Les Immatériaux: a curadoria do imaterial de Lyotard e a história das exposições
Celina Figueiredo Lage, Amanda Alves
LES IMMATÉRIAUX: A CURADORIA DO IMATERIAL DE LYOTARD E A HISTÓRIA DAS EXPOSIÇÕES
Les Immatériaux: Lyotard, the curator of the imaterial in the history of exhibitions
Celina Figueiredo Lage
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) –
celinalage@gmail.com – orcid.org/0000-0002-9052-7708
Amanda Alves
Mestre em Artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UFMG) –
art.amanda@gmail.com – orcid.org/0000-0002-3023-4508
Resumo
O artigo propõe a análise de aspectos da exposição Les Immateriaux. Curada pelo filósofo Jean-François Lyotard em 1964, foi apresentada no Centre Georges Pompidou, em Paris, de 28 de março a 15 de julho de 1985. A mostra significou um marco na história das exposições por servir como veículo visual para a transmissão de um discurso filosófico. Entende-se que a pertinência da análise é advinda da possibilidade de discutir aspectos da metodologia de estudo da história das exposições, da utilização da curadoria aliada ao pensamento filosófico e do diagnóstico de aspectos característicos da curadoria contemporânea.
Palavras-chave: Arte - Técnicas de exposições. Curadoria. Imaterialismo (Filosofia).
Abstract
The article proposes the analysis of aspects of the exhibition Les Immateriaux. Curated by the philosopher Jean-François Lyotard in 1964, it was presented at the Center Georges Pompidou, in Paris, from March 28 to July 15 of 1985. The exhibition marked a milestone in the history of the exhibitions for serving as a visual vehicle for the transmission of a philosophical discourse. It is understood that the relevance of the analysis comes from the possibility of discussing aspects of the methodology for studying the history of exhibitions, the use of curatorship combined with philosophical thinking and the diagnosis of characteristic aspects of contemporary curatorship.
Keywords: Art - Exhibition techniques. Curatorship. Immaterialism (Philosophy)
Recebido em: 20/02/2020
Aceito em: 14/07/2020
O conceito tem demonstrado ser um elemento relevante na arte contemporânea, fato este que pode ser observado no advento de movimentos convergentes nas décadas de 1960 e 1970, nomeados genericamente de arte conceitual. Tendo como precursor Marcel Duchamp, outros artistas são aludidos com frequência para exemplificar esse movimento, tais como John Baldessari, Joseph Beuys, Marcel Broodthaers, Victor Burgin, Michael Craig-Martin, Gilbert & George, Mary Kelly, Yves Klein, Joseph Kosuth, John Latham, Richard Long e Piero Manzoni. Ademais, nota-se que a arte conceitual, caracterizada por uma grande importância do conceito ou da ideia no âmbito de uma obra artística (LEWITT, 1967, não paginado), influenciou não apenas a produção de artistas visuais, como também influenciou a atividade curatorial. Algumas vezes, constata-se que o termo “curadoria conceitual” é utilizado, por derivação, e também “curadoria autoral”, que significa o tipo de curadoria em que o conceito ocupa lugar central.
Observa-se que desde a década de 1980, com o fortalecimento da atividade de curadores independentes, tornou-se uma tendência “ […] a criação de exposições de arte a partir de um determinado conceito ou ideia, em detrimento de pontos de vista que utilizam um recorte temporal e geográfico preciso” (MARTINEZ, 2007, p.14). A própria atividade curatorial, antes restrita aos historiadores da arte, foi expandida, permitindo que profissionais de outras áreas também pudessem atuar como criadores de exposições, o que beneficiou a transdisciplinaridade no campo artístico. Pode-se pensar, portanto, a curadoria de exposições em artes visuais na atualidade como uma atividade que trabalha com conceitos, envolvendo a produção do pensamento e do conhecimento, através de uma narrativa estabelecida pelo curador. De acordo com Martinez:
[…] geralmente, atribui-se ao evento uma qualidade discursiva, na medida em que um tipo de coerência no encadeamento de figuras produz, aos olhos do visitante, uma “visão do curador” sobre a arte. Antes das figuras, em sentido semiótico, temos os temas que essas encobrem ou, muitas vezes, camuflam. (MARTINEZ, 2007, p.13).
Ao realizar a curadoria de exposições de arte, o curador propõe ao público uma determinada forma de experienciar a arte através de uma narrativa subjetiva, assumindo uma posição autoral. “O curador amplia as questões colocadas pelos outros artistas ao confrontar suas obras com o espaço de vivência e/ou de convivência” (CASTILLO, 2015, p. 42). O pensamento do curador apresenta-se, portanto, através das relações que estabelece entre obras de arte, contextos, histórias, espaços, tempos, conceitos e sujeitos.
A exposição de arte, aliada ao pensamento filosófico, parte de uma perspectiva de curadoria que articula essas relações no sentido de costurar semelhanças semióticas entre os materiais expostos, abandonando recortes cronológicos ou estilísticos. Uma modalidade expositiva que Meijers identifica como exposições a-históricas:
Apesar de todas as suas diferenças, essas exposições têm em comum o fato de que eles abandonam o arranjo cronológico tradicional. O objetivo é revelar correspondências entre obras de períodos e culturas que podem ser muito distantes. Estas afinidades atravessam fronteiras cronológicas, bem como as categorias estilísticas convencionais implementadas na história da arte. A classificação clássica em termos de material também é abandonada, de modo que a Einfühling (empatia) finalmente possibilita conectar uma cadeira do século XV com um retrato feminino de Picasso e uma instalação de Joseph Beuys. (MEIJERS, 2005, p. 5, tradução nossa).
Como as relações entre os significados das obras são construídas inevitavelmente a partir da interpretação do curador, essas exposições acabam por apresentar um componente autoral que possivelmente se sobrepõe à autoria dos artistas em relação às obras exibidas, podendo até mesmo alterar o significado original. O componente autoral não é, obviamente, algo que se deva processar em uma esfera autônoma ou deliberada. De acordo com Obrist, “[…] o curador deve atuar em regime colaborativo em relação ao artista.” (OBRIST, 2014, p. 47). Algo que, na visão do teórico, esvazia a possibilidade de se equiparar as duas funções (a do curador e a do artista).
Hoffman (2004) identifica um gradativo destaque da curadoria na produção de exposições a partir dos anos 70, mesmo que, historicamente, a função estivesse ainda relacionada à conservação e à manutenção de coleções museológicas:
[…] os curadores começaram a se envolver cada vez mais, criativa e conceitualmente, na construção de exposições. Isso se tornou o princípio criativo dos então chamados realizadores de exposição, com curadores como Harald Szeemann ou Pontus Hulten, descritos como diretores de exposição e que se tornaram intermediários entre o indivíduo criativo e a sociedade. (HOFFMAN, 2004, p. 19).
Pode-se compreender assim que a curadoria, a partir deste período, começa a se apresentar como uma instância capaz de incorporar através do agenciamento das obras de arte que busca apresentar, uma outra camada interpretativa, construída pelo alinhavo conceitual construído pela atividade do curador.
Nota-se deste modo que a exposição de arte pode funcionar como um veículo de produção, articulação e divulgação de pensamento, não só a partir dos artistas e obras, mas da produção curatorial, o que torna o ambiente da curadoria permeável para diferentes áreas da produção de conhecimento.
A curadoria autoral passa a ser um dispositivo de experimentação para a filosofia, por exemplo, mas apresenta desafios por se tratar de um meio de apresentação efêmero. A questão que buscaremos abordar aqui é como a exposição de arte, com suas especificidades, pode ser utilizada como veículo de investigação filosófica e como pode se apresentar como um elemento constituinte de uma grande história das exposições.
Uma importante experiência prática, representativa dessas tendências curatoriais, pode ser identificada na exposição Les Immatériaux, curada pelo filósofo Jean-François Lyotard. A mostra ocupou o quinto andar do Centre Georges Pompidou em Paris, de 28 de março a 15 de julho de 1985. A exposição foi considerada um marco na história da curadoria, pois criada por um filósofo a partir de um conceito. Acerca da proposta da exposição, o próprio Lyotard expõe o seguinte: “[…] a concepção da exposição será filosófica. Vamos em primeiro lugar, fazer perguntas, e incitar outros a fazer perguntas, não só sobre o que o material é, mas também sobre o que está associado a ele.” (LYOTARD, 2005, p. 114, tradução nossa).
A proposta de Lyotard consistiu em tratar a exposição como um dispositivo ativador de questionamentos, que não estaria determinada a produzir ou a expôr conclusões sobre o conceito da imaterialidade, mas sim ativar uma espécie de inquietação sobre o tema. “O alvo desta exposição é precisamente despertar a reflexão do visitante e sua ansiedade sobre a condição pós-moderna.” (LYOTARD, 2005, p. 114, tradução nossa). Assim, o aparato expositivo, as obras e toda a estrutura da exposição serviam a uma provocação por parte do curador direcionada ao público. Como afirma Heinich,
[…] o formato escolhido por Lyotard pretendia encorajar uma mudança no foco do
visitante, na direção de ver não somente os trabalhos de arte expostos, mas também ver a exposição em si como uma espécie de discurso que seria percebido e discutido como se fosse um ensaio na forma de uma coleção de objetos e documentos. (HEINICH, 2009, não paginado, tradução nossa).
O discurso de que trata Heinich (2009) forma-se a partir da base conceitual da exposição e aborda, principalmente, a imaterialidade da informação e do pensamento a partir de modos específicos de incorporação e de transmissão através de materiais ou objetos. Para tal, Lyotard concebeu uma estruturação expográfica articulada através de 5 percursos que aludiam às categorias presentes no esquema clássico da comunicação (remetente, destinatário, código, referente e significação). Nomeados a partir de termos derivados da raiz Mât- (que significa tanto medida, quanto construção) os percursos eram: “ […] matériau = suporte da informação, matériel = o receptor (a quem a mensagem é endereçada), maternité = o gerador (emissor da mensagem), matière = o referente, e matrice = o código” (HUDEK, 2009, não paginado). Da mesma forma que denominavam os percursos, os termos eram articulados como um esquema de comunicação estabelecido a partir de objetos materiais, e pode ser compreendido a partir de um diagrama concebido por Lyotard. (Figura 1):
Figura 1- Diagrama comunicacional desenvolvido por Lyotard
Fonte: http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/12/from-over-to-sub-exposure-the
Publicado originalmente no Petit Journal, 28 março/15 julho de 1985, adaptado por Sara De Bondt.
Articulando os conceitos abordados pela exposição e configurados no diagrama acima, Lyotard exemplifica o seguinte:
O que eu quero dizer é que se, por exemplo, tomarmos o caso da arquitetura e pensarmos nela em termos dessa estrutura de comunicação, estamos dizendo que o edifício, ou esta sala, é em si uma mensagem, que esta mensagem tem um remetente, ou seja, que é engendrado por uma maternidade [maternité], que tem um autor que autentica-a; que se destina a um destinatário e, portanto, que pode ser apreendido de forma específica por um hardware [matériel] específico; que está de algum modo inscrito num meio de suporte [matériau] de acordo com um código que é a sua matriz [matrice]; E finalmente que este edifício tem um referente — isto é, ele ’fala’ de algo. (LYOTARD, 2105, p. 31, tradução nossa).
A exibição apresenta esta abordagem das diferentes instâncias da matéria como portadoras de mensagens ou de conceitos, na forma de um diagnóstico da passagem da modernidade para a pós-modernidade. Dufrêne afirma que, “[…] são as mensagens que, de agora em diante, geram os materiais (matériaux), razão para nomeá-los imateriais (immatériaux) […]” (DUFRÊNE, 2015, p. 138). Além disso, existe ainda a possibilidade de se produzir o material a partir da informação, caso dos materiais sintéticos cuja produção está condicionada à pesquisa e transmissão de conhecimento científico, ou ainda produzir objetos a partir de dados lidos pelos computadores e executados por máquinas.
A abordagem de Lyotard é apresentada na exposição na forma de uma estrutura labiríntica (figura 2), plena de experiências visuais e sonoras simultâneas. Os percursos, como se pode notar a partir da planta da exposição, organizavam o espaço em 67 zonas ou sites independentes uns dos outros. No exemplo citado por Déotte, temos a descrição dos sites a partir de sua denominação, visitados em um destes possíveis percursos:
cada percurso, por exemplo, matériau, permite encadear os sites a seguir: nu vão (nu vain), segunda pele (seconde peau), o anjo (l’ange), corpo cantado (corps chanté), corpo estilhaçado (corps éclaté), Infra-Mince, superfície não-encontrável (surface introuvable), indiscerníveis (indiscernables), material desmaterializado (matériau dématérialisé), pintura luminescente (peinture luminescente), pintor sem corpo (peintre sans corps), todas as cópias (toutes les copies). (DÉOTTE, 2015, p. 190).
Cada zona interligada continha objetos e obras de diversas naturezas ou domínios (pintura, astrofísica, arquitetura, culinária etc.), reunidos de acordo com um agrupamento temático e assumindo um formato que agregava, além de obras de arte, elementos resultantes da contribuição de diversos centros de pesquisa do Centre Pompidou. Por exemplo, a exposição contou com a participação da Biblioteca Pública de Informação (Bibliothèque Publique d’Information, ou BPI), do Centro de Design e de Arquitetura (Centre de création industrielle, conhecido como CCI) e do Laboratório de Música Contemporânea do museu (o IRCAM) para constituir elementos sonoros e expográficos apresentados na mostra.
Figura 2 – Planta da exposição Les Immateriaux.
Fonte: https://monoskop.org/File:Les_Immateriaux_Album_et_Inventaire_catalogue.pdf.
Como exemplo da multiplicidade de elementos expostos, pode-se citar a constituição da zona ou site “Nu Vão”, que articulava conceitos como a materialidade ou a presença corpórea (figura 3), abrindo o percurso Matériau (Material). No site estavam expostas quatro fotografias de Muybridge, de 1887, pertencentes à série Animal Locomotion (Locomoção animal), juntamente com uma instalação intitulada “Floresta de doze manequins assexuados” da cenógrafa Martine Moinot. Como parte do site, apresentava-se também a projeção de uma passagem de Monsieur Klein, filme de 1976 dirigido por Joseph Losey, se alternando com uma fotografia de um deportado durante a segunda guerra mundial (DÉOTTE, 2015, p. 190-191).
Pode se compreender que Lyotard além de abordar algumas dicotomias em relação ao corpo (homem/mulher, sexo/não-sexo, movimento/repouso) através de Muybridge e da instalação de manequins, também evoca questões relativas à identidade dos sujeitos, ou mesmo dos corpos, e sua eminente aniquilação durante o período da segunda guerra mundial.
Figura 3- Ficha do catálogo Inventaire, exposição Les Immateriaux.
Fonte: https://monoskop.org/File:Les_Immateriaux_Album_et_Inventaire_catalogue.pdf.
Figura 4- Página do catálogo Inventaire, exposição Les Immateriaux.
Fonte: https://monoskop.org/File:Les_Immateriaux_Album_et_Inventaire_catalogue.pdf.
As fichas do impresso Inventaire, (Inventário) (figuras 3 e 4) — uma espécie de catálogo da exposição — e a planta da exposição (figura 2) ilustram as descrições de Déotte (2015) sobre o percurso matériau. O Inventaire se constituía em uma coleção de fichas não fixadas, que permitia, portanto, um reordenamento do conteúdo por parte do leitor. As fichas apresentavam tanto os percursos quanto a composição dos sites, além de articularem textos do curador e de outros autores sobre os conceitos da exposição e imagens das obras e objetos presentes na exposição.
Além do Inventaire, Les Immateriaux produziu um segundo catálogo intitulado Épreuves d’écriture (Testes de escrita) composto pelos registros de discussões entre vinte e seis participantes da exposição (dentre eles Daniel Buren, Michel Butor, Jacques Derrida e Isabelle Stengers), mediadas por computadores. O teor das discussões era dado por cinquenta termos propostos por Lyotard (HUDEK, 2009, não paginado, tradução nossa).
Além disso, Lyotard estava interessado em recolher diretamente informações sobre as interpretações do público visitante. No espaço da exposição haviam computadores (figura 5) que permitiam ao público registrar suas impressões por meio da resposta a uma série de perguntas direcionada a criar um arquivo sociológico sobre a exposição que alimentou posteriormente uma extensa pesquisa, realizada por Natalie Heinich, pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisa Científica) em Paris. “Publicado em 1986, o estudo intitulado Un Événement Culturel à Beaubourg (Um Evento Cultural em Beubourg) constituiu um outro meio de medir e arquivar os movimentos e as reações dos visitantes (através de, e) sobre a exposição.” (HUDEK, 2009, não paginado, tradução nossa).
Figura 5- Foto da exposição Les Immatériaux, site ‘Tous les auteurs’,
com a obra TV Buddha de Nam June Paik ao fundo.
Fonte: http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/12/les-immateriaux-revisited-inn.
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Além dos computadores, o espaço expositivo era equipado com cerca de 20 ou 30 radiotransmissores, cada um cobrindo determinada zona ou site, que transmitiam uma trilha sonora determinada. Os visitantes, por sua vez, eram munidos de fones de ouvido que recebiam mensagens orais, que segundo o curador, “[…] eram não necessariamente instruções, mas também poemas, prosa, questões, exclamações, citações e mensagens musicais. Artes do tempo, a maioria imateriais.” (LYOTARD, 2005, p. 121, tradução nossa).
Como se pode perceber, as obras e os objetos dispostos nos sites não se agrupavam entre si de maneira cronológica, nem estilística, nem a partir da técnica utilizada na produção de cada um. Os elementos expostos conectavam-se entre si, sobretudo a partir de interpretações. Lyotard escolheu e organizou seus arquipélagos ou zonas a partir de objetos, imagens e sons relacionados através das aproximações produzidas mediante a leitura das mensagens ou informações que emanam de cada material ou objeto exibido. O conceito de imaterial está centrado nas informações que se incorporam aos objetos expostos, tanto em sua produção quanto em sua apresentação, sendo assim, “[…] os imateriais são, portanto, materiais cuja essência é de linguagem” (DÉOTTE, 2015, p. 193). É possível compreender que escolha das imagens, objetos ou obras no trabalho de Lyotard se processa mediante o gerenciamento das relações possíveis entre esses materiais expostos. O objetivo é fazer emergir e lançar luz sobre significados e sensações, partindo da aproximação de elementos que apresentam semelhanças semânticas, percebidas a partir de sua interpretação e associação com outros elementos.
Além da perspectiva inovadora em relação à apresentação, expografia, e produção, Les Immatériaux viabilizou “[…] a possibilidade de um discurso filosófico ser apresentado a uma grande audiência não através de um material impresso ou através de uma apresentação oral, mas através de imagens e artefatos.” (HEINICH, 2009, não paginado, tradução nossa). A exposição processaria uma encarnação do discurso do filósofo, pois, de acordo com Birnbaum e Wallenstein, “Lyotard enfatizou a necessidade de tornar a filosofia visual — não apenas no sentido de ilustrar conceitos com imagens impressionantes e sensuais, mas também através da espacialização.” (BIRNBAUM; WALLENSTEIN, 2016, não paginado, tradução nossa).
Pode-se compreender que o trabalho da curadoria, no caso de Les Immatériaux, ao agenciar ou relacionar objetos, obras de arte e conceitos, e colocá-los em diálogo no espaço expositivo, permite extrapolar os limites da exposição como um aparato construído de modo a simplesmente proporcionar contato entre obra e público. Segundo Poinsot (1996), as exposições de arte estão longe de ser apenas uma encenação dos projetos estéticos de seus participantes (artistas expositores).
Outros discursos são articulados pelos curadores a partir daqueles apresentados em cada uma das obras, articulações essas que só se tornam possíveis pela abertura essencial de cada obra[1]. “Embora de forma quase velada, as exposições afirmam sua pretensão de formular modelos estéticos, construir narrativas históricas ou, até mesmo, fazer da arte uma utopia social.” (POISONT, 1996, p. 39-40, tradução nossa). O que Poisont diagnostica parte da fórmula da exposição como uma potência discursiva capaz de agenciar uma diversidade de corroborações.
Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que a exposição curada por Lyotard se tornou um exemplo de como a arte pode incorporar um caráter transdisciplinar em sua apresentação. A partir de Les Immatériaux, “[…] podemos considerar 1985, não simplesmente como um ano importante na área da história das exposições, mas também na área da teoria e da pesquisa, e também na área da filosofia e da estética.” (RAJCHMAN, 2009, não paginado, tradução nossa). O apontamento, elaborado por Rajchman, exemplifica a importância que a exposição curada por Lyotard estabelece em áreas fora do âmbito das artes.
Além disto, exposições que incorporam o formato da exibição tratam de estabelecer uma nova visão em relação ao objeto de arte em si. “Durante muito tempo o objeto artístico foi analisado de forma isolada, agora, talvez como um reflexo de uma consciência ambiental maior, ele pode ser visto como um elemento dinâmico de sensibilidade tempo-espacial.” (DANIEL; HUDEK, 2009, não paginado, tradução nossa). Isso significaria falar sobre a pertinência de uma construção de entendimento em termos temporais e espaciais das exposições.
Les Immatériaux trata de forma relevante a articulação entre a arte, ciência, pesquisa e pensamento, porém, mesmo que tenha existido um esforço real em documentar e registrar a experiência —através dos catálogos, fotos e variados tipos de publicações—, ainda existe certa dificuldade de se investigar a exposição de forma plena. Se Les Immatériaux deve ser lida como uma exposição de arte, ela é certamente inseparável da experiência espacial e temporal. Ao examiná-la como elemento da história, sua leitura posterior é diretamente subordinada à memória constituída pelos que presenciaram o momento de sua apresentação. É algo que levanta a seguinte reflexão sobre o que constitui o real material de pesquisa oferecido pelas exposições de arte: “Como nos lembramos das exposições e como as exposições nos lembram delas mesmas?” (GREENBERG, 2009, não paginado, tradução nossa).
O questionamento de Greenberg pode ser aplicado para se refletir sobre a especificidade da exposição de arte enquanto objeto de estudo da história. Mas o questionamento central está relacionado ao modo com que se constrói essa história das exposições, principalmente das exposições de arte como Les Immatériaux, que “[…] contam muitas vezes com uma documentação lacunar e de certo modo subjetiva do evento em si, pela sua própria natureza e até mesmo pela natureza dos objetos que a integraram.” (RAJCHMAN, 2009, não paginado, tradução nossa).
Estes questionamentos nos levam a refletir sobre de que forma as experiências, como reais mecanismos ativadores das exposições de arte, podem se converter em elementos relevantemente constitutivos da história, assim como seus objetos e construções teóricas das quais participa a curadoria, esteio tradicional da sua consolidação. Como bem apontado por Martinez, “[…] não poderia dizer que há um único caminho para a pesquisa neste campo (da história das exposições e consequentemente da curadoria em exposições de arte), nem tampouco um método universal que possa ser vendido em forma de manual. Temos diante de nós eventos, escolhas e muitos trabalhos.” (MARTINEZ, 2013, p. 1865).
Um projeto curatorial como Les Immatéuriaux é certamente uma significativa ferramenta de construção de pensamento através dos diferentes elementos que agencia, mas certamente parte destes elementos reside exatamente em algo que não pode ser retido ou documentado. Algo que, ironicamente, está contido na imaterialidade efêmera de sua experimentação.
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DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1808312915252020e0010
[1] “As obras "abertas" enquanto em movimento se caracterizam pelo convite a fazer a obra com o autor; num nível mais amplo (como gênero da espécie "obra em movimento") existem aquelas obras que, já completadas fisicamente, permanecem contudo "abertas" a uma germinação continua de relações internas que o fruidor deve descobrir e escolher no ato de percepção da totalidade dos estímulos; cada obra de arte, ainda que produzida em conformidade com uma explícita ou implícita poética da necessidade, é substancialmente aberta a uma série virtualmente infinita de leituras possíveis, cada uma das quais leva a obra a reviver, segundo uma perspectiva, um gosto, uma execução pessoal.” (ECO, 1991, p. 63-64).