacientes em hospitais e manicômios – uma sugestão implícita à doença, incapacidade e debilidade da mulher que porta o vermelho nas mídias narrativas, televisivas e do desfile.
Na obra midiática do romance, as aias só podem sair da casa acompanhadas por outra aia, sua dupla8 – que deveria servir de companhia e vigia –, a pedido das Marthas, que também são as cozinheiras. Frequentemente, as duplas de aias vão ao mercado para fazer compras. Quando saem, usam uma espécie de antolho, como o dos cavalos, para que enxerguem apenas à frente, somente o que for necessário:
Por causa de nossas abas em forma de asas, nossos antolhos, é difícil olhar para o alto, difícil ter uma visão completa do céu ou de qualquer coisa. Mas podemos fazê-lo, um bocadinho de cada vez, um movimento rápido de cabeça, para cima e para baixo, para o lado e de volta. Aprendemos a ver o mundo aos arrancos, em arquejos, como se prendendo a respiração (Atwood, [1985] 2017, p. 42).
Percebe-se que a Figura 4 retoma a carga simbólica da cor vermelha, também disposta na Figura 3, mas evidencia a tendência simbólica da cor vermelha às paixões extremas, doentias, sugerindo a intensidade da loucura também expressada pelo uso de uma peça que se assemelha a um avental.
Figura 5. Modelo utilizando roupa criada para o desfile
Fonte: Vaquera (2017). Fotografia de Michael Hauptman.
Moser (2006) disserta a respeito da relação entre as artes e aponta que a intermidialidade se faz presente, mesmo que não seja imediatamente explícita. Assim, na roupa apresentada na Figura 5, um tecido leve e transparente cobre todo o corpo da modelo: da cabeça aos pés. As abas compõem o visual, mas, mesmo que tente enxergar, existem barreiras entre os olhos e o que estiver em sua frente. Na foto, observa-se que a modelo faz um gesto com uma das mãos, como se tentasse ver, entretanto, ainda assim, sua visão está embaçada por uma camada de tecido vermelho.
Nesta peça do desfile, percebe-se realocações de símbolos a partir da relação entre os suportes que compõem as vestimentas: o vermelho em um tecido transparente e o branco em um antolho. Neste aspecto, a carga simbólica transpassada da mídia verbal à visual, na intertextualidade crítica entre os signos evocados pelas obras verbais e visuais, o sentido de pureza carregado pela cor branca alocada em um antolho os símbolos: no contexto da obra narrativa, os olhares das aias devem ser puros, até mesmo ao decidir a direção, vendo apenas o que é necessário, tolhidas em seus olhares.
Ainda mais, quando a noção da subversão e do perigo eminente carregado pelo vermelho é contrastada pelo ideário pacífico e límpido simbolizado pela cor branca, ressaltamos que o tecido transparente em cor vermelha também reorganiza as questões de silenciamento e subversão: o tecido cobrindo o rosto (e os olhos) da modelo questiona a intenção de silenciar aquela que utiliza a vestimenta em questão. Quando tratamos da cor empregada, a ambiguidade entre morte e vida, perigo e paixão, são evocadas. Também, se considerarmos ser um tecido com transparências, todas as considerações acima são realinhadas, uma vez que o tecido transparente permite que as pessoas vestidas com aquela roupa vejam “o que não se deve ver”. O antolho branco que acompanha a veste, que não é longo o suficiente para lhe tolher olhares, figura como um gorro, apenas. Assim, nas intermídias e transposições do verbal ao visual, o questionamento de silenciamentos e usurpações da ficção da aia chega às problemáticas sociais das sociedades ocidentais (não-ficcionais): a intermídia é realizada, a adaptação da obra é completa, a crítica é transposta, mas a subversão da modelo da Vaquera é ainda mais intensificada na mídia da moda.
Ademais, salienta-se a possibilidade de que exista uma vulnerabilidade corporal, explicitada pelas roupas íntimas visíveis a quem vê a modelo; bem como as peças íntimas à mostra possam ser encaradas como empoderamento feminino, considerando a carga de problematizações socioculturais carregadas pela marca Vaquera. Todavia, há de se considerar que a própria modelo faz esforços para enxergar o que está à frente, com o olhar e a fala dificultados pela vestimenta, pois pode estar enclausurada em sua veste, em sua existência: nesta perspectiva, a fidelidade da transposição de mídias, na construção intermidiática, é possível encontrar verossimilhança e fidedignidade com a crítica social desde a obra verbal de Atwood ([1985] 2017) até à construção da obra visual no figurino televisivo por Cabtree.
Calanca (2011) sinaliza que quando o ser humano reconhece a capacidade da moda de mudar as estruturas sociais a partir de como ela se apresenta, passa a utilizá-la como uma espécie de reino. Assim, ao passo em que a indumentária pode libertar a expressividade humana, também pode aprisioná-la, causar sua extinção.
Sobre o aprisionamento, Offred o sinaliza com muita veemência em inúmeras passagens da narrativa literária, em meio a devaneios e memórias. “Não é de fugas que eles têm medo. Não iríamos muito longe. São aquelas outras fugas, aquelas que você pode abrir em si mesma, se tiver um instrumento cortante” (Atwood, [1985] 2017, p. 16). A personagem não apenas utiliza a relação dos instrumentos cortantes da fuga pela morte, mas evidência, por alegoria, que a fuga interna – a fuga na consciência – é remédio aos enclausurados. Remédio tal que pode originar a coragem para o intento de fuga real (na qual Offred já sinaliza que “não iríamos [...] longe”), como também para o intento revolucionário – todas questões implícitas ao discurso de Offred, intrínseco ao seu fluxo de consciência narrativa.
No que tange a intermidialidade presente na Figura 5, existem possibilidades crítico-interpretativas distintas, mas que se complementam; neste caso, os símbolos e as cores são alocados com verossimilhança à mídia verbal, mas os suportes de tecidos e modo com que estão dispostos no corpo da modelo subvertem os constructos de passividade e inatividade da sujeita oprimida que “vê” além do permitido: o modo combinado do tecido vermelho transparente, do antolho branco de tamanho diminuído, são construções que sugerem a subversão da opressão, não apenas transpondo discursos na intermidialidade, mas ultrapassando a carga visual crítica dos símbolos, sem deixar a verossimilhança com a obra original.
Na transposição da mídia narrativa verbal à mídia visual da passarela, a Figura 6 apresenta uma modelo com os braços amarrados, impedindo-a de mover as mãos. Com apenas os dedos minimamente livres, segura uma flor branca, “a cor feminina da inocência” (Heller, 2013, p. 272), a cor do vestido de noiva. Ainda mais, Chevalier e Gheerbrandt (2001) dissertam que a flor é uma simbolização de passividade em inúmeras culturas, passadas e presentes.
Figura 6. Modelo utilizando roupa criada para o desfile
Foto: Michael Hauptman (2017).
O mínimo movimento permitido à modelo de mãos atadas pode simbolizar a ínfima propriedade que possui sobre sua feminilidade passiva e inocente: ingênua. Tanto a flor quanto a renda que substitui a rigidez dos antolhos simbolizam uma pureza reprimida. O vestido de tubinho liso e vermelho, que desce rente ao corpo da modelo, une-se à impressão dada pela amarração nas mãos: o impedimento de se mover ou ter as próprias vontades. Logo, com uma sujeita tolhida de movimentos e poder sobre si, o alinhavar das relações intermidiáticas ocorre na possibilidade de fuga interna: se Offred a sinaliza ao longo de sua narração; a modelo a exemplifica com sua imobilidade física (mas não interna, nem mesmo psíquica), ainda que ironicamente apenas tenha livre em seu corpo os frágeis dedos que seguram a existência da “aia-noiva” com a rosa da feminilidade – a rosa que simboliza a parte genitália e reprodutora de seu corpo, a rosa que oportuniza a entrada para o útero e para o desabrochar da prole.
Por fim, a Figura 6 evidencia as relações entre as amarras sociais e culturais sobre as mulheres, desde a mídia distópica até a mídia visual, intensificando as situações de similitudes na intermidialidade, porém enfatizando a possibilidade de insubmissão desde os detalhes visuais da vestimenta da modelo.
Entre textos avermelhados, tecidos rígidos, linhas que amarram e agulhas que rasgam, O conto da aia é uma distopia que se costura a respeito de imposições feitas sobre a mulher. A censura forçada sobre o corpo impede as aias de se posicionarem – não apenas psicológica, mas fisicamente –, pois ambas as esferas da narrativa foram delimitadas por homens que as invadem e reduzem à função social de procriadoras, reprodutoras. O medo age como forma de coerção, impresso na cor vermelha, que cobre quem elas são de verdade, todos os dias, servindo como uma lembrança de que suas vontades têm a cor do sangue.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cosem-se as relações de fazer parte da mobília; esconder-se atrás de uma vulnerabilidade visível, mascarada na confusão do presente com as camadas de história do tempo de antes; roupas que prendem e amarram, impossibilitando o caminhar livre ou, até mesmo, ver o que está à frente; sufocar; segurar a flor-útero, a pureza-impura. Em O conto da aia, as aias possuem apenas uma função: procriar.
Como visto na teoria, a mesma cor pode carrega significados distintos e simbologias dualistas: o vermelho, ao mesmo tempo em que cria o tom do início da vida, também pode se destacar pela incitação à vulgaridade, desejo e insubmissão. Em uma realidade que enclausura as mulheres, as roupas da narrativa literária representam e mantém a categorização social das aias no sistema de Gilead.
Percebemos nesta pesquisa que, ao alinhavar a crítica da mídia narrativa de O conto da aia, de Margath Atwood ([1985], 2017) às problemáticas levantadas pelo desfile de moda da marca Vaquera, transpuseram-se questões urgentes da sociedade – não apenas da contemporaneidade, mas secular, milenar – acerca das (im)posições sobre as mulheres e seus corpos e silenciamentos.
Assim, por meio da intermidialidade, costuraram-se as linhas das conclusões analíticas das narrativas – que simbolizavam e explicitavam o silenciamento das mulheres, com especificidades às aias – junto das linhas das vestimentas do desfile de moda da marca coletiva Vaquera, para que pudessem transpor de uma mídia à outra a criticidade e a problematização de papéis, funções, hierarquizações e servidões de um grupo humano a outro.
Das transmutações das mídias como produtos literários e artísticos, intentou-se evidenciar os aspectos das costuras críticas. Evidencia-se, portanto, que as construções intermidiáticas acontecem desde as opções de Atwood no que tange à influência das vestimentas vitorianas e do xador; passam pela intertextualidade das opções estilísticas na transposição da mídia verbal d’O conto da aia à mídia visual televisiva. Ademais, ao passo em que a marca coletiva Vaquera transpõe as vestimentas ao desfile de moda, não apenas trata as criações de moda com verossimilhança, mas imprime suas próprias críticas, que podem ser associadas tanto à mídia verbal distópica, quando à realidade contextual das mulheres na contemporaneidade, ao menos ocidentais.
Finalmente, a mídia distópica de Atwood eleva à máxima potência o problema advindo dos resquícios patriarcais e teológicos da função de muitas mulheres na sociedade, problematizando-as. De modo similar, a marca Vaquera realiza a mesma problematização, em intertextualidade e em intermidialidade com a obra de Atwood (2017), mas suas mídias visuais elevam os questionamentos sobre a possibilidade de evasão e subversão de constructos históricos e simbólicos sobre a condição da mulher na sociedade, nunca desvencilhando-se do compromisso com a obra que origina a discussão: O conto da aia.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi produzido com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Notas de fim de texto
1 Apresenta-se excepcionalmente esta citação em vermelho devido ao sentido do texto.
“‘Intermedial’ therefore designates those configurations which have to do with a crossing of borders between media […]” (RAJEWSKY, 2005, p. 5).
2 Quando chega à casa do governante, um novo nome é dado para a aia. No livro d’O conto da aia é designada como Offred, mas seu nome real não aparece ao longo da narrativa literária. Na série do Hulu, o nome “real” de Offred é June. Offred significa “OF + FRED”, isto é, “propriedade do homem chamado Fred”. Assim, a singularidade das aias é tolhida pelo nome, que passa a explicitar o pertencimento dela ao senhor ao qual serve: a “aia pode ter vários donos e [...] vários nomes: Ofglen, Ofcharles, Ofwayne…” (ROCCO, s.d.).
3 Traje feminino, que cobre todo o corpo, tal como as vestimentas do hijab.
4 “Each sub sector needed a uniform to overthrow any individuality, so colour was a very tribal way to identify this” (NEWBOLD, 2017).
5 “subvert luxury and tell stories with clothing” (VAQUERA, 2023).
6 “fanciful, visionary and often impractical taste” (SUBAIR, 2023).
7 “each look featured attentive symbolism, picking up on various small details from both the Margaret Atwood novel and Hulu series” (SILVER, 2017).
8 De acordo com Chevalier e Gheerbrandt (2001), a dupla, ou o número dois “simboliza o dualismo, sobre o qual repousa toda dialética, todo esforço, todo combate, todo movimento, todo progresso. Mas a divisão é o princípio da multiplicação bem como o da síntese. [...] exprime, então, um antagonismo que de latente se torna manifesto; uma rivalidade, uma reciprocidade, que tanto pode ser de ódio, quanto de amor; uma oposição, que pode ser contrária e incompatível mas também complementar e fecunda” (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 2001, p. 346). Assim também é a relação da dupla de aias: a dupla serve para vigiar, acompanhar, para ser amiga ou delatora; são a expressão simbólica da dualidade humana.
REFERÊNCIAS
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