Beirando as margens: percepções de pessoas com deficiência sobre atuação profissional em dança

    Andréa Lúcia Sério Bertoldi, Matheus dos Anjos Margueritte

Beirando as margens: percepções de pessoas com deficiência sobre atuação profissional em dança  

 Bordering the margins: perceptions of people with disabilities

 about professional dance  

Andréa Lúcia Sério Bertoldi

Doutora em Comportamento Motor pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) – 

andrea.serio@unespar.edu.br - orcid.org/0000-0002-3471-404X

Matheus dos Anjos Margueritte

Acadêmico do Curso de Licenciatura em Dança pela Universidade  Estadual do Paraná (UNESPAR) –

 margueritte.bio@gmail.com - orcid.org/0000-0003-3596-3264

Resumo

Este estudo propõe investigar como pessoas com deficiência, estudantes de dança no contexto do ensino não-formal, percebem o campo de atuação artística profissional em dança como uma possibilidade para seus corpos. Trata-se de uma pesquisa de campo de natureza qualitativa, com uso de entrevista semiestruturada como instrumento de coleta de dados. Os dados foram discutidos adotando-se o conceito de Umwelt, proposto por Jacob von Uexkull, enfatizando as percepções próprias dos sujeitos participantes do estudo sobre a inclusão de seus corpos, considerados fora da norma, na produção artística da dança. Os resultados indicaram que a percepção sobre atuação profissional em dança é vinculada a modelos de corpo e dança de pessoas sem deficiência.

Palavras-chave: Exclusão social na arte. Dança para pessoas com deficiência. Dançarinos com deficiência.  Educação inclusiva.

Abstract

This study’s proposal is to investigate how people with disabilities, dance students inserted in the context of non-formal education, perceive the field of artistic professional dance as a possibility for their bodies. This is a qualitative field research, using semi-structured interviews as a data collection instrument. The data were analyzed and discussed adopting the concept of Umwelt, proposed by Jacob von Uexkull, emphasizing the subjects’ own perceptions about the inclusion of their bodies, considered non-standard, in the artistic production of dance. The results indicated that the perception obout professional performance in dance is linked to the body and dance models of people without disabilities.

Keywords: Marginality, Social, in art . Dance for people with disabilities. Dancers with disabilities.  Inclusive education.

Recebido em: 26/08/2020

Aceito em: 29/03/2021


1 INTRODUÇÃO

A arte é uma forma de conhecimento caracterizada por atos de criação que exploram possibilidades do real. Esta característica do conhecimento artístico impulsiona a capacidade de adaptação dos sistemas cognitivos e amplia a percepção, na medida em que se relaciona com o campo das subjetividades humanas que viabiliza a invenção e expansão da realidade (VIEIRA, 2006).

Na área da dança, inúmeras perspectivas de invenção de realidades implícitas na criação artística têm sido compartilhadas ao longo do tempo por meio da produção de discursos próprios das singularidades dos corpos que dançam. Portanto, pode-se dizer que a diferença reafirma o conceito de alteridade em arte, entendido como um fenômeno instaurador de crise, “deflagrada pelo estranhamento” e capaz de indicar “novos caminhos de criação” no encontro das diferenças (GREINER, 2017, p. 10). Nesse contexto, a diversidade humana seria considerada, em tese, uma potência para o conhecimento artístico (MATOS, 2012; SÉRIO; VIEIRA; VIEIRA,  2017).

Embora a diversidade dos corpos que dançam seja reconhecida como propulsora da criação, no que se refere aos processos de inclusão de pessoas com deficiência (SASSAKI, 2005), observa-se ainda um campo de contradições entre o discurso e a prática, na medida em que corpos considerados fora da norma enfrentam importantes desafios, particularmente no que se refere ao espaço de produção artística e profissionalização na área da dança (BERTOLDI; SOUZA, 2009, TEIXEIRA, 2011).

A maior parte dos estudos que investiga relações entre pessoas com deficiência e práticas de dança apresenta abordagens fundamentadas em finalidades terapêuticas ou na socialização dessas pessoas (BERTOLDI; RIL, 2016). Poucos estudos evidenciam os desafios da inclusão no fazer próprio dos processos de ensino, aprendizagem e criação artística, sendo necessário aprofundar a compreensão deste contexto de análise, considerando as percepções das pessoas com deficiência que praticam dança. É importante investigar como essas pessoas percebem as perspectivas de atuação na cena artística da dança, assumindo a representatividade como condição para a compreensão de possíveis lacunas entre pressupostos epistemológicos e práticas de dança.

 Entre as possibilidades de aprofundamento da discussão, observa-se no conceito de Umwelt (UEXKULL, 1992) um instrumento amplo de análise, uma vez que ele aborda a interdependência entre os sistemas cognitivos e as suas possibilidades perceptivas. Para Uexkull (1992), o Umwelt é uma espécie de interface entre o sistema vivo e a realidade, determinando o modo como uma espécie viva se relaciona com o ambiente. Portanto, ele atua como um campo sistêmico de relação entre os canais perceptivos e os processos de elaboração de informações internas e externas ao organismo, com as quais cada pessoa constrói sua visão de mundo (BERTALANFFY, 1952; UEXKULL, 1992; VIEIRA, 2006).

A elaboração de informações conceituais sobre a deficiência na contemporaneidade tem sofrido importantes alterações com a representatividade da visão das próprias pessoas com deficiência nas definições de políticas públicas de inclusão social, sobretudo, no movimento de contraposição ao modelo médico de deficiência. Nesse modelo, o estigma da lesão estava centrado no corpo, o qual deveria ser reabilitado e ajustado ao suposto padrão de normalidade imposto. As limitações dessa visão foram confrontadas pela noção de corporificação da experiência social, propulsora do surgimento do modelo social de deficiência.

Sob o ponto de vista do modelo social, a condição de pessoa com deficiência passou a ser ancorada na subjetivação da corporeidade que emerge da interação do corpo com as barreiras impostas pela sociedade (GOLDMAN, 1996; SÉRIO, 2020). Esta visão está explicitada em importantes conquistas dos direitos de pessoas com deficiência, como na Lei Brasileira de Inclusão, Lei n.13.146 de 6 de julho de 2015, que define que a pessoa com deficiência é aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação social em igualdade de condições com os demais (BRASIL, 2015).

A primeira geração de teóricos do modelo social de deficiência afirmava que as desvantagens da deficiência eram causadas pelas barreiras sociais e, ao retirá-las, as pessoas com deficiência se tornariam independentes para a participação social. Já a segunda geração, formada principalmente por teóricas feministas, reafirmou essa noção, porém, questionou a noção de independência como pressuposto de participação social ao considerar a codependência como uma característica do humano, e retomou a singularidade das experiências dos corpos/pessoas com deficiência na centralidade da discussão (DINIZ, 2007).

A variedade de corporeidades que emerge das experiências de pessoas com deficiência na relação com o ambiente reafirma a ideia de que “a pessoa com deficiência sempre é diferente da deficiência em si, entretanto, essa diferença existe plena em sua subjetividade” (SÉRIO, 2020, p.153). Portanto, investigar como os distintos corpos e corporeidades que compõem o universo de pessoas com deficiência percebem suas perspectivas de atuação na dança pode fornecer pistas para desnaturalizar comportamentos miméticos de exclusão social da singularidade desses corpos na produção de conhecimento nesta área.

Diante do exposto, o presente estudo propõe investigar como pessoas com deficiência intelectual decorrente da alteração genética conhecida como Síndrome de Down, estudantes de dança no contexto do ensino não formal, percebem o campo de atuação artística em dança no qual estão inseridos, evidenciando enfoques paradigmáticos de corpo e de arte implícitos na percepção de inclusão/exclusão por eles vivenciadas.

2 METODOLOGIA

Foi realizada uma pesquisa de campo de natureza qualitativa (GIL, 2008), com utilização de entrevista semiestruturada como instrumento de coleta de dados, no período de novembro de 2019 a fevereiro de 2020. Participaram do estudo 10 pessoas com deficiência intelectual decorrente da Síndrome de Down, 5 mulheres e 5 homens, faixa etária entre 18 e 45 anos, praticantes de dança de salão e danças urbanas em uma academia da cidade de Curitiba-PR, com tempo médio de prática de dança de 5 anos. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP e, após assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido, os participantes responderam a uma entrevista semiestruturada com questões relativas às suas percepções sobre acesso e inclusão em dança, bem como, sobre perspectivas de atuação profissional da pessoa com deficiência nesta área.

Os resultados das entrevistas foram transcritos e agrupados em eixos de respostas e discutidos em interface com o conceito de Umwelt proposto por Jakob von Uexkull (1992), enfatizando a relação entre as experiências dos participantes do estudo e as subjetividades inerentes ao contexto multidimensional de discussão da inclusão de pessoas com deficiência na produção artística da dança.

3 A DISTÂNCIA DAS MARGENS: A NATURALIZAÇÃO DE MODELOS DE CORPO E MOVIMENTO NA DANÇA.

Os participantes do estudo foram questionados sobre suas percepções a respeito das características que definem uma pessoa considerada profissional na área da dança. Sobre esta questão, 100% declararam acreditar que para ser reconhecida como profissional, a pessoa deve, em primeiro lugar, dominar perfeitamente a técnica de dança que pratica, o que, na opinião de todos os participantes do estudo seria a principal característica do trabalho de um profissional de dança. Esta abordagem pode ser observada no seguinte depoimento: “Um bailarino profissional em primeiro lugar dança bem, ele faz os passos da técnica de dança sem perder o ritmo da música” (ENTREVISTADO 2, 2019).

Quando questionados sobre qual seria a concepção a respeito de um amador na área da dança, a maioria (80%) dos entrevistados destacou que seria a pessoa que precisa fazer aulas de dança, ou seja, que está na posição de aprendiz, como observado na seguinte colocação: “[...] o bailarino amador é quem dança em uma escola e ainda está aprendendo a dançar” (ENTREVISTADO 1, 2019). Os demais participantes do estudo (20%) relataram a percepção de amadorismo na dança relacionada à intensão de uma prática lúdica, ou na busca por entretenimento na dança, entendendo como amadores aqueles que buscam “[...] dançar para se divertir, dançar com os amigos” (ENTREVISTADO 3, 2019).

No que se refere ao modo como percebem a sua própria prática de dança, amadora ou profissional, 80% dos participantes disseram que se consideram amadores, pois ainda estão na posição de estudantes e sentem a necessidade de aprender mais com seus professores, enquanto 20% acreditam que possam ser considerados profissionais. Ao serem questionados sobre o desejo de se tornarem profissionais em dança, 100% dos participantes afirmaram que almejam ser profissionais nesta área. As justificativas da resposta foram fundamentadas no desejo de dançarem melhor e na percepção de que a dança que praticam deve ser semelhante à praticada por seus professores.

A noção de profissionalismo atrelada à referência da prática do professor pode ser observada na resposta de um dos entrevistados, quando afirma: “quero me tornar professor de hip hop e dançar bem como o meu professor” (ENTREVISTADO 3, 2019). Esta concepção é reforçada também por outro participante na seguinte colocação: “tenho vontade de ser profissional e ela surgiu quando eu conheci meu professor de hip hop e minha professora de dança de salão, eles são bons e eu quero ser como eles” (ENTREVISTADO 10, 2020).

É importante destacar que os estudantes participantes do estudo relataram não conhecer professores de dança que sejam pessoas com deficiência. Dessa forma, a noção de representatividade do corpo com deficiência fica invisibilizada para essas pessoas, o que é particularmente preocupante ao considerarmos que todos os entrevistados vincularam a noção de profissionalismo em dança à referência de corpo e de dança de seus professores.

Outro ponto evidenciado nos resultados apresentados é a concepção de profissional da dança articulada à noção de técnica, entendida pelos participantes como a execução de padrões específicos de movimentos. Este pensamento reforça o senso comum que vincula o ensino e a prática da dança à transmissão e representação mimética de passos estabelecidos culturalmente por e para pessoas sem deficiência, de modo que a execução de um vocabulário normatizado de passos é internalizado como condição para ser um profissional de dança e como o próprio conceito de técnica.

A simplificação do conceito de técnica a uma visão tecnicista da dança, embora recorrente, não encerra a dimensão do fazer técnico e profissional da arte da dança. De acordo com Vargas (1994) a técnica, por definição, é um saber fazer que caracteriza a presença de uma cultura humana. As abordagens tecnicistas de dança compreendem um recorte, ou uma visão específica deste saber fazer e, portanto, não dão conta da multidimensão conceitual de técnica.  Entretanto, esse entendimento tem sido amplamente reforçado em diferentes contextos em que a dança é praticada, atendendo, por vezes, a necessidades de fácil transmissibilidade à despeito dos preceitos epistemológicos que deram origem a essas danças.

Novaes (2002), coloca que as práticas advindas do movimento cultural hip-hop, por exemplo, foram originalmente criadas como forma de resistência às desigualdades sociais. Portanto, para além de passos normatizados a serem aprendidos, foram caracterizadas historicamente como um lugar de fala e escuta de corpos marginalizados, evidenciando o protagonismo das diferenças corporais e dos seus movimentos no fazer original de cada corpo nessas danças. Reconhecer a episteme originária da dança praticada e ensinada é fundamental para analisar concepções de corpo e arte que alimentam distâncias entre teoria e prática da inclusão dos diferentes corpos na dança.

O ensino, aprendizagem e a criação em dança, quando fundamentados exclusivamente na transmissão de uma suposta execução de padrões específicos de movimentos, compreendidos como técnica, parecem contrariar não apenas a origem das danças praticadas pelos participantes deste estudo, como também, as inúmeras formas de dança que, para além da reprodução de movimentos preestabelecidos, estão articuladas a procedimentos sistematizados para mediar a criação de movimentos, os quais também compreendem a dimensão do conceito de técnica no fazer da dança.

        A naturalização de uma visão limitada sobre técnica de dança tem excluído historicamente a diferença dos corpos de seu lugar de pertencimento nesta arte (MATOS, 2012). Ela alimenta mecanismos de poder e dominação sobre corpos marginalizados que, de acordo com Lepecki (2003), passam a se comportar como corpos colonizados, internalizando dos contextos internos e externo a distância estabelecida pela cultura dominante. Esses comportamentos estruturam e são estruturados na interdependência do Umwelt individual e coletivo, e estabelecem relações entre percepção e ação na concepção da realidade.

        Na opinião de Teixeira (2011) a condição de aprendiz, em face a uma cultura higienista de adaptação de corpos com deficiência a padrões de normalidade, promove a internalização e naturalização de padrões de corpos aptos a pertencerem à dança.  Para Bertoldi; Margueritte (2020), esta visão é reforçada nos contextos de dança que convidam os diferentes corpos a participarem, possibilitam adentrarem ao espaço físico, porém, impõem a devida distância aos corpos considerados fora da norma, limitando-os às margens de ilhas de pertencimento entre iguais, como ocorre na frequente organização de turmas compostas apenas por pessoas com deficiência, denominadas de turmas de inclusão, em ambientes de ensino não-formal da dança.

 Nesse sentido, é importante refletir sobre os motivos que levam determinadas práticas de dança a abandonarem sua episteme originária, em favor da simplificação representacional traduzida em um conjunto de movimentos normatizados de fácil transmissibilidade, em coerência com as expectativas do mercado que, conforme afirma Greiner (2017), dita normas a partir de tudo aquilo que é familiar e propenso a uma boa receptividade.

Os resultados deste estudo demostraram que a prática da dança, quando vinculada à condição de representação de modelos de corpo e dança, alimenta mecanismos de exclusão dos que estão à margem do padrão. De acordo com o conceito de Umwelt (UEXKULL, 1992), essas relações são naturalizadas, na medida em que um fluxo de informações do ambiente cria um modo específico de organizar relações neurosensoriais, psicossomáticas e socioculturais, sujeitas à percepção de realidade, responsável por modular a noção de mundo ao redor de todos os atores envolvidos no contexto.

Considerando a complexidade (MORIN; LE MOIGNE, 2000) do Umwelt individual entre a realidade objetiva e a percepção do que seja real, a análise da adaptação de corpos com deficiência a modelos de normalidade não pode ser vista como puramente subjetiva ou objetiva. Ela está no domínio das mediações que estabelecem a própria noção de pertencimento da pessoa com deficiência ao contexto (BERTOLDI, 2015; ROSSI; MUNSTER, 2013), neste caso, subjetivada pela exposição sistemática ao reconhecimento de corpos e movimentos de pessoas sem deficiência como padrão para o fazer técnico e profissional da dança.

Na concepção de Uexküll (1992), o que caracteriza o sistema cognitivo é o que conseguimos acessar do que é semioticamente real, ou seja, acessamos por meio do Umwelt individual e coletivo um mundo representacional, criado a partir da complexidade somatosensorial que se dá no corpo em relação. Neste contexto, os estudantes com deficiência participantes deste estudo, reproduzem em seus discursos um mundo representacional por eles vivido que evidencia o corpo/pensamento de pessoas beirando as margens, distanciadas da representatividade de si mesmas nas suas perspectivas de atuação profissional na dança.

4 ENTRE AS MARGENS: FLUXOS EM CONSTRUÇÃO

Após relatarem suas percepções sobre o que caracteriza um profissional em dança, os participantes do estudo foram questionados sobre quais caminhos conhecem para se desenvolverem como profissionais em dança. Todos os participantes citaram a realização de aulas de dança em ambientes de ensino não-formal (academias) como o principal caminho para se tornarem profissionais, reforçando mais uma vez a ideia de representação de práticas relacionadas ao corpo e ao modelo de movimento dos seus professores, como observado no seguinte depoimento: “Para me tornar profissional tenho que fazer bastante aula, copiar o professor” (ENTREVISTADO 1, 2019). Além dessa percepção, 20% dos entrevistados também citaram a realização de cursos livres para desenvolver a capacidade de realizar trabalhos em equipe, e outros 20% relataram a importância de buscar outras fontes de aprendizagem, além das aulas na academia de dança, sobretudo mantendo-se atualizados em conteúdos disponíveis em websites específicos.

Curiosamente, nenhum participante mencionou a possibilidade de obter formação profissional por meio do acesso ao ensino superior, embora exista um curso de graduação em dança com oferta de bacharelado e licenciatura, há mais de 30 anos, em uma universidade pública da cidade onde os participantes praticam dança. Eles também não citaram a possibilidade de obter registro profissional por meio do Sindicato de Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversão – SATED, órgão que realiza, periodicamente, testes para conferir o registro profissional para diferentes funções na área da dança.

Quando questionados sobre tais possibilidades de profissionalização e obtenção de registro profissional, 100% dos participantes admitiram ter conhecimento da existência de um curso de graduação em dança no local onde residem, enquanto apenas 10% dos participantes responderam ter ciência da possibilidade de obtenção de registro profissional por meio do SATED do seu estado.

Embora a maioria dos participantes do estudo relatou estar ciente da existência de um curso de graduação em dança, quando questionados sobre as formas de acesso a este curso, 100% dos estudantes responderam que, embora não tenham conhecimento sobre todos os procedimentos de ingresso, sabem que há testes práticos no concurso vestibular e acreditam que teriam dificuldades em ser admitidos, como observado no seguinte depoimento:

Eu sei que tem um curso de dança na faculdade e que tem que fazer uma prova, mas não sei como é o teste. Acho que o teste tem que dançar, fazer um teste de jazz e balé... e passa só quem é melhor (ENTREVISTADO 3, 2019).

        Os entrevistados relataram acreditar que o teste prático exigido nas universidades seja semelhante a audições reproduzidas em filmes e programas de televisão, nos quais os candidatos recebem uma numeração e uma banca julgadora solicita que os candidatos inaptos deixem a sala de aula durante teste. Esta percepção de pessoas com deficiência sobre o acesso às universidades revela o desafio imposto a estas instituições, no que se refere à comunicação com a comunidade externa e ao fortalecendo da noção de pertencimento, em especial, de grupos socialmente marginalizados.  

        É necessário diminuir as distâncias entre a realidade dos procedimentos de acesso a diversos cursos de graduação em dança e o imaginário popular sobre quais são os corpos aptos à dança, implicados nos Umwelten de percepção coletiva, frequentemente influenciado pela popularidade do contato com a dança, de grande parte da população, por meio de interfaces de cultura de massa, nas quais predominam concepções subliminares de modelos de corpo autorizados a pertencer à dança.

Sabe-se que, por muito tempo, diferentes testes de admissão em cursos de graduação em dança exigiram a prática de modalidades específicas de dança, como por exemplo, o balé clássico. Tal pensamento possui raízes culturais tanto na suposição de que essa modalidade de dança seria uma espécie de base para as demais, como pelo suposto status, conferido culturalmente a algumas modalidades de dança, em detrimento de outras, como observado no depoimento do entrevistado 3, que referiu acreditar que seria necessário o domínio da técnica de balé clássico e da dança jazz para ser possível ingressar em uma graduação em dança.

        De fato, há processos seletivos de acesso a cursos de graduação em dança com etapas que incluem apresentações e a realização de aulas de dança, contudo, há uma forte tendência de atualização dos procedimentos avaliativos em inúmeras universidades brasileiras e, a diversidade dos corpos, movimentos e danças tem sido parte integrante dos critérios de seleção dos participantes (BERTOLDI; SOUZA, 2009).

        Outro aspecto relevante, no que se refere à equidade de oportunidades de pertencimento de pessoas com deficiência à dança, é a crescente implementação de políticas de ações afirmativas em inúmeras universidades públicas do Brasil. Entretanto, de acordo com Martins, Gomes, Fernandes e Benetti (2017), essa conquista dos movimentos sociais pelos direitos da pessoa com deficiência, ainda é bastante recente e, como verificado neste estudo, o desconhecimento sobre os meios de acesso às universidades amplia o distanciamento da noção de pertencimento de grupos historicamente discriminados, e alimenta a naturalização do posicionamento desses grupos à margem do pertencimento social.

Por outro lado, no que se refere a obtenção do registro profissional por meio do SATED, os critérios de avaliação adotados por este órgão para determinar quem é considerado profissional na dança, em alguns estados, parecem reafirmar a visão de corpo normatizado e de técnica entendida como um conjunto de passos a serem idealmente reproduzidos, corroborando a percepção dos participantes deste estudo.

Segundo o Artigo 2º, inciso I, da Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978, regulamentada pelo Decreto nº 82.385 de 5 de outubro de 1978, o artista profissional é aquele que “cria, interpreta, ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza para efeito de exibição ou divulgação pública, através de meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizam espetáculos de diversão pública” (BRASIL, 1978). Vale ressaltar que, de acordo com o Artigo 8º, inciso I e III desse mesmo documento, a obtenção do título de artista perante o Ministério do Trabalho dar-se-á através da apresentação de um diploma de nível superior dentro das áreas descritas no documento, entre elas a dança, ou mediante a atestado fornecido por órgãos de sindicância como o SATED.

Apesar da amplitude da perspectiva de definição do artista profissional disposta na legislação, de acordo com a sessão de critérios de avaliação publicado pelo SATED-PR (2019), as provas para atestado profissional na área da dança são constituídas por aulas coletivas para análise do nível técnico do participante, entendido como a habilidade no desempenho prático de determinadas modalidades específicas de dança, estabelecidas pelo órgão de classe como critério para obtenção do registro profissional.

Essa visão parece desconsiderar a multiplicidade das características individuais dos diferentes corpos que dançam e, no caso de pessoas com deficiência, alija a possibilidade de terem seus registros como artistas por não submeterem seus corpos à cultura da adaptação dos vocabulários de dança exigidos pelo SATED-PR para conferir tais registros na área dança. Essa prática ignora seus históricos de produção e dificulta a atuação dessas pessoas na dança, uma vez que o registro profissional é exigido para a participação em inúmeros editais de incentivo cultural no Brasil.

        Dessa forma, quando os participantes deste estudo declararam acreditar que, nos testes de seleção em dança “passa quem é melhor” (ENTREVISTADO 3, 2019), e correlacionaram tal conceito à noção de técnica atrelada à reprodução de um padrão de movimentos preestabelecido, de certa maneira, eles não estão distantes do critério adotado pelo SATED-PR (2019). Afinal, os testes práticos exigidos por este órgão não são apropriados a realidades corporais e artísticas diversas da norma estabelecida nas modalidades de dança selecionadas para validar o status de profissional na dança.

        Felizmente, esse procedimento de avaliação não é padrão em todos os SATEDs dos estados brasileiros, de modo que pessoas com deficiência de diferentes estados, como por exemplo o Rio de Janeiro, tem validado seus registros profissionais em dança a partir de critérios de análise que reconhecem a abrangência artística dos diferentes corpos que dançam. O registro profissional, nesse caso, tem sido uma realidade conquistada por pessoas com deficiência que desenvolvem trabalhos artísticos significativos em dança, figuram entre os artistas premiados nacional e internacionalmente no campo da dança, integram companhias de dança existentes no Brasil e no exterior, e têm sido contratadas e remuneradas para atuarem como profissionais nesta área.

        Apesar dos avanços conquistados por pessoas com deficiência no campo de atuação profissional da dança, de acordo com Bertoldi (2015) pouco se conhece sobre esses artistas/docentes e a invisibilidade permeia não somente os palcos ao redor do país, como também está presente no meio acadêmico, nos espaços de ensino não-formal (academias de dança), na cultura dos estatutos de órgãos sindicais da área das artes e demais locais que tradicionalmente possibilitam a formação e a profissionalização na área da dança.

        Essa realidade corrobora o distanciamento existente entre a cultura instaurada nos ambientes de atuação em dança e a potência artística desses indivíduos (MATOS, 2012; ROSSI; MUNSTER, 2013)  que, assim como os estudantes participantes deste estudo, permanecem invisíveis na cena da dança brasileira, ou inseridos em relações segregadas de acesso e inclusão em dança, sustentando barreiras que perpetuam a exclusão da diferença ao estruturarem os Umwelten individual e coletivo dos envolvidos no contexto.

        A experiência da alteridade em arte se manifesta na convivência com tudo aquilo que é o outro. É, conceitualmente, um fator essencial para a manutenção do movimento e também da própria arte (GREINER, 2017). Entretanto, práticas de dança pautados em movimentos idealizados em uma suposta normalidade parecem distanciar a singularidade dos corpos de um fluxo de pensamento artístico capaz de construir acessos entre as margens, onde os corpos e suas diversidades friccionem como potência de criação a alteridade para a produção de conhecimento artístico.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

        O conhecimento artístico demanda o desenvolvimento de um tipo de cognição que se estabelece na multiplicidade, subjetividade e na singularidade humana, o que pressupõe a ampliação do Umwelt pessoal. Apesar disso, os resultados deste estudo demonstraram a existência de um distanciamento entre a tese de valorização das diferenças e as práticas de dança vivenciadas nas experiências dos participantes.  

        A percepção de realidade dos entrevistados demonstrou-se pautada na busca por modelos de corpo e de dança concebidos por e para pessoas sem deficiência, especialmente dos que atuam como seus professores, deflagrando não apenas a necessidade de avanços na conquista de representatividade na dança, como também, a importância do papel dos professores de dança diante deste desafio.

        Os resultados indicaram ainda que, embora existam progressos recentes no acesso à formação e a obtenção de registro profissional para a atuação da pessoa com deficiência nesta arte, tais como, a possibilidade de ingresso em academias e em cursos de graduação em dança, bem como a atualização de procedimentos de análise para a concessão de registro profissional pelos SATEDs de alguns estados brasileiros[1], a supremacia de uma normalidade do corpo continua presente nos discursos dos participantes e é reiterada na distância apresentada da realidade das estruturas educacionais e sindicais da área. Essa distância alimenta contradições entre o discurso e a prática da dança interferindo, sobretudo, na noção de pertencimento dos corpos que se distinguem da suposta norma.

A convivência na diferença é uma necessidade da percepção e da formação consciência humana (DAMÁSIO, 2011). Na medida em que este convívio está instaurado no fluxo da vida, o pertencimento político e artístico de corpos com deficiência não pode ser considerado apenas um direito de grupos socialmente discriminados, mas, de todas as pessoas, considerando que a convivência na diferença atua na estruturação do Umwelt dos sujeitos com e sem deficiência, isto é, de todos os atores inseridos no contexto (VIEIRA, 2006).

É fato que há um campo de construção na área da dança que cria novos fluxos de pensamento e aproxima distâncias entre aqueles que se encontram nas margens. Entretanto, para avançarmos, é necessário enfrentarmos os mecanismos de dominação e exclusão social presentes em distintas esferas de poder na área da dança. Como afirma Bertoldi (2015), no campo acadêmico, por exemplo, a sofisticação dos discursos, quando desprovida de atitude, corre o risco de atuar como munição para batalhas de poder, comum em ambientes envaidecidos pela precariedade humana, porém, ineficazes para provocar as alterações necessárias ao reconhecimento da diferença como potência artística na dança.

        O desafio está posto nas mediações entre ensino, aprendizagem e criação em dança. Enquanto alguns persistem na manutenção das distâncias, imersos em discursos que justificam a falta de preparo para receber e legitimar a presença do corpo com deficiência na cena da dança, outros percebem esta necessidade humana e fortalecem seu fazer justamente na aproximação das margens, na experiência da alteridade, na coexistência entre o conhecido e o desconhecido e na disponibilidade humana para o novo, da qual emergem as possibilidades de expansão da realidade e a própria (re)existência da arte.

REFERÊNCIAS

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DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0014


[1] À exemplo dos SATEDs do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Norte.