Upcycling artesanal e diferentes biotipos: concepção, desenvolvimento e produção de produtos de moda autoral


José Heitor da Silva

Mestrando, Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC / jsheitorr@gmail.com
Orcid: 0009-0004-2446-5205/ Lattes

Lucas da Rosa

Doutor, Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC / darosa.lucas@gmail.com
Orcid: 0000-0002-8429-2754/ Lattes

Daniela Novelli

Doutora, Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC / daniela.novelli@udesc.br
Orcid: 0000-0001-6981-8933/ Lattes

Enviado: 20/12/2022 // Aceito: 28/02/2023

Upcycling artesanal e diferentes biotipos: concepção, desenvolvimento e produção de produtos de moda autoral

RESUMO

Este artigo tem por objetivo apresentar o corpo humano, em todos os seus planos – coronal, sagital e transversal – e sua importância na concepção, desenvolvimento e produção de upcycling artesanal em produtos de moda autoral. Trata-se de uma pesquisa aplicada, qualitativa e descritiva, delineada por uma pesquisa bibliográfica – a partir de autores ligados à teorização semiótica do corpo e autores suecos envolvidos em métodos criativos - e experimental – com pesquisa laboratorial. Acompanhando os estudos da pró-sustentabilidade, a técnica do upcycling busca, de forma ética, aprimorar a criação de produtos de moda que possam ser reconfigurados e dispostos novamente na economia circular da moda, e os estudos corpóreos podem contribuir para que a diversidade corporal possa ser vinculada na concepção estética e autoral desses produtos que são reintroduzidos pelo ato criativo de ver e fazer.

Palavras-chave: Upcycling. Processos criativos. Corpo.

Artisanal upcycling and differents biotypes: conception, development and production of conceptual fashion products


ABSTRACT

This article aims to present the human body, in all its planes – coronal, sagittal and transversal – and its importance for the conception, development and production of artisanal upcycling in conceptual fashion products. This is an applied, qualitative and descriptive research outlined by a bibliographical research – from authors linked to semiotic theorization of the body and Swedish authors involved in creative methods – and experimental – with laboratory research. Accompanying pro-sustainability studies, the upcycling technique ethically seeks to improve the creation of fashion products that can be reconfigured and arranged again in the circular economy of fashion, and body studies can contribute to body diversity be linked in the aesthetic and authorial conception of these products that are reintroduced by the creative act of seeing and doing.

Keywords: Upcycling. Creative process. Body.

Upcycling artesanal y diferentes biotipos: concepción, desarrollo y producción de productos de moda de autor

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar el cuerpo humano, en todos sus planos - coronal, sagital y transversal - y su importancia en la concepción, desarrollo y producción de upcycling artesanal en productos de moda de autor. Se trata de una investigación aplicada, cualitativa y descriptiva, perfilada por una investigación bibliográfica - de autores vinculados a la teorización semiótica del cuerpo y autores suecos involucrados en métodos creativos - y experimental - con investigación de laboratorio. Acompañando a los estudios pro-sustentabilidad, la técnica del upcycling busca éticamente mejorar la creación de productos de moda que puedan reconfigurarse y recomponerse en la economía circular de la moda, y los estudios corporales pueden contribuir para que la diversidad corporal pueda vincularse en lo estético y autoral concepción de estos productos que son reintroducidos por el acto creativo de ver y hacer.

Palabras clave: Upcycling. Proceso criativo. Cuerpo.

1. INTRODUÇÃO

Os pensamentos projetuais para a concepção, desenvolvimento e produção de produtos de moda partem do princípio de que, é por meio da aplicação de processos, métodos e metodologias que os estilistas ou designers de moda desenvolvem suas criações. Na contemporaneidade, o slow fashion (moda lenta) nasce com a lógica da pró-sustentabilidade, neste contexto, o upcycling (reaproveitamento de materiais descartados) centra-se nos processos de concepção, desenvolvimento e produção com o uso de materiais e resíduos têxteis já inseridos no meio ambiente, sejam de peças de descarte ou resíduos. Para que os estilistas ou designers utilizem de métodos para o reuso desses materiais, é possível instigar a criatividade para a concepção de novas estéticas e ideias autorais.

Constata-se como principal ferramenta criativa utilizada para a criação de produtos de moda, os desenhos e esboços de croquis manuais ou digitais – método lógico do design – que são desenvolvidos para a elaboração de alternativas criativas de produtos. De acordo com Treptow (٢٠١٣, p. ١٣٦) “o esboço não possui compromisso estético; ele serve para que o designer transfira para o papel, de maneira rápida, uma série de ideias”. Entretanto, por ser uma ferramenta bidimensional – esboçada em papéis – o desenho, pode ser um fator limitante na criatividade do criador de moda por ser de natureza plana. Considera-se aqui o método lógico para a concepção do vestuário industrializado, do qual corrobora com as problemáticas do setor de moda – focado na criação comercial conforme o público consumidor.

Dentro desse contexto de padronização, por ter caráter tridimensional, as experimentações dos estudos de ideias e geração de protótipos em bustos de moulage podem facilitar o olhar do criador de moda (estilistas ou designers) na concepção do trabalho autoral de cada um. Como base inicial para a construção de roupas, os bustos são representações do corpo humano, desenvolvidos a partir de medidas corporais humanas padronizadas em tabelas de medidas ou de tamanhos pré-determinados. Ressalta-se que os bustos feitos com dimensões do corpo humano de uma determinada pessoa com medidas diferentes das tabelas padronizadas, possuem um custo elevado, considerando que representam as medidas e formas de uma determinada pessoa, raramente podendo ser usado para criar peças para diferentes usuários. Pontua-se ainda que na indústria, ocorre a padronização de medidas para fins comerciais, porém a estrutura corpórea humana difere entre si, visto que na contemporaneidade, o que é desenvolvido sob medida diverge do vestuário industrializado. Com isso, e por razões práticas de tempo de produção, os criadores de moda trabalham direto no busto de moulage com medidas padronizadas, ao invés de aprofundarem-se nos estudos do corpo humano ou terem condições de incorporar no custo do produto o manequim com as dimensões exatas do usuário. Apesar da contribuição assertiva que os bustos padronizados proporcionam para projetos no setor de moda, ainda existe o entrave de exercitar o pensamento criativo por meio de experimentações apenas no busto de moulage – desprovido de pernas, braços e cabeça – ocasionando uma desconsideração por parte do criador, de áreas corporais que poderiam potencializar a criação autoral de moda (THORNQUIST, 2020).

No processo de concepção, desenvolvimento e produção autoral do upcycling artesanal no setor de moda, é essencial que o início experimental da visão do criador comece pela busca dos materiais que foram descartados, sejam pelos consumidores ou por marcas ou outra forma de descarte. Para que a materialização da ideia seja possível, verifica-se a quantidade de tecido em relação aos materiais que são encontrados. Assim sendo, por influência do corpo em relação ao processo de concepção por intermédio do upcycling, a inclusão de diferentes biótipos e tamanhos corporais pode ser determinante na concepção da ideia autoral e dos estudos de criação dessa prática que prioriza as questões mais sustentáveis, aqui inclui-se os métodos estéticos – referentes às práticas dos estilistas artesanais – que desenvolvem suas criações a partir de métodos e experimentações estéticas.

Diante disso, este artigo apresenta a importância do corpo humano na experimentação estética e autoral dos produtos de moda personalizados, e com isso responder a seguinte indagação: Como potencializar o processo criativo do upcycling autoral no setor de moda em consonância com a volumetria do corpo do usuário?

Assim, a partir desta abordagem, o presente artigo tem como objetivo apresentar o corpo humano, em todos os seus planos – coronal, sagital e transversal – e sua importância na concepção, desenvolvimento e produção de upcycling artesanal em produtos de moda autoral. Para tanto, o artigo apresenta os métodos criativos do autor Clemens Thornquist, citados em seu livro Artistic Development in [Fashion] Design (2010), bem como, outros autores que possuem afinidade com o tema. Cabe mencionar que os estudos teóricos da prática do upcycling ainda são recentes e, em muitos casos, estão relacionados com métodos e metodologias para a criação e desenvolvimento de produtos oriundos deste processo sustentável (LIDSTRÖM, 2020).

No que se refere à relevância para o âmbito acadêmico, aborda-se o estudo do conhecimento referente ao corpo e aos manequins/bustos de moulage e sua relação com o processo criativo do criador de moda. É oportuno enfatizar que a desconstrução da silhueta humana a partir dos aprendizados da volumetria do corpo pode enriquecer o nível estético e autoral das concepções desenvolvidas a partir das ideias e experimentos de produtos de moda, com especial atenção ao upcycling. Em relação à classificação da pesquisa é de finalidade aplicada, sua abordagem do problema é qualitativa e seu objetivo é descritivo. Os procedimentos técnicos utilizados foram: (i) pesquisas bibliográficas para formular o embasamento teórico por meio de revisão narrativa e assistemática, e (ii) a pesquisa experimental, realizando experimentações visuais para elucidar o objetivo do artigo. Quanto ao local é uma pesquisa de laboratório realizada no Ateliê de Confecção Prof.ª Aparecida Maria Battisti de Abreu da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Em decorrência disso, a fundamentação teórica é baseada nos estudos do corpo relacionados à estrutura do vestir para compreender a função da corporalidade no setor de moda, bem como métodos criativos experimentais e estéticos que possam ser aplicados na construção autoral que envolvem as etapas de concepção, desenvolvimento e produção a partir da prática do upcycling artesanal. A partir disso, inicia-se uma discussão empírica (experimental) sobre a potencialidade da volumetria corpórea em projetos de upcycling artesanal de produto de moda autoral.

2. UPCYCLING ARTESANAL E DIFERENTES BIOTIPOS: CONCEPÇÃO, DESENVOLVIMENTO E PRODUÇÃO DE PRODUTOS DE MODA AUTORAL

Quanto à perspectiva teórica, busca-se relacionar o significado do corpo como matéria e estrutura para o ato do vestir com a concepção da técnica do upcycling em coleções e produtos de moda, diante de um viés semiótico, a conexão da pele e a roupa aponta diferentes contextos estéticos e sociais para os seres humanos e para os estilistas. Considerando a concepção, desenvolvimento e produção de moda autoral – com ênfase no upcycling artesanal – acredita-se que o conhecimento sobre a volumetria corpórea e os métodos criativos são essenciais para a criação de produtos.

Busca-se então, contextualizar este artigo com estudos que abordam sobre a definição do corpo como uma estrutura para o ato de vestir e, consequentemente, teorias baseadas nas relações de métodos criativos que se utilizam de experimentações práticas e teóricas para a concepção das ideias estéticas e autorais para o desenvolvimento do upcycling por meio de métodos estéticos do ato criativo.

2.1 A estrutura do corpo e o vestir

O corpo proporciona ao vestuário interações do vestir singulares para os seres humanos e é por meio dessa conexão entre a pele e a roupa que as construções estéticas são criadas. Carvalho (2015, p. 100) aponta que essa relação é “um acontecimento que origina uma ação e um diálogo com a materialidade que cobre a superfície da pele”. Na medida em que o ser humano observa o ato do vestir como uma apropriação singular da subjetividade individual, encontra-se nele, novos desdobramentos das expressões sociais. Nesse contexto, Saltzman (2015, p. 84) menciona que “o corpo, como expressão social, é um corpo vestido. A partir dos corpos vestidos, relações espaciais muito complexas e dinâmicas, ligadas ao tecido social, são desenvolvidas”.

Para que haja a simbiose entre o corpo e o vestuário, originam-se diferentes significados do ato do vestir na estrutura corporal humana. Diante disso, o corpo pode ser compreendido como um objeto de signos e comunicação, diante da forma como é exibido em diferentes contextos sociais (CASTILHO, 2002, p. 63). Nesse sentido, percebe-se as relações do design de uma peça de roupa com as criações de significados no ato do vestir, Sant’anna (2007, p. 78) enfatiza que,

A construção dos signos do vestuário combina formas, desdobradas em linhas, direções e volumes, cores e texturas, trabalham arranjo de pontos (costura), contrastes e simetrias ou assimetrias, comprimentos e larguras oferendo ao usuário uma gama de indícios variados para a leitura de sua simbologia mimética.

Como destacou-se anteriormente, a estrutura do corpo faz parte da concepção estética da vestimenta e, a partir do corpo, construções de significados são percebidos no sistema de moda. A vestimenta é representada por meio material, sendo única por sua complexidade e ligação ao corpo, e está sempre buscando o diálogo entre esses dois fatores – matéria e estrutura corpórea (BÅGANDER, 2021). Existe, assim, uma forte relação entre o corpo e o espaço no qual está inserido. Diante do exposto, entende-se que o vestir proporciona uma infinidade de significados perante o olhar subjetivo de cada um.

É oportuno enfatizar que o ato de vestir e a moda estão conectados, mas possuem diferentes conotações no que diz respeito ao seu significado. Sant’anna (٢٠٠٧, p. ٧٤) corrobora com o estudo de que “a moda e o vestuário, mesmo intrinsecamente ligados, não podem ser confundidos. O vestuário proporciona o exercício da moda, e essa atua no campo do imaginário, dos significantes; é parte integrante da cultura”. Para a concepção da criação de moda, o ato de vestir é o resultado da elaboração de uma ideia, que está inserida dentro de um sistema de moda, no qual age sobre a perspectiva social de significados. Para Carvalho (٢٠١٥, p. ٩٩), “o vestir é um conceito e a materialização de uma ideia, mas pode ser um estado de consciência que envolve o corpo, e que manipula a matéria”.

A cada ato de vestir, o tecido que envolve o corpo é visto a partir de diferentes pontos de vista, Cidreira (2015, p. 110) considera que “toda vez que um objeto aparece ou se desloca, surge uma nova face dele, e outras se escondem, num jogo instigante de ocultamento, antecipação e promessas de novas faces a serem percebidas”. Emerge-se nesse sentido, compreender que a roupa fora da estrutura corpórea é parcialmente uma ideia em construção, assim que ela atinge a volumetria do corpo, torna-se expressão da expressividade humana. Sant’anna (2007, p. 76) descreve sobre a ideia do corpo desnudo e expõe que

“a roupa desassociada de um corpo é apenas um ser inerte, destituída de vida, parcialmente esvaziada e neutralizada; aberta a qualquer apropriação. Porém, associada ao corpo, mesmo ao desconhecido, sem qualquer legenda, ela ganha vitalidade e torna-se expressão constante”.

Considerando o que foi exposto, o ato de vestir, a volumetria do corpo e o pensamento da ideia autoral do criador de moda podem correlacionar na geração de novas concepções criativas vindas do método estético de criação. Portanto, Saltzman (2015, p. 89) ressalta que “pensar a vestimenta desde a pele, ou melhor dizendo, desde a metáfora da pele, faz submergir o designer, com toda corporalidade, na experiência projetual”. Com essas relações do material têxtil em contato com a estrutura do corpo, Conti e Souza (2016, p. 17) revelam que o material pode ser um meio para dar sustentação às experimentações relacionadas a “ações de dobrar, enrolar, torcer e cortar; para geração de formas; para ser determinante do espaço; para ser impulsionado pelo movimento; para se submeter à percepção dos sentidos”.

Buscando contextualizar essa relação do vestuário – material têxtil – com a estrutura corporal, percebe-se que o corpo se encontra em três planos diante do olhar humano, os planos coronal, sagital e transversal (Figura 1) e fazem referência ao espaço que essa estrutura detém diante do ambiente onde ele se encontra.

Figura 1. Planos Coronal, Sagital e Transversal
Fonte: Silveira; Rosa e Lopes (2017, p. 15-17).

Assim, a partir dessa abordagem, perceber a potência da desconstrução da estrutura corpórea humana na concepção, desenvolvimento e produção autoral do upcycling artesanal pode ser um fator potencial na construção das ideias estéticas dos criadores de moda. Como aponta Thornquist (2012, p. 82),

“a abstração teórica – escultural – da qualidade do manequim de moulage pode ser reconcebida e reconfigurada – ou mudada completamente em um modelo totalmente novo – a fim de se abrir para novas expressões e funções no design”.

Diante disso, entender como os processos desse desenvolvimento criativo pode ser instigado e avaliado pela subjetividade do criador de moda é parte fundamental deste artigo.

2.2 Concepção, desenvolvimento e produção de moda autoral: o corpo como processo criativo

Percebe-se nas etapas de concepção, desenvolvimento e produção autoral de moda – entende-se aqui como moda autoral, o trabalho de criadores que intensificam seu trabalho em uma lógica sustentável e com significados, onde a proposta da criação vai para além de fins comerciais – que há alguns questionamentos relacionados aos métodos utilizados para a ideação desses projetos, principalmente no que diz respeito aos estudos corporais. Saltzman (2015, p. 84) cita “Como pensamos a vestimenta? Que corpo construímos em nosso imaginário quando fazemos referência ao design do vestuário? Como abordamos essa área do conhecimento na atividade projetual?”. A capacidade criativa é inerente aos seres humanos, é a partir dos estudos práticos e teóricos que novas ideias e estéticas autorais vão surgindo. Najar (2019, p. 7) observa que “sofisticar o pensamento, a reflexão e a competência de criar conceitos de um designer é fundamental para sofisticar, no sentido de aprofundar, sua capacidade criativa”.

Na concepção, desenvolvimento e produção autoral da técnica do upcycling artesanal de produto de moda, a ideação de um conceito parte do princípio de que é por meio da busca de materiais já inseridos no meio ambiente que as ideias surgem para a construção de novos significados para os produtos de moda. As metodologias utilizadas para a ideação de um produto na indústria partem do pressuposto de informações de tendências de cores, tecidos e silhuetas, além de iniciar-se os esboços sem os materiais que serão utilizados. No caso do upcycling esses métodos nem sempre atendem às suas especificidades devido ao fato de que os materiais são a fonte primária da ideia estética da criação. Por conta disso, os estudos que iniciam na matéria-prima como origem da criação, acabam tornando-se menos relevantes, e mesmo uma forma ou função que poderia ser criada pode não ser possível de ser percebida (LIDSTRÖM, 2020).

Em decorrência disso, a capacidade de investigar e visualizar as ideias que são criadas no processo de desenvolvimento de uma peça de roupa autoral a partir da técnica do upcycling, possui contribuições estéticas expressivas para a ideia original. De acordo com Malmgren de Oliveira (2018, p. 31) “em um processo criativo, o ato de ver é uma ferramenta fundamental para catalisar e desenvolver ideias, bem como avançar e implementar métodos”. Essa perspectiva apresentada anteriormente, mostra que o ato de ver faz parte da concepção, desenvolvimento e produção de ideias, e ainda, Malmgren de Oliveira (2018, p. 33), afirma que “o desenvolvimento de uma visão é realizado de forma gradual e não linear através de experimentos de design (explorações)”. Em decorrência do ato de visualizar na ideação de um projeto, o entendimento da construção estética é provocado.

Por meio do desenvolvimento de ideias para a construção da estética final do produto, novos problemas e visões são percebidas no ato de fazer. Dentro desse contexto, Fletcher e Grose (2011, p. 56) apontam que “a experiência direta desperta nossa percepção de forma imediata e visceral e começa a erigir um modelo ou marco de referência para se avaliar decisões futuras”. Ainda, no que se refere ao tema, Conti e Souza (2016, p. 5) enfatizam o aprendizado adquirido por meio das experimentações, indicando que “cada problema solucionado permite ao projetista lidar com as diversas naturezas das restrições, e aprender mais sobre elas, de modo a materializar as suas ideias com clareza cada vez maior”.

Na tentativa de compreender a pesquisa e o desenvolvimento da criação estética da moda autoral a partir da relação do ato de ver, Thornquist (2012, p. 11) assimila que a “pesquisa básica no vestuário é explorar o potencial do vestuário através de relações fundamentais entre técnica e expressão”. Nota-se que é por intermédio de saber obter a ideia estética que as criações são finalizadas. Já Conti e Souza (2016, p. 5) ratificam que “os projetistas não decidem apenas o efeito que querem obter, mas precisam saber como obtê-lo”. Pelo que se observou até aqui, o ato de ver por meio da exploração de experimentações das ideias estéticas de produtos autorais de moda faz-se necessário na concepção, desenvolvimento e produção do vestuário. Thornquist (2012, p. 150) articula que,

Um único experimento pode ser um exemplo vívido de uma expressão ou de uma função e, como tal, propor uma possível realidade estética. No entanto, a precisão e validação de uma definição genérica de uma função e expressão estética depende de um número crítico de experimentos que juntos se agrupam em torno de uma definição.

Partindo do entendimento anteriormente exposto, pode ser perceptível a importância de métodos criativos para concepção, desenvolvimento e produção autoral do upcycling artesanal de produtos de moda em ateliês. Berlim (2012, p. 9) enfatiza que “a estética deve novamente andar de mãos dadas com a ética [...] e o ambiental jamais pode ser desassociado do social”. Para que esses experimentos sejam concebidos, ferramentas como, a modelagem bidimensional e tridimensional (moulage) e o ato de costurar são utilizadas para a variação de exemplos de ideias na construção da estética do trabalho. Como destacam Silveira, Rosa e Lopes (2017, p. 12)

“quanto mais se aprende sobre a estrutura e o mecanismo do corpo humano, mais facilmente se pode reconhecer e compreender sua forma, quando é desenhado no projeto do produto do vestuário e no desenvolvimento da modelagem”.

De fato, os protótipos construídos pela ideação de uma forma são baseados na modelagem anatômica do corpo e, a partir de bustos de moulage, desenvolvidos com as medidas corporais padronizadas do corpo humano, é possível realizar as experimentações necessárias para o desenvolvimento estético da moda autoral. Thornquist (2012, p. 82) esclarece que “como base de construção, o manequim do alfaiate é muitas vezes um inquestionável pré-modelo para modelagem, desenvolvimento de design e posterior escultura do corpo”. E diante disso, o ato de fazer, concebe novos olhares para o manequim de moulage. Em síntese, a elaboração da ideia parte da relação entre o ato de fazer e o ato de ver, priorizando os questionamentos da forma e do corpo. Malmgren de Oliveira (2018, p. 40) corrobora com a articulação ao afirmar que,

A elaboração de ideias visa definir relações interessantes entre forma e material para alcançar uma determinada expressão. Quando as relações são construídas entre o corpo e o material, o ato de ver necessariamente lida com os dois modos: a forma não pode ser composta sem responder a questões de materialização, e o material não pode ser usado para criação sem a devida consideração ao desenvolvimento da forma.

Do exposto, nessa correlação entre a forma e o material, a ligação do corpo em movimento também se faz necessário observar na ideação de uma criação autoral. Quando o uso é abordado como uma interação no corpo humano, descobre-se duas estéticas que se relacionam, uma é o ato de vestir como forma e a outra como ato temporal do movimento da estrutura do corpo (BÅGANDER, 2021). Nota-se que a construção estética de novos exemplos das formas/volumes no corpo humano parte dos estudos desenvolvidos no setor de moda, dito isso, Lindqvist (2013, p. 45) expõe que “as técnicas e métodos para alterar padrões planos podem ser considerados formas produtivas, úteis e práticas de desenvolver novas formas e expressões”.

Dentro desse contexto, as teorias de modelagem plana e tridimensional passam a ser relevantes no processo de concepção, desenvolvimento e produção autoral da técnica do upcycling na criação estética dos criadores de moda com intuito nos estudos do corpo, a bourrage/preencher (Figura 2) é uma técnica utilizada dentro da moulage (modelagem tridimensional), na qual planeja-se estofar o busto de costura a fim de projetar novos volumes na estrutura corporal, dando volumes maiores do que os padrões do setor de moda que usa tabela de medidas padronizadas do corpo humano ou para correção das partes do corpo. Como bem explica Yamashita (2008, p. 5)

“a execução da bourrage está intrinsicamente ligada ao processo de criação, na consecução do conceito trabalhado, volume e caimento, principalmente quando não está vinculada às formas naturais de um corpo vivo e às tendências de mercado”.

Figura 2. Técnica da BourrageFoto em preto e branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média
Fonte: Elaborada pelos autores (2022).

Yamashita (2008, p. 6) corrobora com a articulação de que “estamos falando, no caso específico deste trabalho, de uma ‘moulage experimental’, na qual, não reside necessariamente o rigor às regras técnicas da moulage tridimensional”. Diante dessa visão, o ato de ver e a experimentação do fazer ligados à técnica do upcycling e da bourrage, concebem aos criadores de moda possibilidades da ideação estética na construção de criadores autorais a partir de materiais que já foram descartados pelos consumidores no setor de moda.

Caminhando nesse sentido, a partir da teoria exposta, busca-se por meio dos procedimentos metodológicos relacionar de forma prática a estrutura corporal volumétrica e a concepção, desenvolvimento e produção autoral do upcycling artesanal por meio de experimentos visuais com a técnica da bourrage no busto de moulage e o ato de drapear como ferramentas criativas para a visualização estética dos protótipos.

3 Procedimento metodológico: início das experimentações

Na tentativa de compreender a estrutura do corpo como potencial espaço para o processo criativo da técnica do upcycling artesanal de produto de moda autoral, buscou-se sistematizar as experimentações visuais para elucidar o objetivo do artigo. Diante disso, os métodos estéticos de Thornquist (2010) foram utilizados para a prática do ato de ver e fazer, que dão suporte ao objetivo desta pesquisa. Thornquist (2010, p. 12) cita que

“esses métodos não são práticos nem teóricos, eles são ambos, de uma vez só. Eles visam a prática da visão: a construção concreta de conceitos. Em suma, esses exercícios visam resolver, de uma maneira muito pragmática, a ruptura artificial entre a teoria abstrata e a prática concreta”.

Dessa maneira, em sua obra este autor, apresenta vários exercícios de desenvolvimento artístico a partir de três capítulos que são desenvolvidos da seguinte forma (Figura 3): “Faith – foundation and motif, Vigour and Patience – modes and materials, Critique – form” (em tradução livre para a língua portuguesa: Faith – foundation and motif/Convicção – fundamento emotivo, Vigour and Patience – modes and materials/Vigor e Paciência – modos e materiais, Critique – form/Crítica – forma). Thornquist (2010, p. 12) evidencia que,

A primeira parte faz a base para a qual o escopo é o cultivo ao longo da vida de uma nova perspectiva estética. A segunda parte forma métodos para o indivíduo trabalhar no caminho para realizar essa perspectiva. A terceira seção sugere diferentes formas e maneiras de unir mundos, e como tal, em virtude da integridade, da convergência de sensibilidade e forma. No final, o apêndice apresenta uma base metodológica útil em muitos dos métodos dos capítulos principais.

Cabe mencionar que cada capítulo foi interpretado e adaptado para a contextualização da volumetria corpórea e das técnicas de moulage para sugerir diferentes formas na técnica do upcycling.

Figura 3. Diagrama da MetodologiaTexto

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaFonte: Adaptada de Thornquist (2010) pelos autores (2022).

Diante disso, as experimentações visuais (Figura 4) começaram a serem desenvolvidas com a realização da técnica de bourrage no busto de moulage. Para isso, utilizou-se a manta acrílica – gramatura 60 -, alfinetes e linha de costura. Com o intento de expandir um dos lados do busto, e consequentemente, criar a comparação volumétrica, optou-se em aplicar seis camadas por todo o lado direito do manequim estudado. Para a volumetria do busto, alfinetou-se dois bojos pequenos para dar sustentação, além de duas camadas de manta acrílica, e criar a volumetria condizente com os estudos de modelagem.

Como foco de estudo, priorizou-se peças de reaproveitamento descartadas semelhantes para que a comparação posterior do estudo fosse considerada apenas pela volumetria corpórea e não por mudanças estéticas referentes às peças escolhidas. Dessa forma, encontra-se nos experimentos visuais duas camisas sociais masculinas de mesmo tamanho, padronagem e tonalidade de cor. Da mesma forma que a escolha pela técnica de drapear – técnica de representação artística em bustos – ocorreu pelo objetivo de potencializar os experimentos de uma maneira mais livre e autoral. Para a criação das formas e volumetria dos tecidos com essa técnica, considerou-se aplicar os alfinetes consecutivamente em ambos os lados, para que os mesmos, fossem colocados nas mesmas regiões só que nos lados do corpo opostos, e essa decisão também foi baseada na comparação final das experimentações.

Figura 4. Bourrage, Camisas e DrapeadoHomens de terno e gravata

Descrição gerada automaticamente com confiança média
Fonte: Elaborada pelos autores (2022).

Com isso, para que os procedimentos e visualização dessas experimentações autorais baseadas na volumetria do corpo e no upcycling obtivessem resultados corretos e sem a interferência de tecidos, cores e discrepância na técnica de drapear, utilizou-se dessa sequência baseada na metodologia apresentada, onde foram definidos os seguintes aspectos a serem considerados: a importância da bourrage e das peças de upcycling semelhantes escolhidas – Faith – foundation and motif -, a técnica de drapear, como ferramenta para a ação no busto de moulage e a aplicação dos alfinetes consecutivamente em ambos os lados – Vigour and Patience – modes and materials -, e a partir disso, a documentação visual de cada experimento em formato de fotos e vídeos – Critique – Form.

Pelo exposto, apresenta-se a seguir o resultado das experimentações visuais baseadas na construção autoral da relação entre a volumetria do corpo humano e a concepção, desenvolvimento e produção autoral do upcycling artesanal, bem como, alguns aspectos relevantes a serem apontados percebidos durante a pesquisa de laboratório realizada.

4. Upcycling e a volumetria corpórea

Ao aplicar os procedimentos metodológicos mencionados anteriormente, obteve-se uma série de experimentações visuais relacionadas com o objetivo da pesquisa. Por meio dos testes realizados, registrados em fotos e vídeos, observou-se que em alguns pontos do busto de moulage em questão (Figura 5), ocorreu diferenciações – tanto na volumetria do tecido – quanto na quantidade de tecido que sobrou ou faltou diante da técnica de drapear.

Figura 5. Experimentações Visuais

Fonte: Elaborada pelos autores (2022).

Percebeu-se por meio das experimentações que utilizar as peças de reaproveitamento inteiras – sem interferências de corte e costura – ocasionou expressões visuais que não poderiam ser vistas caso houvesse interferência de reconstrução das camisas. Como Lidström (2020, p. 194) menciona em sua pesquisa

“um equívoco sobre refazer ou fazer uma mudança é que você tem que reconstruir completamente a roupa. Reformule-o, destrua-o completamente e depois reconstrua. Infelizmente, quando isso acontece, pode-se facilmente perder as possibilidades de pequenas mudanças”.

Além do exposto, para que as camisas obtivessem outro contexto que não fosse a criação original – camisas – atentou-se em não posicionar as peças no busto como uma camisa seria colocada pela sua forma original/clássica. Com isso, as experimentações foram desenvolvidas em partes do corpo que pudessem mudar o contexto original das peças e, consequentemente, projetar novas construções estéticas e semióticas para esses objetos têxteis. Como explica Ryd (2021, p. 17) “dentro da transformação de peças, muitas vezes há uma mudança de contexto, os materiais refeitos recebem outros propósitos”.

A partir do estudo, percebeu-se que ao experimentar visualmente criações autorais de formas/volumes vestíveis nos planos corporais do busto de moulage, essas visualizações fotográficas mostram que a volumetria corpórea humana pode ser determinante no resultado da ideação estética do upcycling, com isso, diferentes tamanhos de bustos e de corpos humanos tendem a modificar a realização de um experimento têxtil desenvolvido a partir de reaproveitamentos de materiais descartados. Como descreve Malmgren de Oliveira (2018, p. 46) “o ato de ver é fundamental para a geração de ideias, descoberta, imaginação e tomada de decisão. Ver ativa a ideação, direciona o desenvolvimento de ideias e avalia materiais de sugestão, como exemplos de design”.

Cabe ressaltar que caso não houvesse o estudo prático desses experimentos visuais desenvolvidos, a interpretação estética e a avaliação do resultado tornar-se-ia diferente, a autora salienta ainda que “não há, no entanto, nenhuma sugestão ou mudança em uma sugestão de material sem um ato de fazer”.(MALMGREN DE OLIVEIRA, 2018, p. 46) Evidenciou-se, portanto, que o ato de ver e o ato de fazer na concepção, desenvolvimento e produção autoral do upcycling artesanal e o estudo da volumetria corpórea são ações imprescindíveis na construção estética do criador de moda (estilistas e designer de moda), tanto para os estudantes que se encontram na academia quanto para criadores de moda que utilizam do upcycling e das ações pró-sustentáveis para seus trabalhos no setor de moda.

5. Considerações finais

Neste artigo, no argumento abordado perante o corpo humano como estrutura vestível, percebe-se que por meio da técnica do upcycling na concepção de produtos éticos e com viés na pró-sustentabilidade, os criadores de moda encontram em suas jornadas de trabalhos impasses que são observados a cada momento do ato de concepção, desenvolvimento e produção no que se refere a conceber um novo valor estético a essas peças descartadas no meio ambiente.

Diferentemente das ferramentas criativas usadas na criação de um produto de moda pelo método lógico – desenhos e tendências-, as ideias autorais desenvolvidas a partir do upcycling voltam-se à procura de materiais têxteis como ponto inicial da conceituação de um projeto. Diante disso, essa ideação não é uma ação precisa e linear, e sim, está em constante intervenção criativa conforme novas ideias e impasses vão surgindo durante o momento do ato de criar.

Motivado pela contextualização da importância do corpo nesse processo criativo do upcycling, esse artigo teve como objetivo apresentar o corpo humano, em todos os seus planos – coronal, sagital e transversal – e sua importância na concepção, desenvolvimento e produção de upcycling artesanal em produtos de moda autoral. E por meio das experimentações visuais práticas, percebeu-se que a volumetria do corpo influencia no resultado estético das práticas do upcycling. Enfatiza-se então que novos métodos criativos podem ser desenvolvidos para que os impasses vistos pelos criadores de moda possam ser reduzidos, com especial atenção à estrutura do corpo humano.

É, no entanto, ainda relevante enfatizar que esse estudo pode ser aprimorado, diante do fato, de que os experimentos práticos podem ser idealizados direto nos estudos do corpo humano, passando pela comissão de ética de pesquisa, visa-se também atentar-se a estudar corpos humanos de pessoas com alguma deficiência motora (Pessoas com Deficiência - PcDs) para que a inclusão desses corpos, muitas das vezes, esquecidos pelo setor da moda, possam estar em contato direto na criação autoral do upcycling artesanal de estudantes e marcas que preocupam-se com as questões da pró-sustentabilidade.

Acredita-se, portanto, que esse estudo possa contribuir para que as ideações estéticas e autorais de produtos de moda possam estar atreladas a questões éticas, sociais e ambientais, e com isso, contribuir para que o setor criativo da moda seja visualizado como um caminho para novos estudos práticos e teóricos mais inclusivos e ativistas, no âmbito socioambiental.

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