Histórias recontadas: análise de imagens de moda com afrodescendentes

    Bruno Sousa Furtado, Adriana de Fátima Valente Bastos

Histórias recontadas: análise de imagens de moda com afrodescendentes

 Retold stories: analysis of fashion images with afro-descendants  

Bruno Sousa Furtado

Mestre em Têxtil e Moda pela Universidade de São Paulo (USP)

 brufurtado88@gmail.com – orcid.org/0000-0002-4489-1488

Adriana de Fátima Valente Bastos

Doutora em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) –

 adrivbastos@gmail.com – orcid.org/ 0000-0002-5839-5821

Resumo

Com as manifestações antirraciais e o interesse sobre essa ação coletiva, a moda por meio do styling representa um instrumento de expressão e reflexão social. O objetivo do estudo é analisar os stylings de Ibrahim Kamara sob a perspectiva do afrofuturismo. Sabe-se que os stylings são criados para comunicar a moda e Kamara reconhece o corpo com um caráter biopolítico, corpo-história, cria narrativas com o protagonismo do afrodescendente em cenários periféricos. A seção referente ao Método aborda sobre a metodologia visual de Gillian Rose (2016), inicia pelo styling na perspectiva da fotografia de moda até chegar ao estudo de caso dos stylings de Kamara; e Afrodescendentes em editoriais de moda. Analisa-se que Kamara problematiza as referências visuais para romper esteticamente com o poderio centralizador, normalizador e tradicional propagado por olhares europeizados, estadunidenses, brancos e trafega por reflexões sobre o futuro da sociedade. Contudo, a moda exprime visualmente esses comportamentos de resistência e o styling é uma das práticas que contribui para uma construção imagética de cunho social.

Palavras-chave: Moda.  Editores de moda. Consultores de imagem. Kamara, Ibrahim

Abstract

With antiracial manifestations and the interest in this collective action, fashion through styling represents and instrument of expression and social reflection. This study aims to analyze the stylings of Ibrahim Kamara from the perspective of afrofuturism. The approach is necessary because it is known that stylings are created to communicate and Kamara recognizes the body with a biopolitical character, body-history, creates narratives with the protagonist of Afro-descendants in peripheral scenarios. Method addresses Gillian Rose´s visual methodology (c2016), starts with styling from the perspective of fashion photography until the case study of Kamara´s stylings arrives; and afro-descendants in fashion editorials. It is analyzed that Kamara problematizes the visual references to break aesthetically with the centralizing, normalizing and traditional power propagated by Europeanized, Americans, white and traffic views through reflections on the future of society. However, fashion visually expresses these resistance behaviors and the styling is one of the practices that contributes to an image construction of a social nature.  

Keywords: Fashion. Fashion editors. Image consultants. Costume designers. Kamara, Ibrahim

Recebido em: 01/07/2020

Aceito em: 22/04/2021

1 INTRODUÇÃO

Inseridas no cenário mundial de manifestações antirracistas, como black lives matter – vidas afrodescendentes[1] importam –, oriundas da morte violenta de George Floyd nos Estados Unidos, que movimentaram as cidades estadunidenses e brasileiras (KESSLER, 2020; BRANCH, 2020; ARRUDA, 2020), as discussões sobre a cultura afrodescendente tornaram-se foco na agenda de debates e pesquisas que desafiam compreender as imposições dos paradigmas dominantes em questões sociais e raciais.

Essas causas fazem parte do pacto global dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – até 2030. O 5° ODS de igualdade de gênero, estabelece metas e objetivos que abarcam os direitos humanos, desenvolvem políticas contra uma sociedade machista, patriarcal, distingue a definição de gênero e sexo, analisa formas de violência contra as mulheres, empoderando os indivíduos a assumirem suas características sem julgamentos. No 10° ODS é posta a redução de desigualdades, com intuito de promover a inclusão social, cria legislações que sustentem o respeito às diferenças e reconhece a dignidade dos indivíduos (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, c2020).

Diante da estrutura multicultural de populações mundiais e a projeção do futuro, esforços científicos e culturais são desenvolvidos nessa direção. Encontra-se na estética cultural o afrofuturismo, que vislumbra o amanhã para uma sociedade com mais pessoas afrodescendentes, inseridas em um contexto tecnológico, com representatividade visual. Contemporaneamente, o olhar afrofuturista é visto na obra dos romancistas Octavia Butler e Samuel Delany, no jazz do artista Sun Ra, nas cantoras estadunidenses Janelle Monaé, Erykah Badu, Solange, Beyoncé e no filme Pantera Negra dos Studios Marvel (CAPERS, 2019).  

No Brasil, Freitas e Messias (2018) dialogam sobre a tensão entre o conceito do afrofuturismo, afropessimismo e obras artísticas de protagonismo afrodescendente. Villaça (2010) aborda sobre a dinâmica das identidades na contemporaneidade, por meio dos dispositivos tecnológicos, cultura, relação centro-periferia e corpo. Luiz Bolognesi (GUERRAS..., 2019) traz fatos históricos no documentário feito em cinco episódios, que aborda sobre os principais conflitos armados na história do Brasil. O segundo episódio do documentário Guerras do Brasil narra sobre a escravidão, as etnias que se protegem em Quilombos e a origem das comunidades afro-indígenas.

Dentre as reflexões e práticas, a moda também pode ser materializada pelo viés das representações, que proporciona a roupa, modelo e comportamento um valor simbólico, livre de estruturas racistas e segregadoras. Cabe a fotografia de moda repensar em formatações inovadoras e criativas para exprimir tendências que fazem alusão ao contexto social (RAINHO, 2018). Em conjunto com a indústria da moda, percebe-se a preocupação das revistas e agências com a economia, resultado de uma competitividade árdua no cenário da indústria da moda mundial, que ditam regras de acordo com interesse político e financeiro (LYNGE-JORLÉN, 2016).

Entretanto, um elemento que influencia na fotografia é o styling, palavra derivada de estilo associado a forma de vestir uma roupa, aparência, conduta que o indivíduo se encontra pelo âmbito social e baseado em uma reordenação da moda com histórias diferentes para originar novas acepções. Assim, o styling acontece após a seleção e agrupamento das peças de roupa e acessórios que atendem o desejo, briefing e direcionamento de alguém ou veículo de comunicação (LYNGE-JORLÉN, 2016).

O profissional que realiza a apresentação do look é o stylist, que é responsável pelo projeto visual, social e cultural da imagem – styling. Ibrahim Kamara, um stylist natural de Serra Leoa no continente africano, residente na Inglaterra desde os onze anos, foi eleito pela Vogue UK como um dos profissionais mais requisitados pela indústria da moda (MAITLAND, 2018), pelo the business of fashion como um provocador das convenções da moda (BOF, c2020) e pelo portal fashion forward no Brasil (YAHN, 2019), como propiciador de um mundo sem fronteiras, de liberdade e aceitação. Os stylings de Kamara são relevantes, pois têm um olhar afrodescendente nas suas construções visuais (FREITAS; MESSIAS, 2018) e reconhece o corpo como biopolítico, corpo-história e trata as roupas e acessórios como objetos culturais (SCAGLIUSI; SANTOS, 2012).

O objetivo deste estudo é analisar os stylings como prática do sistema de moda que podem romper paradigmas hegemônicos em editoriais na contemporaneidade por meio da análise dos stylings de Ibrahim Kamara. Bem como, compreender a partir de que momento na história da moda o styling surge, identificar os stylists que produziram stylings em revistas de moda reconhecidos internacionalmente; mapear os stylings de moda do portfólio de Ibrahim Kamara.

O estudo se desenvolve nas seções Território do styling de moda na década de 1960 a 1980, contemplando o cenário da indústria da moda, consumo, os editoriais de moda e os atores responsáveis; no Método se aborda sobre a metodologia de pesquisa, iniciando pelo styling na perspectiva da fotografia de moda até chegar ao estudo de caso dos stylings de Kamara; e em Afrodescendentes em editoriais de moda, há a análise cultural e social advinda de Rose (2016) nos stylings desenvolvidos por Ibrahim Kamara, pela perspectiva de referências globais, como os ODS e pela ótica do processo de colonização e escravização dos africanos no Brasil.

2 TERRITÓRIO DO STYLING DE MODA NAS DÉCADAS DE 1960 A 1980

O final da década de 1950 e início da década de 1960, com a expansão da indústria, barateamento da energia e o aumento no nível de consumo, baseado na compra dos carros, roupas e transformação das cidades, foi um cenário propício para acelerar a democratização do consumo e dinâmica de mercado, como o da moda. O consumo midiático dos programas televisivos, os jornais e revistas influenciaram a procura por produtos com o intuito de expressar sobre si, seja no campo político ou para reconhecimento social (CROCKER, 2016).

A moda participa significativamente desse cenário, pois o ciclo de estar à frente da tendência perpassa pela aquisição de códigos visuais vigentes, concretizados quando alcança o patamar público e a responsabilidade assume uma esfera personalizada, negando a empatia social e da natureza (CROCKER, 2016). 

Na década de 1960, surge o profissional stylist, com o objetivo de despertar o desejo de consumo por meio da imagem de moda, porém os créditos vieram aparecer nas revistas especializadas na década de 1980. A revista Vogue Americana foi a pioneira, sob a direção da Anna Wintour, a observar que a sociedade estava vivendo a colisão entre alta cultura e cultura popular. Dessa forma, ressignificou o conceito de mulher propagado desde a origem da Vogue em 1892 até meados do século XX, com o perfil burguês e estilo mais lady (LYNGE-JORLÉN, 2016).

Na Grã-Bretanha, em meados da década de 60, a revista Nova foi precursora em produzir editorias que propunham repensar as formatações de apresentar a moda ao leitor (BEARD, 2002), todavia o crédito do profissional estava como Fashion by ao invés de stylist (LYNGE-JORLÉN, 2016). De tal forma, confirma-se que o styling estava no mercado, porém era ausente a nominação e definição específica.  

A revista Nova teve como características o editorial de moda, a história da fotografia e o composite, que tinham em comum promoverem as imagens como inspiração e encorajamento ao leitor para experimentar peças do vestuário, desconsiderando a imposição de tendências ou de peças com alto custo (BEARD, 2002). Nova foi vanguarda na relação do produto no contexto social, quando observou a revolução da juventude, movimento da contracultura, a conscientização da desigualdade de gênero e os movimentos feministas de 1960 e 1970 (BEARD, 2002; LYNGE-JORLÉN, 2016).

Outras revistas, na década de 1980, como The Face e I-D contrataram os profissionais de imagem de moda, denominados nos créditos como Styling e Style. Acredita-se que após o aparecimento da Nova, que encerrou as atividades em 1975, as demais revistas internacionais a partir da década de 80 começaram a contar narrativas de moda, com roupas advindas de diferentes marcas e faziam um repertório específico para os looks (LYNGE-JORLÉN, 2016).

Os profissionais Carlyne Cerf De Dudzeele, Simon Foxton, Sheila Rock, Ray Petri, Caroline Baker, Brigid Kenan e Molly Parkin se destacam pelo profissionalismo e produção imagética diferenciada ao longo das décadas de 1960 a 1980 (LYNGE-JORLÉN, 2016). Carlyne Cerf De Dudzeele, responsável por uma abordagem pós-moderna, fez-se ícone na moda por ter incorporado na capa da Vogue América de 1988 a mistura de uma jaqueta do Christian Lacroix, de custo alto, com um jeans básico e acessível, contemporaneamente o estilo é chamado de high low (FERLA, 2013); Simon Foxton é reconhecido por ter trabalho autêntico e produzido imagens desapegadas de tendências comerciais (BOF, c2020); Molly Barkin destaca-se pela notoriedade visual das peças coloridas, cresceu nas revistas como Harpers Bazar, Nova e The Sunday Times nas décadas de 1960 e 1970, além de atuar como pintora (THOMAS, 2017).  

Brigid Kenan trabalhou como editora de moda, com contatos notáveis da área e desenvolveu livros nas décadas de 1970 e 1980, respectivamente The woman We wanted to Look like e Dior in Vogue (BRITISH COUNCIL LITERATURE, c2020). Caroline Baker criou estilos para Vivienne Westwood e Benetton, propiciando inovação para as páginas de moda e mostrou que o trabalho é muito mais que simplesmente vestir uma modelo (BARTLETT; COLE; ROCAMORA, 2013). Sheila Rock assumiu as páginas de estilo da The Face´s, bem como da fotografia e edição de moda (LYNGE-JORLÉN, 2016).

Diante de Crocker (2016), Beard (2002) e Lynge-Jorlén (2016) se identificam as maneiras que o mercado conduziu o cenário e os argumentos para os indivíduos concretizarem o consumo. Ao relacionar com o styling, observa-se a relevância da prática e profissional para o sistema de moda. Destaca-se Ray Petri por ter sido o primeiro stylist a colocar modelos afrodescendentes protagonizando editoriais de moda.

Na década de 1980, Kamen, um dos modelos que trabalhou com Petri, comenta que ele almejava tirar os adultos e as crianças afrodescendentes das ruas, colocá-los em um estúdio e fotografá-los para uma revista reconhecida internacionalmente, como a Vogue. Algumas revistas negavam a presença de afrodescendentes nos cadernos de moda, todavia Petri se posicionou para fazer um casting com afrodescendentes, crianças com atitudes de adultos, homens usando saias, um mix de elementos de inspiração africana com indumentária inglesa e concebeu materiais imagéticos que estavam inseridos no universo musical do R&B, Motown, punk e reggae (SMITH, c2020).

Segundo relato do ex-modelo Barry Kamen para Smith, ser um modelo afrodescendente na década de 1980, mesmo com a indicação de Petri, era desafiador, pois o cachê pago para um modelo branco corresponde a valores superiores ao pago para um modelo afrodescendente (SMITH, c2020). Nick Logan, editor-chefe da revista The face e Arena, oportunizou um espaço para Petri desenvolver as próprias criatividades.

Kamen comenta que no styling de Petri era perceptível a atenção aos detalhes e a concepção brilhante, bem como o stylist valorizava a atitude ao invés de simplesmente a roupa. Para McAssey e Buckley (2013), Petri foi um ícone na década de 1980, com a mistura de uniformes urbanos, indumentária étnica, sportwear, alta costura e casting com perfis de pessoas próximas ao estereótipo do senso comum.

Ray Petri era uma mente inquietante de criação, assinou o último editorial de moda intitulado de The Long Goodbye para a revista Arena. Ao longo da carreira, Petri desenvolveu o coletivo Buffalo na Inglaterra, com o intuito de celebrar a diversidade, contar histórias, propor projetos que atingissem a alma do sujeito, composto por perfis de colaboradores heterogêneos e que dialogavam criticamente com os movimentos sociais pulsantes dos anos de 1980 (SMITH, c2020).  

Em 2015, foi celebrado o 30º aniversário do coletivo Buffalo com a produção visual do Spirit of Buffalo, uma versão contemporânea do movimento, com a colaboração de Dr. Martens e das personalidades que conviveram com Petri, Jamie Morgan e Barry Kamen. Morgan ressalta que as pessoas na década de 1980 se conheciam em festas, casas noturnas, nas ruas, faziam as fotos com câmeras fotográficas sem previamente ver a qualidade da fotografia, as referências eram dos índios americanos e dos fotógrafos das décadas anteriores (GRAHAM, 2015).

No Spirit of Buffalo, o styling das saias para os homens foi oriundo do país natal de Petri, Escócia, e também do percurso que o stylist fez no continente africano, local que o uso da saia é visto de forma natural. Os estilistas Gualtier e Yamamoto perceberam a qualidade do coletivo, os levaram para os desfiles e assim foram reconhecidos no mercado da moda (GRAHAM, 2015).  

Ray Petri faleceu em 1989, o legado que ele e o coletivo Buffalo deixaram para o styling foi de observar os acontecimentos das ruas, trazer belezas diversas para a fotografia de moda, compreender a alma dos fatos sociais e propor imagens que se tornem únicas (SMITH, c2020; MCASSEY; BUCKLEY, 2013).

McAssey e Buckley (2013), Graham (2015), Smith (c2020) e Lynge-Jorlén (2016), destacam a relevância das propostas do stylist Ray Petri, do coletivo Buffalo na década de 80, Jamie Morgan e Barry Kamen resgataram o olhar no fashion film chamado de Spirit of Buffalo e associa-se a responsabilidade social que Petri tinha na função de stylist. De tal modo, analisa-se a influência do trabalho de Ray Petri, como ele foi um dos profissionais que fez o styling no sistema de moda ser reconhecido e com a função de conceber imagens de moda questionadoras de cunho social, cultural, político e racial.

Ibrahim Kamara surge como assistente de Barry Kamen, com quem ele aprendeu a entender e dar significados sociais para a roupa, concomitantemente descobriu sobre o styling na faculdade Central Saint Martins. Kamara valoriza quem ele é e de onde ele vem como diferenciais no styling que realiza em desfiles, exposições e editoriais de moda para revistas (MAITLAND, 2018).

3 MÉTODO

A pesquisa é um estudo de caso particular por buscar a melhor compreensão de um evento singular, a exemplo o styling em editoriais de moda, e com aspectos intrínsecos, como o styling assinado por Ibrahim Kamara, um afrodescendente advindo de um contexto periférico. O estudo é delineado pela: i) delimitação da unidade-caso; ii) coleta de dados; iii) seleção, análise e interpretação dos dados (VENTURA, 2007).

Na fase de delimitação de unidade-caso, a pesquisa está alicerçada na revisão bibliográfica. Esquematiza-se que o estudo parte da lente teórica de autores que dissertam sobre o contexto da década de 1960 a 1980 no campo do consumo, da moda, perpassam pelo surgimento do stylist nas revistas específicas, discorrem sobre pacto de responsabilidade social e ambiental de convívio até chegar ao objeto de análise.

A coleta de dados foi fundamentada no procedimento qualitativo por meio da análise de conteúdo (VENTURA, 2007). A escolha do stylist Ibrahim Kamara ocorreu por ele ser um entre os 11 stylists da agência Art+commerce, apresentar um portfólio com 22 arquivos expostos virtualmente, com criações feitas para clipes musicais, editoriais de moda para revistas como Vogue, I-D, Double, Love, dentre outras. Bem como, no geral o styling se apresenta em imagens de rostos cobertos com máscaras, objetos decorativos, sacos plásticos, armas, indumentárias de realezas, estética asiática, capuz com orelha de coelho, dentre outros que protagonizam narrativas de um universo anulado pela centralidade conservadora (ARTANDCOMMERCE, c2020).

Há no total 275 fotografias de moda e o principal critério estabelecido parte da seleção de fotografias que tenham a presença majoritária de modelos afrodescendentes, afro-indígenas, tragam cenários e costumes que contemplem a estética periférica. Para mais, sejam composições que tangenciem esferas sociais e culturais oriundas de estruturas internacionais e nacionais, respectivamente como o racismo, a melhoria do meio ambiente, a reflexão sobre as desigualdades e o processo da colonização.  

Para interpretação dos stylings e editoriais de moda, Rose (2016) tem interesse na vida doméstica comum, nos efeitos perpetuados na rotina, espaços públicos urbanos, desenvolve uma metodologia visual pautada no olhar sobre a cultura, arte, sociedade, é interdisciplinar e considera as fontes de mídias digitais, a exemplo blogs, redes sociais e sites. As investigações das fotografias acompanham as mudanças midiáticas e podem ser analisadas pela perspectiva da produção, circulação, audiência e imagem. Essa última foi utilizada na pesquisa, pois aprofundou a interpretação dos detalhamentos imagéticos e considerou as modalidades do aspecto visual, composicional e social.

A modalidade do aspecto visual debruçou sobre as especificidades, qualidades físicas, materialidade, identificou os enquadramentos, estilos de composição, as características do casting de modelos, a paleta de cores da locação, identificou os cenários, acessórios e vestuário. O composicional visou os termos técnicos da roupa, modelagens, silhuetas e as relações com as tendências disseminadas ao longo da história da moda. No social, considerou-se a perspectiva cultural e relacionou-se com informações de cunho entre centro-periferia e história (ROSE, 2016).

A análise foi realizada em stylings de três fotografias em dimensões maiores, 18 fotografias em dimensões menores a fim de proporcionar uma adequada visualidade da atmosfera dos editoriais. Respectivamente, as imagens foram selecionadas a partir da ótica do afrofuturismo, protagonismo do afrodescendente em uma composição monárquica e uma temática cristã.

4 ANÁLISE DOS AFRODESCENDENTES EM EDITORIAIS DE MODA

A partir da análise sobre imagem, o styling de moda, de cunho social e cultural, observou-se a presença afrodescendente, multicultural e periférica nos editoriais de moda assinados por Kamara, que descentralizam os paradigmas europeizados e brancos frequentemente estampados nos veículos de mídia da moda.

Sob esta perspectiva da marginalidade nas fotografias de moda, observa-se que na figura 1, o aspecto visual do styling de Kamara é concebido em uma atmosfera árida, horizontes desérticos, a paleta de cores permeia o preto advindo das queimadas, o amarelo simbolizado pela intensidade do sol, o branco das fumaças do desmatamento e da neblina. A paisagem conjunga com a postura dos modelos de heróis futuristas, posando para um retrato pictórico. As roupas proporcionam novos significados que colocam o sujeito a afirmar as identidades pessoais, sociais, a moda contemporânea ambígua, multifacetada e com o caráter fragmentado de sociedade pós-industrial (CRANE, 2006).

Figura 1: (A) body branco e bota camuflada alongada; (B) conjunto de peças íntimas e chapéu com flores;

 (C) capa preta, sapato azul e modelo segura uma arma; (D) lamparina e adorno na cabeça; (E) look total azul; (F) saias brancas e facões; (G) arma acima da cabeça e está com look total rosa

Fonte: Styling Ibrahim Kamara, fotografia Kristin-Lee Moolman, editorial Soft criminal exibido na galeria Red hook labs, 2018. Art+commerce, c2020.

Segundo as Nações Unidas Brasil (c2020), ao longo de um século e meio com o desenvolvimento industrial, extração brutal da natureza e economia linear do descarte, há um aumento dos gases do efeito estufa, o que consequentemente derrete geleiras e aumenta a temperatura global. Neste viés, Kamara na figura 1 concebe um mundo devastado, rochas, terra seca, troncos em combustão e redesenha visuais com o corpo mais à mostra, porte de armamentos para se proteger e garantia da própria sobrevivência.

Em um mesmo editorial a silhueta varia com modelos volumosos das capas, saias de modelagem godê e casacos, todavia as lingeries e espartilhos comprimem o corpo. Na figura 1A, existe uma extensão do corpo pela extremidade dos pés, uma camuflagem do modelo, criando uma espécie de homem-cobra que altera a pele, desenvolve uma autodefesa pelo alongamento, correlacionando com o título do editorial Soft criminal – criminoso suave – composto por 33 fotografias e foi uma exposição apresentada na galeria Red Hook Labs em Nova Iorque em 2018.

No futuro dos criminosos suaves de Kamara, a visualidade masculina é implantada com peças curtas, cavadas e justas, perceptíveis na figura 1A, bem como desapega da dicotomia dos gêneros reconhecidos culturalmente e agrega os diferentes, definidos por serem considerados como ameaças à normalidade. Uma vez que, as formas criadas pelo styling de Kamara exibem o tônus muscular masculino das pernas, o colo, os mamilos com sensualidade feminina e percorrem uma volúpia na contramão da compreensão dos padrões sociais (VILLAÇA, 2010).  

Repensar culturalmente sobre as maneiras de se mostrar socialmente e autodefesa são temáticas inseridas no styling e na locação de Kamara na figura 1. Nesse propósito, o styling de Kamara descontrói a virilidade masculina advinda de roupas sóbrias e modelagens retas oriundas do século XIX (LAVER, 1989), por meio do desenvolvimento de imagens que empregam looks fetichistas, concebem uma forma volumosa da estrutura corpórea, detalhes que desconsideram o vestuário como fronteria social, tem o intuito de proporcionar uma luz e uma cor de esperança nos elementos respectivamente como a lamparina na figura 1B e flores na 1D.  

O protagonismo afrodescendente, a diversidade de tonalidades de peles, de estéticas de corpos magros, torneados, de cabelos curtos crespos, lisos, loiro, a presença de homens, mulheres e crianças no styling de Kamara promovem inclusão social, política e econômica de todos em qualquer esfera. Igualmente, a presença das armas, facões, luvas de boxe e o poder do homem-cobra simbolicamente fazem todos estarem semelhantes em um patamar protetivo, com extensões de segurança do próprio corpo (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, c2020).  

        Além disso, socialmente o styling de Kamara se relaciona com o conceito inicial de 1994 de Mark Dery sobre o afrofuturismo, resgatado no estudo de Capers (2019), em que vincula essa abordagem para especular sobre os afro-americanos no contexto tecnocultural, com a teoria que as pessoas romperão futuramente com as categorias de raça, sexo e economia.

        Capers (2019) acrescenta os temas alienação e recuperação como reflexões do afrofuturismo. Por meio da alienação, há a limitação da liberdade, criatividade e experiência pautadas com a exploração de outras nações e advento do capitalismo. Em contrapartida, a recuperação resgata a expressividade perdida com o processo de escravização. Assim o styling de Kamara se concentra na recuperação, rompendo a barreira com vivacidade e os personagens exprimem suas frustrações, desejos e traumas pelos acessórios de faca, luvas, armas, flores, máscaras, dentre outros.

Freitas e Messias (2018, p. 410) incrementam ao trazerem a perspectiva do futuro e do passado, crendo que “[...] a população negra contemporânea é sobrevivente de um apocalipse, do nosso próprio processo de abdução [...]” e os stylings de Kamara apresentam populações afrodescendentes que foram paridas dos descendentes da pós-escravidão.

        A partir dos stylings da figura 1 se percebe as rupturas que Kamara faz por meio do casting afrodescendente das modelos, diálogo com o leitor à margem dos engessamentos imagéticos consagrados da sociedade (VILLAÇA, 2010), uma projeção ambiental futura baseada na exploração da natureza (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, c2020), a estética do afrofuturismo pautado na união da tecnologia com a cultura, da alienação pelo sistema capitalista, expressão pela ótica do tema da recuperação (CAPERS, 2019) e na sobrevivência dos afrodescendentes após o caos racista instaurado na sociedade (FREITAS; MESSIAS, 2018).  

        O styling da figura 2 foi editado e produzido sob o título The cultural provocation, but in the most tasteful way – A provocação cultural, mas do jeito mais agradável –, composto por sete fotografias, os modelos estão posando em uma locação cinza comum em perspectiva, com códigos de vestuário consagrados por grupos distintos culturalmente. Coroas, capas, rostos mascarados, conjunto de terno e calça sem estar vestido, adorno com penas, chapéu preto, saias estampadas volumosas, obi[2] floral na cintura, livro, celular e armações circulares foram algumas das peças oriundas das tradições japonesas, judias, da alta monarquia em meio a um tempo amalgamando o passado e o presente (RYDER, 2014).

Figura 2: (A) coroas e capas vermelhas; (B) título do editorial de moda, ternos e máscaras; (C) corpos pintados e adornos circulares na cabeça; (D) chapéu preto e vestido volumoso branco; (E) adorno de penas, saias e obis florais;(F) copo branco e um conjunto de terno/calça; (G) rosto e chapéu preto.

Fonte: Styling e ilustração Ibrahim Kamara, fotografia Paolo Roversi, editorial It´s cultural provocation but in the most tasteful way para a revista System Magazine, 2019. Art+commerce, c2020

Segundo a System Magazine (SYSTEM..., 2020), Kamara usufrui da linguagem da moda para desafiar qualquer tipo de estereótipo, resgata estampas, texturas e visualidades sob a estrutura corpórea de modelos afrodescendentes que na esfera do senso comum pertencem a outras tradições, crenças e estéticas visuais. Pelo estudo sobre belezas que passam dos limites da realidade, percebe-se que Kamara se ampara na tecnologia como ferramenta para propiciar contextos estéticos híbridos, manipula as peças de roupas e acessórios como objetos culturais, a fim de transmitir uma honestidade epistêmica autêntica, valorizando a acurácia multicultural existente na contemporaneidade (SCAGLIUSI; SANTOS, 2012).  

Em uma mesma cena na figura 2A, um modelo está com o celular na mão, a modelo central porta um livro aberto e um cigarro. O styling de Kamara considera o corpo como um operador simbólico, sobre ele se reconstrói formas de comportamentos, o livro e o celular na mesma cena transmitem os meios de comunicação passado e contemporâneo, o analógico/material juntamente com o virtual/digital das telas touches, o indivíduo experimenta a realidade por maneiras diversas de administrar as informações e articula desejos advindos de experiências comunicativas pretéritas (VILLAÇA, 2010).

Na composição, observa-se que a silhueta dos três modelos da figura 2A é alongada pela capa vermelha, folhos dos vestidos, as meias-calças e sapatos com ponta estreita; por meio da pelerine sobre a capa, branca com pontos pretos, e da coroa se transmite uma autoridade; e estão todos em um mesmo fundo de lona cinza no nível de igualdade, bem como a qualidade da locação é contraditória ao requinte dos visuais.

A composição do styling de Kamara coloca os modelos afrodescendentes como protagonistas em todas as narrativas culturais abordadas, contrariando o olhar convencional sobre o comportamento das famílias monarcas, judeus e descendentes de japoneses estereotipados por um viés tradicional, cartesiano e moderno (VILLAÇA, 2010).

Analisa-se que Kamara se apropria de peças de roupas típicas e acessórios que criam um universo crítico sobre a história da humanidade contada pelo viés hegemônico, econômico, de colonização e cor de pele, oposta às imagens de afrodescendentes em meio a comunidades, marginalizados, encarcerados, acorrentados, serviçais e/ou submissos ao poderio do Estado (FREITAS; MESSIAS, 2018).

No viés social, por intermédio da concepção do styling de Kamara se reflete sobre o conceito do afropessimismo, definido por abordar o passado de escravidão e o presente com o racismo estrutural. Concomitantemente, a conceituação está baseada pela desonra generalizada, alienação natal e violência ilimitada (FREITAS; MESSIAS, 2018).

A desonra generalizada é marcada pela falta de reconhecimento social e moral do escravizado (FREITAS; MESSIAS, 2018), visto nos episódios do documentário Guerras do Brasil (GUERRAS..., 2019), dirigido por Luiz Bolognesi, o segundo episódio em específico aborda sobre a seleção, chegada, vivência, desumanidade praticada contra os africanos em terras brasileiras e registra as consequências contemporâneas oriundas do brutal processo de colonização portuguesa.

Segundo o historiador Zezito de Araújo, que é atuante na temática Quilombo e Comunidades Remanescentes de Quilombo, o regime da escravidão era interessante para os colonizadores, para o clero, visto que eles serviriam de mão de obra para a plantação e retirada da cana-de-açúcar nos engenhos, atendia o luxo da nobreza e as exigências religiosas. O historiador e ilustrador D´Salete lembra que os escravos trabalhavam em média 12 horas por dia e tinham uma expectativa de vida de 29 anos (GUERRAS..., 2019). Em meio a essas referências passadas no âmbito brasileiro, o styling de Kamara promove uma miscigenação do afrodescendente com múltiplas culturas, reconhecendo que as diferenças incentivam a construção de identidades (VILLAÇA, 2010).

A alienação natal considera o afastamento sistêmico de parentescos e familiaridade dos escravos (FREITAS; MESSIAS, 2018), segundo Zezito Araújo os africanos eram batizados no próprio território com nomes cristãos, de origem portuguesa. Em meio a essa viagem coagida, milhares morreram nos porões dos navios, os laços familiares se perderam e grupos étnicos foram devastados (GUERRAS..., 2019).

A violência ilimitada é configurada pelas agressões sobre o escravizado como hábitos dos agressores, para os afropessimistas na contemporaneidade os indivíduos afrodescendentes apresentam a mesma vulnerabilidade do escravo em séculos passados, bem como é visto no formato de objeto fruto da mercantilização e capitalismo (FREITAS; MESSIAS, 2018). O styling de Kamara propõe visuais com características agregadoras, provocativas e educativas correlatas com a afirmação de Zezito Araújo, em entrevista sobre o movimento negro no estado brasileiro de Alagoas, ele responde que o racismo não diminuirá, entretanto, a criação de leis motiva para o surgimento de coletivos e a reeducação de uma sociedade mais responsável pelo próximo (ARAÚJO, 2011).

Na figura 3, o aspecto visual do editorial Double, composto por 22 fotografias, é permeado de enquadramentos com a presença de dois modelos ou modelo e um objeto, estão em estúdio, cenários periféricos urbanos, palafitas, faixada de um templo religioso, altar com cortinas, as paisagens se misturam com a violência, entretenimentos para massa, religião e balões com pedido de socorro segurados por uma criança.

Figura 3: (A) cabelos loiros compridos; (B) livro aberto, faca e cocar; (C) balões escrito Help; (D) faixa vermelha, vestido branco e penteado; (E) capacetes cobertos com flores; (F) dois homens segurando dois corpos cobertos por flores; (G) faixa Miss Brazil, vestido branco e bola de futebol azul.

Fonte: Styling Ibrahim Kamara, fotografia Rafael Pavarotti, editorial Double para Double Magazine, 2019. Art+commerce, c2020.

Os atores urbanos são visualmente narrados pela presença da miss punk com faixa vermelha e bola de futebol, motociclistas com capacetes cobertos por flores sortidas, policiais fardados, corpos completamente cobertos por flores, roupas da alta corte, cabelos longos que arrastam no chão de cantoras gospel, o homem de terno que foi convertido pela religião cristã com bíblia aberta e faca com sangue em outra mão e a primeira-dama que adquire o reconhecimento com a faixa vermelha. Dessa forma, Kamara desconstrói certezas por meio da enunciação visual de personagens inscritos em mixologias, espaços híbridos circunscritos em linhas não normalizadoras da sociedade (VILLAÇA, 2010).

O styling de Kamara se refere a visuais que “Periféricos, subdesenvolvidos, pornográficos, forasteiros de todo o tipo, vagueiam na cultura que a produção da subjetividade prêt-à-porter gera uma nova cultura do lixo e do abjeto. Produção discursiva infinita de um mundo na fuga do imundo” (VILLAÇA, 2010, p. 173). À vista disso, o styling ressignificou as peças de roupas/acessórios para trazer o que é considerado monstruoso, apagado pelo mercado do consumo de luxo em série para protagonizar e exibir ludicamente uma rotina periférica.

A composição é marcada por vestidos longos, ternos, rendas, faixas em cetim e aviamentos em dourados que funcionam como interstícios para visibilizar um corpo borrado dos parâmetros europeizados. Scagliusi e Santos (2012) se questionam sobre a necessidade de tratarem perfeição e beleza como sinônimos, como resposta os stylings de Kamara trazem combinações de cores, texturas nas roupas e na locação apresentam belezas narradas pela perspectiva suburbana, redefinindo o que é considerado beleza nesse universo e problematiza os alicerces sobre a perfeição em um mundo caótico.  

A perfeição dentro dos papéis sociais está na aparência da mulher com a pinkification – rosificação – e os homens como os dominadores, bem como pelo visual juvenil, magro e em boa forma de ambos. Na contramão da perfeição, estão os corpos simbólicos, econômicos e sociais que atuam à margem dessas fronteiras e são tidos como inclassificáveis, como mulheres solteiras, os afrodescendentes, LGBTQ+, os envelhecidos, suburbanos, gordos, moradores de rua e descendentes indígenas (GOLDENBERG, 2012).

Kamara assumiu na composição realidades que são descartadas pelas crenças centralizadoras e impossibilita o apagamento dos costumes periféricos. Socialmente, observa-se que o styling de Kamara adentra em percursos globais originários do período do renascimento, época das grandes navegações na Europa, posses dos territórios americanos, africanos e o contato com povos tidos como selvagens (PROENÇA, 2001; GUERRAS..., 2019).

Na figura 3A, Kamara dispõe de dois corpos afrodescendentes protagonizando papéis de cantoras no altar e a função de portadoras da palavra divina. O styling é apresentado pelas peças íntimas nas cores que se assemelham a tonalidade de pele de pessoas brancas, bem como a cor do cabelo alongado loiro para conferir uma proximidade com estereótipos europeus.

O afropessimismo remete-se à relação do passado e presente com a violência gratuita, provocando a produção de afetos de empatia nos corpos dos espectadores (FREITAS; MESSIAS, 2018), que dialoga e serve de fundamento para análise social do styling de Kamara. Os afrodescendentes considerados como risco a ordem cristã, sujos e pecadores desde o nascimento, na figura 3A contraditoriamente estão como propagadores do sagrado cristão, prática religiosa oriunda do sistema centralizador.  

Na figura 3B, a faca com sangue e a bíblia aberta indicam para o processo cruel de imposição do catolicismo para a população nativa brasileira, capaz de despertar indignidade e ser mais uma imagem motivadora dos movimentos sociais (GUERRAS..., 2019). Além disso, o modelo vestido com um uniforme capitalista, terno e gravata, gera uma reflexão ao leitor sobre o destino futuro da sociedade contemporânea e projeta-o na atuação do modelo impregnado por uma atmosfera caótica simultaneamente no tempo passado/presente/futuro.

A figura 3C se constrói com uma criança vestida com trajes de corte europeia em meio a edificação de palafitas de madeira, olhar fixo no leitor e suplicando help – socorro – pelos balões, que simbolicamente quando soltos para o céu alertarão o mundo sobre a própria existência, a necessidade de reconhecimento social, cultural e político.

A figura 3F causa um estranhamento com a atuação agressiva dos modelos de violência sobre corpos cobertos por um macacão de cor preta com flores costuradas, que remetem a delicadeza e sensibilidade. Em suma, o styling de Kamara, a locação, os diálogos globais advindos do afrofuturismo (CAPERS, 2019; FREITAS; MESSIAS, 2018) e a ação dos modelos fazem o leitor resgatar o passado brutal da escravidão no Brasil (GUERRAS..., 2019), o contemporâneo com a violência gratuita nas periferias e, diante desses fatos, pensar como será o futuro dos periféricos e descendentes de afrodescendentes.

5 CONCLUSÃO

Os movimentos sociais contemporâneos a favor dos direitos humanos, protestos de cunho antirracistas internacionais, a criação de hastags, de perfis nas redes sociais e a proximidade dos seguidores com os estudiosos sobre o racismo estrutural em lives geram conteúdos virtuais e físicos que registram as lutas dos afrodescendentes, descendentes afro-indígenas e periféricos. A moda é um dos campos que exprime visualmente esses comportamentos de resistência, questionamentos acerca dos poderes centralizadores. O styling é uma das práticas que contribui para uma construção imagética de cunho social. O estudo de caso do styling de Kamara abordou sobre o protagonismo afrodescendente, assim como Ray Petri e os colaboradores do coletivo Buffalo tinham a preocupação com o contexto sociocultural na década de 80. Por meio desses agentes, a moda pode ser um instrumento de promoção da redução da desigualdade e igualdade de gênero previstos nos ODS.  

A metodologia de Rose (2016) amparou na análise visual das figuras 1, 2 e 3 para discorrer sobre as imagens de forma macro com as locações em estúdios, externas, objetos de cena, as cores do vestuário e a apresentação do look pela perspectiva centro-periferia (VILLAÇA, 2010); associou as modelagens e paleta de cores à história de moda (LAVER, 1989), aos parâmetros de bem-estar corporal (SCAGLIUSI; SANTOS, 2012), formas consideradas classificáveis da rosificação feminina e dominação masculina (GOLDENBERG, 2012).

Por meio do desembarque de cerca de 12 milhões de africanos em 350 anos de escravidão no Brasil, da realidade brasileira do final do século XIX e ao longo do XX reconhecido como um país subdesenvolvido, influenciado pelos centros como Paris, Nova Iorque, Milão e Londres foram construídos paradigmas reproduzidos nos demais territórios ocidentais. Contemporaneamente, pela fonte do IPEA de 2018 apresentada no documentário Guerras do Brasil (2019), das 60 mil pessoas que são assassinadas no Brasil, 71,5% são negras ou pardas, é necessário ter o protagonismo dos afrodescendentes, a fim de garantir um espaço confortável, promissor, seguro, multicultural e oposto a marginalização das ruas.

Dessa forma, o styling de Ibrahim Kamara funciona como uma referência visual para romper esteticamente com o poderio centralizador, normalizador e tradicional propagado por olhares europeizados, estadunidenses e brancos. Bem como, trafega por reflexões do futuro da sociedade, espelha em fotografias a situação de indivíduos de classes sociais baixas, respeita a própria trajetória do território natal utilizando-a de força motriz para olhar ao redor e colocar como protagonista.

O styling de Kamara serve como referência para outros stylists, profissionais do campo da moda, arte, cultura, design, publicidade, artes cênicas, antropologia, sociologia, dentre outros que almejam ressignificar as normatizações impostas ao longo da história dos países subdesenvolvidos e especificamente no Brasil. Os estudos futuros podem dissertar sobre a relação entre África e Brasil pelo viés do styling e de que forma o afrodescendente é representado nas revistas de moda. Por fim, é necessário o desenvolvimento de pesquisas que contemplem a temática de cor de pele e explorem o protagonismo dos historicamente excluídos.

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DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0016


[1] Por meio de Rocha (2010) percebe-se que as terminologias preto e negro são usadas de forma pejorativas e discriminatórias. Para não serem interpretadas erroneamente, o termo afrodescendente foi usado na pesquisa com o intuito de “[...] ganhar relevância e se tornar realidade denunciadora dos processos de exclusão, ao mesmo tempo referência para se propor e buscar estratégias conjuntas de inclusão” (ROCHA, 2010, p. 905).

[2] Conhecida também como sash, o obi é uma das peças características do vestuário tradicional japonês, assim como o kimono e a hakama - saia dividida em partes -.