Saia! Vestes e contradições de uma performance[1]
Skirt! Dresses and contradictions of a performance
Débora Souto Allemand
Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGFS) - deborallemand@hotmail.com - orcid.org/0000-0001-8479-9822
Helena Thofehrn Lessa
Doutora em Educação Física pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - thofehrnlessa@gmail.com - orcid.org/0000-0003-2099-7701
Sarah Leão Lopes
Graduanda em Dança pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - sarah.leao.lopes@gmail.com - orcid.org/0000-0002-1868-2682
Carmen Anita Hoffmann
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) - carminhalese@yahoo.com.br - orcid.org/0000-0002-5543-1209
Resumo
Este trabalho traz a linguagem da performance como um lugar de criação de novas realidades, uma brecha para falar das características da sociedade tradicionalista gaúcha e, consequentemente, de nossas próprias contradições, tendo a performance (Con)tradição como fio condutor e reflexivo da escrita. O processo criativo trouxe à tona a potencialidade da performance de criar territórios novos, fazendo com que por meio da arte seja possível refletir sobre nossas histórias e modos de ação cotidianos.
Palavras-chave: Conservadorismo. Dança tradicionalista gaúcha. Performance. Feminismo.
Abstract
This paper brings the language of performance as a place of creation of new realities, serving as a gap to discuss the characteristics of the traditionalist society of Rio Grande do Sul State (Brazil) and, consequently, of our own contradictions, choosing the (Con)tradição as an example to reflect about some questions. The creative process brought to light the performance’s potentiality of creating new territories, enabling the reflection on our own stories and everyday modes of action through art.
Keywords: Conservatism. Gaucho’s traditional dance. Performance. Feminism.
Recebido em: 11/05/2019
Aceito em: 07/10/2019
O conhecimento sobre a história da dança propõe referências para problematizar, criticar e construir hoje uma dança que trace relações com a cidadania contemporânea. Ao retomar as relações históricas com o ato de criar é possível perceber que muitas das atitudes presentes no discurso e na prática artística da contemporaneidade não se estendem aos gêneros de dança na sua totalidade. A partir dessa percepção, a linguagem da performance[2] abriu-se para nós, artistas da dança, como um espaço de criação de novas realidades, como uma brecha para falar dos problemas/características da sociedade tradicionalista gaúcha e de nossas próprias contradições, a partir da experiência de criação da performance denominada (Con)tradição.
No balé clássico, por exemplo, prática que integra o repertório de experiências dançantes de duas autoras do presente artigo[3], ainda percebemos pouca abertura à diversidade de corpos e aos processos de criação colaborativos. Com foco direcionado à forma, o balé clássico possibilita, nas palavras de Gonçalves (2014, p. 56), “uma concepção de mundo permeada pela lógica do diretor-coreógrafo” na maior parte dos trabalhos, o que limita o processo de experimentação criativa por parte de quem dança. Nesse sentido, “[...] o foco está no treinamento e no desenvolvimento de habilidades motoras, havendo pouco ou nenhum espaço para a criação, o novo, os acasos” (GONÇALVES, 2014, p. 57).
No caso do balé clássico de repertório, ainda persiste a hierarquização de papéis nos quais as bailarinas são separadas a partir da escolha daquelas que integrarão o corpo de baile ou que serão as solistas, sendo essa definição estabelecida principalmente a partir do desempenho técnico e do perfil da bailarina. Os balés de repertório possuem estruturas coreográficas relativamente fixas e as solistas dançam as personagens que realizam os movimentos com maior virtuosidade e complexidade técnica, tornando necessária a apresentação de condições técnicas e expressivas específicas para dançar determinada variação. As coreografias não são criadas com ou para determinadas bailarinas, a partir da identificação de certas potencialidades de movimento, mas as bailarinas são treinadas para executarem determinada coreografia já criada.
Em relação aos conteúdos dos balés de repertório, esses se repetem a cada história reapresentada e, por esse motivo, não possuem a função de instigar, suscitar problematizações e desacomodar o espectador de uma postura passiva, a qual é caracterizada normalmente por uma posição sentada e distante do palco italiano em um teatro. Concordamos com Inês Bogéa (2012), quando a autora ressalta que cada remontagem de um balé de repertório tem seu acento próprio, seja nos movimentos, nos detalhes do cenário ou da luz. No entanto, as histórias são dançadas em diversos lugares por diferentes companhias que seguem basicamente o mesmo roteiro e os mesmos personagens desde sua criação, envolvendo deuses, reis, princesas, fadas e camponesas. Desta forma, Gonçalves (2014, p. 57) propõe que “[...] a dança no pensamento clássico faz-se por um projeto de passado, uma tradição a ser reproduzida”. E essas tradições nos instigam a pensar sobre certos conservadorismos presentes nas experiências e trajetórias na dança, relacionadas tanto com a dança clássica quanto com a dança folclórica gaúcha.
Assim, nos reportamos a questionar as danças tradicionais do Rio Grande do Sul, que foi um dos aspectos motivadores para constituir o tema da performance (Con)tradição, apresentada pelo Caminhos da Dança na Rua, no Encontro Regional de Estudantes de Arquitetura (EREA Satolep), para o qual fomos convidadas a fazer a abertura. O evento foi organizado pela Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e ocorreu em Pelotas/RS em março de 2018. O evento congregou pessoas dos três estados do sul do país - Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul - e eram esperadas apresentações das referências culturais da cidade e do estado.
Mas a construção da cultura sul-rio-grandense foi fortemente marcada pelo modo de vida dos conquistadores e colonizadores ibéricos, sendo que a presença do índio, do negro, dos descendentes de colonos alemães e italianos e, mais ainda, das mulheres ficou velada nessa história. Assim, o tipo representativo continua sendo a figura do gaúcho da campanha, como teria existido no passado (KERN, 1998). E é esse o modelo do elemento humano protagonista das chamadas danças tradicionais do Rio Grande do Sul.
As pessoas participantes do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG)[4] no Rio Grande do Sul, entendem que o pertencimento implica em certos modos de agir e ver o mundo. Para tanto, exigem o respeito a determinadas normas, como de vestuário, festivais, música, gastronomia e dança. Essas normas têm por objetivo não distorcer a imagem idealizada de gaúcho conforme preconiza o MTG. Um exemplo dessas normatizações é o Manual de Danças Gaúchas (Figura 1), publicado por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa em 1957, já como uma segunda edição. O Manual ainda hoje se constitui em um referencial significativo para os dançarinos das invernadas artísticas de dança. A pesquisa para se chegar a este ponto exigiu um empenho grande nas buscas por meio da literatura de temas rio-grandenses de alusões a bailes, onde através das partituras, procuravam compor as coreografias. Dessa maneira, as danças tradicionais gaúchas e seus elementos constituintes, como passos, sarandeios, sapateios, figurinos e acessórios foram compostos.
Contudo, ao mesmo tempo em que o Manual divulga as danças (também chamadas de repertório) e auxilia no seu ensino, limita, de forma a dar pouco espaço para a criação, mesmo dentro da linguagem tradicionalista. Os festivais competitivos, baseados no cumprimento das regras do manual, podem ser comparados às competições esportivas, deixando de lado a criação e incentivando a reprodução em dança.
Se a construção dessa identidade tende a exaltar a figura do gaúcho em detrimento dos descendentes dos colonos alemães e italianos, ela o faz de modo excludente em relação ao negro e ao índio, os quais comparecem no nível das representações de uma forma extremamente pálida (OLIVEN, 2006). As características da figura do gaúcho são predominantemente masculinas e remetem ao homem rural, das lidas campeiras, trajado com bota e bombacha. Carrega consigo a virilidade, a valentia e o orgulho de seus feitos e realizações dos tempos das guerras e revoluções. Nessa representação, a mulher fica em segundo plano e, mesmo quando é reconhecida como heroína, ela apresenta características próprias da figura masculina, ou seja, os valores, as representações e os significados construídos em torno da cultura regional acentuam o masculino como referência (HENRIQUES, 2016).
Figura 1 - Esquemas coreográficos inseridos no Manual de Danças Tradicionais.
Fonte: Côrtes e Lessa (1997, p. 137).
É Oliven (2006) que destaca a questão da indumentária feminina apontando que alguns tradicionalistas são taxativos em afirmar que as mulheres, atendendo às virtudes de recato, simplicidade e pudor atribuídas pelos gaúchos, não transformem os vestidos e seus acessórios em fantasias atentatórias ao sentido moral de austeridade do Movimento Tradicionalista. E, que a função da indumentária feminina é servir de moldura à graça e à beleza e não torná-las grotescas ou ridículas. O protagonismo do homem nas danças tradicionais gaúchas é evidenciado nos complexos sapateios, enquanto a mulher recatadamente retribui com movimentos na saia, com o chamado sarandeio.
Desta forma, nos valemos da arte da performance para a criação, por ser uma arte híbrida, a qual nos dá possibilidade de efetivar diálogos transversais. Um território conceitual aberto para o propósito de exploração cênica proposta, sabendo do papel político e transformador que se pode atingir a partir desse viés. Mônica Dantas (2013) apresenta a ideia de performance – e performatividade – como uma atitude. Para a autora, a atitude é, antes de tudo, uma maneira de portar seu corpo, de se colocar no espaço e de se colocar frente ao(à) outro(a). No caso da performance (Con)tradição, na qual as quatro autoras deste artigo participaram como performers, essa atitude possibilitou a abertura de espaços críticos para as práticas de dança existentes, “inscrevendo o corpo dançante num corpo performativo e vice-versa” (DANTAS, 2013, p. 82).
Cohen (2002) conceitua a performance art como uma linguagem híbrida entre artes plásticas e artes cênicas. Porém, estendemos a noção dos territórios que abrangem as ações performáticas e as vemos como possibilidades de desestabilização de conceitos conservadores da cultura, compreendendo esta última como “aquilo que aprendemos com os outros e, em especial, com os antepassados” (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 226). Consideramos a cultura não como aquilo que está cristalizado, mas como algo em constante transformação, pois segundo Cavalli-Sforza (2003), a cultura se modifica à medida em que alguém altera a transmissão de algo - um passo de uma dança, por exemplo - ou na medida em que alguém decide transformá-la por algum motivo. No nosso caso, usamos alguns aspectos da dança tradicionalista como forma de dar visibilidade a questões machistas e conservadoras de nossa sociedade como um todo, trazendo o questionamento sobre as danças que reproduzimos e os discursos estão embutidos nelas.
O grupo de pesquisa artística, que está em atividade desde 2015 como projeto de extensão do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas, tem como objetivo principal a criação e experimentação de dança em espaços públicos e não tradicionais. O grupo foi criado por duas professoras de dança que são também arquitetas de formação, o que justifica a linguagem híbrida que o Caminhos propõe. O grupo é formado por pessoas de diversas linguagens artísticas ou vertentes teóricas (dança, arquitetura, cinema, antropologia) e consideramos que é isso que potencializa a criação híbrida das ações performáticas do grupo.
Estas ações buscam refletir sobre a estrutura de dominação e poder presentes na cidade, além da relação nítida do contato do corpo com a matéria arquitetônica, entendendo o corpo a partir do referencial de Miranda (2008), ou seja, como corpo-espaço[5]. Harvey (2014, p. 134) observa que “a cidade é o lugar onde pessoas de todos os tipos e classes se misturam, ainda que relutante e conflituosamente, para produzir uma vida em comum, embora perpetuamente mutável e transitória”. Assim, compreende-se cidade como um espaço de encontro das diferenças, como lugar de misturas e usam-se as ruas como espaços para a construção de cenas, por meio de uma dança de cunho performático embasada na exploração e no ato presente do fazer, para descobrir o corpo e (re)descobrir os espaços.
A improvisação é uma característica presente em nossas intervenções, que ocorrem em espaços abertos, na grande maioria das vezes, pois através da improvisação podemos estar atentas ao que está acontecendo ao nosso redor e nos relacionarmos com o mundo (ELIAS, 2015). Improvisar é experimentar livremente seu corpo em movimento no espaço e no tempo, em relação com as outras pessoas, com o contexto e consigo, com suas memórias e fragilidades. Improvisar é inventar a si mesma no ato da improvisação, é saber jogar com aquilo que o momento presente pede, utilizando suas referências para solucionar problemas criados pelo próprio corpo.
Trabalhamos também com a ideia dos programas performativos. Isso pode fazer com que a participante acesse novas “dimensões pessoais, políticas e relacionais, diferentes daquelas elaboradas no treinamento, ensaio ou palco” (FABIÃO, 2013, p. 8). Assim, um programa não requer ensaio, ainda que se possa realizá-lo diversas vezes, pois o interessante está na cena-não-cena, no imediatismo e urgência do momento. Porém, quando fomos convidadas a apresentar uma performance em um espaço fechado no EREA, nos questionamos: como criar sem as interferências do contexto ou de forma que elas não nos toquem tanto?
Iniciamos nossa pesquisa/reflexão coletiva sobre a temática do que seria apresentado na abertura do evento com base no tema do Encontro Regional de Estudantes de Arquitetura, “(Con)tradição: qual é a tua?”. Assim nasceu a performance (Con)tradição, com base no seguinte texto-conceito do evento:
Entendemos a tradição como o resultado de experiências vividas, uma forma de transmitir conhecimentos e costumes por gerações. A tradição ao mesmo tempo que fortalece a construção da identidade, memória e pertencimento de uma cultura, pode perpetuar costumes anacrônicos. (...) As contradições às quais sobrevivemos não são tradições somente aqui. A vida que levamos e a cidade que vivenciamos nos leva a questionar: Quais as (con)tradições que permeiam tua cidade? E a tua vida? Elas te representam ou te contradizem? As tradições que carregas e praticas ainda possuem algum significado ou tornaram-se apenas uma reprodução irracional? (EREA SATOLEP 18, 2018)
Partindo desta provocação, começamos a refletir sobre como poderíamos contribuir para o evento e como colocaríamos as ações expansivas do Caminhos em um ambiente com suas limitações[6]. Assim, além de trazer a dança tradicionalista gaúcha como mote de criação, consideramos aspectos do contexto onde estávamos nos inserindo, um evento de futuros(as) arquitetos(as) e urbanistas.
No primeiro encontro de pesquisa-composição, na presença de duas arquitetas que compõem o coletivo, começaram a surgir movimentos a partir de uma brincadeira que era medir, literalmente, umas às outras, usando réguas e trenas (Figura 2). Naquele momento, estes elementos faziam apenas uma alusão jocosa às práticas de medição comumente usadas na arquitetura, mas depois que a performance foi se desdobrando para ser apresentada em outros lugares, percebemos que a medição também estava intimamente atrelada às características limitadoras das danças tradicionalistas gaúchas, como pode ser conferido na citação a seguir sobre a Dança do Pezinho[7]:
[...] homens de um lado e mulheres de outro, separados cerca de 80 cm e inteiramente soltos. [...] O dançarino [homem e mulher] leva o pé direito à frente, de maneira que as pontas do pé de cada par quase se toquem. [...] O calcanhar fica preso ao solo, mas a meia planta se ergue para executar um movimento pendular, que começa pela direita. O pêndulo percorre um arco imaginário de 450 (CÔRTES; LESSA, 1997, p. 53-54).
A parte inicial da performance foi pensada para dar impressão de que iríamos realmente apresentar uma dança folclórica tradicional. Então, as bailarinas se colocavam no espaço cênico dispostas em duplas, uma de frente para a outra e uma de nós ia medindo, uma por uma, com a fita métrica, para verificar a largura de nossos sorrisos, a distância de nossos pés, fazendo menção à simetria perfeita buscada pelas danças gauchescas, além de exaltar a questão da felicidade e do sorriso que sempre deve estar presente nesse tipo de dança, especialmente nas “delicadas prendas” (Figura 2).
Figura 2 - Cena com as trenas e sorriso “largo” da prenda em (Con)tradição.
Foto: Bittencourt (2018a).
Para nós, as trenas são utilizadas de forma cômica, pois as formas de dançar do Manual são tão complexas que chegam a ser engraçadas, visto que cada pessoa pode acabar fazendo uma interpretação diferente delas. Além da questão das trenas, o que se desdobrou desta primeira experimentação foi a ideia de usarmos figurinos de dança tradicionalista gaúcha desconstruindo os papéis de gênero, característica fortemente conservadora, sob nosso ponto de vista, neste tipo de dança. No momento da criação daquela performance, havia somente mulheres compondo o coletivo e então decidimos que algumas de nós vestiriam roupas de prenda, outras o vestuário masculino e outras mesclariam peças do vestuário feminino com o do masculino (Figura 3).
Figura 3 - Figurinos de (con)tradição.
Foto: Bittencourt (2018b).
Inverter o vestuário foi uma ação singela frente a uma política que objetifica o corpo feminino, pois na cultura tradicionalista gaúcha se tem uma severa formatação visual que impõe, por meio da roupa, distinções heteronormativas e binaristas. A mulher se locomove com sutileza, usando pesadas camadas de roupa e saias volumosas. Tudo isso torna o movimento corporal difícil e há a necessidade de limitar - ou adaptar - a movimentação a partir do figurino. É interessante pontuar que essa crítica ao normativismo tradicionalista é incitada por sua formatação impositiva, que não abre espaços para a existência de outras formas de subjetividades. O gesto de usar roupas masculinas, ultrajando a designação imposta para o gênero feminino, faz alusão ao conceito de performatividade trabalhado por Judith Butler (2003, p. 211):
A repetição parodística do gênero denuncia também a ilusão de identidade de gênero como uma profundeza intratável e uma substância interna. Com efeito de uma performatividade sutil e politicamente imposta, o gênero é um ato, por assim dizer, que está aberto a cisões, sujeito a paródias de si mesmo, a autocríticas e àquelas exibições hiperbólicas do natural, que em seu exagero, revela seu status fundamentalmente fantasístico.
A partir dessa performatividade, buscamos suscitar o pensamento crítico acerca do tipo de lugar ocupado pela mulher dentro de um espaço tradicionalista. Utilizamos um pequeno fragmento do que esse conceito pode vir a representar, uma vez que nossas únicas “ações” masculinas eram estarmos vestidas com as roupas designadas aos homens, porém foi uma pequena mudança que fez com que saíssemos de nossas performances femininas diárias e vestíssemos atitudes consideradas masculinas. Porém, a questão do gênero e da subversão deste valor é mais ampla e vai além de uma simples veste, dando visibilidade à aceitabilidade e abertura para pessoas não-binárias - ou aquelas que transitam de gênero - dentro deste ambiente tradicionalista.
As questões machistas que se evidenciam e se refletem na sociedade gaúcha, especialmente nos ambientes tradicionalistas, foram tratadas por nós não só dando destaque às vestimentas, como também foram incluídas por meio de um trabalho com voz, onde falávamos a frase “tentaram nos apagar, mal sabiam que éramos sementes”. Esta frase foi vista por uma das performers em uma pichação nas ruas de Pelotas e incorporada por nós pela sua relação com a, então recente, morte de Marielle Franco. Marielle: mulher, negra e lésbica. Era vereadora na cidade do Rio de Janeiro e foi brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018. Lutava pelas causas feministas, raciais e de direitos humanos, principalmente vinculadas à guerra cotidiana envolvendo a polícia militar e as comunidades pobres e negras das favelas do Rio de Janeiro[8].
A questão de gênero e das limitações espaciais e culturais, medidas centímetro por centímetro, foram os dois principais motes de criação naquela ocasião. Dois aspectos que, de certa forma, provocam questionamentos naquelas envolvidas no meio das danças tradicionalistas ou mesmo daquelas que somente as conhecem de longe. Mas, para Ardenne (2002, p. 32), “toda experiência tem algo de provocação. E vem a provocar o que está sedimentado na ordem estabelecida. Perturba o que a ordem das coisas manda não atrapalhar, por tradição, preguiça ou estratégia”[9]. Assim, sabemos do terreno conservador e sedimentado pelo qual estamos caminhando.
Neste processo criativo percebemos a potencialidade da performance de criar territórios, fazendo com que por meio da arte possamos refletir sobre nossas próprias histórias e modos de ação cotidianos. Ao pensar sobre o lugar do corpo performático e que papel esse corpo assume no cenário atual, Tomazzoni (2013, p. 64) traz um pensamento que vai ao encontro do nosso:
Eis uma função que me interessa na arte: a de nos tirar do lugar, de tirar ideias e percepções das prateleiras, de provocar a aventura de descobrir que se pode vestir e desvestir o pensamento de muitas formas, de que se pode deslocar o imaginário com muitos meios. Talvez a bacana ideia seja pensar em um corpo performático não apenas como o corpo que se mostra, um corpo que se apresenta, um corpo que se espetaculariza, mas sim como o CORPO INVENTIVO, o CORPO INQUIETANTE, um corpo disposto a ocupar um lugar fora de lugar.
Assim, o tipo de arte que fazemos torna-se contraditório com aquela dança que estamos acostumadas a compreender como tradicional. Vestimos e desvestimos o corpo e o pensamento a partir das danças gauchescas com o intuito de inventar novos corpos e novos conceitos em nós. Valemo-nos da performance como uma fronteira que permite a criação de um território cambiante, como coloca Gomez-Peña (2005, p. 203, tradução nossa), “[...] a arte da performance é um ‘território’ conceitual com clima caprichoso e fronteiras móveis; um lugar onde a contradição, a ambiguidade e o paradoxo não são somente toleradas, como são estimuladas”[10]. Então, permitimo-nos sermos incoerentes.
Figura 4 - Cena final de (Con)tradição, onde tiramos nossos chapéus para a palavra Marielle, formada por roupas.
Foto: Bittencourt (2018c).
Em uma cidade do extremo sul do país, quase fronteira com o Uruguai, usamos ícones que remontam a ideia de cultura tradicional, como o uso das castanholas e dos chapéus (Figura 4), por exemplo. Misturando culturas em nosso grupo, cada uma com seu contexto, desde Goiânia até a Espanha[11] e tudo isso se encontrando em Pelotas, que também tem suas diferentes culturas. Cada uma de nós carrega vários traços de tradição e inovação, somos nossos contextos sociais e geográficos e, para uma das componentes do grupo, a goiana, o que fica visível é um pedaço muito pequeno deste vasto mundo pampeano. Ela entra no jogo do (Con)tradição e se despe de seus próprios pré-conceitos, enxergando mulheres que carregam este marco de identidade e, ainda assim, estão dispostas a encontrar suas contradições, para poder se repensar, criticar e brincar com a tradição permeada em parte de suas vivências.
Em nosso caso, a relação construída com o tradicionalismo gaúcho foi diferente da usual, tanto para quem não tem a vivência em tradicionalismo quanto para quem tem, corroborando com o que Guattari e Rolnik (1996, p. 47) colocam: “[...] a relação de um indivíduo com a música ou com a pintura pode acarretar um processo de percepção e de sensibilidade inteiramente novo”. E com essa nova sensibilidade, que acontece primeiramente em nós, que criamos (Con)tradição e podemos suscitar um olhar diferente sobre o tradicionalismo ao qual, performaticamente, remontamos. E se alguém da plateia por ventura tiver o marco da tradição gaúcha na sua história pessoal, este acesso pode fazer com que suas memórias fiquem balançadas pela possibilidade do novo, interagindo com a tradição também de forma paradoxal.
Inscrevemos Marielles, contraditoriamente, em nossos corpos brancos. E escrevemos Marielle, contraditoriamente, com nossas roupas tradicionalistas e que carregam uma cultura misógina e racista (Figura 4). Construir um fazer-performático dentro de uma perspectiva micropolítica nos possibilita transitar entre linguagens e buscar uma arte de resistência relacional, que funcione também no nível de subjetivação individual. Assim, “a revolução molecular consiste em produzir as condições não só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio, tanto no campo material, quanto no campo subjetivo” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 46). Desta forma, fazemos nossas revoluções nas fronteiras do que enxergamos em nós e daquilo que construímos e percebemos em relação com as outras.
As características de insurgência e ruptura que permeiam as ações do Caminhos da Dança na Rua, tendem a surtir um efeito de percepção ampliada em quem participa do processo. Em (Con)tradição falávamos sobre fronteiras, colocando nossas fronteiras pessoais também em questionamento. Ação necessária frente ao atual momento fascista em que estamos vivendo, na ameaça constante de um retorno de tempos conservadores[12], demonstrando a necessidade de colocar em cheque o que está dado frente às normatizações e balançar com os paradigmas ideológicos que involucram nossa visão de mundo.
Percebemos, com a criação da performance e com a criação desta escrita, um sentimento de dualidade. Por um lado, temos a consciência de que o tradicionalismo gaúcho desenvolve dimensões sensíveis em inúmeras invernadas artísticas e grupos de projeção de danças folclóricas. Por outro, percebemos nossas repetições de tradições, muitas vezes contrárias ao que acreditamos, para uma sociedade contemporânea mais democrática e justa para todos e todas. Por meio da comicidade e do exagero dos aspectos das danças tradicionalistas, deixamos nítidas as contradições carregadas pela própria dança.
Com esta intervenção, foi possível falar “igual (como todo cidadão ao que diz respeito à vida pública em um meio democrático) e de outra maneira (utilizando meios artísticos capazes de suscitar uma atenção mais aguda, mais singular que a que permite a linguagem social)”[13] (ARDENNE, 2002, p. 26, tradução nossa). Olhando para a realidade cultural do Rio Grande do Sul, mas mostrando aspectos de um tempo que já não cabe mais neste mundo contemporâneo, onde mulheres lutam diariamente para ocupar os mesmos espaços e garantir os mesmos direitos dos homens, desejados e medidos centímetro por centímetro.
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ODILLA, Fernanda. Por que especialistas veem 'onda conservadora' na América Latina após disputa no Brasil. Folha de São Paulo, Londres, 24 out. 2018. Mundo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/10/por-que-especialistas-veem-onda-conservadora-na-america-latina-apos-disputa-no-brasil.shtml. Acesso em: 04 nov. 2019.
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis: Vozes, 2006.
TOMAZZONI, Airton. Um corpo, uma bicicleta, um pensamento de dança. In: Instituto Festival de dança de Joinville. E por falar em… CORPO PERFORMÁTICO. Fazeres e dizeres na dança. Joinville: 2013, p. 61-65. In: SEMINÁRIOS DE DANÇA, 2012, Joinville. Anais [...]. Joinville: Instituto Festival de dança de Joinville, 2013. p. 80-88. Disponível em: http://www.ifdj.com.br/site/wp-content/uploads/2015/10/VI-Seminarios-de-Danca-E-por-falar-em...CORPO-PERFORMATICO_Varios-Autores.pdf. Acesso em: 01 nov. 2019.
[1] Parte da pesquisa foi apresentada em: HOFFMANN, Carmen; ALLEMAND, Débora; LESSA, Helena; LOPES, Sarah. (Con)tradição: transformações performáticas a partir de diferentes contextos. In: MICHELON, Francisca; BASTOS, Matheus (org.). Ações extensionistas e o diálogo com as comunidades Contemporâneas. Disponível em: http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/bitstream/prefix/4458/1/cole%c3%a7%c3%a3o%20extens%c3%a4o%20e%20sociedade%20n2.pdf? Acesso em: 16 nov. 2019.
[2] “[...] a performance é basicamente uma linguagem de experimentação, sem compromissos com a mídia, nem com uma expectativa de público e nem com uma ideologia engajada. Ideologicamente falando, existe uma identificação com o anarquismo que resgata a liberdade na criação, esta a força motriz da arte” (COHEN, 2002, p. 45).
[3] As autoras são da área da dança, sendo professoras e alunas de um curso de Licenciatura em Dança. Helena e Carmen já tiveram experiência com dança clássica, sendo que a segunda também teve experiência com danças tradicionalistas. Débora e Sarah se aproximam mais da performance e da dança contemporânea.
[4] Em 1947 foi instituído o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) e fundado o primeiro Centro de Tradições Gaúchas (CTG) no RS, o 35 CTG. O MTG foi considerado o primeiro grito de resistência em defesa das tradições gaúchas que repercutiu e reverberou em diversas instâncias, impulsionado pelo bombardeio cultural estrangeiro (BIANCALANA, 2014).
[5] Ver mais em: MIRANDA, Regina. Corpo-espaço: aspectos de uma geofilosofia do movimento. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
[6] A limitação se dava justamente por ser um espaço tradicional, com separação de artista e espectador(a) e que pouco incentivava o público à interação direta na performance.
[7] Dança muito conhecida e dançada no Rio Grande do Sul por envolver simples movimentação.
[8] O assassinato de Marielle foi um marco para o país, pois expôs fortemente a perseguição criminosa que muitos defensores de causas dos direitos humanos estavam sofrendo e vêm sofrendo cada vez mais após a eleição de 2018 no Brasil (MÍDIA NINJA, 2019).
[9] Tradução nossa. Citação original: “Toda experiencia tiene algo de provocación. Y viene a provocar lo que ha sedimentado el orden establecido. Perturba lo que el orden de las cosas manda no trastocar, por tradición, pereza o estrategia” (ARDENNE, 2002, p. 32).
[10] Citação original: “[...] el arte del performance es un “territorio” conceptual con clima caprichoso y fronteras cambiantes; un lugar donde la contradicción, la ambigüedad, y la paradoja no son sólo toleradas, sino estimuladas” (GOMEZ-PEÑA, 2005, p. 203).
[11] Uma das integrantes do grupo é espanhola.
[12] Ver mais em Odilla (2018).
[13] Citação original: “[...] igual (como todo ciudadano al que concierne la vida pública en un medio democrático) y de otra manera (utilizando medios de orden artístico capaces de suscitar una atención más aguda, más singular que la que permite el lenguaje social)” (ARDENNE, 2002, p. 26).