A mediação teatral com adolescentes no Pibid teatro UFMG
Theatrical mediation with teenagers in UFMG Pibid theatre
Ricardo Carvalho de Figueiredo
Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - ricaredo@yahoo.com.br - orcid.org/0000-0001-7106-3592
Mariana Azevedo
Professora de Teatro e Circo - marianaazevedoproducoes@gmail.com - orcid.org/0000-0002-8369-8920
Resumo
O presente relato de experiência é fruto de uma prática de ensino, a qual buscou aproximar um espetáculo teatral de adolescentes da Escola Municipal Aurélio Pires e os participantes do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) subprojeto Teatro, da Universidade Federal de Minas Gerais. Para tanto foi realizada uma curadoria de um espetáculo com uma temática/linguagem que poderia ser de interesse dos jovens. Após essa escolha, foi realizada uma preparação dos alunos para a ida ao teatro, a fruição do espetáculo e um desdobramento da proposta com a vinda de atores do grupo à escola, na concepção abordada por Desgranges (2008). Entende-se que há uma carência de espetáculos teatrais destinados ao público juvenil e é preciso criar oportunidades para a juventude usufruir do evento teatral, interferir e compor dramaturgias específicas. Compreende-se, também, que é função do professor de teatro promover a ida a eventos teatrais, a fim de promover o acesso dos estudantes aos bens culturais.
Palavras-chave: Pibid. Formação de professores. Teatro escolar. Teatro e juventude. Teatro na educação.
Abstract
The present experience report is the result of a teaching practice that sought to approach a theatrical spectacle of teenagers from the Aurélio Pires Municipal School and the participants of the Teaching Initiation Grant Program (Pibid) subproject Theater, of the Federal University of Minas Gerais. To this end, a show was curated with a theme/language that could be of interest to young people. After this choice, the students were prepared to go to the theater, enjoy the show, and unfold the proposal with the coming of actors from the group to school, in the conception addressed by Desgranges (2008). It is understood that there is a lack of theatrical performances aimed at young people and is necessary to create opportunities for young people to enjoy the theatrical event, interfere and compose specific dramaturgies. It is also understood that it is the role of the theater teacher to promote the going to theatrical events, in order to promote the access of students to cultural goods.
Keywords: Pibid. Teacher education. College drama. Youth and theater. Theater in education.
Recebido em: 05/08/2019
Aceito em: 11/10/2019
1 INTRODUÇÃO
Este relato de experiência foi escrito a partir de nossa experiência no Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), subprojeto Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais, nas condições de bolsista de graduação em Teatro e de coordenador. O foco do subprojeto foi a relação do ensino do teatro com adolescentes das séries do 6° ao 9° ano do Ensino Fundamental, e com isso, percebemos uma defasagem de produção teórico-prática em teatro, voltada para essa faixa etária.
Quando bolsista de graduação em Teatro, percebi que o teatro surgiu na minha infância e quando cheguei à fase da adolescência não conseguia encontrar espetáculos de meu interesse, os quais não fosse impedida de assistir, devido à classificação etária. Na condição de coordenador, temos orientado ações de ensino de teatro com as crianças e jovens da Educação Básica, porém damos pouca ênfase ao ato de levar os estudantes a apreciar espetáculos teatrais.
Logo, nossa intenção ao aproximar os jovens de um espetáculo teatral, por meio do trabalho de mediação, foi buscar grupos teatrais com espetáculos voltados para o adolescente, ou que se enquadrem em seus interesses, tais como as discussões de projetos de futuro, gênero, sexualidade entre outros. Para que dessa maneira fosse possível aprofundar o trabalho na perspectiva da formação do espectador, o qual nossa acepção se apoia nos dizeres de Falkembach e Ferreira (2012, p. 54): “individualidade do processo de espectar, diferente de quando falamos em público ou em plateia, pois, aí, nos referimos à coletividade anônima que compreende o grupo de espectadores que se relaciona com determinado espetáculo ou acontecimento em um espaço e tempo específicos”. Ou seja, interessava-nos a aproximação dos jovens estudantes, que possuem a disciplina de Teatro na escola, com um grupo de atores profissionais participantes de um espetáculo que incluísse os jovens em suas especificidades.
Assim, ao procurar espetáculos teatrais para que os jovens pudessem apreciar, nos deparamos ou com peças destinadas à criança ou com uma classificação etária para maiores de 18 anos. Estudos como os de Pupo (1991) e Falkembach e Ferreira (2012) falam de produções teatrais voltadas para a infância e que têm, em grande parte, o intuito de educar por meio do teatro. Desse modo, além de uma escassa produção teatral que receba o jovem no ato teatral, ao encontrá-la, qual seria o intuito dessa produção teatral?
Desde minha entrada enquanto coordenador do Pibid Teatro tenho buscado pensar na práxis formativa do professor da área por meio de uma consolidação e valorização do trabalho do docente em formação, além de um protagonismo da Licenciatura em Teatro, visto que há, ainda, diversos embates entre o bacharelado e a licenciatura dentro do próprio curso. Percebo que muitos dos professores de Teatro em formação vêm da iniciação teatral desde a adolescência, seja na escola ou em espaços diversos, como grupos de teatro amador, projetos sociais, escolas livres, entre outros.
O Pibid Teatro UFMG atua na Escola Municipal Aurélio Pires (EMAP), na cidade de Belo Horizonte, com jovens aproximadamente de 11 a 15 anos, com a primeira experiência formal de teatro a partir, principalmente, de nosso projeto. Ou seja, trata-se de uma iniciativa relevante e significativa proporcionar uma experimentação teatral que apresente ao jovem o teatro em suas diversas configurações nos dias de hoje.
Se a criança geralmente tende a participar das aulas de teatro com entusiasmo e grande aceitação, isso não ocorre da mesma forma com os adolescentes. Estes, curiosos e alheios a propostas que evidenciam o outro e a si na condição de protagonistas da aprendizagem, demonstram reações diversas aos encontros teatrais. É uma das características da juventude, tal como preconizado por Rappaport (2001), a negação, ao mesmo tempo em que a identificação com pares e grupos se mostra latente nesse período de vida. Assim, propor ações conectadas a temas que despertem interesse do jovem é importante. Ao mesmo tempo há a necessidade de respeitar cada individualidade, em razão de haverem tanto adolescentes que se colocam no discurso teatral de forma interessada e espontânea, quanto aqueles que apresentam resistências diversas, seja por timidez, negação ou desconfiança do conteúdo em questão. Estar atento às demandas vindas dos estudantes é de suma importância para o professor-condutor da proposta.
Nesse sentido, os bolsistas integrantes do Pibid Teatro são acompanhados pela professora supervisora, docente da instituição supracitada, a qual possui larga experiência no trabalho com adolescentes, além de ser a pessoa com autoridade para quaisquer questões apresentadas durante as aulas.
Temos buscado uma formação por imersão (ROLDÃO, 2007) para a consolidação da constituição docente e é por essa via que temos organizado o ensino-aprendizagem do teatro na escola. Partimos da premissa de que é na escola – produzida pelos sujeitos em suas múltiplas interações no cotidiano – que de fato há um aprendizado do que é ser professor. Para Roldão (2007, p. 40), “a formação inicial só será eficaz se transformar-se em formação em imersão, também transformadora dos contextos de trabalho, feita com as escolas, que, por um lado, coloque os futuros professores em situação que alimente o seu percurso de formação inicial”. Além das aulas de teatro que acontecem duas vezes por semana com as turmas, levamos os adolescentes a espetáculos teatrais para conhecerem o teatro enquanto obra, realizado por profissionais, e para possibilitar o acesso ao patrimônio cultural pertencente à sociedade.
A seguir trataremos de uma ação em que proporcionarmos o encontro dos jovens com um espetáculo profissional.
Procuramos estabelecer um paralelo entre a ação de mediação teatral desenvolvida entre os alunos da EMAP e o Grupo Oriundo de Teatro, com o espetáculo Escola de Heróis. Importante ressaltarmos que o Grupo Oriundo de Teatro é constituído por ex-alunos do curso de graduação em Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais e tem como princípio:
promover cultura para além de barreiras, falar com a mesma propriedade aos iniciados e não iniciados. Apresentar, entreter e, ainda assim, provocar. Abrir as portas e, de carro, a pé ou avião, ir aonde o povo está. Um Grupo que passeia, um Grupo que se arrisca para fora de qualquer zona de conforto e corre ao encontro de seu público. Mas um Grupo Oriundo de Teatro (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2013).
Para organizar as ações de mediação, nossa referência primeira foi o texto de Flávio Desgranges (2008), o qual trata da experiência do Projeto de Formação de Público desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Ressaltamos aqui a questão do “lugar” onde a mediação teatral acontece, que é entre a produção e a recepção teatral, considerada por alguns teóricos como “terceiro espaço”. (DESGRANGES, 2008). Logo, esse espaço “entre” o espetáculo e quem assiste, é o que podemos chamar de “experiência estética”, segundo vários autores, dada entre o objeto e o espectador. Pensar em uma formação ou uma pedagogia para o espectador é um tema recente para o teatro, já que, nesse caso, ou se está pensando na formação do artista da cena ou do aluno na educação. Portanto, nos interessa apresentar como realizamos uma proposta de mediação com os alunos que têm aulas de teatro com os pibidianos da UFMG.
A mediação visa a formação de público e/ou espectadores e contempla dois tipos de acesso. O primeiro é o acesso físico estabelecido por meio da viabilização da ida do público ao teatro. Koudela (2010) fala sobre o acesso físico no teatro e o coloca no plano da formação de público, porque nesse acesso permite-se atuar na questão da ampliação do número de frequentadores de teatro, criando o hábito de assistir teatro em uma parcela da população.
Pensando sobre a juventude e estudos com foco nos jovens, destacamos as visões de Pais (1996) e Groppo (2000), autores que dialogam com nossa perspectiva: o jovem é diverso e é um ser com sua própria história. Nesse sentido, o teatro pode ser um grande incentivador de projetos de futuro e perspectivas para jovens da periferia, apresentando-lhes uma profissão.
Em nossa proposta, os alunos da EMAP foram ao Teatro Marília, localizado na região central de Belo Horizonte, no dia 28 de junho de 2017, consolidando o acesso físico ao teatro. Tudo isso só foi possível devido ao planejamento, com etapas operacionais esquematizadas e realizadas com sete semanas de antecedência: contato com o grupo; agendamento do transporte com a Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Belo Horizonte, para o deslocamento dos discentes; providência das autorizações com os pais/responsáveis para os estudantes sairem do ambiente escolar; organização do lanche; eleição e colaboração de professores da escola para acompanhar os alunos e afinação da agenda da escola e do grupo teatral. Ou seja, existiu uma estrutura operacional para o acesso físico se concretizar, frente todas as ações apontadas.
O segundo acesso é o linguístico, que segundo Desgranges (2008), opera nos terrenos da linguagem e perpassa a constituição de um percurso relacional entre espectador e cena teatral. A finalidade do acesso linguístico é possibilitar uma autonomia crítica e criativa por meio de um percurso próprio de aproximação de elementos artísticos colocados em cena e os aspectos sensíveis e reflexivos provocados pela mesma. Também Koudela (2010) elucida o conceito de acesso linguístico que para a autora é a autonomia na interpretação dos signos e conquistada pela experiência sensível, dada pela construção pessoal de significados elaborada por cada espectador. Porém, é importante lembrar que o acesso linguístico precisa ser construído e que “o acesso aos bens simbólicos implica um processo de educação, focada na apreciação e leitura do espetáculo de teatro pelo espectador” (KOUDELA, 2010, p. 5).
É claro que se a experiência bastasse por si, um projeto de formação de espectadores se faria desnecessário. Seria então preciso apenas levá-los ao teatro e pronto, experiência vivenciada. A experiência é aspecto fundamental, mas ela precisa ser potencializada. Pois, não é apenas por presenciar a arte que a experenciamos, não basta presenciá-la para experienciá-la. O processo educativo está em despertar o espectador para a apreciação e o diálogo com a arte.
A experiência de ser espectador teatral, juntamente com ações que a potencializam, favorecem a apreciação. Isto acontece, por exemplo, ao estendermos a experiência para além do momento do evento, da peça em si, levando para a sala de aula propostas relacionadas com a obra.
Entendemos que os dois processos de formação são importantes e não se pode dizer que um é mais fácil que o outro, afinal lidar com políticas públicas, logísticas e custeio é sempre complexo. Contudo, o acesso simbólico implica em um processo de formação, educativo, lidando com outra esfera da mediação. Um projeto de formação de espectadores almeja inserir o espectador na história da cultura.
Estabelecemos ações anteriores e posteriores à ida ao teatro com os estudantes. Essas ações são intituladas por Desgranges (2008) como “ensaios de desmontagem”, sendo a ação anterior chamada de “ensaio de preparação” e a ação posterior, “ensaio de prolongamento”.
A partir dessa denominação, é possível analisar as ações planejadas de ensaio como “ensaio de preparação”, como instrumentos que serviram para auxiliar os alunos na leitura da cena, ou seja, na compreensão dos códigos teatrais e da estética abordada, trazendo a eles uma contextualização sobre o fazer teatral em si, sobre a temática do espetáculo Escola de Heróis, sobre os recursos cênicos utilizados pelos atores, tais como os bonecos, a sonoplastia ao vivo e as escolhas cênicas adotadas – assuntos retomados com mais consistência no ensaio de prolongamento realizado por meio de debate com os atores do Grupo Oriundo.
O espetáculo Escola de Heróis traz Dom Quixote, Dulcinéia e Sancho Pança, personagens míticos da literatura, para abordarem uma questão pertinente aos dias de hoje: é possível se formar um herói? Dom Quixote resolve montar uma escola para transmitir os seus conhecimentos e suas crenças acerca do que um verdadeiro herói precisa saber e como esse herói deve se portar. Personagens de locais e experiências distintas se matriculam naquela escola para aprender com o grande mestre. Nesse contexto, aparecem questionamentos e temas contemporâneos: tradição e tecnologia, o papel social da mulher, ambição, solidariedade, coragem, amizade, além da representatividade da morte.
É interessante ver como cada aluno apropriou-se e absorveu o que viu no espetáculo. Alguns atentaram mais para as questões relacionadas à estética, ao cenário, figurino, movimentação cênica, enquanto outros deram atenção ao enredo e às questões intrínsecas a ele, como a morte de Dom Quixote e a morte de MissMister, o contraponto entre a generosidade e a ambição, o tradicional e o inovador (considerações feitas pelo aluno L.G., oitavo ano). Cada aluno se apropria do espetáculo conforme suas vivências pessoais, sua personalidade. E para além disso, os ensaios de prolongamento se estabeleceram como provocadores de uma interpretação pessoal, de uma visão crítica e criativa da cena por oferecer elementos que corroboram na elucidação de aspectos apresentados nos espetáculos mediados.
O ensaio de preparação foi realizado no dia 20 de junho na EMAP, onde fizemos uma roda de conversas sobre questões inerentes ao fazer teatral, desde a concepção e produção até o encontro com o público. Logo em seguida propiciamos uma contextualização da obra Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, para que os alunos pudessem compreender quem são os personagens extraídos da obra original e qual era o contexto em que estavam inseridos. Falamos sobre adaptação, apropriação e sobre as circunstâncias gerais do espetáculo Escola de Heróis. Os alunos também criaram perguntas direcionadas aos atores na ação posterior à fruição do espetáculo.
O ensaio de prolongamento foi realizado no dia 05 de julho, também na EMAP. Houve alteração no cronograma, devido à disponibilidade do Grupo Oriundo em ir à escola realizar o debate, o qual ficou pendente no dia da apresentação, por questões de logística dos ônibus e horário de saída dos escolares.
Dois dos atores do grupo estiveram presentes na escola e, por sugestão da professora supervisora do Pibid Teatro, foi feito um convite aos alunos que realmente gostariam de participar do debate. Tivemos a adesão aproximada de quarenta estudantes, dos sessenta que haviam ido ao espetáculo. Alteramos a disposição das cadeiras, colocando em formato atores de um lado e plateia de outro, pois já configurava a relação frontal da qual o espetáculo foi concebido originalmente.
O debate teve como ponto de partida as questões elaboradas previamente pelos alunos, mas não se ateve somente a elas, deixando aberto a questionamentos surgidos no decorrer da conversa, já que um comentário suscitava outro. Os atores falaram brevemente sobre a trajetória do grupo, sua configuração inicial e a inserção de novos membros, especificamente a entrada da atriz Isabela, que ocorreu algum tempo depois da fundação do Oriundo e se estabeleceu de uma maneira fundamental dentro da gestão interna do mesmo. Enedson, um dos atores do espetáculo, falou sobre questões da produção dos espetáculos, na qual os atores se dividem em funções conforme identificação pessoal ou demanda. Falou que sua função preferida no grupo é atuar, mas que enxerga o quanto as outras funções são necessárias, não somente por uma questão logística, mas por proporcionarem grande crescimento dos atores enquanto artistas.
A organização dos grupos teatrais contemporâneos frequentemente tem se apropriado dessa configuração coletiva. Se em tempos anteriores o ator podia se ater apenas ao seu trabalho na atuação, percebemos que desde o movimento da criação coletiva (FIGUEIREDO, 2007) e o contexto político que se modificou, os grupos têm atores que além de seu trabalho específico, lidam com as outras esferas da encenação, desde a escrita do projeto para envio às leis de fomento, à manutenção do coletivo, produção, iluminação etc.
Quando questionados sobre a escolha dos bonecos em cena, os atores relataram que, a princípio, foi devido à grande quantidade de personagens, em relação ao número de atores, mas que posteriormente se tornou uma questão estética. O grupo não tinha experiência com bonecos e foi necessário um treinamento de manipulação ministrado por Liz Schrickte, especialista da área. Como foram objetos confeccionados por outro grupo, o Pigmaleão Escultura Que Mexe, também de Belo Horizonte, os atores contam que se assustaram quando chegava um novo boneco. Um exemplo foi a chegada do boneco de Sancho Pança ocorrida a poucos dias da estreia da peça, antes a a atriz tinha um boneco improvisado.
É interessante perceber que meandros do fazer teatral foram desvelados com a presença de membros do grupo em uma conversa com os adolescentes. O diálogo, além de possibilitar um contato mais próximo entre artista e adolescentes, desmistificou a noção de talento, mostrando que para o erguimento de um espetáculo é necessário dedicação, trabalho e pesquisa dos envolvidos.
Falaram também que o texto escrito por Antônio Hildebrando não foi uma adaptação do clássico Dom Quixote de Miguel de Cervantes. Ele criou um contexto para os três personagens: Dom Quixote, Sancho Pança e Dulcinéia, trazendo um novo colorido, sem perder o que considera a essência do texto original, perpassando questões sobre a essência do verdadeiro herói, ou seja, ele desenvolveu uma apropriação[1] do texto de Cervantes.
A escolha dos personagens também fio um questionamento feito pelos adolescentes. Considerando que Sancho Pança foi interpretado por uma mulher, a atriz Isabela, e que a Dulcinéia foi interpretada por um homem, o ator Ítalo, soubemos por relato dos membros do grupo que a escolha partiu dos próprios atores, por escolherem se distanciarem de um lugar comum. Segundo Isabela, o maior desafio foi a questão vocal, pois muitas vezes se via transitando em registros que não se enquadravam no personagem, mas com os ensaios e o treinamento vocal foi possível encontrar a voz do personagem Sancho. Por outro lado, Ítalo no papel de Dulcinéia, estabeleceu um registro vocal que confundiu muitos adolescentes enquanto assistiam ao espetáculo e se perguntavam se era um ator ou uma atriz que fazia o papel. A aluna Y.K., de 14 anos, relatou ter achado bastante interessante a proposta do Grupo Oriundo e que no teatro os atores podem escolher interpretar o que quiserem e que isso não tem a ver com a identidade de gênero do ator ou da atriz. Outra aluna E.G., também de 14 anos, relatou ter percebido que há muito preconceito em relação a questões referentes à identidade de gênero e afirmou que as pessoas são diferentes e ao mesmo tempo são iguais, trazendo à tona a questão do respeito às singularidades. O aluno, D.N., de 16 anos, falou sobre o preconceito da sociedade a respeito da temática e de como há uma imposição de gênero e de formas de agir, se vestir e se relacionar, sobre a dificuldade da pessoa que não se enquadra nos moldes pré-estabelecidos em romper tudo o que o meio social impõe como forma “correta” de se identificar com um ou outro gênero.
É interessante observar como as escolhas, desde a concepção até a montagem de um espetáculo teatral, geram leituras e essas podem se estabelecer como provocadoras de reflexões importantes, como foi o caso dos personagens Dulcinéia e Sancho.
A partir dessas escolhas em relação às personagens e de questões colocadas no texto espetacular, considerando-se o contexto da Espanha no século XII e do Brasil no século XXI, questionamos os alunos sobre qual seria o papel da mulher em cada uma das sociedades. Um grupo de alunas chegou à conclusão de que no primeiro contexto a mulher era essencialmente “do lar” e na atualidade a mulher é “o que ela quiser ser, inclusive do lar”. A fala das jovens nos remete a importância do teatro enquanto propulsor de pensamento crítico e todos os desdobramentos que isso pode proporcionar na condição juvenil. Um questionamento levado à cena pode provocar muitas respostas a questões mais amplas e construções sociais arraigadas em nossa sociedade.
Os atores falaram também sobre as questões que os afligem antes de uma apresentação, tais como o frio na barriga e a vontade de desistir. Mas falaram também do quanto é prazeroso estar em cena, depois de passar por esse momento prévio de aflição. Os alunos se identificaram com os atores por estabelecerem conexões com os seus próprios sentimentos quando realizam apresentações teatrais nas ações realizadas pelo Pibid dentro e fora da escola.
É necessário promover a ida ao teatro, enquanto complemento da ação de ensino do Teatro na escola. Participar dessas aulas na escola e ter a oportunidade de assistir a um espetáculo profissional, em um edifício teatral, complementa a atividade artística, aproximando o estudante do teatro enquanto espetáculo.
A importância de proporcionar aos jovens de bairros periféricos a possibilidade de frequentar espaços públicos no centro da cidade, reforça o fato de que nós, enquanto professores de Teatro, devemos oportunizar e criar parcerias para os alunos terem outras referências estéticas e convívio em sociedade. Além de reafirmar para as políticas educacionais que o acesso aos bens culturais é direito de todos e quanto mais ampliarmos as referências estéticas para os nossos estudantes, mais poderão estar mais abertos ao diálogo, à diferença e a convivência com outros modos de ser e estar em sociedade.
Para isso ocorrer de forma efetiva é necessário ao professor de Teatro compreender que o seu papel transcende a sala de aula, bem com o papel do próprio teatro transcende o espetáculo teatral. O teatro pode funcionar como um gerador de pensamento crítico e despertar identificação por parte dos jovens, como ocorreu com a questão da identidade de gênero abordada em alguma medida no espetáculo Escola de Heróis. A temática, a estética e a pluralidade existente na encenação teatral podem transformar a visão dos jovens e/ou potencializar os seus ideais no sentido de afirmação enquanto indivíduo.
Ao atuarmos no processo de mediação teatral foi possível compreender aspectos relacionados tanto ao acesso físico, quanto ao acesso simbólico e, para além, presenciar um pouco de como se estabelece a multiplicidade e a pluralidade juvenil em relação ao meio social e em relação ao evento teatral propriamente dito, desde o ensaio de preparação, a fruição, e ao ensaio de prolongamento.
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[1] Segundo Carvalho (2013) a apropriação é uma recriação que se afasta da fonte original.