Pesquisa de tendências de moda na indústria catarinense: uma análise a partir dos conceitos de colonialismo e eurocentrismo
Isadora Guercovich, Carlos Alberto Silva da Silva, Thaissa Schneider
Pesquisa de tendências de moda na indústria catarinense: uma análise a partir dos conceitos de colonialismo e eurocentrismo
Fashion trends research of Santa Catarina’s industry: analysis of the concepts of colonialism and eurocentrism
Isadora Guercovich
Graduação em Design de Moda pelo Centro Universitário da Católica de Santa Catarina (UNERJ) –
isaguercovich@hotmail.com– orcid.org/0000-0002-2898-916X
Carlos Alberto Silva
Doutor em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) –
carlosnago@yahoo.com.br– orcid.org/ 0000-0003-3947-7095
Thaissa Schneider
Mestre em Design pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) –
thai@terra.com.br– orcid.org/ 0000-0001-7277-5225
Resumo
O presente artigo tem foco na pesquisa de tendências de moda realizada na indústria catarinense, relacionando com conceitos de colonialismo e eurocentrismo. Por meio de um questionário aplicado a estilistas e designers de moda, observou-se que estes têm a Europa como principal referência de pesquisa, mas que também valorizam a análise e o lançamento de tendências nacionais. Para entender este fenômeno, a revisão de literatura apresenta um apanhado histórico do surgimento das tendências de moda e da centralização da moda na Europa. Somado a isso, são estudados os conceitos de colonialismo e eurocentrismo, difundidos na América Latina por teóricos como Aníbal Quijano (2005) e Edgardo Lander (2005). O artigo busca pontuar as possíveis consequências da hegemonia da moda europeia na pesquisa de tendências realizada pela indústria catarinense, já que dessa forma expõe-se ao risco de perder autonomia e identidade na moda lançada pelo estado, tornando deficitário o quesito inovação e diferenciação de mercado.
Palavras-chave: Moda. Pesquisa de mercado. Vestuário - Indústria - Santa Catarina. Movimentos sociais.
Abstract
This article focuses on the fashion trends’ researches made in the industry of Santa Catarina, relating to concepts of colonialism and Eurocentrism. Through a questionnaire applied to fashion designers, it was observed that they have Europe as their main research reference, but that they also value the analysis and forecasting of national trends. To understand this phenomenon, the literature review has a historical overview of the emergence of fashion trends and the centralization of fashion in Europe. In addition, the concepts of colonialism and Eurocentrism, disseminated in Latin America by authors such as Aníbal Quijano (2005) and Edgardo Lander (2005), are studied. The article seeks to point out the possible consequences of the hegemony of European fashion in the trend research carried out by the Santa Catarina industry, as there is a risk of losing autonomy and identity, making innovation and business value issue deficient.
Keywords: Fashion. Marketing research. Clothing and dress - Industry - Santa Catarina. Social movements.
Recebido em: 18/12/2020
Aceito em:18/05/2021
A moda como objeto de estudo abrange uma série de ramificações das ciências sociais, como antropologia, sociologia, comunicação e política. Ao se estudar o fenômeno da moda – incluindo aqui o estudo do vestuário, da aparência e das tendências – se estudam também as forças sociais e políticas que constroem as relações humanas.
A história da nossa sociedade se desenhou sob uma perspectiva europeia, que durante séculos propiciou a hegemonia de poder do hemisfério norte de lançar e legitimar comportamentos e tendências (CAMPOS, 2017). A moda brasileira, por muito tempo – e talvez até hoje –, se submeteu a essa hegemonia, tendo a Europa como principal fonte de pesquisa e de inspiração para desenvolver seus produtos e comunicações de moda. Campos (2017) explica que a pesquisa de tendências de moda dos estilistas brasileiros é centralizada em Londres, Paris, Milão e Nova Iorque, chamadas de capitais mundiais da moda, todas localizadas no hemisfério norte, especialmente no continente europeu. Estilistas e designers brasileiros “[...] viajam periodicamente para os ‘centros da moda mundial’ em busca de tendências e usam ferramentas como a WGSN[1] [...] e cadernos de estilos produzidos por bureaux[2] internacionais” (MICHETTI, 2009). Esses centros da moda são chamados de “mercados formadores de opinião”, aos quais “[...] é atribuída a legitimidade de se posicionar como mercado global [...]” (MICHETTI, 2015, p. 518), assumindo a posição de transmissores de conceitos e tendências; e o poder de validar comportamentos.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (2019), o Brasil possui a maior cadeia têxtil completa do Ocidente, já que o país é o único que produz desde as fibras, com o plantio do algodão, passando por fiações, tecelagens, beneficiadoras, confecções, tendo um forte varejo e uma semana de desfiles de moda relevante para a moda internacional. Dentro do cenário nacional, o estado de Santa Catarina se destaca pela grande concentração de empresas têxteis na região (RECH, 2006). Conforme Andrighi (2007, p. 11), “Em Santa Catarina, o pólo de vestuário e têxtil se concentra em Blumenau, Brusque, Criciúma, Florianópolis, Jaraguá do Sul e Joinville. Nas regiões de Joinville e Brusque, a produção de tecidos planos se destaca, enquanto as regiões de Jaraguá do Sul e Blumenau concentram-se na produção de malhas.”
Vale-se ressaltar, ainda, que o processo de colonização do estado de Santa Catarina se deu de forma tardia, apenas no século XIX. Segundo Luclktenberg, o governo federal não apresentava interesse na colonização do estado, deixando essa atribuição às companhias de colonização privadas e imigrantes independentes vindos, principalmente, da Alemanha e da Itália. O desenvolvimento da indústria têxtil e de vestuário da região se dá, justamente, com a chegada desses imigrantes, especialmente em Blumenau e Brusque, “[...] já que boa parte dos imigrantes conhecia alguma etapa do processo produtivo, haja vista que muitos destes chegaram da Alemanha com algumas noções sobre a atividade, pois tinham, na Europa, trabalhado como operários das indústrias [...]” (LUCLKTENBERG, 2004, p. 36).
A partir do entendimento da influência da colonização europeia no desenvolvimento da indústria têxtil de Santa Catarina e das forças sociais que centralizam a moda na europa, este trabalho procura analisar a pesquisa de moda realizada na indústria têxtil e de confecção catarinense relacionando com os conceitos de colonialismo e eurocentrismo. Refletir sobre conceitos sociológicos que buscam explicar o funcionamento da sociedade latino-americana e sua relação com a Europa é importante para entender os reflexos das práticas da indústria catarinense na moda que é lançada e produzida pelo estado.
Para tanto, os objetivos específicos que ajudarão a resolver a questão são: a) compreender o que é a pesquisa de tendências de moda, através de uma perspectiva histórica, assim como, a centralização da moda na Europa; b) estudar os conceitos de colonialismo e eurocentrismo, a partir de um entendimento contemporâneo, c) analisar as ferramentas utilizadas na pesquisa de tendências de moda feita por estilistas e designers de moda catarinenses no ano de 2020 e, por fim, d) relacionar as teorias e conceitos estudados com as ferramentas de pesquisa de tendências de moda utilizadas atualmente no estado.
2 REVISÃO DE LITERATURA
Através de pesquisa bibliográfica, serão abordados os temas propostos no artigo, que englobam uma contextualização e um histórico da pesquisa de tendências de moda, a questão da centralização da moda na Europa e o que dizem diferentes autores sobre colonialismo e eurocentrismo.
2.1 TENDÊNCIAS DE MODA: CONTEXTUALIZAÇÃO E HISTÓRIA
O sistema de moda se dá a partir de um modelo de substituição de significados, em que o novo é objeto de desejo. Segundo Miranda (2008, p. 73) “a moda é a imitação de modelo estabelecido que satisfaça a demanda por adaptação social, diferenciação e desejo de mudar” Sendo assim, o fenômeno que chamamos de moda está intrinsecamente ligado à modernidade, à busca pelo que é novo e por sua vez ao acolhimento da efemeridade das coisas e dos hábitos (RECH, PERITO, 2009). A moda “articula as relações entre os sujeitos sociais a partir da aparência e instaura o novo como categoria de hierarquização dos significados” (SANT’ANNA, 2007, p. 88). Esse culto à inovação, historicamente, acabou contribuindo para a difusão e criação de tendências (RECH, PERITO, 2009).
Como explica o sociólogo francês Guillaume Erner, as tendências são “focalizações do desejo” (2009, p. 5), de capacidade e de escala variáveis, que levam numerosos indivíduos a adotar, durante certo período, algumas atitudes ou gostos. (GODART, 2010, p. 38)
Para descrever as tendências, Erner (2015, p. 21) menciona o termo “gosto coletivo” referindo-se a hábitos e escolhas individuais amplamente difundidos e aceitos por um considerável número de pessoas. Já Godart (2010, p. 38) diz que o “[...] princípio da convergência é assegurado por um mecanismo de centralização que permite aos profissionais canalizar as evoluções que eles têm dificuldade de controlar. ”
Segundo Lieberson e Bell (1992 apud GODART, 2010), as tendências de moda podem ser tanto oriundas de organizações ou instituições sociais e econômicas, quanto de questões culturais não determinadas por esses agentes. A primeira situação citada pelos autores, de que tendências são pautadas por organizações, é percebida historicamente quando a França, do século XVII, passa a ser a primeira potência europeia sob o comando do rei Luís XIV.
A “monarquia absoluta” de Luís XIV gera uma centralização sem precedentes nas tendências indumentárias europeias. Essa situação é nova, visto que até então diferentes influências, vindas da Espanha, dos Países Baixos ou também da Inglaterra disputavam a atenção dos aristocratas e dos burgueses europeus. Essa centralização da moda foi, em parte, uma estratégia consciente por parte do rei e de seus ministros não apenas com o objetivo de ocupar o espírito dos nobres e desviá-los de suas intrigas políticas, mas também de consolidar o poderio da França e de seu estado [...] (GODART, 2010, p. 39)
Além disso, a centralização da moda na França garantia uma hegemonia econômica, já que concentrava a produção têxtil no país, e permitia aos alfaiates ou modistas franceses ampla vantagem sobre seus concorrentes europeus. “A centralização da moda permite uma coordenação das tendências que são definidas por um grupo central de casas de moda situadas num número limitado de ‘capitais da moda’” (GODART, 2010, p. 39). Essa centralização, coordenando tendências, facilita a organização do setor industrial têxtil e do vestuário, assim como “[...] a diminuição da incerteza dentro de um mercado intrinsecamente instável” (GODART, 2010, p. 39).
A partir das décadas de 1950 e 1960, com o surgimento e predominância do prêt-à-porter[3], a crescente industrialização do setor e, principalmente, com a ascensão da moda norte-americana, que vinha dominando a produção em larga escala, adaptando e copiando a moda francesa de Alta-Costura (SANT’ANNA, BARROS, 2011), o conceito de centralização e coordenação de tendências fica em evidência novamente. A centralização acabou possibilitando o “[...] arranjo entre oferta e demanda não apenas para o mercado consumidor, mas a coerência interna dentre os diversos fornecedores da indústria da moda” (CAMPOS, 2017, n. p).
Essa organização e coordenação impulsionou a criação de coordenadorias de estilo, ou bureaux de style, “[...] criadas como esforço do governo francês em manter a renomada expertise em moda” (CAMPOS, 2017, n. p.). Essas coordenadorias tinham (e têm) como função aconselhar antecipadamente diversos agentes da linha de produção têxtil, desde fiadores, a tecelagens e confecções, a respeito das cores, materiais e formas que supostamente se consolidariam em tendências, através de “Cadernos de Tendência” (ERNER, 2015, p. 101). Através disso, comprova-se a influência de organizações ou instituições específicas para o controle das tendências na contemporaneidade
No retorno à França, as consultoras tiveram como missão redefinir a atuação francesa na área de moda. Em 1955, criou-se em Paris, o CMI – Comitê de Coordenação das Indústrias de Moda – cuja função era fornecer aos diferentes setores da cadeia têxtil recomendações exatas e coesas com as tendências de moda. (CAMPOS, 2017, n. p.)
“Foi a partir dos anos 1970 que temos o surgimento de agências de pesquisa de tendência (Bureau de Stylo) particulares, ou seja, que não eram financiados pelo governo” (SANT’ANNA, BARROS, 2011, p. 5), mas que ainda assim, em sua maioria, eram centralizados em Paris. Sobre os Cadernos de Tendências produzidos por bureaux de estilo, Bonadio (2005, p. 72) diz que:
A função dos cadernos é organizar a cadeia de produção, permitindo que, a cada estação, os diversos setores da produção têxtil e as cidades situadas fora do “fenômeno parisiense da moda” possam ter acesso à síntese das grandes correntes do momento, classificadas por temas, formas, cores e materiais, a fim de planejar suas coleções.
Nos anos 80 e 90, do século passado, surgem agências dedicadas à pesquisa de tendências em outras partes do mundo, focando principalmente em aspectos industriais ou facilmente escaláveis. Até os anos 2000, inexistiam bureaux de estilo brasileiros. Além disso, o acesso direto aos Cadernos de Tendências franceses era restrito a empresas de grande porte, já que o preço de um exemplar podia variar entre US$1.500,00 a US$ 250.000,00 (BERGAMO, 2007).
Para que as informações de tendências de moda chegassem à confecções e marcas de pequeno porte no século passado, estas contavam com a divulgação “feita por entidades do setor, como é o caso da Abravest, ou por revistas dirigidas aos empresários, [...] ou como o Guia Oficial da Moda fez durante muitos anos, principalmente na década de 1970” (BERGAMO, 2007, n. p.). Um outro caso emblemático é o serviço de Orientação de Moda da Rhodia S.A., nos anos 1970, cuja equipe viajava “até as principais feiras internacionais, ocorridas na Europa e cujo palco central era Paris, e reunia as informações veiculadas pelos principais bureaux de estilo” (BERGAMO, 2007, n.p.), para, então, sistematizar as informações e oferecê-las a seus clientes – empresários e profissionais de confecções, tecelagens e malharias ao redor de todo o Brasil – através de palestras e Cadernos de Moda (BERGAMO, 2007).
Ou seja, no fim do século passado, as marcas brasileiras contavam com agentes nacionais transmissores de informações de tendências de moda, obtidas a partir de viagens internacionais e Bureaux de Estilo, como ferramentas de pesquisa. Percebe-se, então, a importância atribuída às informações vindas do hemisfério norte, já que é lá onde se concentram as agências de tendências mais relevantes, especificamente na França, Inglaterra e Estados Unidos (SANT’ANNA, BARROS, 2011). “Desta maneira, grande parte da indústria da moda ao redor do mundo é alimentada por dados que são colhidos e pensados a partir da realidade destes três países” (SANT’ANNA, BARROS, 2011, p. 5). Ou seja, países capitalistas do hemisfério norte detém o poder centralizador de criar e legitimar significados, tendências e comportamentos que se sobrepõem às realidades da moda dos demais países.
2.2 CENTRALIZAÇÃO DA MODA NA EUROPA
No século XVII, a França vivia um cenário ideal de poderio econômico e cultural. “A partir de 1660, a corte de Versalhes começou, de fato, a se impor para o restante da Europa com os novos padrões sociais, criando boas maneiras, etiquetas, modos e, principalmente, moda” (BRAGA, 2007, p. 49 apud PERES, GHIZZO, 2019, p. 124). Tanto Versalhes quanto Paris eram centros políticos, culturais e econômicos (GODART, 2010). “Todos os polos dominantes em todos os campos - político, artístico, cultural, econômico - estão [...] centrados em Paris (PINÇON, PINÇON-CHARLOT, 2004, p. 48, apud GODART, 2010, p. 57-58). Como já citado anteriormente, isso propiciou manobras políticas partindo da Corte para centralizar a moda na França.
Sendo assim, Paris foi historicamente se consagrando como uma capital da moda, representando o luxo e o estilo de vida francês. Seguindo a capital francesa, Londres “[...] beneficiou-se de seu status de capital do império para impor-se muito cedo como uma das capitais mundiais da moda” (GODART, 2010, p. 58). Paris e Londres acabaram criando uma dualidade entre o berço da moda feminina e da moda masculina, respectivamente. Segundo Godart (2010, p. 58) “Paris e Londres são, portanto, as capitais ‘originais’ da moda.”
Nova Iorque e Milão consagram-se como capitais da moda apenas no século XX, sendo que a primeira cidade culminou os conceitos ready-to-wear e de sportswear e a segunda ganhou força graças ao poder industrial italiano e a sua associação com um bom design (GODART, 2010). Conforme dizem Peres e Ghizzo (2019, p. 129), “[...] essas quatro cidades asseguram suas hegemonias até a atualidade, favorecidas pelos valores de tradição e história agregados ao longo dos anos, mesmo com o surgimento de novos polos.”
Como algumas cidades tornaram-se capitais da moda, e outras não? Por que elas conservam durante tanto tempo o seu papel enquanto o contexto socioeconômico mundial muda constantemente? As capitais da moda são frutos de escolhas passadas que traçam progressões econômicas específicas, uma teoria conhecida sob o nome de “dependência do caminho” (path dependency) (Krugman, 1993). Assim, o poderio atual de Paris no setor da moda, que não corresponde ao poderio atual da França em termos econômicos, é o resultado de vantagens acumuladas no decorrer dos séculos, em termos de capital de marcas, empresas ou habilidade. (GODART, 2010, p. 61)
Peres e Ghizzo (2019, p. 129) afirmam que “o ‘poder histórico’, associado ao velho continente, é reafirmado quando analisados os dois maiores conglomerados de moda e luxo e suas origens.” Nesse sentido, as autoras referem-se aos grupos Kering (antigo PPR: Pinault-Printemps-Redoute) e LVMH (Moët Hennessy-Louis Vuitton), chamados de “Impérios da moda”, ambos de origem francesa, donos de inúmeras grifes de luxo, em sua maioria europeias, atestando “que para além de estarem impondo-se a longo prazo, ainda são elevadas a patamares de idolatria e tidas como referências mundiais” (PERES, GHIZZO, 2019, p. 130).
Portanto, designers notáveis, de renome e com estimada tradição e princípios característicos das grandes casas da Europa são, como nunca, absorvidos por outras marcas ao redor do mundo, e passam a disseminar variáveis de determinada moda aos consumidores, ainda que estes estejam longe do epicentro da sua gênese (PERES, GHIZZO, 2019, p. 130).
Além dos fatores já citados, vale ressaltar que o próprio conceito de moda surge a partir de uma perspectiva europeia. De acordo com Santos (2020), os conceitos de moda geralmente estão ligados a conceitos de individualidade e de classe, referindo-se no geral ao tipo de sociedade que se desenvolve na Europa, o que acaba restringindo “[...] a discussão sobre a moda na sociedade ocidental burguesa capitalista exclusivamente, pois tanto a noção de indivíduo quanto a de classe remetem a esse contexto” (SANTOS, 2020, p. 171). A autora também afirma que “[...] não importa o modo como a moda é entendida: seu surgimento e desenvolvimento são sempre próprios e singulares à sociedade Ocidental moderna”.
Recentemente, alguns autores, como é o caso de Aníbal Quijano (2005), Edgardo Lander (2006), Camilo Retana (2009) e Heloisa H. O. Santos (2020), trazem à tona novas perspectivas sobre a Modernidade e, consequentemente, sobre os conceitos de moda. Quijano (2005) diz que os europeus não somente se imaginaram como os criadores exclusivos da Modernidade, mas também como seus protagonistas. Retana (2009, p. 89), por sua vez, avalia que a partir de uma perspectiva anti-eurocêntrica, a Modernidade teria espaço muito antes do século XVII e englobaria o processo da Conquista do continente americano. Santos (2020, p. 179) traz a ideia de que:
O olhar sobre a moda como apanágio do Ocidente, de sua capacidade de se individualizar e enfrentar as tradições, de se modernizar enfim, precisa ser desconstruída, centralmente por meio daquilo que denomina-se giro decolonial, ou seja, olhar a Europa não mais como o centro do mundo moderno ou como a própria modernidade e inserindo-a na história das demais civilizações como parte, não como motor.
Ou seja, segundo tais autores, o olhar crítico para a moda e os sistemas por ela construídos passa necessariamente por questionar a visão eurocêntrica que se tem dela. Para tal, torna-se necessário entender os conceitos de colonialismo e eurocentrismo e como se estabeleceram no mundo moderno.
2.3 COLONIALISMO E EUROCENTRISMO
Segundo Dussel (2000 apud LANDER, 2006), é apenas após a expansão portuguesa do século XV e após o descobrimento da América, que todo o planeta passa a ser um “mundo” e fazer parte de uma “história mundial”, que até então era um conglomerado de histórias isoladas e justapostas. É apenas mais tarde, quando são intensificados tráfegos e as relações de comércio entre as diferentes partes do mundo, que passa a existir a Europa como uma identidade geocultural, que possuía o controle central do mercado mundial (QUIJANO, 2005).
A consolidação de uma identidade geocultural europeia, somada ao fato de a Europa se posicionar no centro do capitalismo mundial, permitiu que esta pudesse “[...] impor seu domínio colonial sobre todas as regiões e populações do planeta, incorporando-as ao ‘sistema-mundo’ que assim se constituía, e a seu padrão específico de poder” (QUIJANO, 2005, p. 110). Portanto, vem da Europa o poder de reidentificar histórica e culturalmente as identidades dos povos e populações do resto do mundo. Como detentora do poder capitalista mundial, “[...] a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento” (QUIJANO, 2005, p. 110).
Desta maneira, se constrói uma História Universal na qual todas as contribuições significativas das artes, das ciências, da tecnologia, da moral e dos regimes políticos [e talvez da moda também] são produtos internos da sociedade europeia, resultados superiores a serem levados ao resto, inferior, dos povos do mundo. (LANGER, 2006, p. 215, livre tradução da autora)[4]
Ao chegarem em terras americanas, tanto os espanhóis quanto os portugueses, desacreditavam os povos que aqui viviam de acordo com um dualismo evolucionista e etnocentrado (RETANA, 2009), contrapondo o selvagem nativo ao civilizado europeu e isso se seguiu durante todo o período de colonização.
Só havia espaços de poder dentre aqueles que se distanciavam dos padrões selvagens, delimitados pela aparência indígena ou africana, e se aproximavam de um consumo de coisas e costumes ditos civilizados e, assim, importados da Europa. (SANT’ANNA, 2017, p. 43)
Segundo Sant’Anna, intelectuais que tiveram “[...] formação acadêmica centrada nos valores e produções científicas europeias [...] compartilham que o conhecimento é poder: de intervenção, de previsão, de administração e, também, de salvação” (2017, p. 11-12). Desta forma, se conhecimento é poder, aqueles que detêm o conhecimento também têm o poder de domínio sobre os demais. Retana (2009), inclusive, diz que as discriminações modernas parecem ser uma continuidade do já visto, ou seja, que as posições de opressão, mesmo nos dias atuais, são mantidas de acordo com a racionalidade do sujeito.
Retomando um pouco o assunto da Modernidade, vale ressaltar que ela se caracteriza de acordo com prerrogativas Iluministas do século XVIII, que tinham como base a ciência objetiva, a moral universal e a lei e a arte que seguiam lógicas racionais. De acordo com essa ideia, “[...] a modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos exclusivamente europeus” (QUIJANO, 2005, p. 111). Ao classificar a civilização europeia como aquela que é racional e moderna, cria-se uma dualidade entre o racional e o irracional e, consequentemente, o moderno e o tradicional, o civilizado e o primitivo, o capital e o pré-capital e, por fim, o europeu e o não-europeu (QUIJANO, 2005). Desta forma, a Modernidade segue uma “[...] concepção evolucionista, linear, unidirecional da história que avança inexoravelmente desde um mítico estado da natureza até a moderna sociedade europeia” (LANGER, 2005, p. 214-215, livre tradução da autora).[5]
É por isso que Retana (2009, p. 89) afirma que a Modernidade, além de uma época histórica, foi também um projeto político que utilizou pretensões libertadoras e aspirações científicas como práticas de domínio.
O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. [...] ao mesmo tempo atribuíam ao restante da espécie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior e por isso anterior, isto é, o passado no processo da espécie [...] (QUIJANO, 2005, p. 111).
O eurocentrismo é expressado dessa forma, colocando o europeu como o mais avançado da espécie e como o detentor hegemônico do saber e, logo, do poder. Essa hegemonia foi facilitada e ampliada devido ao colonialismo (que seria o feito histórico da aquisição europeia de colônias) e, por sua vez, tem como efeito duradouro a colonialidade (que seria a forma de poder perpetuada através do domínio material e intelectual do colonizador sobre o colonizado) (RETANA, 2009; QUIJANO, 2005).
3 TRAÇANDO CAMINHOS DE PESQUISA
Para alcançar os objetivos descritos neste artigo, utilizamos como caminho teórico-metodológico a pesquisa exploratória para a investigação ao entorno da temática. “As pesquisas exploratórias têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias [...]” (GIL, 2008, p. 27), através, principalmente, de levantamento bibliográfico, fazendo revisão da literatura vigente e analisando exemplos que facilitem a compreensão. A pesquisa bibliográfica é realizada através da leitura e análise de “livros, teses, dissertações e artigos, procurando organizar caminhos percorridos pelas autoras e autores” (MARTINO, 2018, p. 86). Nesse sentido, nossa pesquisa é qualitativa, afinal, faz uma análise reflexiva, resgatando “[...] os significados atribuídos pelos sujeitos ao objeto que está sendo estudado” (GIL, 2008, p. 15).
A coleta de dados para este trabalho de pesquisa se deu através de questionários, tendo como público-alvo estilistas e designers de moda que atuam ou já atuaram na indústria têxtil catarinense. Recorremos aos questionários, que foram aplicados entre abril e maio de 2020, como formas de obter resultados quantitativos, medindo de maneira sistêmica comportamentos, procedimentos e ideias de determinados grupos sociais (MARTINO, 2018). Gil (2008, p. 121) conceitua:
Pode-se definir questionário como a técnica de investigação composta por um conjunto de questões que são submetidas a pessoas com o propósito de obter informações sobre conhecimentos, crenças, sentimentos, valores, interesses, expectativas, aspirações, temores, comportamento presente ou passado etc.
Com o objetivo de classificar os principais meios de pesquisa de tendência utilizados por estilistas catarinenses, foi elaborado um questionário com perguntas semiabertas, que aborda perguntas sobre padrões de ação do indivíduo, resultando em informações sobre as ações efetivamente praticadas e sobre o comportamento provável (GIL, 2008) no que tange à pesquisa de tendências, examinados através de gráficos e tabelas. Desta forma, explora-se o caráter quantitativo da pesquisa.
4 RESULTADOS
Para mapear as formas e fontes de pesquisa de tendências utilizadas pelos profissionais da moda catarinense, foi aplicado um questionário com 83 estilistas e designers de moda em Santa Catarina[6] que trabalham ou trabalharam na indústria têxtil ou de confecção de vestuário do Estado. O questionário abrangeu diferentes áreas da pesquisa de moda e de referências criativas, através de 32 perguntas. Neste artigo, porém, são apresentados e discutidos os resultados de 12 destas perguntas, que abrangem a pesquisa de tendências através de viagens de pesquisa e de bureaux de estilo, já que esses dois meios foram bastante discutidos na revisão de literatura e têm papel fundamental na história da moda brasileira.
O primeiro ponto abordado no questionário foram as viagens de pesquisa, tanto nacionais quanto internacionais. Sobre essa questão, é importante destacar que o questionário foi aplicado no início da pandemia do COVID-19, quando ainda não se tinha clara a dimensão e a duração da situação causada pelo vírus, ou seja, os estilistas e designers de moda responderam o questionário levando em conta o cenário vivido pré-Covid. Dos participantes da pesquisa, 83,1% afirmaram que trabalham ou já trabalharam em empresas que tinham o costume de enviar seus estilistas para viagens de pesquisa de tendências.
A partir daí, foi perguntado qual ou quais os destinos de viagem de pesquisa comuns, tendo a possibilidade de escolher mais de uma cidade (TABELA 1). Dentro dos destinos nacionais, dos 69 estilistas que responderam que trabalharam em empresas com o costume de realizar viagens de pesquisa, 60 estilistas afirmaram que faziam pesquisa de tendências em São Paulo e 30 pontuaram o Rio de Janeiro. Nos destinos internacionais, os mais apontados foram Londres (60 respostas), Paris (52 respostas), Nova Iorque (46 respostas), Milão (37 respostas) e Amsterdã (34 respostas). Nos Estados Unidos, além de Nova Iorque, Miami foi bastante citada, com 18 respostas, e a Califórnia apareceu uma vez. No continente asiático, Tóquio (14 respostas), Shanghai (10 respostas), Seul (5 respostas) e Dubai (2 respostas) apareceram nas respostas.
Respostas com todos os destinos selecionados
AMÉRICA DO SUL | EUROPA | ÁSIA | |||||||
São Paulo | 60 | Londres | 60 | Tóquio | 14 | ||||
Rio de Janeiro | 30 | Paris | 52 | Shanghai | 10 | ||||
Regional (BC, Joinville, Blumenau) | 1 | Milão | 37 | Seul | 5 | ||||
Buenos Aires | 1 | Amsterdã | 34 | Dubai | 2 | ||||
Berlim | 18 | ||||||||
AMÉRICA DO NORTE | Barcelona | 9 | OCEANIA | ||||||
Nova Iorque | 46 | Espanha | 2 | Austrália | 1 | ||||
Miami | 18 | Portugal | 1 | ||||||
Califórnia | 1 | Florença | 1 | ||||||
Antuérpia | 1 | ||||||||
Bruxelas | 1 |
Fonte: Os autores, 2020.
Além dos principais destinos, no questionário foi perguntada a frequência das viagens nacionais e internacionais, sendo que as pesquisas nacionais têm uma frequência maior - duas vezes ao ano (29,2%), 3 vezes ao ano (16,9%) e quatro ou mais vezes ao ano (40%) - e as internacionais variam entre uma vez ao ano (41,5%) e duas vezes ao ano (38,5%), conforme é possível ver no Gráfico 1.
Frequência Anual de Viagens
Fonte: Os autores, 2020.
O resultado aponta a importância dada às viagens nacionais, já que os estilistas costumam visitar os principais centros urbanos brasileiros, Rio de Janeiro e São Paulo, com maior frequência em relação às internacionais[7]. Ainda assim, percebe-se pelas respostas dos estilistas catarinenses que, logo em seguida de São Paulo, os quatro principais destinos das viagens de pesquisa indicados concentram-se nas quatro Capitais da Moda, Paris, Londres Milão e Nova Iorque. Entretanto, destaca-se também a presença de outras cidades nas respostas do questionário, como Miami, Amsterdã e Tóquio, o que pode ser explicado por Godart (2010, p. 59), quando diz que “essas quatro capitais da moda não são, entretanto, as únicas cidades que têm importância, e outras também desempenham papel de prestígio”.
Godart (2010, p. 60) aponta Los Angeles, nos Estados Unidos, São Paulo, no Brasil, Tóquio, no Japão, e Antuérpia, na Bélgica, como “[...] cidades que exercem uma grande influência estilística sobre o resto do mundo, além de sua dimensão midiática ou criativa”. O autor também menciona que “[...] Miami posiciona-se como a capital da moda da América dos que falam a língua espanhola” (GODART, 2010, p. 60-61), ou seja, a capital da moda latina.
Como complemento às perguntas anteriores, foi pedido aos participantes do questionário que classificassem a relevância das informações obtidas em viagens de pesquisa de tendência nacionais e internacionais em uma escala de 1 a 10. Como é possível perceber no Gráfico 2, que tem como eixo vertical a quantidade de respostas e como eixo horizontal a escala, os participantes da pesquisa apontaram que as viagens internacionais trazem mais relevância à pesquisa de tendências. Em termos comparativos, a média das respostas para as viagens nacionais foi de 7,9, enquanto a das viagens internacionais foi 9,01, em uma escala de 1 a 10.
Relevância da Pesquisa de Tendências obtidas em viagens
Fonte: Os autores, 2020.
Desta maneira, percebe-se que a moda catarinense segue buscando informação de tendências e estilo nas capitais tradicionais da moda através das viagens de pesquisa, inclusive, valorizando mais as informações do exterior. Entretanto, os estilistas também abrem espaço para outros centros urbanos, com destaque para as metrópoles brasileiras.
Esses resultados mostram algo que já é discutido por autores da área, como Sant’Anna e Barros (2010, p. 7), que apontam que “somos fascinados e muito influenciados pelos países do rico hemisfério norte, porém, não simplesmente imitamos o que é proposto”. Além disso, pela diferença climática entre os hemisférios, os profissionais de moda filtram e adaptam as informações e tendências quando chegam ao Brasil (SANT’ANNA, BARROS, 2011).
Seguindo a análise do questionário, o próximo ponto abordado foi a pesquisa através dos bureaux de estilo. Foi perguntado aos estilistas se as empresas em que trabalham ou trabalharam já assinaram as informações de algum escritório de tendências. Dos 83 participantes do questionário, 76,3% responderam que utilizam ou já utilizaram esses meios como forma de pesquisa de moda e 23,8% responderam que não. Ainda que, em um cenário contemporâneo no qual as informações de moda são globalizadas e rapidamente disponíveis gratuitamente na internet (CAMPOS, 2019), percebe-se uma presença significativa de respostas positivas quanto à utilização dessa ferramenta de pesquisa de moda.
Perguntados sobre quais consultorias de tendências já utilizaram, os 64 participantes que responderam que utilizam esses meios tiveram a possibilidade de selecionar mais de uma opção. O bureau mais apontado foi o WGSN (59 respostas), com matriz em Londres, seguido pelo brasileiro Usefashion (41 respostas).
Respostas com os Bureaux de tendências utilizados
Bureaux de tendências utilizados | ||||
WGSN (Inglaterra) | 59 | Peclers Paris (França) | 7 | |
UseFashion (Brasil) | 41 | Carlin (EUA) | 6 | |
Renata Abranches Bureaux (Brasil) | 13 | N. Marinho (Brasil) | 2 | |
Promostyl (França) | 13 | CMYK Trenz (Índia) | 1 | |
Nelly Rodi (França) | 11 | Premiere Vision (França) | 1 | |
Pantoneview (EUA) | 9 | Italtex (Itália) | 1 | |
Fashion Snoops (EUA) | 8 | Inspiramais (Brasil) | 1 | |
Observatório de Sinais (Brasil) | 7 |
Fonte: Os autores, 2020.
Lembrando que os bureaux de estilo surgem como uma tentativa do governo francês de centralizar o poderio e a legitimação de criação de moda e de tendências (CAMPOS, 2017). Analisa-se pelas respostas ao questionário, através da Tabela 2, que os estilistas e designers de moda catarinenses não utilizam os escritórios de tendência franceses como principal referência, apesar de o mais citado estar localizado no continente europeu.
O bureau de tendências WGSN (Worth Global Style Network), fundado em 1998 na Inglaterra, foi o mais citado na pesquisa e é considerado um dos principais escritórios internacionais no mundo, sendo que “nos últimos anos, WGSN fagocitou concorrentes [...]” (CAMPOS, 2017, n. p.) comprando e se unindo a outros bureaux de renome. O escritório possui uma sede regional em São Paulo e é, entre os principais bureaux de tendências do mundo, o que possui maior cobertura global de agentes comerciais, espalhados por quase todos os continentes (CAMPOS, 2017).
O segundo posto no ranking das empresas mais citadas no questionário, ficou por conta do portal de tendência brasileiro UseFashion, criado nos anos 2000. A Use Fashion surge com a proposta de apresentar pesquisas com uma visão 100% brasileira, tendo como diferencial um preço mais acessível em relação aos bureaux internacionais. Entretanto, vale ressaltar que, desde 2017, o escritório faz parte do grupo britânico Ascential, mesmos donos da WGSN (NO MERCADO, 2018).
Assim como no assunto anterior, sobre os bureaux de tendências, também foi pedido aos participantes do questionário que avaliassem a relevância e credibilidade das informações trazidas tanto pelos portais nacionais quanto dos internacionais. O Gráfico 3 tem como eixo vertical a quantidade de respostas e como eixo horizontal a escala de relevância e como é possível perceber, as respostas apontaram uma maior relevância das informações internacionais, porém a diferença da média das respostas foi consideravelmente menor em relação à análise anterior, já que a média da relevância avaliada em relação aos bureaux nacionais foi 8,6 e em relação aos internacionais foi 8,88.
Relevância e credibilidade das informações trazidas pelos Bureaux de Tendências
Fonte: Os autores, 2020.
Além do bureau brasileiro mais citado – o Use Fashion, que, vale lembrar, tem capital europeu –, a presença tímida de outros bureaux brasileiros nas respostas do questionário, como o Renata Abranches Bureaux, o Observatório de Sinais, o NMarinho (este, inclusive, catarinense) e o Inspiramais, aponta que não há um monopólio europeu na pesquisa de tendências institucionalizada. Ainda assim, avalia-se, pelas respostas ao questionário, que os bureaux de estilo localizados no hemisfério norte seguem sendo mais relevantes para a indústria de moda catarinense.
A ideia de Quijano (2005), de que o padrão de poder que formou nossa sociedade colonizada era também “[...] um padrão cognitivo, uma nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o não-europeu era o passado e desse modo inferior, sempre primitivo.” (QUIJANO, 2005, p. 116) segue atualizada – talvez percebida de uma forma mais sutil do que era durante o período do Brasil Colônia. Portanto, a alta relevância dada aos meios de pesquisa de moda europeus, no questionário aplicado, é um reflexo de uma história que foi desenvolvida tendo a Europa como epicentro do conhecimento e das formas de produzir conhecimento.
Em outras palavras, o que se vivência hoje tem fundamento na história do desenvolvimento de um mundo eurocêntrico. A indicação de que as pesquisas europeias são mais relevantes para a indústria catarinense do que as pesquisas feitas no próprio país, evidencia as teorias sobre colonialismo e eurocentrismo.
5 CONSIDERAÇÕES
A partir da necessidade de aprofundamento da visão social e histórica da moda e de suas consequências no cenário atual, foi delimitado como objetivo deste trabalho analisar as ferramentas de pesquisa de tendências de moda utilizadas na indústria têxtil e de confecção catarinense e relacionar essa atividade com conceitos e estudos sobre colonialismo e eurocentrismo, que proporcionam o caráter sociológico à esta pesquisa.
Os estudos sobre as tendências de moda e sobre a centralização da moda na Europa são recorrentes na literatura e nas publicações da área. Entretanto, percebemos que a história da pesquisa de tendências realizada por marcas e estilistas brasileiros, em especial na indústria catarinense no decorrer do século passado, ainda pode ser um campo promissor para futuras pesquisas. Em um cenário global transformado pela pandemia do Covid-19, abre-se, também, espaço para monitorar se as ferramentas de pesquisa, especificamente as viagens internacionais, seguirão existindo com tanta força e relevância. Além disso, apesar de ser um tema cada vez mais recorrente, inclusive na literatura de moda, ainda há espaço – e necessidade – de se estudar o colonialismo em relação ao sistema da moda, em especial na América Latina.
Vale ressaltar também, que o movimento decolonial na moda ganha força, isto é, cada vez mais marcas e estilistas se posicionam e buscam meios de inspiração e pesquisa que fujam da lógica colonial e da hegemonia europeia na moda. Ainda assim, o questionário aplicado permitiu constatar que a pesquisa de moda da indústria catarinense segue sendo realizada significativamente na Europa. Ou seja, ainda que destinos nacionais e empresas brasileiras sejam consultadas na pesquisa de tendências, o continente europeu ainda é o epicentro das pesquisas do setor no estado, desconsiderando totalmente as criações e produções culturais de países vizinhos latino-americanos. Apesar disso, não se pode desconsiderar que os estilistas possuem certa autonomia para transformar, rejeitar ou aceitar as tendências propostas pelas capitais europeias, de acordo com a sua própria realidade.
A hegemonia europeia na moda não se relaciona apenas às escolhas dos estilistas. Antes, trata-se de uma problemática que engloba todo o sistema da moda mundial, o que resulta em assimetrias de oportunidades e perpetua os chamados impérios da moda, com suas sedes europeias, que obtêm maiores benefícios de mercado.
É certo que uma moda mais descentralizada traria mais originalidade e autonomia, além de uma melhor divisão do mercado. Cabe perguntar, entretanto, se os proprietários de indústrias catarinenses compactuariam com essa visão, já que talvez seja mais fácil e seguro pesquisar e, às vezes, até copiar informações certeiras e centralizadas do que repensar a divisão do bolo. Também caberia indagar se o consumidor tem consciência dessa realidade e se está disposto a pressionar por uma mudança que valorize mais os espaços e desenvolvimentos regionais.
Dessa forma, abre-se o questionamento se essa lógica decolonial é, de fato, aplicável dentro do sistema-mundo capitalista em que estamos inseridos. Para tanto, Santos (2020) aponta que os possíveis caminhos para a decolonialidade poderiam ser traçados por meio da desconstrução de uma visão colonial enraizada nos povos latino-americanos. É algo que faria repensar referências e certezas e, certamente, diminuiria o peso da Europa como centro da moda e centro do mundo, inclusive nos campos acadêmicos, empresariais, culturais e individuais.
ANDRIGHI, O. Análise do comércio externo da indústria têxtil-confecções de Santa Catarina: 1996-2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Economia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. Disponível em: http://tcc.bu.ufsc.br/Economia293523. Acesso em: 20 mar. 2020.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA TÊXTIL E DE CONFECÇÃO. O Poder da Moda: cenários, desafios , perspectivas. agenda de competitividade da indústria têxtil e de confecção brasileira 2015 a 2018. São Paulo: ABIT, 2019. Disponível em: https://www.abit.org.br/cont/cartilha-o-poder-da-moda. Acesso em: 20 mar. 2020.
CAMPOS, A. Q. Expertise e legitimidade: os bureaux de style e a moda contemporânea. dObra[s], São Paulo, v. 12, n. 27, p. 193-205, set./dez. 2019. DOI: https://doi.org/10.26563/dobras.v12i27.989. Disponível em: https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/989. Acesso em: 11 mai. 2021.
CAMPOS, A. Q. Tendências globais? Pesquisa acerca das sedes dos bureaux de style. Tríades em Revista, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 1-14, 2017. Disponível em: https://triades.emnuvens.com.br/triades/article/download/70/35/. Acesso em: 20 maio. 2020.
ERNER, G. Sociologia das tendências. São Paulo: GG Moda, 2015.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
GODART, F. Sociologia da moda. São Paulo: SENAC-SP, 2010.
LANDER, E. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires : CLACSO, 2005. p. 21-53. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lander/pt/lander.html. Acesso em: 10 jun. 2020
LANDER, E. Marxismo, eurocentrismo y colonialismo. In: BORON, A. A.; AMADEO, J.; GONZÁLEZ, S. (comp.). La teoría marxista hoy: problemas y perspectivas. Buenos Aires, CLACSO, 2006. p. 209-246
LUCLKTENBERG, I. A indústria têxtil catarinense e o caso da Cia. Hering. 2004. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2004.
MARTINO, L. M. S. Métodos de pesquisa em comunicação: projetos, ideias, práticas. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.
MICHETTI, M. Moda brasileira e mundialização: mercado mundial e trocas simbólicas. 2012. Tese ( Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, São Paulo, 2012.
MICHETTI, M. Moda e globalização no Brasil contemporâneo dObra[s], São Paulo, v. 3, n. 5, p. 62-67, 10 fev. 2009. Disponível em: https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/310. Acesso em: 15 maio 2020.
MICHETTI, M. Por que a “moda brasileira” quer ser global? Desigualdade das trocas simbólicas mundiais e ethos dos atores da moda nacional. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 515 – 533, ago. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sant/v5n2/2238-3875-sant-05-02-0515.pdf. Acesso em: 20 maio 2020.
MIRANDA, A. P. Consumo de moda: a relação pessoa-objeto. Barueri: Estação das Letras e Cores, 2008.
NO MERCADO desde 2000, Use Fashion lança nova plataforma de pesquisa. In: MARIOTTI, A. (ed.). Website FFW, São Paulo, 14 set. 2018. NEWS. Disponível em: https://ffw.uol.com.br/noticias/moda/no-mercado-desde-2000-use-fashion-lanca-nova-plataforma-de-pesquisa/. Acesso em: 10 jun. 2020
PERES, A. L. N.; GHIZZO, M. R. O imperialismo da moda europeia. DAPesquisa, Florianópolis, v. 14, n. 23, p. 124-141, ago. 2019. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/1808312914232019124. Acesso em: 20 maio 2020.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires : CLACSO, set. 2005. p. 227-278. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lander/pt/lander.html. Acesso em: 10 jun. 2020
RECH, S. R. ; PERITO, R. Z. Sobre Tendências de Moda e Sua Difusão. DAPesquisa , v. 2, Florianópolis, p. 01-07, 2009. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/14239. Acesso em: 20 maio 2020.
RECH, S. R. Cadeia Produtiva da Moda: um modelo conceitual de análise da competitividade no elo confecção. 2006. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção ) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.
RETANA, C. Las artimañas de la moda: la ética colonial/imperial y sus vínculos con el vestido moderno. Revista de Filosofía de la Universidad de Costa Rica, Costa Rica, v. 47, n. 122, p. 87-96, set./dez. 2009. Disponível em: https://revistas.ucr.ac.cr/index.php/filosofia/article/view/7340. Acesso em: 15 mar. 2020.
SANT'ANNA, M. R. Sociabilidades coloniais: entre o ver e o ser visto. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.
SANT'ANNA, M. R. Teoria de Moda: sociedade, imagem e consumo. Barueri: Estação das Letras, 2017.
SANT’ANNA, P.; BARROS, A. R. Pesquisa de tendências para moda. In: COLÓQUIO DE MODA, 7., 2011. Anais [...] São Paulo: ABEPEM, 2011. p. 1-10. Disponível em: http://coloquiomoda.com.br/anais/Coloquio%20de %20Moda%20-%202011/GT02/GT/. Acesso em: 15 mar. 2020.
SANTOS, H. H. O. Uma análise teórico-política decolonial sobre o conceito de moda e seus usos. ModaPalavra, Florianópolis, v. 13, n. 28, p. 164–190, abr./jun. 2020. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/modapalavra/article/view/15948. Acesso em: 20 maio 2020.
DAPesquisa, Florianópolis, v. 16, p. 01-23, maio 2021.
DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0018
[1] WGSN (World Global Style Network) é uma empresa fundada em Londres, especializada em previsão de tendências pertencente ao grupo Ascential Company.
[2] Bureaux de estilo são escritórios e empresas voltadas à pesquisa de tendências de moda, que oferecem possíveis direções e indicações para futuros próximos do consumo. (SANT’ANNA, BARROS, 2011)
[3] O prêt-à-porter, também conhecido em inglês como ready-to-wear, é o que marcou significativamente a mudança da Alta-Costura e do feito sob medida, para uma moda produzida em escala industrial, que se instaurou como uma nova organização industrial da moda (MICHETTI, 2012).
[4] De esta manera, se construye una Historia Universal en la cual todos los aportes significativos de las artes, las ciencias, la tecnología, la moral y los regímenes políticos son productos internos de la sociedad europea, resultados superiores a ser llevados al resto, inferior, de los pueblos del mundo.
[5] [...] concepción evolucionista, lineal, unidireccional de la historia que avanza inexorablemente desde un mítico estado de naturaleza hasta la moderna sociedad europea.
[6] O questionário foi respondido por profissionais de várias regiões do estado, sem especificação.
[7] Importante avaliar também o fator custo nessa situação, já que as viagens para São Paulo e Rio de Janeiro tem um custo relativamente mais baixo do que viagens internacionais.