O primitivo flerta com o moderno: encontros amorosos nos filmes de Carmen Miranda no contexto da Boa Vizinhança

The primitive flirts with the modern: encounters in Carmen Miranda's films in the context of the Good Neighborhood

Káritha Bernardo de Macedo

Doutoranda em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Professora do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) – karitha23@gmail.com – orcid.org/0000-0002-9583-5590

Mara Rúbia Sant´Anna

Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) – sant.anna.udesc@gmail.com – orcid.org/0000-0002-9101-5800

Resumo

Este trabalho debate e relaciona três cenas referentes aos três primeiros filmes de Carmen Miranda nos Estados Unidos, Serenata Tropical (Down Argentine Way, 1940), Uma noite no Rio (That Night in Rio, 1941) e Aconteceu em Havana (Week-End in Havana, 1941). O objetivo é discutir como os cenários das cenas escolhidas dialogam entre si, estabelecendo na narrativa cinematográfica uma forte dualidade entre moderno e civilizado versus atrasado, agrário e selvagem, como representações das relações entre Estados Unidos e América Latina no contexto da Política da Boa Vizinhança.

Palavras-chave: Sociedades primitivas. Sociedades modernas. Carmen Miranda. Cinema.

Abstract

This paper discusses and relates three scenes regarding the first three Carmen Miranda films in the United States, Down Argentine Way (1940), That Night in Rio (1941 and Week- End in Havana (1941). The goal is to discuss how the sceneries of the chosen scenes dialogue, establishing in the cinematographic narrative a strong duality between modern and civilized versus delay, agrarian and savage, as representations of the relations between the United States and Latin America in the context of Good Neighbor Policy.

Keywords: Primitive society. Modern society. Carmen Miranda. Cinema.

 

Recebido em: 18/11/2018

Aceito em: 25/05/2019

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho debate e relaciona três cenas referentes aos três primeiros filmes de Carmen Miranda nos Estados Unidos, Serenata Tropical (Down Argentine Way, 1940), Uma noite no Rio (That Night in Rio, 1941) e Aconteceu em Havana (Week-End in Havana, 1941). O objetivo é discutir como os cenários das cenas escolhidas dialogam entre si, estabelecendo na narrativa cinematográfica uma forte dualidade entre moderno e civilizado versus atrasado, agrário e selvagem, como representações das relações entre Estados Unidos e América Latina no contexto da Política da Boa Vizinha.

Este artigo é um extrato adaptado da dissertação “Carmen Miranda em Hollywood: filmes para uma Boa Vizinhança”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade de do Estado de Santa Catarina. A pesquisa de dissertação teve como objetivo analisar como os filmes de Carmen Miranda, produzidos pela Twentieth Century-Fox entre 1940 e 1945 nos Estados Unidos, contribuíram com a construção simbólica de uma “identificação” cultural latino-americana sob o olhar estadunidense, questionando em que medida as narrativas cinematográficas sobre a América Latina correspondiam a uma estratégia de poder dos Estados Unidos sobre a mesma. Cabe anotar que a produção destes filmes se liga a uma etapa da Política da Boa Vizinhança de intensa aproximação com os países da latino-americanos, pautada por uma abordagem cultural que visava convencê-los da capacidade de liderança dos Estados Unidos, bem como, da superioridade do American way of life, junto com todos os produtos associados a ele.

Em 1939, Carmen Miranda sai do Brasil para atuar na Broadway, nos Estados Unidos. Seu contrato é inicialmente com o poderoso produtor Lee Shubert, que junto com seu irmão praticamente dominava a Broadway e desde que Roosevelt havia anunciado a Boa Vizinhança, talentos latino-americanos proliferam nos Estados Unidos e em seus shows (MENDONÇA, 1999). A estreia de Carmen Miranda com a revista Streets of Paris causou comoção no país e sua performance fez um grande sucesso que se alastrou pelas mídias. As notícias de jornais e revistas, ao mesmo tempo em que elogiavam sua atuação no palco e sua sensualidade, transcreviam seu sotaque e os erros que cometia ao falar como parte daquele show, o que adicionava graça à personagem (MENDONÇA, 1999).

Carmen Miranda logo atraiu a indústria cinematográfica hollywoodiana e no ano seguinte a sua chegada no país, em 1940, fez seu primeiro filme na Twentieth Century Fox, Serenata Tropical. Sua ligação com o estúdio durou até 1945, quando a Política da Boa Vizinhança teve fim e a Fox aceitou que a artista comprasse seu contrato. Dentre os filmes com temáticas latino-americanas, misturava-se “modas, tendências e o desconhecimento das especificidades de cada país retratado, inventando uma América Latina, que, muitas vezes risível, findou por atuar como modelo pelo qual os latinos podiam entender a si mesmos” (MENEGUELLO, 1992, p. 8). Os Estados Unidos queriam apresentar-se como um país voltado ao progresso, competente e economicamente estável. Por sua vez, o cinema veiculava essa imagem que os grupos hegemônicos do país oniricamente ilustravam para si, projetando o desejo pelo sonho americano (SHOHAT, STAM, 2006).

2 MATERIAIS E MÉTODOS

Os filmes da Twentieth Century-Fox em que Carmen Miranda atuou nesse período são compreendidos como instrumentais dessa política e, portanto, são tomados como fontes documentais e objeto da pesquisa. Procurou-se operar com uma metodologia de análise mista, que agrega elementos das teorias de Cinema às abordagens do campo da História e do tratamento de fontes imagéticas, uma vez que se quer decifrar quais discursos e construções simbólicas de identidade ou identificações estão presentes nas imagens cinematográficas.

Para se chegar a uma interpretação do conjunto dos filmes no contexto da Boa Vizinhança ou a uma retórica geral, tal qual recomenda Martine Joly (2007), os filmes foram considerados sinédoques[1], que por sua vez, são internamente formados por outros fragmentos, as cenas. Como critério metodológico, a compreensão do todo foi realizada a partir da análise de seus fragmentos, por meio de séries que servem de vetores para a discussão visada (MENESES, 2003). Após uma análise geral de cada filme, pelo seu cotejamento percebeu-se o predomínio de eixos temáticos centrais relacionados transversalmente à problemática da pesquisa e às expectativas da Política da Boa Vizinhança.

Assim, das nove produções[2] realizadas pela Fox, chegou-se a compreensão de que os filmes Serenata Tropical, Uma Noite no Rio e Aconteceu em Havana, poderiam ser agrupados sob o eixo temático “Espaços Latino-Americanos”, tornando-se objeto de análise deste artigo. Os filmes foram reunidos porque seus títulos originais e ambientações evocam especificamente leituras de cidades latino-americanas, especificamente, Buenos Aires, Rio de Janeiro e Havana, sob a intenção de representar seu país e também a América Latina, promovendo uma sinédoque da região alimentada a cada novo filme lançado. Outro motivo, são os encontros físicos, sociais e românticos entre Estados Unidos e América Latina, identificados como pontos centrais das tramas e dominantes das narrativas. Nos filmes selecionados, as cidades não são apenas um pano de fundo para as histórias de amor, mas atuam como protagonistas do enredo. Bianca Freire-Medeiros (2002) argumenta que as cidades eram representadas como verdadeiras entidades, sexualmente determinadas pelo feminino, por sua primitividade e racionalmente inferiores, características que se aderiam aos seus sujeitos.

Para a análise interna dos filmes, escolheu-se trabalhar com as propostas de Aumont e Marie (2009), por meio das etapas da descrição, segmentação, interpretação e realização de microanálises (ou análise de fragmentos do filme). A análise do fragmento tem a preocupação de focalizar um pormenor ao mesmo tempo em que é a metonímia de uma ação maior (AUMONT; MARIE, 2009), e que neste estudo não se trata simplesmente dos filmes individualmente, mas da significação do conjunto dessas obras e a encenação da sociedade que produzem. Essa operação é melhor executada em filmes do cinema clássico do que em filmes modernistas ou experimentais.

Inicialmente, foram realizadas análises gerais dos filmes para entender seu sentido intrínseco. A partir da descrição e decomposição mais abrangentes, propôs-se uma interpretação para cada filme, da qual se extraiu suas temáticas principais. Pôde-se perceber que os filmes se sustentam por relações de dualidade que definem Estados Unidos e América Latina, ambivalentemente como contrários e complementares. Nessa dinâmica, coloca-se de um lado a racionalidade, a modernidade e a competência, entendidas como características masculinas e inerentes aos Estados Unidos, e do outro a irracionalidade, a primitividade, o atraso e a incompetência, relegados a uma percepção do feminino e estendida à América Latina.

Percebeu-se que cada um dos filmes enfatiza um par de dualidades, contudo, elas se repetem e são recorrentes em todos: Serenata Tropical enfatiza a dualidade entre moderno e civilizado versus atrasado, agrário e selvagem por meio dos cenários; Uma Noite no Rio enfatiza a dualidade entre racionalidade, competência versus irracionalidade, incompetência abordada pelo viés dos personagens; e Aconteceu em Havana enfatiza a dualidade entre trabalho versus prazer, romance a partir dos espaços. Uma vez que os estadunidenses são os enunciadores dessas narrativas, eles se reconhecem como o “Eu” (ou o “Mesmo”), portador de uma lógica masculinizada, na medida em que caracterizam os latino-americanos como o “Outro”, seu contraponto regido por uma lógica feminilizada. Por isso, promovem a aproximação entre América Latina e Estados Unidos por meio de encontros amorosos.

Assim, parte-se para a discussão da dualidade entre moderno e civilizado versus atrasado, agrário e selvagem, analisada nos cenários de cenas selecionadas das três películas, de modo a questionar como os personagens se constituem dentro desses espaços, como sua natureza se funde às ambientações e quais simbolismos se estabelecem nesse universo. As cenas foram priorizadas de acordo com as discussões trabalhadas, conforme o tratamento das fontes imagéticas por séries, o que não impede o despertar de outras temáticas e debates.

Supondo que há uma comunicação entre os filmes, foram analisadas as possíveis intertextualidades e interconicidades, de que forma um filme cita o outro e, consequente, segundo o conceito de citacionalidade (DERRIDA, 1991), opera uma citação distorcida da própria América Latina, na medida em que a repetição institui tais elementos como signos da identidade latino-americana proposta.

3 UMA SERENATA TROPICAL NA ARGENTINA?

A primeira cena de Serenata Tropical analisada, tem início por volta dos vinte e oito minutos de filme e acompanha a protagonista, Glenda Crawford (interpretada por Betty Grable), em sua primeira noite na capital. Glenda decide desfrutar a noite portenha com um guia argentino de moral questionável e visita dois clubes. Secretamente, a jovem estadunidense está à procura de Ricardo Quintana (interpretado por Don Ameche), por quem havia se enamorado nos Estados Unidos. A primeira parada é no clube Rendezvous, cujo nome é altamente sugestivo, pois a palavra originária do francês é muito usada em inglês para indicar um encontro com hora e local marcados, frequentemente, no sentido romântico. Contudo, o encontro esperado entre Glenda e Ricardo não acontece, porque Glenda ainda não está preparada para libertar suas emoções e se entregar a América Latina. A festa parece uma improvisação realizada no pátio de uma casa colonial, um ambiente intimista à luz do luar, contornado por árvores e folhagens que fazem sombra sobre os artistas e clientes. Sob a lupa hollywoodiana, o cabaré ao ar livre propõe uma introdução do que a região teria de mais peculiar e convida Glenda a uma transformação.

Glenda fica fascinada com um casal que dança com maestria, o que os personagens chamam de uma verdadeira conga, ritmo equivocadamente designado à Argentina. A grande surpresa para Glenda e para o público, é que o casal não era argentino, mas de Siracuse (NY-Estados Unidos) (SERENATA, 1940, 00:36:26). A mensagem intrínseca a esta cena é que não apenas a união entre Estados Unidos e América Latina é possível, mas que os estadunidenses podem aprimorar as criações dos latino-americanos[3], tal qual uma dança supostamente popular no país. O clube é um rito de passagem, na medida em que a jovem percebe que também poderia fazer parte daquele universo através da música e dança sem perder sua identidade, especialmente depois de perceber que outros estadunidenses já haviam se conectado ao meio.

Com essa convicção, a loira curvilínea e seu guia seguem para o clube El Tigre[4] (O Tigre), onde finalmente os dois protagonistas, Glenda e Ricardo - Estados Unidos e América Latina - se encontrariam, mediados pelo espaço do cabaré. Momentos antes de chegar ao clube, outro voraz felino é mencionado. Quando Glenda está prestes a sair pela cidade está usando um elegante vestido de baile cinza com paetês prata e um volumoso casaco de pele, extrai de sua tia Binnie (interpretada por Charlotte Greenwood) o audacioso comentário que a compara a um leopardo faminto. Na arena do El Tigre, Glenda assume o papel de felina, ela toma iniciativa e retoma as negociações de seu relacionamento com Ricardo. Assim, vai à caça do argentino, assumindo seu lado selvagem e primitivo em nome de seus interesses e mostrando que pode se identificar com a América Latina narrada por Hollywood.

A entrada do clube parece uma modesta residência domiciliar imersa em uma floresta, à primeira vista, poderia ser uma repetição do clube anteriormente visitado por Glenda, com motivos coloniais e projetando nas plantas uma imagem de tropicalidade. A fachada é de madeira com grandes portas de vidro na entrada, jateado com desenhos da pele de um tigre de bengala; folhagens recaem do telhado ao chão, encontrando-se com outra profusão de plantas; há ainda uma baixa cerca viva com folhagens e flores na frente. Exatamente no centro da imagem de um plano geral da entrada, um luminoso anuncia em inglês a presença de “Carmen Miranda, Brazilian Sensation”, promovendo com seu nome a convergência do cenário exótico e selvagem, sugerido também pelo nome do clube (SERENATA, 1940, 00:38:04).

O arranjo criava uma intertextualidade com a comoção que vinha acontecendo nos clubes da Broadway, os quais apresentavam revistas musicais estreladas por Carmen Miranda, a exemplo da recepção estadunidense de Streets of Paris (1939-1940) e, posteriormente ao filme, em Sons o’ Fun (1941-1943). O guia turístico de Glenda, o supostamente argentino, Tito Acuna (interpretado por Leonid Kinskey), frisa: “desde que Carmen Miranda chegou ali, ninguém mais consegue entrar”, implicando que Carmen Miranda é a grande atração do clube e por isso está sempre lotado. Sua participação fez do clube um espaço para clientes selecionados e exclusivos, de difícil acesso, mas o guia argentino com sua “malandragem” consegue colocar a estadunidense junto ao público privilegiado por meio de seus contatos, que no filme torna-se uma marca da maneira latino-americana de fazer negócios. Quando os personagens entram no estabelecimento, seu interior diverge drasticamente da parte externa, causando a impressão de se estar em outro lugar. A parte interna é requintada e bastante ampla, observando-se três ambientes demarcados, o palco, o salão e o bar.

O palco é a primeira imagem visível ao entrar no clube, ele identifica um espaço performático latino-americano e está visivelmente separado do salão. Uma pequena mureta branca marca a primeira divisão, recuando um pouco mais, há uma grande parede com um arco no centro que emoldura a performance de Carmen Miranda e do Bando da Lua (sua banda de acompanhamento que levou do Brasil), sustentando a cortina que determina o começo e o fim da participação dos artistas. No interior desse espaço, configura-se a América Latina e seus personagens. A confusa presença da luso-brasileira desde a primeira cena é primordialmente um indicativo da forma pasteurizada e indistinta, de acordo com a visão dos Estados Unidos em relação à América Latina. Por outro lado, ela estrategicamente orientava o público desde o início do filme a uma desterritorialização de Buenos Aires, da Argentina e das demais regiões que ali se encontram de algum modo referenciadas. Isso tudo, em benefício do discurso estadunidense que visava atingir de forma múltipla os países da América Latina.

A performance de Carmen Miranda em Serenata Tropical, confirma o modelo de representação relegada aos latino-americanos à função de entretenimento dos estadunidenses. Pois, o plano de conjunto revela que Carmen Miranda esteve no palco do clube El Tigre desde a primeira performance. O cenário é o mesmo da abertura do filme, mas dessa vez, contemplando a plateia e seus aplausos. Agora o público é mostrado em suas mesas e o espaço do cabaré se divide, reafirmando Carmen em seu papel de entertainer.

Carmen Miranda fica no centro do palco, enquanto os músicos do Bando da Lua posicionam-se ao seu redor formando um semicírculo e junto com o miudinho de Carmen, referenciam as rodas de samba brasileiras. Essa é a segunda baiana de Carmen Miranda no cinema, mas a primeira no universo hollywoodiano. Seu figurino e a performance ainda estão ligadas ao modelo brasileiro inaugurado no filme Banana da Terra (1939), porém, a nova versão deixa o corpo mais à mostra, seus ombros, colo e abdômen estão mais expostos e as aberturas triangulares que descem da cintura da saia em direção ao ventre assentem uma maior sensualização da personagem. No lugar da cestinha de frutas na cabeça, o turbante tem grandes flores vermelhas muitos parecidas com as utilizadas em decoração de Natal[5]. A predominância do vermelho e do dourado no figurino de Carmen, a forma das pedras e os pingentes que compõem seus colares e pulseiras, retomam uma alusão ao México já presente no cenário. Sua roupa tropicalizada que expõe o corpo, contrasta com as mangas longas propícias a climas mais amenos usadas pelo Bando da Lua e pelos personagens principais, contrapondo-se principalmente com a pele e os casacos pesados usados pela dupla de turistas estadunidenses.

 Figura 1 - Carmen Miranda no Clube El Tigre, em Serenata Tropical.

Fonte: Serenata (1940).

 O figurino do Bando da Lua realça a confusão de referências culturais e a desterritorialização que se configura, o lenço no pescoço é uma tentativa de caracterizar o gaúcho argentino, mas a camisa de mangas bufantes e a calça de cintura alta remetem às imprecisas noções das ilhas caribenhas. Os personagens estão distribuídos despojadamente de diferentes maneiras. A posição dos integrantes do Bando da Lua, recostados nos muros ou sentados relaxadamente, vai ao encontro da ideia de preguiça cultivada para os latino-americanos desde o século XIX. O ambiente do palco é pequeno, fechado e remete a um passado colonial, predominam cores quentes como o vermelho e o dourado de Carmen, recobertos pelo céu róseo.

O salão por outro lado, tem um aspecto amplo e moderno, o qual contrasta com a frente do clube e com o placo, privilegiando as cores frias como o azul e organizando seus personagens simetricamente em suas mesas. Todos têm essencialmente os mesmos gestos e a mesma postura disciplinada, estão sentados e sendo entretidos pelo espetáculo latino-americano. Essa parte do cenário acomoda uma outra classe, não assemelhada aos latino-americanos apresentados na obra. Contudo, tal ambiente e seu público conectam-se ao salão de Nova York frequentado pela elite local, introduzido no primeiro encontro entre Glenda e Ricardo, com a diferença que no cabaré El Tigre se pode ver o céu até mesmo de dentro do clube, através das janelas. Dentro das ficções da Fox, todos os salões por onde Carmen Miranda “arrastava seus vestidos de paetês”, “eram civilizadamente hollywoodianos (...). Chama a atenção a homogeneização forçada, pois estejam eles em Nova York, Rio de Janeiro ou Buenos Aires, são idênticos” (MENDONÇA, 1999, p. 98).

Figura 2 - Clube El Tigre, em Serenata Tropical.

 

Fonte: Serenata (1940).

 No último plano, na lateral do palco do El Tigre, uma grande parede de vidro ganha a coloração fria do azul noturno, ela é cortada na frente por uma longa passarela adornada de uma sinuosa mureta branca, que contorna o salão até chegar ao patamar superior, convergindo-se com o hall de entrada. Esta estrutura atualiza o modelo arquitetônico atribuído ao segmento latino-americano, baseado nos arcos e no concreto branco, e promove a recepção em grande estilo da elite estadunidense, introduzida no clube por meio da personagem Glenda.

Quando Glenda adentra o El Tigre, todo o público está a bater palmas para a performance musical de Carmen Miranda, mas nesse momento a imagem não está na cantora. A câmera circunda o clube em um travelling finalizando seu foco na jovem estadunidense que cruza o portal de entrada. A loira para imponente no patamar superior ao público e sorri para seu acompanhante, que também bate algumas palmas, como se todos os aplausos fossem para ela. Nessa cena, seu vestido de paetês refletindo a iluminação do ambiente, cria uma aura de luz sobre a moça que realça sua presença, equiparando-a à estrela do espetáculo. Fica um lembrete de que aquele é um espaço estadunidense, temporariamente concedido aos latino-americanos. Entretanto, satiricamente, o garçom do estabelecimento logo os corrige e pede que façam silêncio com um sinal de dedo nos lábios, ressalvando: “ssshhh, Carmen Miranda”. O número da artista era respeitado no clube e aquela era a sua vez de brilhar.

Esta cena particular, congrega dinâmicas repetidas ao longo do filme, sobretudo, destaca-se agora a paleta cromática. Bastante significativa, as cores sobressalentes no cenário são azul, rosa e branco, com menor intensidade, há vermelho, dourado que deriva do amarelo, preto e verde. O azul celeste, o branco e um amarelo pontual são indicativos das cores da bandeira da Argentina, já o azul mais forte, o vermelho e o branco, são as cores da bandeira dos Estados Unidos. A cor rosa nada mais é que o vermelho romantizado pelo rebaixamento da cor, ou seja, adicionado de branco. Quando temos o encontro de azul e rosa na ambiência do cabaré, está representada a coexistência harmoniosa dos dois países e as possibilidades de uma integração. As nacionalidades mergulham umas nas outras, contudo, dentro daqueles termos que estabelecem uma hierarquização. O verde, não obstante, é a cor que imediatamente remete à natureza e às folhagens tropicais, lembradas na fachada do El Tigre.

O terceiro setor do ambiente só é revelado ao público espectador, quando Glenda avista no outro lado do elegante salão, o homem que lhe havia desapontado sentado ao bar. Lá estava Ricardo Quintana. Novamente ao som dos aplausos para a performance de Carmen Miranda, que havia acabado de cantar a marcha Mamãe Eu Quero e a embolada Bambu Bambu, a estadunidense se levanta da mesa e caminha decididamente até o argentino. Ricardo está sentado ao bar, coberto de sombras e próximo de outros cavalheiros da elite argentina vestidos em smokings.

É um ambiente masculino e composto em tons escurecidos, todavia, sem fugir do esquema cromático estabelecido. O bar possui uma bancada azul marinho e uma cortina branca acinzentada ao fundo, que rapidamente são desfocados, pois a câmera inverte sua posição e passa a focalizar Ricardo e Glenda pelo lado de dentro do bar. Ao passo que a câmera se movimenta, o argentino e a estadunidense são emoldurados ao fundo pelo cenário do cabaré e seus diferentes setores, realçando os cristais do bar e o movimento dos garçons e dos músicos. Quando a imagem finalmente estaciona em primeiro plano nos protagonistas, é o cenário da hacienda (fazenda) latino-americana no palco que enquadra o encontro entre os protagonistas. Conforme os personagens se aproximam e o clima de sedução se estabelece, o cenário muda.

Envolvidos pelo romântico céu rosa no último plano, o rosto e os sedutores lábios rubros de Glenda são evidenciados enquanto ela explica porque veio à Argentina, ela está a negócios e quer novos cavalos. A jovem fala com docilidade e Ricardo elogia sua generosidade e compreensão, considerando o desfecho de sua última negociação. Para conversar e definir os termos de sua relação, o casal passa do bar para uma sacada do clube, reeditando seu primeiro encontro romântico em Nova York. Com vista para o rio, o céu ao anoitecer e a farta vegetação ribeirinha encoberta pela sombra da noite, o plano geral tem o casal no centro e as laterais ornadas com cortinas de plantas, contrapondo-se ao fundo de arranha-céus da Big Apple e sedimentando esse ambiente como um lugar imaginário, uma composição irreal do exótico cenário latino-americano. Essa Buenos Aires se torna um lugar-cenário, na medida em que se percebe a não existência de um clube El Tigre, o hotel luxuoso e muito menos a paisagem mostrada, mas desvela a tentativa de se disciplinar um território selvagem dentro dos modelos estadunidenses e distribuir os espaços pelo encontro romântico do par Estados Unidos e América Latina.

Da mesma forma, as dualidades do moderno e civilizado versus atrasado, agrário, selvagem, podem ser abordadas pelos cenários de Uma Noite no Rio e Aconteceu em Havana, produzidos após Serenata Tropical.

4 ENTRE O RIO DE JANEIRO E HAVANA: BARÕES, BARONESAS, ATORES, ATRIZES E GOLPISTAS

No filme seguinte, Uma Noite no Rio, a estrutura narrativa da cena anteriormente analisada, é repetida na cena na qual a personagem de Carmen Miranda, que também se chama Carmen, vai até a casa do barão Manuel Duarte (interpretado por Don Ameche) para um encontro amoroso. Nesse longa-metragem, o ator Don Ameche interpreta duplamente os papéis do Barão Manuel e do personagem Larry Martin, dando abertura para a trama da troca de identidades. No enredo, Larry Martin é um artista estadunidense que trabalha em um cabaré no Rio de Janeiro junto com a personagem de Carmen Miranda. Larry e Carmen são namorados, mas o estadunidense parece bastante inclinado a traições amorosas. O personagem Barão Manuel é um carioca com sotaque de alguém que fala espanhol e explicitamente adepto a casos extraconjugais. O Barão Manuel é casado com a baronesa Cecília Duarte (interpretada por Alice Faye), uma estadunidense loira, de olhos azuis, elegante e insatisfeita com a conduta do marido.

Na mansão do barão, acontece um baile em recepção ao embaixador (não é mencionado de qual país), com música ao vivo de uma Big Band. Quando Carmen chega, o pajem do barão a encaminha a biblioteca, pois como os demais casos amorosos de Manuel, ela não deve ser vista pelos convidados. Carmem espera encontrar o barão, mas quem está em seu lugar personificando o aristocrata carioca naquele momento é seu namorado, o estadunidense e artista de cabaré Larry Martin. Carmen logo descobre a farsa, então Larry para proteger o personagem que está encarnando e também o casamento do barão, coloca a cantora brasileira no palco da festa, como uma das atrações do baile. A despeito das intenções da personagem de Carmen Miranda, ela é a entertainer da festa e não uma convidada, enquanto seu namorado dança com outra mulher em seus braços, a também estadunidense baronesa Cecília Duarte. De uma forma enviesada, trata-se de um encontro amoroso entre Estados Unidos e América Latina.

As diferenças entre os espaços que cabem a cada qual ficam bem delimitadas. Ainda que a casa seja de fato do barão brasileiro, quem domina a mansão naquele momento é o ator estadunidense que o interpreta, Larry Martin, juntamente com outra estadunidense, a Baronesa Cecília, sua esposa dentro daquela “ficção” de troca de identidades. No primeiro momento desse segmento, Larry não recebe Carmen na porta de sua casa, como aos outros convidados, ela é indesejada naquele momento e representa as más condutas do barão, as quais devem ser escondidas. Assim, Larry pode vê-la somente a portas fechadas na reclusão da biblioteca. O ambiente sóbrio da biblioteca, permeado por beges, brancos e marrons, faz uma menção à tropicalidade do Rio, apenas por duas longas plantas, que estão bloqueando alguns livros. Nem o brilho da roupa de Carmen é suficiente para quebrar a sobriedade do ambiente.

Para adequar-se ao luxuoso espaço, a cantora é remodelada. O “traje performático” de baiana é substituído por um conjunto de saia longa e jaqueta de mangas compridas, inteiramente feito de reluzentes paetês negros, acompanhado de um turbante branco com penas. As gigantescas estantes de livros cenográficos que recobrem as paredes ao fundo da cena, tem a função de conferir ao titular daquele local, a sabedoria, a inteligência e a racionalidade associadas ao hábito da leitura. Tal construção, legitima Larry a levantar a mão para bater no rosto de Carmen e a dispensá-la para o lado de fora da casa, especificamente para o palco improvisado da festa, assim que Cecília aparece.

Figura 3 - Carmen (Carmen Miranda) e Larry Martin (Don Ameche) na biblioteca da casa do barão e Carmen se apresentando na festa da casa do barão, em Uma Noite no Rio.

 

Fonte: Uma noite (1941).

 O espaço onde se dá a apresentação de Carmen não é o de um clube noturno, é uma festa para a renovada aristocracia carioca no jardim de uma mansão, mas reproduz a dinâmica interna do cabaré, sua divisão de espaços e o propósito de disciplinar a natureza selvagem latino-americana. Na cena tal natureza é representada por muitas árvores ao redor do palco e lagos artificiais com pétalas emergindo, bem como pela personalidade indomável da própria personagem de Carmen Miranda. Para entrar no palco, a jaqueta preta de paetês sai e fica uma blusa branca de mangas longas que termina logo abaixo dos seios. Além de quebrar o monocromático preto, a nova blusa deixa o abdômen à mostra e também os inúmeros colares, estavam escondidos pela jaqueta, retomando referências da baiana estilizada, a qual consagrou Carmen no filme anterior e na Broadway. O preto e branco de seu traje fazem ressonância ao piso xadrez do palco. Enquanto canta e dança, sacudindo as mãos e balançando a saia cintilante, o público coloridamente trajado está atrás de Carmen a contemplando e empresta-lhe as cores que faltam a artista para situar sua latinidade cinematográfica. Em português, ela canta, “Cai, cai, cai, cai, eu não vou escorregar...”, quase ironicamente, talvez representando ali uma faísca de resistência.

O Bando da Lua, vestido com camisas de mangas bufantes brancas, calças pretas e lenços amarrados no pescoço, uma mistura do estilo rumbeiro com o gaúcho do filme anterior, funcionam como parte constituinte daquele cenário. Eles estão situados na extremidade, praticamente fora do palco sob um coreto feito de pilares de metal com curvas gregas, cortinas ao fundo e um proeminente candelabro de cristal, que só aumentam a artificialidade da cena, enfatizando o papel teatral daqueles latino-americanos que não se encaixam com o ambiente.

O piso xadrez do palco faz referência a todo o impasse e a negociação envolvidos entre duas partes nos jogos de tabuleiro e a importância do uso da razão nessas circunstâncias. Considerando os sentidos que podem ser atribuídos à cena a partir dessa perspectiva, cabe adicionar à descrição de Deleuze e Guatarri (1997) sobre o jogo de xadrez como semiologia que codifica e descodifica um espaço fechado, enquanto o distribui. “Efetivamente uma guerra, porém uma guerra institucionalizada, regrada, codificada, com um fronte, uma retaguarda, batalhas”, na qual cada peça é qualificada e detém certo poder que se combinam ao sujeito da enunciação (DELEUZE, GUATARRI, 1997, p. 14).

Nesse sentido, a própria Carmen é codificada e alterada por aquele cenário, como uma peça a seguir as regras do jogo de tabuleiro, mas também com o poder de transformá-lo, segundo seus próprios atributos. Ainda que indique o eixo latino-americano, seu figurino de baiana estilizada ganha uma versão sofisticada e ela canta em inglês I, Yi, Yi, Yi, Yi (I Like You Very Much), mostrando seu esforço em agradar ao público que a observa atentamente à luz do luar. Por outro lado, sua performance altera aquele espaço e rompe com a ordem anteriormente estabelecida. Quando começa a cantar, os casais não estão mais a bailar coordenadamente em pares no espaço ordenado do “tabuleiro de xadrez”, estão todos a observar sua “jogada” e seus movimentos.

No filme seguinte estrelado por Carmen Miranda, Aconteceu em Havana, há o cenário da pousada Arbolado, uma disposição que remete à imagem externa do clube El Tigre, de Serenata Tropical. Esta pousada proposta pelo filme aprofunda-se na hibridação entre a América Latina e a natureza tropical, explorando-a com maior intensidade como símbolo de um território selvagem e do atraso.

Em Aconteceu em Havana, o alto executivo Jay Williams (interpretado por John Payne), na tentativa de tirar a cantora Rosita Rivas (interpretada por Carmen Miranda) do caminho da turista Nan Spencer (interpretada por Alice Faye) e de seu possível romance com o Latin lover Monte Blanca (interpretado por Cesar Romero), a convida para um encontro sob o pretexto de discutir sua carreira. Quem sugere o local é Rosita, “uma pequena pousado no interior, Arbolado’s[6] (Aconteceu em Havana, 1941, 00:46:11, tradução nossa). Com um plano aberto, a câmera situa a ambientação da cena. Um carro entra por uma estrada de terra com altas palmeiras nas laterais e a noite escura encobre a vegetação abaixo delas. No lado esquerdo da tela, criando um limite para a estrada, uma muralha branca dá suporte ao luminoso do estabelecimento, El Arbolado, que já pode ser visto ao final do caminho. O casarão de dois patamares é visto de frente, sendo emoldurado pelas palmeiras, e seu destaque é a grande varanda, que toma conta de todo o andar superior.

Na entrada do lugar, um sujeito de cabelos e bigodes fartos, corpulento, usando chapéu de palha e um paletó de tecido parco, canta a canção Lollipop (Pirulito) enquanto tenta vender seus doces aos clientes que entram e saem da pousada. Com certo desdém, Jay olha o homem de aparência rude e o ignora. O vendedor alegre em sua humilde profissão e o carrinho de pirulitos atrás dele, compõem a entrada do casarão. Sobre o alto portal com formato arqueado, há um pergolado com flores e folhas enroscadas, as quais parecem ser prolongadas pelas várias plantas e árvores ao redor, bem como, pelas sombras que se apoiam na parede acentuando a imagem de uma selva. Não por acaso, o ponto de encontro dos casais multiculturais, chama-se Arbolado, ou “arborizado” em português, que também é o nome do proprietário do estabelecimento, conectando o personagem cubano ao cenário.

No lado de dentro, é o próprio Arbolado quem recebe Jay Williams, um personagem robusto e caricato. Na medida em que Jay vai adentrando o espaço, o espectador descobre que o Arbolado é um misto de restaurante, cabaré e hotel para encontros amorosos. O primeiro ambiente por onde passa é um restaurante a céu aberto, carregado das mesmas plantas que estavam do lado de fora e cercado por palmeiras, cujas folhas recaíam sobre os clientes. Apesar de ter atravessado por uma porta, o conceito do “casarão” de Havana é a de uma construção que se integra ao ambiente natural. Sem muita preocupação com paredes ou mesmo o teto, o lado de fora constituído pela floresta adentra o ambiente interno. Ao subir as escadas de ferro, amplamente decoradas com folhagens como se fosse um canteiro, Jay caminha em direção ao quarto onde encontrará a senhorita Rivas. O piso é de uma cerâmica vermelha e atrás de si, Jay tem inúmeras janelas venezianas de madeira, várias delas abertas, como se fossem necessárias em um ambiente aparente sem teto. Toda essa composição confere um aspecto bastante rústico.

Figura 4 - Jay Williams (John Payne) sobe as escadas do Arbolado e encontra Rosita Rivas (Carmen Miranda) em um quarto, em Aconteceu em Havana.

 

Fonte: Aconteceu (1941).

 Mas o Arbolado é tão anacrônico, ambíguo e fantasioso quanto o El Tigre ou a casa do barão Duarte, pois o espaço é reconfigurado assim que o empresário estadunidense entra no quarto reservado para seu encontro com Rosita Rivas. A porta que por fora é uma veneziana de madeira crua, quando Jay a abre, do lado de dentro se transforma em um estilo refinado, delicadamente branca com metais dourados. À primeira vista, o ambiente é composto por uma pequena mesa de jantar, paramentada com taças, aparelho de jantar refinado e um arranjo de flores no centro; uma cômoda de madeira com entalhes de arabescos que apara castiçais de metal, um vaso dourado e um quadro oval de uma senhora com moldura dourada; um canapé acolchoado branco; e um biombo com motivos de árvores. Assim como a biblioteca de Uma Noite no Rio), as cores dessa sala são sóbrias e transitam entre beges, marrons, branco e o dourado.

Não fosse por Rosita Rivas, que o espera de pé na sala tentando abrir sem sucesso uma garrafa de champanhe, os espectadores poderiam esquecer por um momento que aquele ainda era o Arbolado. A personagem de Carmen Miranda tem grandes flores brancas no cabelo e usa um vestido de modelagem extravagante na mesma cor, com recortes na cintura e longas franjas que ampliam seus movimentos e relembram as sedutoras melindrosas. Entretanto, a cor branca de seu vestido contrasta com seus trajes usados anteriormente nesse filme, bastante vibrantes e coloridos, como se a escolha da cor tivesse por objetivo não interferir na escala cromática sóbria do ambiente e lhe conferisse certo refinamento. A sala então ganha feições elegantes e associadas ao ambiente rudimentar anterior, basicamente pela presença do biombo com pinturas de árvores, da sacada defronte a uma praia com palmeiras e da presença da corista latina. Entretanto, a bela paisagem local não parece interessar o estadunidense ou a cantora, pois ele está mais preocupado em discutir negócios e afastá-la de Monte Blanca, enquanto ela quer resolver sua carreira e seduzir o visitante.

Nessa ocasião, Jay Williams convence a corista que ela precisa de um novo agente e ele, como um “bom homem de negócios”, seria ideal para a função. A corista latina aceita a proposta, mas tem dificuldades para administrar sua vida profissional e seus próprios impulsos e, imediatamente, confunde a relação profissional com uma romântica. Jay aceita parcialmente os desejos de Rosita, apenas o que for necessário para manobrá-la e conquistar seus objetivos, que incluem agradar a turista estadunidense Nan Spencer. Desse modo, Aconteceu em Havana mantém o discurso colonialista “segundo o qual a Europa serve como empresário global e produtor, enquanto as culturas não européias (sic) permanecem como a matéria-prima para a indústria do entretenimento” (SHOHAT, 2006, p. 324).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos filmes seguintes, as personagens de Carmen Miranda ampliariam seu espectro de atuação participando mais ativamente nas tramas. Porém, sem desvincular-se do mundo do entretenimento e do palco. No El Tigre, a presença de Carmen junto com o Bando da Lua servia como amálgama a validar aquele cenário como latino-americano perante os olhos dos estadunidenses. Justificando a integração entre o cenário no qual os estadunidenses estão habituados a se enxergar, ao espaço destinado aos latino-americanos nesse número, uma hacienda de estilo mexicano em plena Buenos Aires. Carmen Miranda encarnou esse papel ambivalente do fantasioso e primitivo “corpo dócil da diferença”, que suscitava ao mesmo tempo fetiche e fobia (cf. BHABHA, 1998, p. 59, 114), e também contribuiu com a delimitação de um “território existencial auto-referencial” (cf. GUATARRI, 2008, p. 19) latino-americano.

A moldura do cabaré transportava a América Latina selvagem para um ambiente sofisticado e cosmopolita, em uma composição que, inicialmente, veio refutar alguns dos antigos estereótipos latino-americanos propagados até então, mas não os abandonava completamente, pois muitos estavam reenquadrados no palco. Jogando com os estereótipos já conhecidos por seu público, porém os satirizando ao mesmo tempo, o Outro exótico prevalecia sobre o abjeto. A abordagem buscava retratar, particularmente, a partir do ambiente das performances musicais, o primitivismo e a modernidade como duas faces de uma mesma identidade coletiva latino-americana. O arranjo do cabaré criava uma metanarrativa do espetáculo dentro do espetáculo, cuja função era desencadear uma complexa composição do real e irreal, que por sua vez funciona como um lacre de segurança para lidar com o real e com o desejado, ao mesmo tempo em que critica o primeiro.

A própria estrutura narrativa centrada no cabaré e no show business, contribuiu com a sensação de realidade, porque deixava o espaço do palco para a construção do irreal com as performances que o público já esperava serem utópicas, possibilitando a configuração de um espaço supostamente real nos bastidores. O palco, que tudo permite, com os recursos do cinema ganha mais possibilidades de criar um espaço mítico e verter o paraíso tropical idealizado pelos estadunidenses, onde não há inconvenientes para os romances e diversões, ou limites para a imaginação.

O cabaré, como um espetáculo metalinguístico, dilui as fronteiras entre o real e o irreal, torna tudo possível e dá sentido à presença de uma baiana em Buenos Aires, acima de tudo, ao encontro entre Estados Unidos e Argentina, Estados Unidos e Brasil, Estados Unidos e Cuba, e Estados Unidos e América Latina. Desse modo, o cabaré leve e animado assume o papel de naturalizador das diferenças culturais e das tensões no campo político, como um verdadeiro espaço de negociações em que se definiam as relações Pan-americanas e o futuro do continente (MELGOSA, 2012).

Quem traz os sinais de civilização e modernidade para os espaços latino-americanos são os personagens estadunidenses, que não podem ser privados do luxo, do conforto, dos aviões e navios. Mas com os arranjos cinematográficos e os acordos políticos e comerciais que a Boa Vizinhança popunha, os estadunidenses poderiam aproveitar o melhor dos dois mundos ao adentrar um “exótico e teatralizado palco de conquista (masculina)”[7] (FREIRE-MEDEIROS, 2002, p. 62, tradução nossa).

A imagem de Carmen Miranda no cinema Hollywoodiano, inclinou-se mais aos interesses das indústrias e do governo estadunidense do que dos brasileiros.  Em poucos anos Carmen Miranda se tornou uma das principais representantes da Política da Boa Vizinhança e o papel de seus filmes era demonstrar aos estadunidenses como eles poderiam melhor aproveitar a parceria com a América Latina, desfrutando de sua alegria, de suas belezas e de sua natureza. Desse modo, subordinando os países do sul aos interesses da política externa do “Bom Vizinho” do norte. Os meios culturais davam uma nova roupagem às formas de intervenção, menos explícita e talvez mais eficiente, que veiculava massivamente um sistema de representações legitimador das ações dos Estados Unidos frente aos países da América Latina (MACEDO, 2013).

No interior desses debates, é notável como prosperam os valores culturais e estéticos ligados aos filmes, às personagens e à figura controversa de Carmen Miranda, na tentativa de validar uma brasilidade ou latinidade, mesmo pelos nascidos nesses territórios. Finalmente, a perpetuação dessas noções por meio do discurso de uma identidade, dá continuidade a relações de poder fundadas no colonialismo que jamais enxergam o Brasil ou a América Latina em nível de igualdade, mas com um olhar hierarquizado, vindo de cima. Os sentimentos experimentados nesse fluxo passam a caracterizar a figura de si e a figura do outro, de modo que as emoções e sensibilidades exprimidas por Carmen Miranda na tela, foram incorporadas à identificação dos sujeitos brasileiros e latino-americanos, notadamente às mulheres.

REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. 2. ed. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2009.

 

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

 

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. v. 5.

 

DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.

 

FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Hollywood Musicals and the Invention of Rio de Janeiro, 1933-1953. Cinema Journal, [s.l.], v. 41, n. 4, p. 52-67, Summer 2002.

 

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. 5. ed. São Paulo: Ed. 34, 2008.

 

HUESCA, Robert. The mexican oil expropriation and the ensuing propaganda war. Texas papers on Latin America, Austin, n. 88-04, p. 1-32, 1988. Disponível em: http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/tpla/8804.pdf. Acesso em: 11 nov. 2019.

 

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70, 2007.

MACEDO, Káritha Bernardo de. O “Office of the Coordinator of Inter-American Affairs” entra em cena: novas abordagens para uma Política de Boa Vizinhança. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 9., 2013, Ouro Preto. Anais [...]. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 2013. Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/9o-encontro-2013/artigos/gt-historia-da-midia-audiovisual-e-visual/o-201coffice-of-the-coordinator-of-inter-american-affairs201d-entra-em-cena-novas-abordagens-para-uma-politica-de-boa-vizinhanca?. Acesso em: 11 nov. 2019.

 

MAURER, Noel. The empire struck back: the mexican oil expropriation of 1938 reconsidered. Harvard Business School, [s.l.], n. 10-108, June 2010. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1620043. Acesso em: 11 nov. 2019.

 

MELGOSA, Adrián Pérez. Cinema and inter-american relations: tracking transnational affect. New York: Routledge, 2012.

 

MENDONÇA, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999.

 

MENEGUELLO, Cristina. A poeira de estrelas: o cinema hollywoodiano na mídia brasileira das décadas de 40 e 50. 1992. Dissertação (Mestrado em História Social do Trabalho) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/281493/1/Meneguello_Cristina_M.pdf. Acesso em: 29 out. 2019.

 

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf.

 

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

 

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturismo e representação. São Paulo: Cosac & Naify 2006.

 

VARGAS, João Tristan. Hayden White, a ironia e os historiadores. História Social, Campinas, n. 3, p. 37-50, 1996. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/86. Acesso: 29 out. 2019.

 

WOOD, Bryce. The making of the good neighbor policy. New York: W.W. Norton Company Inc., 1967.

 FILMOGRAFIA

 ACONTECEU em Havana (Week-end in Havana). Direção: Walter Lang. Produção: William Le Baron. EUA: Twentieth Century Fox, 1941. 1 DVD (81 min), son., color.

SERENATA tropical (Down Argentine way). Direção: Irving Cummings. Produção: Darryl F. Zanuck. EUA: Twentieth Century Fox, 1940. 1 DVD (88 min), son., color.

UMA NOITE no Rio. (That night in Rio). Direção: Irving Cummings. Produção: Fred Kohlmar. EUA: Twentieth Century Fox, 1941. 1 DVD (90 min), son., color.


[1] A sinédoque é uma figura de linguagem ou tropos que cria uma relação entre o objeto e o todo, designa o mais restrito pelo mais extenso, a parte pelo todo e vice-e-versa (MOISÉS, 2004). Para Hayden White (1995) em sua obra “Meta-história: A imaginação Histórica do Século XIX”, a sinédoque simboliza “alguma qualidade que se presume inerente à totalidade” (VARGAS, 1996, p. 47).

[2] Na Twentieth Century Fox, Carmen Miranda participou de nove filmes de longa-metragem: Serenata Tropical (Down Argentine Way, 1940), Uma Noite No Rio (That Night in Rio, 1941), Aconteceu em Havana (Week-End in Havana, 1941), Minha Secretária Brasileira (Springtime in The Rockies, 1942), Entre a Loura e a Morena (The Gang’s All Here, 1943), Quatro Moças Num Jeep (Four Jills in A Jeep, 1944), Alegria, Rapazes! (Something for the Boys, 1944), Sonhos de Estrela (Doll Face, 1945), Serenata Boêmia (Greenwich Village, 1944) e do documentário motivacional The All-Star Bond Rally (1945).

[3] Essa cena se conecta ao filme Voando para o Rio (Flying Down to Rio, 1933, 00:40:50), o qual se passa no Rio de Janeiro, no momento em que a banda estadunidense The Clippers visita o Carioca Cassino para conferir a banda local considerada sua competição, Os Turunas.

[4] Provavelmente não por coincidência, a imagem de um tigre era usada desde 17 de março de 1894 como marca registrada (trademark) da Standard Oil Company of New York (LEGAL FORCE TRADEMARKIA, 2013; Disponível em: http://www.trademarkia.com/standard-oil-co-of-new-york-by-presidentwm-rockefeller-70025770.html), refinaria de petróleo e distribuição de combustíveis da família Rockefeller. A Standart Oil extraía petróleo em vários países da América Latina, sendo justamente das viagens de Nelson Rockefeller ao subcontinente para vistoriar suas empresas, que veio a inspiração para criar o OCIAA. Mas o petróleo era uma questão das mais delicadas para a Boa Vizinhança e a Standart Oil, assim como seu herdeiro e também diretor do OCIAA, não queria perder o que tinha conquistado, fazendo sua propaganda subliminarmente nos filmes. A preocupação vinha principalmente das expropriações de companhias petrolíferas estadunidenses realizadas no México em 1938-1939, com o consentimento do Departamento de Estado (WOOD, 1967). Sob as novas circunstâncias impostas pela ameaça da guerra, o governo estadunidense passou a exigir que os interesses das empresas privadas se subordinassem aos interesses públicos de segurança dos EUA, em vista disso, Bryce Woods cita como exemplo o caso em os EUA aceitaram o acordo proposto pelo México com a Standard Oil Company, a fim de que pudessem usar as bases aéreas mexicanas (WOOD, 1967). A respeito da expropriação no México das companhias petrolíferas, Cf. Huesca (1988) e Maurer (2010).

[5] No filme Entre a Loura e a Morena (The Gang’s All Here, 1943), a canção The Lady in The Tutti-Frutti Hat diz que o chapéu de Carmen Miranda parece uma árvore de Natal.

[6] “A little in the country. Arbolado’s” (Aconteceu em Havana, 1941, 00:46:11).

[7] “(...) an exotic theatrical stage of (male) conquest” (FREIRE-MEDEIROS, 2002, p. 62).