Cenários no desenvolvimento de coleção de moda: da tradição do design industrial à imaginação
Carlo Franzato
Doutor, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / carlofranzato@puc-rio.br
Orcid: 0000-0001-7666-7037 / Lattes
Enviado: 20/04/2022 // Aceito: 18/05/2023
Cenários no desenvolvimento de coleção de moda: da tradição do design industrial à imaginação
RESUMO
O ensaio discute o processo de construção de cenários no design de moda. Opera uma crítica às metodologias praticadas nesse campo disciplinar, cujos fundamentos, ao menos em parte, estão situados na tradição do design industrial. Para tanto, compara a proposta para a configuração de produtos industriais de Löbach (2001) à proposta de desenvolvimento de coleção de Treptow (2013), evidenciando similaridades estruturais. Logo, o ensaio evidencia a possibilidade de o design de moda procurar caminhos alternativos à tradição do design industrial, valorizando o potencial de imaginação que é inerente aos cenários. Tal possibilidade é ilustrada por meio do percurso da Melissa, interpretada como um caso emblemático de organização que opera por cenários no desenvolvimento de uma coleção e, coleção após coleção, na construção de sua identidade de marca. O ensaio propõe abrir um diálogo com designers e professores de moda, para que possam reavaliar suas práticas, promovendo a imaginação.
Palavras-chave: cenários. Melissa. desenvolvimento de coleção.
Scenarios in fashion collection development: from the tradition of industrial design to imagination
ABSTRACT
The essay discusses the process of scenario building in fashion design. It criticizes the methodologies used in this disciplinary field, whose foundations, at least in part, are situated in the tradition of industrial design. To do so, it compares Löbach’s (2001) proposal for industrial product configuration with Treptow’s (2013) proposal for collection development, highlighting structural similarities. Therefore, the essay demonstrates the possibility for fashion design to seek alternative paths to the tradition of industrial design, by valuing the potential for imagination that is inherent in scenarios. This possibility is illustrated through the case of Melissa, interpreted as an emblematic example of an organization that operates through scenarios in the development of a collection, and collection after collection, in the construction of its brand identity. The essay proposes opening a dialogue with fashion designers and professors, encouraging them to reevaluate their practices and foster imagination.
Keywords: scenarios. Melissa. fashion collection development.
Escenarios en el desarrollo de colección de moda: desde la tradición del diseño industrial hasta la imaginación
RESUMEN
El ensayo discute el proceso de construcción de escenarios en el diseño de moda. Critica las metodologías utilizadas en este campo disciplinario, cuyos fundamentos, al menos en parte, están situados en la tradición del diseño industrial. Para hacerlo, compara la propuesta de Löbach (2001) para la configuración de productos industriales con la propuesta de desarrollo de colección de Treptow (2013), destacando similitudes estructurales. Por lo tanto, el ensayo demuestra la posibilidad de que el diseño de moda busque caminos alternativos a la tradición del diseño industrial, valorando el potencial de la imaginación que es inherente a los escenarios. Esta posibilidad se ilustra a través del caso de Melissa, interpretado como un ejemplo emblemático de una organización que opera a través de escenarios en el desarrollo de una colección y, colección tras colección, en la construcción de su identidad de marca. El ensayo propone abrir un diálogo con diseñadores y profesores de moda, animándolos a reevaluar sus prácticas y promover la imaginación.
Palabras clave: escenarios. Melissa. desarrollo de colección de moda.
1. PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE CENÁRIOS NO DESIGN ESTRATÉGICO
O processo de construção de cenários é praticado no design estratégico desde os anos noventa, como demonstra o trabalho precursor de Francesco Maurie (1996) de sua equipe. Desde então, a construção de cenários é central na reflexão teórico-metodológica dessa abordagem (MANZINI; JÉGOU, ٢٠٠٣; ZURLO, ٢٠١٠; MORAES, ٢٠١0; COUTINHO; PENHA, 2018; FRANZATO et al., 2015; SCALETSKY, 2016).
Pratica-se, também na área da moda tal processo de construção, tanto que, nas páginas da revista ModaPalavra, comparecem diversos artigos que o exploram (QUEIROZ; BASSO, 2016; PERINI, 2018; VISONÁ, 2018). Para o desenvolvimento desses artigos, suas autoras recorrem a alguns dos trabalhos citados no primeiro parágrafo, demonstrando a possibilidade de se desenvolverem sinergias entre design de moda e design estratégico.
Não há conflitos entre design estratégico e design de moda, apenas ênfases diferentes. O design de moda põe sua ênfase no setor produtivo de sua atuação. O design estratégico põe-na no trabalho de elaboração estratégica que caracteriza seus processos, a partir da compreensão de que há necessidade de estratégia perante a complexidade dos desafios enfrentados pelos designers e suas organizações. Pois bem, a moda é, evidentemente, um campo de alta complexidade e, por isso, as sinergias entre as duas abordagens metodológicas são não apenas possíveis, mas desejáveis. De fato, há organizações que operam por cenários e que podem ser consideradas referências, tanto para o design estratégico quanto para o design de moda. É o caso, por exemplo, da Melissa.
2. CASO MELISSA
Na interpretação do autor deste ensaio, Melissa vem desenvolvendo seu cenário desde o lançamento da sandália Aranha, em 1979. Trata-se de um processo demorado, espontâneo e intuitivo, que começa a assumir uma configuração mais coerente e consistente na década passada. O cenário poderia ser sintetizado pela expressão ”Plastic Dreams”, payoff de diversas suas campanhas publicitárias e nome da revista que a organização editou de 2009 a 2018 (figuras 1 e 2). Sucessivamente, ao passo que a organização assumia o compromisso com a sustentabilidade, a expressão era abandonada, e outras expressões eram preferidas, como a recente “transformamos o plástico em extraordinário”, slogan que hoje comparece no site da Melissa.
Figura 1. Campanha da Melissa, desenvolvida pela agência Casa Darwin, em 2012
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Fonte: Site da agência Casa Darwin
Figura 2. Capas da revista Plastic Dreams que representam os diversos layouts da publicação.
Fonte: Repertório do autor.
Há mais de quarenta anos, a Melissa elabora sua oferta por meio de um processo de retroalimentação entre o cenário que vem construindo e os produtos que lança a cada estação. De um lado, o cenário acolhe os novos produtos; de outro, os produtos desenvolvem e atualizam o cenário. Assim, a oferta mantém-se coerente no tempo, ao passo que se atualiza.
Nessa direção, para a organização, é especialmente importante trabalhar com designers autônomos, pois tais colaborações permitem novas interpretações do cenário e novas significações. Dessa forma, progressivamente, a Melissa passou a explorar o campo da ficção, da fantasia, do sonho, do extraordinário.
3. CENÁRIO COMO LUGAR DA IMAGINAÇÃO
Como ilustra o exemplo da Melissa, o cenário poderia ser compreendido como a cena do projeto, o lugar da imaginação em que os designers o encenam. Não se trataria, então, de um lugar real, em que já se tenha experiência no presente ou que, supõe-se, possa vir a se realizar no futuro. Tampouco se trataria de uma representação da realidade, mais ou menos fidedigna, derivada de referências já à disposição e de análises descritivas especificamente elaboradas para alimentar um projeto. Em vez disso, tratar-se-ia de um lugar imaginário, que acolhe as performances criativas dos designers, e até de um lugar “imaginífico”, que estimula suas performances.
Ademais, nessa compreensão, o cenário não seria um resultado projetual, como sugere a expressão design de cenários, frequentemente encontrada na literatura especializada (MANZINI; JÉGOU, 2006). Também não seria uma técnica ou um instrumento à disposição dos designers. A construção de cenários remeteria, em lugar disso, a um processo projetual marcado pela imaginação.
4. DESENVOLVIMENTO DE COLEÇÃO E TRADIÇÃO DO DESIGN INDUSTRIAL
Dessa forma, vislumbra-se a possibilidade de que o design de moda possa seguir caminhos diferentes dos que são recomendados pela tradição do design industrial, com seus procedimentos por fases e etapas ligados ao par problema/solução. Aqui, torna-se necessário recuperar a crítica operada por Cyntia Queiroz e Aline Teresinha Basso (2016) à obra de Doris Treptow (2013). Queiroz e Basso (2016) traçam um paralelo entre a proposta de Bernd Löbach (2001), que é um clássico do design industrial, e a proposta de Treptow, que predomina nos currículos dos cursos de design de moda no Brasil. O paralelo evidencia como a segunda proposta deriva da primeira, conforme ilustrado na tabela 1, a seguir.
Tabela 1. Comparação entre as propostas de Löbach (2001) e de Treptow (2013).
Fonte: Elaboração a partir de Queiroz e Basso (2016, p. 108).
Seguindo as lógicas da tradição do desenho industrial, Treptow inicializa o processo com as fases de planejamento e de pesquisa. Nessas primeiras fases, elabora-se um framework, um quadro de referências e definições orientado à delimitação do campo de trabalho dos designers. Assim, a fase de design fica vinculada à realidade investigada e descrita pelas pesquisas, em uma relação causal com ela.
Um dos momentos tópicos da proposta de Treptow (2013) é, ao final da fase planejamento, a “definição do tema de coleção”, ou seja, “a história, o argumento, a inspiração de uma coleção” (TREPTOW, 2013, p. 83). Queiroz e Basso associam o conceito de cenário justamente ao conceito de tema de coleção. Ao que tudo indica, nessa compreensão, o cenário pautaria a fase de design subsequente, ou seja, tout court, pautaria o design.
5. OPORTUNIDADES PARA O DESIGN DE MODA
Voltando à compreensão de cenário já abordada, um processo projetual que enfocasse, primeiramente, o potencial da imaginação poderia se desprender desses frameworks (sem, claramente, olvidá-los, até porque seria impossível). Os designers não seriam obrigados a partir dos dados da realidade, a seguir protocolos de desenvolvimento de novos produtos e a encaixar suas produções em pautas previamente elaboradas, quiçá, por especialistas de outras disciplinas.
Entende-se que a possibilidade de se afastar da tradição do design industrial possa causar descompasso, especialmente considerando-se os esforços da comunidade científica no desenvolvimento de organizações sistemáticas das práticas disciplinares. Porém, são justamente essas práticas que manifestam a existência de um caminho metodológico diferente, pelo qual o processo projetual imagina cenários fictícios, fantásticos ou oníricos, que, finalmente, viram realidade.
Atente-se: viram realidade, e não partem dela. O caso da Melissa é emblemático nesse sentido, pois Plastic Dreams é uma proposta radicalmente original e extraordinariamente inédita. Quem esperava pelas sapatilhas desenhadas pelos irmãos Campana (figura 1), antes que fossem lançadas? Parece que, para a Melissa, não é a realidade em que atua que dita seus processos projetuais, mas que tais processos plasmem a realidade.
Trata-se de processos projetuais que inauguram novas realidades de atuação, novos nichos simbólicos, cujo potencial, inicialmente, é imponderável e revela-se plenamente só após sucessivas elaborações. Nas propostas de Löbach (2001) ou de Treptow (2013), os processos começavam de um ponto de partida definido etapa após etapa; cada uma dessas etapas implicava, senão mesmo prescrevia, a sucessiva, e se chegava a uma finalização. Os processos da Melissa não terminam com o desenvolvimento de uma coleção, pois seus efeitos continuam nos processos a seguir, sem solução de continuidade. Processos desse tipo oferecem, então, a possibilidade não apenas do desenvolvimento de uma coleção, mas também de uma coleção de coleções e, por extensão, da identidade de uma marca ao longo de anos de explorações projetuais.
AGRADECIMENTOS
O autor conta com apoio de bolsa de Produtividade em Pesquisa, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e com bolsa de Produtividade da Pontifícias Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
REFERÊNCIAS
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