Ensino remoto de música durante 2020: docência e letramento digital de dois professores

    Brunno Rossetti Ogibowski, Teresa da Assunção Novo Mateiro

Ensino remoto de música durante 2020:

docência e letramento digital de dois professores

 Remote music teaching during 2020:teaching and digital literacy of two teachers

Brunno Rossetti Ogibowski

Mestrando em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) –

 rossettibrunno@gmail.com– orcid.org/ 0000-0002-8604-6848

Teresa  Mateiro

Doutorado em Filosofia e Ciências da Educação - Educação Musical pela Universidad del Pais Vasco (EHU)) –

teresa.mateiro@udesc.br– orcid.org/ 0000-0002-3527-8366

Resumo

Frente à realidade de pandemia, neste trabalho tivemos como objetivo compreender os impactos do ensino remoto de música, durante o ano de 2020, por meio da narrativa de dois professores que atuam em escolas públicas. A experiência dos professores com a narrativa, contando histórias de sua própria vida e suas experiências de ensino durante o período de isolamento inserem o trabalho dentro do chamado movimento biográfico da educação. O baixo estímulo ao profissional docente, aliado à falta de programas sociais destinados ao maior acesso à internet ou tecnologias digitais por parte dos estudantes e suas famílias, presente no relato dos docentes, revelam desafios do momento vivenciado na educação básica em 2020.

Palavras-chave: Ensino à distância; Professores de música; Educação aberta; História oral; Pandemia de COVID-19, 2020.

Abstract

Faced with the reality of a pandemic, in this work we intend to understand the impacts of distance music education, during the year 2020, through the narrative of two teachers who attend public schools. To experience two teachers with narrative, telling stories of their own life and their teaching experiences during the isolation period, they insert or work within the so-called biographical movement of education. The low stimulus for teaching professionals, combined with the lack of social programs aimed at greater access to the internet or digital technologies by two students and their families, present in the teachers reports, revealed challenges of the moment experienced in basic education in 2020.

Keywords: Distance education; Music teachers ; Open learning;  Oral History; COVID-19 Pandemic, 2020.

Recebido em: 12/08/2021

Aceito em: 04/10/2021


1 INTRODUÇÃO

Uma vez instaurada a situação de pandemia provocada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), causador da doença COVID-19, professores, alunos ou funcionários das escolas tiveram de se adaptar ao ensino remoto, em pouco tempo, com escassez de recursos e treinamento. Frente a essa realidade, este artigo teve como objetivo compreender os impactos do ensino remoto de música, durante o ano de 2020, por meio da narrativa de dois professores que atuam em escolas da rede pública municipal da cidade de Florianópolis.

O uso das tecnologias digitais, traz luz a questões sobre o letramento digital, expressão que ainda é mal definida e que, geralmente, se associa a segurança online ao invés da capacidade de busca avançada ou até mesmo sobre os impactos emocionais e psicossociais do uso de mídias no dia a dia (BUCKINGHAM, 2010). A formação de professores, bem como as novas formas e processos de ensino e aprendizagem precisaram ser repensadas para responder a que ou quem serve a escola da sociedade contemporânea na era digital.

Esta investigação de abordagem (auto)biográfica justifica-se como uma contribuição ao campo da Educação Musical, que visa estabelecer suas próprias epistemologias e objetos de estudo, com um olhar que tem o intuito de entrelaçar as práticas pedagógico-musicais e as tecnologias digitais em um momento de aumento significativo do uso de recursos tecnológicos, pelos agentes educacionais, durante a pandemia. Levantar questionamentos sobre as práticas pedagógico-musicais não presenciais durante a pandemia de COVID-19, pode proporcionar reflexões acerca do ensino e aprendizagem de música, a partir das histórias de vida dos professores de música da educação básica. A experiência dos professores, através de entrevistas narrativas, traz à tona situações que nos contam sobre suas histórias de vida e suas experiências de ensino durante o período de isolamento e inserem o trabalho dentro do chamado movimento biográfico da educação (NÓVOA; FINGER, 2014).

2 DOCÊNCIA EM MÚSICA E LETRAMENTO DIGITAL

A música é uma realidade presente em praticamente todos os ambientes que se possa imaginar e de acordo com o estudo da Sound Music Computing, citado por Neto (2018), afirma que em 2020 a música se tornaria ubíqua. O que isso significa é que estará presente virtualmente em todos os lugares onde há a presença humana, pois os sistemas de criação, reprodução e distribuição de música ocupam inúmeros espaços.  

Buckingham (2010) traz a ideia de letramento digital ao utilizar as tecnologias digitais de uma maneira que não provoque o sentimento de uso acrítico e sem reflexão, apenas considerando que a incorporação é inevitável ao tempo histórico em que se realiza aquela aula. Para o autor, se faz necessário ultrapassar o uso banal de acesso e recuperação das informações e utilizar as tecnologias digitais com seu potencial de inovação e criatividade. O letramento digital deve estar muito mais próximo a uma disciplina de língua materna nas escolas, trata-se de entender formas culturais e processos de produção e distribuição de conteúdo, não apenas categorizá-los como Tecnologias para a Informação e Comunicação (BUCKINGHAM, 2010). As TIC, segundo o autor, são formas de incorporar saberes de fora do mundo da escola para dentro de práticas que possam ser validadas dentro do ambiente escolar. Não há um uso pleno das tecnologias, seja por questões institucionais, ou de competência do professor nem mesmo deixam de existir, pois, também há um esforço institucional e, principalmente dos professores, em trazer inovações de ordem tecnológica. (BUCKINGHAM, 2010).

A contribuição do estudo das narrativas para a área de formação docente em Educação Musical se dá, pois, “a participação dos jovens nos mundos cibernéticos levanta algumas questões fundamentais quanto ao futuro da escola como instituição” (BUCKINGHAM, 2010, p. 37). Dizer que a tecnologia irá causar uma revolução na Educação não é uma novidade do século XXI e os professores geralmente são os acusados de não saber manejar bem uma nova tecnologia a ponto de implantá-la no ensino. Sobre o debate a respeito de tecnologias, considera ainda imaturo, pois, frequentemente encontra-se polarizado entre aquelas pessoas que são contrárias ao uso de tecnologias – taxadas de tecnofóbicas – e aquelas outras que são muito entusiastas – taxadas de ingênuos ou irrealistas – e argumenta: “Enquanto isso, tem-se marginalizado questões fundamentais sobre como professores e alunos poderiam querer usar a tecnologia e sobre o que precisamos saber acerca dela.” (BUCKINGHAM, 2010, p.42).

Lévy (2010, p. 115) aborda a tecnologia, no sentido da constituição das culturas e inteligência dos grupos e levanta a questão: “Qual seria o tipo de tempo secretado pela informatização?”. Poderíamos responder recorrendo ao conceito que Cuervo et al. (2017) defendem sobre estarmos nos tornando homo digitalis, pelo menos no que se refere à criação, produção, ensino e distribuição de música na forma digital e remota.

Os antigos aparelhos vêm sendo substituídos por aplicativos para dispositivos móveis ou recursos disponibilizados on-line (sem a necessidade de instalação), tornando-se ferramentas ainda mais acessíveis em termos de custo, deslocamento e manipulação, além de voláteis. [...] e exigem atualizações periódicas e aparelhos compatíveis. (CUERVO et al., 2017)

Toda uma gama de dispositivos tecnológicos, seja como software ou hardware estão disponíveis para utilização de forma digital, basta educar-se a ponto de dominar o manuseio destas interfaces. Lévy (2010, p. 178) defende que “a noção de interface remete a operações de tradução, de estabelecimento de contato entre meios heterogêneos”. Todo o conjunto de aparatos e conhecimentos que permitem a comunicação entre um sistema informático e os seres humanos, é o que o autor chama de interface humano/máquina. Ele destaca, ainda, a respeito das interfaces destinadas a realizar a comunicação entre sistemas informáticos distintos, como um modem, que codifica e decodifica as informações recebidas e enviadas e, dessa forma, conecta os dispositivos à internet, por exemplo.

Mesmo a tarefa de conectar-se a uma sala de videoconferência para assistir à uma aula ou participar de uma performance mediada por tecnologia digital, depende de uma série de fatores que vão desde os tipos de dispositivos utilizados, se estão atualizados ou não, se tem capacidade de processamento para a atividade pretendida ou ainda, se seriam os dispositivos ou interfaces adequadas para a tarefa pretendida. Por exemplo, concorda-se que um celular não é o dispositivo mais adequado para se passar oito horas por dia, utilizado como interface que pretende representar a presença em sala de aula, mas um computador pessoal seria? A experiência de igualdade que a aula presencial propunha, se individualiza, e passa a depender dos recursos individuais disponíveis para a realização das mais variadas tarefas de representação de presença. (LEVY, 2010).

3 EDUCAÇÃO MUSICAL E CULTURA DIGITAL

Selecionamos alguns trabalhos que não direcionam seus objetivos para ensino a distância como formato de ensino-aprendizagem, mas para uma ampliação da percepção sobre os ambientes educacionais a que os alunos e docentes estão sujeitos na cultura digital, ou também chamada de cultura participativa, do século XXI. (BELTRAME, 2018; CERNEV, 2015; CUERVO, 2012; GALIZIA, 2009; GOHN, 2013; SCHRAMM, 2009).

Gohn (2013) sinaliza novas possibilidades para o ensino de música e destaca aspectos relacionados ao uso das tecnologias digitais como o acesso às conexões de internet de banda larga, o uso de plataformas de compartilhamento de arquivos online e as videoconferências para o ensino de instrumento. Dominar os conceitos de produção de conteúdo online, além dos conhecimentos técnicos relacionados a utilização de internet e plataformas de videoconferência é algo que faz parte do dia a dia dos profissionais da educação musical em um momento de pandemia global e de restrições de convívio presencial.

Beltrame (2018) expõe o conceito de prosumer, trazido por Jenkins (2009), no qual nós mesmos produzimos muito dos conteúdos que consumimos online, principalmente em redes sociais. Os objetivos do texto são os de compreender as aprendizagens que emergem das práticas de produzir e compartilhar música na cultura digital, contextualizar práticas de produção musical, investigar sobre aprendizagens informais e analisar as aprendizagens que ocorrem no processo de criação, gravação e divulgação musical. A partir das reflexões sobre produção musical destes três participantes da pesquisa, são exploradas três seções intituladas: Apropriação, Aprendizagem entre pares e Perfil Prosumer. A primeira seção discute questões de autoria quando estes músicos criam suas próprias versões remixadas não autorizadas de músicas conhecidas, também quando utilizam trechos de áudio proveniente de vídeos de outros países para compor sua música e expõe como um plataformas online de distribuição de música podem ser uma espécie de termômetro de “sucesso” em determinados nichos de produção musical.

Observa-se que a música e a tecnologia são aliadas para os trabalhos desenvolvidos e que há uma mescla de experiências educacionais, seja a aprendizagem entre pares, a autoaprendizagem ou outras formas possibilitadas pelos meios digitais. A aprendizagem entre pares é uma seção que explora o homestudio como este espaço de aprendizagem, que envolve desde o domínio técnico de como montar esta estrutura em favor do músico e torná-la uma “incubadora de ideias” até sobre as trocas dentro deste espaço de criação, não apenas gravação. A última seção já dialoga com as conclusões, pois detalha o perfil do prosumer, este conceito que procura explicar que no mundo digital, onde existem muitas plataformas de distribuição de conteúdo gratuitas online e os equipamentos e tecnologia de produção de conteúdos estão acessíveis a uma grande parte da população, todos somos além de consumidores de conteúdos, também produtores em potencial. Finaliza então fazendo uma analogia sobre este texto funcionar como uma espécie de arquivo masterizado, e que uma vez disponibilizado online, estará sujeito a remixes, mashups, re-edits e que esta prática pode contribuir para as reflexões a respeito deste olhar sobre a Educação Musical, comprometido com a diversidade das formas de se fazer, aprender e ensinar música.

Cernev (2018), p. 23) trata da “importância da aprendizagem musical colaborativa no âmbito da educação musical” ao discutir a respeito do emprego das tecnologias digitais no ensino de música. Em sua tese de doutorado, Cernev (2015) investiga sobre a motivação dos alunos e as estratégias de aprendizagem. Galizia (2009) explora sobre qual tipo de música deve ser implantada nas escolas, principalmente no contexto de recém aprovação da Lei 11.769/08 que tornou obrigatória o ensino de música na Educação Básica. O autor defende que as músicas a serem trabalhadas devem ter como ponto de partida a vivência de seus alunos no dia a dia, mas que muitas vezes há dois principais argumentos que impedem as músicas dos alunos de serem trabalhadas nas escolas. O primeiro diz respeito ao fato de serem produtos da indústria cultural e de tecnologias de massa e, portanto, sem valor cultural, e o segundo argumento é o fato de sua distribuição ser digital e isto exigir dos profissionais de educação um domínio de tecnologia que, muitas vezes, não possuem em sua formação. (GALIZIA, 2009).

O que o autor explica do termo sobre a indústria cultural, cunhado em 1947 por Theodor Adorno e Max Horkheimer é “que se refere, basicamente, à transformação da cultura em mercadoria, ou seja, ao fato de as obras de arte passarem a ser criadas em função do lucro que geram e não por sua qualidade estética e técnica.” (GALIZIA, 2003, p.78). Há, porém, um equívoco, segundo o autor, que é o de generalizar as músicas dos alunos como sendo todas provenientes desse universo massificado e homogeneizante, e associá-las geralmente a um estilo musical, como axé, funk, technobrega etc. O autor defende que ainda que estas músicas sejam mesmo produtos da indústria cultural, elas podem servir como exemplos, como forma de motivação e aproximação do aluno ao conteúdo trabalhado em contraponto a uma cultura que valoriza a música europeia na maioria das instituições de ensino de música, o dito modelo conservatorial. 

4 Histórias de vida de professores de música na pandemia de 2020

Os professores, durante o ano de 2020, ficaram em evidência devido ao grande desafio de desenvolver atividades na modalidade do trabalho remoto. O interesse em conhecer as experiências de professores de música e escutar essas vozes que atuam em escolas de educação básica ocorreu a partir de encontros em um curso de formação sobre produção de material didático com professores de música da rede pública, realizado no primeiro semestre de 2020, pelo Programa de Pós-graduação em música da UDESC.

Entrando em contato com a realidade do ensino de música nas escolas da rede pública surgiu o interesse em conhecer mais sobre esses profissionais e as situações enfrentadas nesse momento de isolamento. Foi dessa forma que, aliando esse contexto à pesquisa qualitativa com abordagem metodológica com foco na história oral temática, contatamos dois professores para compreender sobre suas atuações durante o período de restrições de convívio e de ensino remoto emergencial.

Segundo o site da prefeitura de Florianópolis[1], há mais de 30 professores na rede pública, entre efetivos e substitutos, que atuam com o ensino de música nas escolas básicas municipais de Florianópolis. Vale sublinhar que a música, no componente curricular Arte, faz parte do currículo escolar do ensino fundamental com carga horária de duas a três horas por semana. Os critérios utilizados para a seleção dos professores de música foram primeiramente o de demonstrar interesse em dividir sua história de vida em entrevistas narrativas. O segundo critério foi o de escolher um professor efetivo e um professor substituto, denominado de ACT – Admissão em Caráter Temporário. Considerando que ter um professor concursado, que não corre o risco de ser afastado ou ter sua carga horária diminuída e um outro professor substituto, mais vulnerável às alterações de quadro e carga horária, pode trazer um panorama de situações a serem vivenciadas pelos profissionais da educação musical na rede pública de ensino de Florianópolis. Ser licenciado em música foi também um dos critérios, considerando que, por vezes, os ACTs podem ser estudantes dos últimos anos do curso de música, ainda não graduados.

Frente ao exposto foram selecionados o professor efetivo André Felipe Marcelino e o professor substituto Eliomar Júnior, que concordaram em participar da pesquisa sendo identificados com seus nomes reais. Ambos expressaram que entendem que esta pesquisa contribui com a formação docente a partir de suas próprias reflexões sobre o período vivido e, em especial, sobre o ensino de música realizado na modalidade remota. Embora não tenha contemplado a questão de gênero no sentido da equidade, considero relevante o fato de ambos serem homens professores música na rede pública e que tem a oportunidade de, expondo suas histórias de vida, revelar vulnerabilidades e fragilidades em decorrência da situação emergencial.

É essa possibilidade de desdobramento do uno em três instâncias narrativas – autor, narrador, personagem – que caracteriza o processo de autobiografização, no qual presente, passado e devir se entrelaçam, qualquer seja sua natureza – escrita, oral, pictórica, gestual... – qualquer que seja a sua denominação: narrativas de si, escrita de si, memorial, autobiografia, diário...(PASSEGGI, 2021, p. 5).

Debruçar-se sobre as histórias de vida relatadas pelos professores de música durante a pandemia, é um movimento que Passeggi (2021, p. 4) entende como reflexividade narrativa. Algo que pode ser entendido como a capacidade que um sujeito tem de “operar com diversas linguagens para se constituir um si mesmo, ao mesmo tempo em que dá sentido às suas experiências, às suas aprendizagens e até mesmo reconhecer seus fracassos nessas tentativas.” Para a autora, ao mesmo tempo que os colaboradores da pesquisa narram suas experiências enquanto sujeitos empíricos, criam tramas de pensamento que os configuram enquanto sujeitos autobiográficos dotados de conhecimentos e, assim sendo, tornam-se sujeitos epistêmicos, produtores de significados e subjetividades a partir de suas narrativas.

Passeggi (2021, p. 17) destaca: “É esse si mesmo – o eu pensado e examinado – que, em síntese, surge e vive na efemeridade da narração, como ato discursivo, e permanece na eternidade da narrativa, enquanto produto material, resultante da narração.”  

Segundo Bauman (2015, p. 57), nosso tempo atualmente divide-se entre “os domínios do on-line e do off-line, com a parcela do primeiro crescendo constantemente à custa do segundo”. Com o aumento significativo da demanda de presença online por conta das restrições de convívio, a privacidade dos lares acabou por encontrar nas redes sociais o espaço equivalente ao da praça pública, onde as ideias são expostas e os encontros acontecem, ficando a encargo de cada indivíduo escolher a quantidade que deseja expor de sua vida ou seu ambiente, para participar desse momento de virtualização do encontro.

Para Lara (2020), as fronteiras entre público e privado se tornam ainda mais difusas no contexto do ensino remoto e aquilo que se pode concluir de novidade é que os ambientes domésticos se transformaram em extensões da sala de aula, sem que o professorado disponha de equipamento, treinamento ou as ambiências necessárias. Uma das considerações que podem ser propostas sobre a docência em tempos de pandemia e ensino remoto, é a que afirma que ela tem sido “universalizada para o  ambiente  doméstico” e que “as  demais  dimensões  do  trabalho  em educação  são  exacerbações  de  uma  atividade  que  gradativamente  vem  se  constituindo como trabalho ubíquo.” (LARA, 2020). Nesse contexto, a ubiquidade da atividade docente é uma das situações que ficam em evidência nos relatos dos professores que tiveram suas rotinas modificadas pela situação emergencial provocada pela pandemia de COVID-19.

Para melhor compreensão sobre as histórias de vida dos professores André Felipe Marcelino e Eliomar Júnior, elaboramos um texto narrativo, apresentando cada um dos docentes que, ao mesmo tempo que contempla a análise dos dados provenientes de suas entrevistas, conecta-se com as temáticas da formação docente, do letramento digital e das práticas pedagógico-musicais não presenciais.

5 ANDRÉ FM

        André Felipe Marcelino tem 37 anos, é licenciado em música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), tem mestrado em Educação Musical pela mesma universidade e é professor efetivo da rede pública de ensino de Florianópolis desde 2019. Graduou-se em 2010 e apresentou em 2014 a dissertação de mestrado intitulada Grupo de Maracatu Arrasta Ilha: dinâmicas de aprendizagem musical em uma comunidade de prática, onde explora as contribuições da aprendizagem informal de música para os ambientes formais da educação musical.

        Desenvolvendo suas pesquisas com o foco na percussão, tanto na graduação como no mestrado, o professor é também autor de um livro intitulado Ritmos e Batucadas[2], que foi realizado através de projeto contemplado pelo prêmio estadual de estímulo à cultura Elisabete Anderle[3]. Juntamente com o livro, foi lançado em 2015 um site, onde, além das informações sobre o livro e sobre o autor, há uma seção com as gravações das baterias das escolas de samba de Florianópolis em um formato interativo. Cada visitante pode escolher uma das escolas de samba da cidade para reproduzir os elementos percussivos de cada escola e montar sua própria mistura de sons em tempo real. Uma experiência interativa que envolve o uso de tecnologias digitais, suas pesquisas na área de Educação Musical e que mistura sua experiência de vida e história como agente cultural, percussionista e “diretor de bateria da Escola de Samba União da Ilha da Magia de 2009 a 2012”[4], segundo informa o seu site.

        Descrevendo sua trajetória de formação acadêmica e musical e ressaltando a importância das atividades que desenvolveu como músico, o professor estabelece relações com sua formação ao afirmar:  

Minha carreira de músico e educador sempre foi muito junto, muito próxima e eu sempre tive dificuldade de fazer essas conexões né, do músico, de educador e do mundo acadêmico. Parecia sempre três mundos diferentes, assim, né? Hoje que eu acho que com mais maturidade eu tento juntar, conectar e vejo quanto que contribui. Quanto que a UDESC contribuiu para minha formação como professor, como a minha carreira de músico contribui para minha prática como professor de música, e vice-versa. Eu sendo professor me ajuda na questão musical também.

A formação em música que André expõe em seu relato, entrelaça as diversas áreas de atuação que a música proporcionou em sua vida, seja como músico profissional, professor de música e pesquisador da área de Educação Musical. Nesse sentido, os “três mundos” citados são universos distintos entre si, mas que colaboram um com o outro em suas práticas pedagógicas. Segundo Marcelo García (2010, p. 18), para se constituir como docente, a “identidade não surge automaticamente como resultado da titulação, ao contrário, é preciso construí-la e modelá-la”. Para Ferreira (2020, p. 10), os primeiros anos de atuação docente são similares mas as situações e o tempo de duração da fase inicial “varia de pessoa para pessoa e cada ser carrega em si histórias e experiências que permitirão vivenciar cada etapa de maneira diferenciada, inclusive a primeira”.

Compreende-se dessa forma que a formação acadêmica de André e sua prática docente encontram-se em “mundos diferentes”, até o momento em que se encontram quando passa a atuar na instituição de ensino, conforme seu relato. Muito embora a estruturação do currículo de sua formação esteja alinhada com práticas pedagógicas que pensam o mundo sob uma visão eurocêntrica, André traz em seu relato a presença de uma formação que aconteceu em diversos ambientes não acadêmicos. As experiências musicais e de formação que teve em sua família, na capoeira, como percussionista de bandas, como diretor musical de escolas de samba e como produtor de conteúdo didático online, ressaltam que a experiência docente se concretiza no momento da sua atuação. Em suas palavras:

Tu vai achando o teu jeito de ensinar, o teu jeito de se comunicar com as crianças. Então, a gente tem que ir fazendo as pontes aos poucos, só que é muita informação né? A gente não vai assimilando tudo. A gente tem que assumir que a gente não dá conta né? Esse é o lance, a gente não dá conta da demanda, em resumo. Fiz licenciatura em música e o mestrado na linha de Educação Musical, mas com certeza, esses cursos informais é como tentei dizer, contribuíram bastante assim para a formação. (André).

Abrahão (2007, p. 173) defende que as pesquisas com histórias de vida de docentes revelam que, antes de tudo, trata-se de seres humanos e “reflete-se e é reflexo, igualmente, na (e da) construção identitária de cada educador.” As duas dimensões complementares que podemos analisar nas histórias de vida de professores – o desenvolvimento profissional e a construção da identidade profissional – estão alinhados com o capital de conhecimentos que é necessário para atuar nos ambientes institucionais, bem como o a aquisição de competências e a perspectiva de socialização envolvidas nos processos de ensino e aprendizagem.

Gaulke (2019, p. 143) destaca que “A partir da sua atuação na escola, o professor também consegue desenvolver o entendimento da sua função como professor nesse lugar, como um barco no mar que reconhece o seu caminho ao percorrê-lo.” Para a autora, o desenvolvimento profissional do professor de música na escola básica funciona como a analogia de um barco movimentando-se no mar. Reconhecer-se como professor, constituído de suas próprias experiências é o motor do desenvolvimento profissional que faz com que Gaulke (2019) compare com o condutor de um barco que navega em um mar desconhecido. A analogia do barco faz pensar no eterno movimento a que os professores estão sujeitos em seu desenvolvimento profissional, como um barco, que mesmo ancorado e seguro, precisa balançar conforme as ondas que o atingem.

6 ELIOMAR JÚNIOR

        Eliomar Júnior tem 27 anos, é licenciado em Música pelo Instituto Porto Alegre (IPA), que conforme consta no site da instituição, faz parte de uma “rede mundial de instituições educacionais mantidas pela Igreja Metodista, composta por mais de 700 estabelecimentos de ensino entre básico e universitário localizados em 67 nações distribuídas em todos os continentes.”[5] Durante a escrita deste texto, ao  analisar os cursos ofertados pelo IPA, verifiquei que o curso de Licenciatura em Música do IPA existiu durante os anos de 2005 e 2020 e, infelizmente, encerrou suas atividades.

 Ao iniciar a sua narrativa, Eliomar destaca alguns aspectos iniciais que o levaram a buscar a aprendizagem formal no curso de Licenciatura em Música e expõe alguns aspectos de sua formação. O docente reflete sobre sua formação ao lembrar de quando era criança e ficou sabendo que, na igreja que frequentava, iriam oferecer aulas de violão semanais.

Cara, então...eu comecei a tocar, né? Eu acho que a gente parte daí... Comecei a tocar violão com 12 anos, mais ou menos, e foi indo até entrar na faculdade de música. Foi indo, eu comecei com aulas de um professor...ele montou uma turminha lá... minha mãe ia na igreja, eu também ia naquele tempo, igreja católica. E aí ele fez uma turminha de violão ali, e aí aprendi os primeiros acordes, nome das notas, enfim...E aí fui indo...Aí depois foi tudo muito por mim, assim, por videoaulas, por coisa do tipo, né? Explorando até eu entrar na faculdade de música em 2014. (Eliomar).

A aprendizagem de música, via videoconferência e o compartilhamento de vídeos com conteúdo musical são fenômenos comuns no campo da educação musical. De acordo com Gohn (2002), que escreve há cerca de vinte anos sobre tecnologias digitais no campo da Educação Musical, existem fatores importantes a serem levados em consideração como a autoaprendizagem musical, as comunidades virtuais, as tecnologias digitais como ferramentas e as vivências digitais.(GOHN, 2002, 2007, 2008, 2009, 2010, 2013).

Para este autor, tanto no ensino presencial como no ensino remoto, as tecnologias digitais representam um papel de grande importância para a adequação das práticas pedagógicas musicais para o século XXI, “seja como o recurso salvador com respostas para todas as perguntas, ou como o veneno corruptor do mundo como o conhecemos”. (2007, p. 172) Levanta o questionamento se “devemos abaixar a guarda e abraçar o que parece ser o futuro inevitável ou firmar a resistência e preservar os valores do passado?” (2007, p. 172) e propõe que se supere a tecnofobia que alguns professores desenvolvem em sua relação com as TIC quando pensam que os novos estudantes estarão apenas aprendendo a manipular botões sem compreender o que há por trás de cada escolha.

Buckingham (2010) argumenta sobre a necessidade de professores estarem alfabetizados em mídia digital para poder desempenhar suas funções docentes num cenário de educação no século XXI. A fluência em pronunciar as linguagens da tecnologia digital não é tão comum entre os professores, se compararmos com a fluência em utilizar o livro, que também pode ser considerado uma forma de tecnologia ou suporte de mídia tanto quanto a internet. Considerando que o livro é uma tecnologia que data do século XV, pós invenção da prensa de Johannes Gutenberg (1396- 1468), em contraponto às tecnologias digitais que estão presentes na sociedade pós-moderna há menos de um século, compreende- se a necessidade de letramento digital. Não podemos simplesmente abandonar a mídia e a tecnologia na educação e retornar a um tempo mais simples e natural, é o que argumenta o autor que defende que a escola não vai desaparecer, mas que precisa com urgência incorporar novas ideias a respeito de aprendizagem, comunicação e cultura, quando pensa a questão das tecnologias digitais. (BUCKINGHAM, 2010).

Após narrar sobre a decisão de escolher o curso de licenciatura no IPA, o docente expõe um fato que vai de encontro ao que Mateiro (2007, p. 185) afirma em estudo realizado sobre o perfil dos estudantes ingressos nas licenciaturas: “aprimorar os conhecimentos musicais” foi a alternativa mais apontada, com 96% das respostas, seguida de “conhecer outros profissionais” e “aprender música”, ambas com 52%. Sobre suas motivações pessoais em cursar o ensino superior em música, Eliomar explica:

Na época eu entrei pensando mais em performance do que...apesar de saber que era uma licenciatura, mas eu tinha uma banda e a gente achava que, enfim... eu ia me aprimorar ali e ia ser bom para gente. No fim, a banda não demorou um semestre... Depois que eu entrei, aí banda acabou e eu continuei ali no curso, né? Eu tava gostando, eu tava estudando uma coisa que eu gostava, né? (Eliomar).

A respeito da formação dos professores de música, Piserchia (2014, p. 118) demonstra em pesquisa realizada com 118 estudantes, que 58% são alunos do sexo masculino, contra 42% de estudantes mulheres. Dos participantes da pesquisa, 76% dos homens e 84% das mulheres respondeu que escolheu a licenciatura em música por uma questão de “desejo pessoal”. (p. 122). A autora ainda argumenta que há diferenças importantes sobre a construção dos conhecimentos musicais por homens e mulheres, sendo que os homens estão mais propensos a aprender música informalmente “com amigos, de forma autodidata ou em bandas” (p. 121), enquanto o aprendizado no caso das mulheres encontra maior adesão no ensino formal em escolas de música.  

Alguns anos antes, Mateiro e Borghetti (2008) ao analisar os dados de uma pesquisa realizada com estudantes de um curso de Licenciatura em Música, ressaltam que, “a grande parte dos licenciandos não se identifica com a carreira de professor ou, pelo menos, não expressa” (p. 103). O caso de Eliomar vai ao encontro ao que Mateiro (2005) explica sobre a identificação com a profissão de professor de música acontecer mais especificamente no momento da realização dos estágios curriculares supervisionados nas escolas. Fica evidente a importância dessa etapa na formação docente, pois é no contexto escolar que o profissional poderá ter maior “compreensão dos comportamentos e reações dos alunos em sala de aula, identificação dos problemas e possíveis soluções” (p. 13).

7 Práticas pedagógico-musicais não presenciais de André FM

A insegurança e a falta de experiência com a situação apresentada pela emergência derivada da pandemia de coronavírus são fatores bastante evidentes neste momento da narrativa de André. A compreensão sobre a situação de saúde, aliada com a noção da situação econômica da maioria das famílias da rede pública de ensino, juntamente com a incapacidade de definição sobre as questões práticas aparecem de forma explícita na narrativa que procura explorar a sua experiência de atuação durante a pandemia.

Bem no início, ficou todo mundo num limbo né? Porque a gente não sabia se ia ficar uma semana, um mês em casa. Não tinha nem noção né, da coisa. Aí eram reuniões escolares semanalmente assim, pra pensar como que iriam chegar às atividades. “Ah, vai ser impressa, mas não pode ter o contato e como é que eles vão devolver?” Foi bem desesperador assim! Ainda é né, desesperador.

Para analisar as atuações dos professores durante a pandemia, foram utilizados relatórios e pesquisas realizadas com profissionais da educação no Brasil. Segundo o relatório da pesquisa levada a cabo por Nova Escola[6] com professores durante a pandemia de COVID-19, verificou-se que dos cerca de 10 mil respondentes, metade atua nas redes municipais e cerca de 75% do total, atuam na rede pública. A questão de gênero fica em evidência quando a pesquisa demonstra que cerca de 85% das pessoas que responderam são mulheres. Nesta pesquisa que levou em consideração instituições particulares também, revela-se o fator da desigualdade social que demonstra que cerca de 59% dos docentes afirmam que seus alunos participaram de atividades remotas, contra apenas 32% na rede pública.

 Pode-se observar, segundo o relatório técnico do Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (GESTRADO, 2020)[7], intitulado “Trabalho Docente em Tempos de Pandemia”, que cerca de 15 mil docentes da rede pública do Brasil responderam sobre suas atuações durante o ano de 2020. O perfil docente expõe que as mulheres são cerca de 78% das respondentes da pesquisa e que cerca de 50% do total dos participantes é docente na rede municipal, como André. Nessa pesquisa, realizada entre 08 e 30 de junho de 2020, fica exposto que a suspensão das atividades escolares aconteceu em cerca de 17% das escolas da rede municipal, em contraponto a 13% nas redes estaduais. Embora cerca de 84% dos professores seguiram com atividades remotas, mais da metade (53%) afirmou não possuir preparo para o ensino não presencial. Os professores ainda afirmam que um terço dos estudantes não tem acesso aos recursos necessários para a realização das atividades. Não apenas os estudantes enfrentam dificuldades com o acesso aos recursos, como também os professores, segundo o dado que expõe que 63% dos professores respondentes da pesquisa não tem acesso a internet banda larga, o que vai ao encontro da situação de André, conforme seu relato:

O problema vem se estendendo, porque na rede a gente sabe que a maioria das famílias não tem acesso à internet né? Nem eu. Eu tinha acabado de me mudar para minha casa e eu não tinha internet. Faz uma semana que eu tenho internet na minha casa. Então assim, eu fiquei pensando: Poxa! Eu não tenho internet na minha casa. Eu tinha que ir na casa da minha companheira ou na casa dos meus pais pra fazer as vezes, ou encaminhar, fazer uma live assim. Em casa eu tinha às vezes o contato da internet do vizinho, algumas vezes, mas eu não podia contar para uma aula online, pra uma coisa importante, né? E então foi desesperador assim, como é que ia chegar lá? Se eu fizer só vídeo? Então eu fui pensando nas possibilidades... Se eu fizer só vídeo, poxa, vídeo é pesado! As crianças podem até baixar um vídeo, mas, se meu vídeo ficar pesado, ficar longo, eles não vão baixar. Vai acabar com os dados do celular do pai da mãe né, enfim!?

Com o passar do tempo, mesmo procurando criar soluções em vídeo e atividades lúdicas a distância, o professor se viu desenvolvendo a metodologia que foi adotada pela maioria das escolas nesse período, que foi a da folha impressa. Nessa metodologia, cada família ficou responsável de ir até a escola, presencialmente, para retirar as atividades que foram formatadas em uma folha impressa, para os alunos realizarem em casa e, então, retornar para os professores, seja de forma remota ou novamente entregando presencialmente na escola. Ele conta:

Postei no YouTube, fiz um canal[8], convidava sempre eles pra entrar lá, assistir os vídeos anteriores. Mandava por WhatsApp no grupo das turmas e fazia a folha impressa. A folha impressa também a gente mandava em PDF e vai para o portal educacional, que é um portal da prefeitura onde estão as atividades de todas as escolas, né?

“Uma família que realmente fala: ‘Olha eu não tenho internet, eu preciso da atividade impressa!’ É um direito da família receber atividade não tendo internet. Então, todos os professores têm que sempre fazer atividade impressa, isso semanalmente”, explica André. Serres (2018) defende a ideia de que a geração pós virada do século impulsiona o mundo pela forma com que se relaciona com a tecnologia, a sair do “formato-página”, decretada desde a invenção da prensa e utilizada até hoje mesmo nos meios digitais. Para o autor, as novas tecnologias modificaram radicalmente o conhecimento, que hoje encontra-se exteriorizado, em diálogo constante entre o indivíduo e as máquinas.

Para André, nesse momento de emergência sanitária, muitas situações burocráticas que não estavam a encargo do professor, passam a ficar em evidência e a demandar soluções que não passavam pelas mãos deles anteriormente. Ele finaliza o trecho da narração se colocando como se fosse um jogador de futebol que precisa fazer a conexão entre a defesa e o ataque, realizando o chamado “meio de campo”. Ficar restrito a utilizar uma tecnologia analógica, de “formato-página” como principal forma de entrega e recebimento das atividades pelas famílias, durante a pandemia, ressalta aspectos da desigualdade social na rede pública de ensino que já estavam presentes e, que com a situação de ensino não presencial, ficaram explícitos. Mesmo considerando docentes com domínio de tecnologias digitais e de produção de conteúdo, como o professor André que realizou mais de 30 vídeos originais, podemos compreender que a formação docente representa um papel importante na atuação docente, mas que o contexto escolar é quem determina que tipo de atividade terá a possibilidade de ser desenvolvida.  

8 Estratégias de Eliomar Júnior para o ensino não presenciAL

        Abordando a situação do ensino fundamental, o docente descreve uma dificuldade, em virtude do número de atividades semanais que era necessário produzir, além da dificuldade em conectar-se com os alunos de suas turmas. Relata que teve mais dificuldade em se conectar com os estudantes e que adotou estratégias alternativas para conseguir o engajamento dos seus alunos na realização das atividades.

No início eu fiz atividades dentro do que eu já mais ou menos tava trabalhando em sala de aula com eles. A gente estava cantando um pouquinho e fazendo um pouquinho de explorando sons do corpo, né? Então, fiz isso ali dentro dos formulários mesmo, né, dos documentos. Então, por exemplo, fiz partitura analógica para eles, né? Então eles olhavam, né? Aí botava uma legenda lá, então, ah sei lá, quadrado vai bater no peito, quando for círculo tu vai dar uma palma, quando for um triângulo tu vai bater o pé, né? E aí tinham umas sequências rítmicas e eles iam fazendo aquilo ali, né? Para mandar. Aí eles devolviam tudo por vídeo, né? Ou foto, enfim. Aí também começou uma outra questão, né?

        Para o docente, as dificuldades em receber as atividades realizadas pelos alunos, estão alinhadas aos dados presentes na pesquisa[9] do instituto Data Folha, encomendada pela Fundação Lemann. Verifica-se que 61% das famílias consideram muito difícil manter uma rotina de estudos em casa, mas que quanto maior é o contato do professor com os alunos, mais os alunos se dedicam.

        Diante da dificuldade que as famílias e os alunos enfrentaram para retornar as atividades para os professores, a narrativa de Eliomar demonstra algumas situações que surgiram em virtude do momento particular de ensino não presencial. Procurando adaptar as atividades para o ensino remoto emergencial, o docente expõe sobre a adoção de material didático disponível online, porém reitera sobre a situação de falta de acesso à internet das famílias de seus alunos.

        Em virtude do baixo retorno das atividades, juntamente com a necessidade de criar atividades para a continuidade do ensino não presencial, o professor decide se aliar com os outros professores que também tinham pouco retorno, como os de educação física e inglês, por exemplo. Nóvoa (2020) argumenta que as melhores respostas para a pandemia não vieram de governos e nem de ministérios, “mas antes de professores que, trabalhando em conjunto, foram capazes de manter o vínculo com os seus alunos para os apoiar nas aprendizagens” (p. 9). Para o autor, fica evidente a necessidade de criarmos novos ambientes escolares e compreendermos a docência como uma atividade coletiva, em constante troca de informações e experiências com seus colegas, em contraponto a uma visão que enxerga a docência como atividade individual, entre o professor e seus alunos. Eliomar descreve uma situação de colaboração com seus colegas que proporciona uma visão que se assemelha ao que Nóvoa (2020) descreve. Ele relata:

Então, o que que a gente fez? A gente começou a trabalhar algumas coisas, sei lá, no Dia das Crianças, por exemplo, a professora fez uma atividade de caça ao tesouro, né? Eu fiz a minha atividade, e aí lá na minha atividade tinha uma palavra-chave. Na atividade dela precisava de uma palavra que eu ia dar. E para eu dar essa palavra eles tinham que fazer minha atividade. Aí como eles ficavam curiosos e faziam a atividade dela, né? Faziam a minha atividade, aí com o professor de educação física a mesma coisa. Ou, umas palavras que estavam na... pra completar uma atividade da prof. no meio da atividade, assim... “Aí bom, agora para você completar essa, você só vai entender se você fizer a atividade de educação física, a atividade de música, né?” Aí eles iam para nós, né? Fazer nossas atividades para depois para chegar lá.

        Nóvoa (2020) expõe suas percepções sobre o momento de pandemia e o futuro da educação em entrevista cedida à Revista Com Censo, em agosto de 2020. Na última pergunta, respondendo sobre novas perspectivas da docência, num momento pós-pandemia, Nóvoa explica que o debate sobre o futuro da educação não é novo, mas que tem relação com aquilo que concebemos como o “modelo escolar”. Para o autor, este modelo engloba três dimensões que são: sistemas educativos especializados, que progressivamente impõem obrigatoriedade às crianças; escolas normalizadas em torno de espaços semelhantes, com a sala de aula, a padronização dos currículos em disciplinas, e as lições como principal forma de estrutura didática; e, por fim, professores atuando individualmente em turmas agrupadas por idade e progresso escolar.

Essas três dimensões, conforme argumenta Nóvoa (2020, p. 5) devem ser encaminhadas no sentido da transformação do modelo escolar para um modelo em que “a educação não se esgota na escola”. Há também, a necessidade de incluir outros ambientes de estudo e aprendizagem, bem como os novos formatos de atividades que durante a pandemia colaboraram para uma “metamorfose da escola” e, por fim, uma alteração no papel do professor, pois “as melhores respostas à pandemia foram resultado da colaboração entre grupos de professores”. Para o professor Eliomar, que em seu relato de apresentação demonstrou que a sala de aula é o ambiente profissional onde se sente à vontade para atuar, torna-se um desafio estabelecer uma relação com seus alunos sem a realidade concreta da sala de aula.

Eu acho que a questão onde eu me sinto muito preso é aquilo de eu não saber como é que o aluno tá lá do outro lado, não sei como é que ele tá, né? Tu pode fazer reunião com ele no Meet, pode. Mas é diferente, né, cara? É diferente da sala de aula onde tu tá falando alguma coisa, tu olha para cara de cinco ou seis, eles estão com aquela cara de nada, e ali dentro tu vai te reinventando daquilo ali, aí alguém vai fazer uma pergunta, que aquela pergunta já vai mudar o jeito que aqueles alunos estavam cara de nada vão prestar atenção na aula, porque era aquilo ali que eles queriam saber, né? E as vezes eles são mais tímidos, são mais fechados e aquele teu aluno fez a pergunta, e aí tu vai respondendo e eles já vão vendo que muda e tu já vai vendo o conhecimento entrando na cabeça deles ali naquele momento. E aí tu já vai já vai mudando... Isso acho que é mais difícil, né? Porque a gente não tem isso, né? Eu não sei como é que tá do outro lado, como é que meus alunos estão ali [em casa, na tela]. Não sei o que eles tão fazendo, o quê que eles tão pensando.  Se eles estão a fim, se são eles que estão fazendo as atividades inclusive, né?

        Eliomar descreve as situações que vivenciou em sala de aula e argumenta sobre a impossibilidade de realizar algumas ações, quando se está no ensino não presencial. Os sinais que muitas vezes ficam explícitos em uma atividade presencial, não encontram a mesma transparência no ensino via plataformas digitais. A principal causa da expansão do uso de dispositivos como substitutos eletrônicos dos encontros face a face está no grau de conforto e conveniência que estes dispositivos oferecem e embora esse conforto de estar em casa, durante a pandemia, o uso em excesso por conta da questão de restrição de convívio, trouxe consequências presentes nos relatos.

9 Compreensões em aberto

A partir da perspectiva do estudo que observa a formação docente em diálogo com as tecnologias digitais, pudemos compreender que o papel da tecnologia está intrinsecamente ligado com as políticas institucionais para a realização das atividades que envolvem o uso de recursos que são muitas vezes privados. Fica em evidência a situação de desigualdade social que já era uma realidade, e que passou a se intensificar. Esse fato coloca em perspectiva o modelo escolar que pensa a educação de uma forma padronizada e propõe reflexões sobre as inovações que podem surgir em termos de criatividade e inventividade, mas somente para aqueles que conseguirem acesso particular para vivenciar a educação.

O lugar de encontro da educação tornou-se virtualizado com a pandemia e, poder acessar esse espaço sem auxílio condizente de governantes ou instituições, acabou por ser mesmo uma questão de poder, não de querer, em muitos casos. As políticas neoliberais que invadiram as instituições de ensino nos últimos anos, visando resultados que se revertam em índices, mostrou seus frutos nesse período de emergência e aumento de desigualdades. A aula de artes e o ensino de música ficam à margem dos conteúdos escolares, pois segundo os indicadores de avaliação dos últimos anos, não há como concluir em que aspectos a arte se reverte em valorização monetária dos governos e das instituições.

Considerando o contexto de pandemia global e analisando as situações vivenciadas pelos dois professores de música, a primeira situação a ser destacada é que durante a pandemia de COVID-19, Eliomar, que é professor substituto, teve sua carga horária reduzida, enquanto André, como professor efetivo, manteve seu contrato inalterado. Ao mesmo tempo em que se verifica o privilégio de não ter sua carga horária reduzida durante a pandemia, a condição de professor efetivo fica evidente no relato de André, quando detalha as condições exaustivas de trabalho nas instituições de ensino onde desempenha um cargo de função exclusiva. Ambos os docentes demonstraram desenvoltura e habilidades técnicas no manuseio e vivência com as tecnologias digitais, o que também pode evocar uma questão de gênero, quando percebo que, geralmente, são os homens que têm maior intimidade com tecnologias digitais. No caso de André, foram mais de 30 vídeos produzidos em seus canais oficiais nas redes sociais, mostrando uma mescla entre seu trabalho de artista, músico e professor. André, durante o período de pandemia, revelou-se como um produtor de conteúdos educacionais e artísticos para as redes sociais. Um zagueiro, para usar a analogia do futebol, que defende muito bem o seu time, mas que, se precisar, sabe fazer o meio de campo, como ele mesmo narrou na sua entrevista.

Ao entrar em contato com o perfil online de Eliomar – @el10mar[10] – no Instagram, percebemos que ele tinha publicado alguns vídeos onde vestia diferentes camisas de times de futebol enquanto tocava algumas canções se acompanhando ao violão ou cavaco. Lá pudemos também verificar alguns comentários de seus alunos ou ex-alunos e isso já deu pistas sobre a sensibilidade e a íntima relação com seus alunos que o professor descreveria em seu relato. Eliomar relatou suas experiências com as tecnologias e demonstrou versatilidade em driblar os problemas que podem aparecer quando temos imprevistos no meio do processo. Como um camisa 10 de um time de futebol que se depara com uma defesa ou goleiro muito treinados, mas que, com sábias e rápidas decisões, é capaz de marcar um gol e virar o jogo a favor de seu time. A criatividade em se entrosar com seu time de alunos expõe características de um artilheiro que está entrosado em sua equipe e pode assim desempenhar um papel que lhe foi destinado, mesmo que tenha que se sentar no banco, como substituto, esperando a hora certa de retornar aos gramados das escolas.

O descontrole sobre a carga horária de trabalho, a mescla de diferentes canais de comunicação entre os pares e entre os alunos reforçaram momentos de ansiedade e desconforto nos docentes. Embora para eles o período tenha se configurado como uma oportunidade de utilizar tecnologias digitais e renovar seu conhecimento nessa área, a baixa devolutiva das atividades entregues por seus alunos foi um dos principais pontos apontados.

A adaptação necessária ao período coloca em evidência a falta de recursos para a continuidade da educação, seja pela falta de acesso dos alunos e familiares o que impossibilita a entrega de atividades ou até mesmo pela dificuldade em produzir material didático adequado em um momento em que os alunos estão em casa, fora do ambiente escolar. O baixo estímulo ao profissional docente, aliado à falta de programas sociais destinados ao maior acesso à internet ou tecnologias digitais por parte dos estudantes e suas famílias revelam desafios do momento vivenciado na educação básica em 2020. A falta de incentivo ao acesso à tecnologia, seja por iniciativas públicas ou privadas, num momento de emergência, determina que a escola continue operando em um formato que se mostra inadequado aos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem. Seja pela limitada capacidade de registro, criação e distribuição das atividades impressas, como pela logística que impõe e que acarretou um baixo índice de devolutivas.

O letramento digital se fez presente em cursos de capacitação oferecidos pelas instituições e pela versatilidade dos docentes em se reinventar num período de transformações sociais. A falta de investimento em letramento digital, como uma política pública, aparece nas situações descritas que revelam aspectos sobre as instituições escolares e os procedimentos de comunicação entre os profissionais da educação básica e a sociedade.

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[1] Disponível em http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/educa/index.php?pagina=notpagina&noti=18978 Acesso em: 26 mar. 2021.

[2] Disponível em: https://www.ritmosebatucadas.com.br/o-livro/. Acesso em: 21 jun. 2021.

[3] Disponível em: https://elisabeteanderle.idcult.com.br/. Acesso em: 21 jun. 2021.

[4] Disponível em: https://www.ritmosebatucadas.com.br/o-livro/. Acesso em 21 jun. 2021.

[5] Disponível em: http://ipametodista.edu.br/. Acesso em: 24 maio 2021.

[6] Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19386/qual-e-a-situacao-dos-professores-brasileiros-durante-a-pandemia. Acesso em: 08 jun. 2021.

[7]  Disponível em: https://gestrado.net.br/ - Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (GESTRADO/UFMG). Acesso em: 21 jun. 2021.

[8] Disponível em: https://www.youtube.com/c/AndréFelipeMarcelino/videos. Acesso em: 28 jun. 2021.

[9] Disponível em: https://fundacaolemann.org.br/materiais/educacao-nao-presencial-na-perspectiva-dos-alunos-e-familias. Acesso em: 28 jun. 2021.

[10] Disponível em: https://www.instagram.com/el10mar/. Acesso em: 06 jul. 2021.