Preconceituoso, gra�as a Deus!: a interven��o urbana e a escrita ensa�stica como
reinven��o de si
�Judgmental, thanks to God!: urban
intervention and the critical essay as a reinvention of oneself
Diego Baffi
Doutor em Teatro pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mestre em Artes e Bacharel em
Artes C�nicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); docente do
Curso de Bacharelado em Artes C�nicas da Universidade Estadual do Paran�
(UNESPAR) lotado em Curitiba Campus II (FAP). � membro do GP Processos
Criativos em Artes C�nicas (Unespar/CNPq) e
coordenador do projeto de pesquisa �Arte e Espa�o P�blico: uma discuss�o no
meio da rua�. Paulistano de nascimento, campineiro de forma��o e curitibano de
morada, � membro fundador da quandonde interven��es
urbanas em arte (plataforma criada em 2012 que j� atuou em 30 cidades do
Brasil, al�m de 12 outros pa�ses da �frica, Am�rica e Europa), palha�o (atua��o
e dire��o), vegano, pai da Lu�sa, ciclista e antifascista.
www.quandonde.com.br �
�diego_baffi@yahoo.com.br � https://orcid.org/0000-0003-1751-9047
Resumo
Este ensaio baseia-se em
escritores cl�ssicos e contempor�neos para apresentar as bases hist�ricas e
conceituais da escrita ensa�stica. Concomitantemente, trata da experi�ncia do
autor na constru��o site specificda interven��o urbana em arte Aguarda-te Escurid�o (concebida e apresentada em setembro de 2018
em Lom�, Togo). Deste modo, o texto apresenta e defende a pertin�ncia tanto do
uso do formato do ensaio liter�rio para a escrita derivada da pesquisa
acad�mica que discuta a pr�tica em arte quanto do que define como uma
�metodologia ensa�stica� de produ��o de obras e conhecimento em arte.
Palavras-chave: Arte de rua. Urbaniza��o.� Escrita e arte. Performance (Arte).
Abstract
The
essay is based on classic and contemporary writers to present the historical
and conceptual bases of essay writing. Concomitantly, it deals with the
author's experience in the site-specific construction of the urban intervention
in art Darkness Awaits (conceived and presented in September 2018 in Lom�,
Togo). In this way, the text presents and defends the relevance both of using
the literary essay format for writing derived from academic research that
discusses practice in art and of what is defined as an �essay methodology� for
the production of works and knowledge in art.
Keywords Street art. Urbanization.
Writing and art. Performance art.�
DOI:
http://dx.doi.org/10.5965/1808312915252020e0017
Recebido em: 10/06/2020
Aceito em: 07/08/2020
�Devemos ser bil�ngues mesmo em uma �nica l�ngua, Devemos ter uma l�ngua menor no interior de nossa l�ngua,
Devemos fazer de nossa pr�pria l�ngua um uso menor. O multilinguismo
n�o � apenas a posse de v�rios sistemas, Sendo cada um
homog�neo em si mesmo; �, antes de tudo, A linha de fuga ou de varia��o que
afeta cada sistema Impedindo-o de ser homog�neo. [...] Falar em sua pr�pria
l�ngua como um estrangeiro.� (Gilles Deleuze e Claire Parnet)
* A diagrama��o deste ensaio � fruto de uma parceria com a
designer Cynthia Bresser (flickr. com/photos/183433746@N05). Para o texto final colaboraram
Liliane K�pper, Raquel Gouv�a e Ines Saber. A todas,
meu sincero agradecimento pela generosidade no olhar e pelas valiosas
contribui��es. Preconceituoso, gra�as ao Deus!: a
interven��o urbana e a escrita ensa�stica como reinven��o de si. PARA
VISUALIZA��O do arquivo com design acessar a vers�o em PDF.
Preconceituoso, gra�as ao Deus!: a interven��o
urbana e a escrita ensa�stica como reinven��o de si. Ou ent�o: �Descobrir-me
preconceituoso. E ter orgulho disso!�. Tanto o t�tulo deste ensaio quanto a
frase que abre o texto al�m de tratarem de preconceito buscam circunscrever o
que me seria identit�rio. Outra caracter�stica comum � que, ao mesmo tempo em
que se aproximam dos temas que se enunciam, ambos pretendem promover desvios
das interpreta��es recorrentes e de leituras viciadas pelo h�bito. O primeiro
deslocamento � proposto em rela��o � frase que abre o ensaio � � o da
manifesta��o do apre�o de si por reconhecer-se preconceituoso. Neste caso, o
apre�o de que gostaria de tratar n�o est� no preconceito, mas no
reconhecimento. Em setembro de 2018, enquanto o avi�o no qual viajava descia em
Lom�, capital da Rep�blica Togolesa (Togo), emocionei-me ao ver o p�r do sol
pela janela. O pensamento que acompanhava essa emo��o era de que eu revia algo
conhecido por filmes ambientados na �frica, especialmente em O Rei Le�o.
Essa anima��o dos est�dios Walt Disney de 1994 � uma vis�o estadunidense sobre
a �frica a partir do estere�tipo de um lugar habitado por animais n�o-humanos
organizados sob um regime mon�rquico � havia me marcado de tal forma que minha
primeira visita ao continente africano se iniciou como um pretenso reencontro.
Reconhecer (ou descobrir) essa tend�ncia a buscar estere�tipos que me foram
anteriormente apresentados pelo meu ambiente cultural; foi um passo importante
para tentar diminuir a media��o do meu olhar por um modelo previamente
conhecido em rela��o ao qual eu testaria a �frica � minha frente; um gesto no
sentido de suspender tanto quanto poss�vel o preconceito a respeito do que
encontraria.
Dito em outros termos: como
n�o se opera alijado de si, mas consigo � nesse espa�o de tens�o entre o que
vai sendo sendo (for�a de recogni��o
com modos de ser e modos de perpetuar uma certa configura��o de mundo que j� se
habita e conhece) e o que vai vai sendo (for�a de
novas cogni��es com modos de inaugurar e de destituir configura��es pr�prias ou
partilhadas de mundo) �, o reconhecimento do preconceito tem como fun��o
contribuir � conscientiza��o do modus operandi sedimentado pelo h�bito.
Tal conscientiza��o � o primeiro passo para inaugurar uma nova �tica, calcada
na presentifica��o. Confrontar o preconceito com a
singularidade do que tem/pode a realidade que se apresenta, recusando
generaliza��es e etiquetas. O segundo deslocamento � proposto em rela��o ao
t�tulo deste ensaio � � o do uso da palavra gra�as como liga��o entre o
preconceito e Deus. Aqui, a acep��o da palavra desvia do seu uso corriqueiro,
como forma de agradecimento, e faz alus�o ao reconhecimento de quem � a
responsabilidade. Em continuidade � frase que abre o ensaio, quero, com essa
express�o, reconhecer que parte significativa do meu preconceito pode ser
diretamente atribu�da ao fato de eu ser oriundo de um meio cultural altamente
influenciado por princ�pios judaico-crist�os: monote�sta, dogm�tico,
manique�sta e que tem sua representa��o maior nesta figura chamada Deus, suposto
definidor de todas as condutas e fim �ltimo de todas as a��es consideradas
positivas a partir de tais condutas. Nesse sentido, posso supor que a emo��o
que aquela imagem do p�r do sol no horizonte africano me proporcionou
tratava-se de uma reminisc�ncia, ainda que inconsciente, do Jardim do �den
judaico-crist�o: o para�so inc�lume com natureza
imaculada � prova das a��es mal�ficas do homem. Ao evocar dualidades
valorativas (certo/errado) aprior�sticas, colonialistas e imut�veis, a cultura
judaico-crist� oferece par�metros de leitura preconceituosos a outras
experi�ncias culturais, sejam elas individuais ou coletivas. Para al�m do ju�zo
moral, o preconceito mata a experi�ncia, pois ter um padr�o determinado de
leitura do que est� por vir condiciona a uma vis�o de mundo classific�vel
segundo chaves bin�rias, que fazem ver sempre as mesmas coisas (par�metros) em
coisas diferentes, de modo que o observado est� sempre em fun��o de algo que
lhe � alheio, externo e anacr�nico. Dessas chaves de leitura derivam determinadas
maneiras de agir e de falar sobre o mundo que tendem a se perpetuar com m�nimas
altera��es ad infinitum. A busca de uma
alternativa � leitura a partir do alheio, do externo e do anacr�nico se
orientar� pela constru��o de uma leitura situada nas condi��es da ocorr�ncia,
do intr�nseco e do presente ou, resumidamente, de uma leitura situada. A
leitura situada[1]
se apresenta como resist�ncia �s leituras de mundo ditadas por preconceitos,
aplicando-se, como uma das deriva��es poss�veis, �s formas de agir e de
descrever o mundo, de traduzi-lo e compor com ele atrav�s da linguagem. Neste
ensaio, proponho aprofundar o que se refere � escrita situada, a escrita que
desvia daquilo que Deus manda: a escrita ensa�stica. Essa rela��o entre
a escrita ensa�stica como um desvio da norma padr�o representada por Deus est�
presente na maneira como o fil�sofo espanhol Jorge Larossa
(2003) aborda a quest�o do ensaio e da sua rela��o com o ambiente acad�mico:
Na verdade, falo do ensaio como um �modo de escrita� normalmente exclu�do de um espa�o de saber [acad�mico]. Por�m, os dispositivos de controle do saber s�o tamb�m dispositivos de controle da linguagem e da nossa rela��o com a linguagem, quer dizer, das nossas pr�ticas de ler e escrever, de falar e escutar. [�] poder�amos dizer que o conformismo lingu�stico est� na base de todo conformismo, e que falar como Deus manda, escrever como Deus manda e ler como Deus manda, ao mesmo tempo, � pensar como Deus manda. Tamb�m poder�amos dizer que n�o h� revolta intelectual que n�o seja tamb�m, de alguma forma, uma revolta lingu�stica, uma revolta no modo de nos relacionarmos com a linguagem e com o que ela nomeia. Ou seja, que n�o h� modo de �pensar de outro modo� que n�o seja, tamb�m, �ler de outro modo� e �escrever de outro modo� (Larossa, 2003, p. 102, acr�scimo meu).
Se a escrita acad�mica � a
escrita regida pelos modelos externos ditados por Deus, a revolta contra o que Deus
manda na escrita ensa�stica � a express�o da heresia. Como aponta o
fil�sofo alem�o Theodor Adorno:
[�] a lei formal mais profunda do ensaio � a heresia. Apenas a infra��o � ortodoxia do pensamento toma vis�vel, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invis�vel (ADORNO, 2003, p. 45).
H� certa disposi��o metaf�rica nessa rela��o entre Deus e a escrita acad�mica, mas h� tamb�m uma esfera/contexto literal: o contexto hist�rico do que entendemos por escrita acad�mica. As primeiras universidades modernas ocidentais foram implementadas a partir do s�culo XII pela Igreja Cat�lica que, desde ent�o, determinou conte�do e forma dos estudos acad�micos. Ainda que, na atualidade, a Igreja tenha perdido seu posto de principal administradora das institui��es de ensino superior, seus dogmas est�o profundamente arraigados na organiza��o dos estudos acad�micos. O ensaio, por sua vez, surge ainda no contexto medieval como uma das categorias de estudos n�o acad�micos, ou seja, um estudo que n�o seguia os ditames de Deus e n�o tinha as b�n��os da Igreja. Na ocasi�o de seu surgimento a nomenclatura ensaio visava definir um modo de escrita e proteger seus autores, j� que determinava um car�ter despretensioso (por �inconclusivo�, �esbo�ado�, �fant�stico�, �d�spar� e �plural�) diante do conhecimento, de modo a desviar de uma poss�vel condena��o pela Igreja Cat�lica e de seu malfamado �ndex (Starobinski, 2011, p. 16, passim).
De fato, o ensaio foi se
estabelecendo como uma das formas de escrita que se op�e � pretens�o � pureza e
� grandiosidade, marcas da escrita acad�mica. Ao inv�s disso, � marcada pela
impureza, pela minoridade e pela rela��o com a vida mundana e com a paix�o,
como aponta a fil�sofa espanhola Maria Zambrano[2], apresentada por Larossa em cita��o passim:
Para Maria Zambrano, a raz�o n�o deve dominar a vida, deve enamor�-la, e s�o justamente as formas de escrita com capacidade de enamorar a vida, quer dizer, de captur�-la e dirigi-la desde dentro, as que desapareceram. Maria Zambrano faz uma reivindica��o dos g�neros menores, impuros e dominados justamente por isso, porque mantinham essa rela��o com a vida que os g�neros maiores, puros, e hoje dominantes, perderam (Zambrano, 1972 apud Larossa, 2003, p. 105).
Mesmo com sua especializa��o
ao longo dos s�culos, o ensaio n�o constituir� um g�nero de bases
criteriosamente determinadas, sendo, sobretudo um modo de explora��o do
conhecimento que visa � cria��o de uma zona h�brida. Larossa
(2003), a partir de Adorno, aponta que o ensaio atuaria na fronteira entre arte
e ci�ncia. Segundo os autores, ao transpor e questionar esta distin��o, o
ensaio atuaria contra mecanismos de exclus�o, ampliando os limites do vis�vel,
do pens�vel e do diz�vel:
O
ensaio confundiria ou atravessaria a distin��o entre ci�ncia, conhecimento,
objetividade e racionalidade, por um lado; e arte, imagina��o, subjetividade e
irracionalidade por outro. O que o ensaio faz � colocar as fronteiras em
quest�o. E as fronteiras, como se sabe, s�o gigantescos mecanismos de exclus�o.
[�]. Por isso, s�o precisamente todos esses questionadores de fronteiras os que
ampliaram o �mbito do vis�vel � ao ensinar-nos a olhar de outra maneira o
�mbito do pens�vel, ao ensinar-nos a pensar de outro modo � e o �mbito do
diz�vel, ao ensinar-nos a falar de outro modo (Larossa,
2003, p. 106).
O fil�sofo alem�o Max Bense tamb�m situa o ensaio em uma zona de fronteira,
por�m, para o autor, tal fronteira se daria entre territ�rios diversos daqueles
que especifica Larossa:
�[�] entre a poesia e a prosa, entre o
estado est�tico da cria��o e o estado �tico da convic��o, h� um terreno
intermedi�rio que � digno de nota. De aspecto iridescente, oscilando numa
ambival�ncia entre a cria��o e a convic��o, ele se fixa na forma liter�ria do
ensaio. [�] O ensaio � uma pe�a de realidade em prosa que n�o perde de vista a
poesia (Bense, 2014, s. p.).
� importante notar que o
terreno intermedi�rio de Bense ou o espa�o
transfronteiri�o de Larossa n�o visam (e, no limite,
n�o podem) se constituir como uma nova disciplina, ou como um espa�o de
compartilhamento (inter) ou tr�nsito (trans)
determin�vel e reproduz�vel entre disciplinas, isso porque, ao contr�rio dos
movimentos contempor�neos no ambiente acad�mico, o ensaio n�o se pretende compartimentador:
A
quest�o � que o mundo acad�mico est� altamente compartimentalizado e tenho a
sensa��o de que toda essa moda da transdisciplinaridade, da
interdisciplinaridade e coisas desse estilo, n�o faz outra coisa sen�o abrir
novos compartimentos, como se n�o fossem suficientes os que j� temos. � como se
estiv�ssemos fabricando especialistas na rela��o, na s�ntese, no �inter� e no �trans�; como se houvesse uma pol�tica
acad�mica da mesti�agem; como se al�m das ra�as puras estiv�ssemos inventando
os especialistas em impurezas, quer dizer, nas rela��es entre as ra�as puras (Larossa, 2003, p. 106).
Se o ensaio n�o trabalha no
sentido da forma��o de especialistas, ele nega um dos pilares da ci�ncia tradicional,
cujo processo de forma��o de novos pesquisadores se organiza a partir de
especializa��es constantes e progressivas. Al�m do elogio ao m�vel e ao
prec�rio (que toma o lugar do compartimentado e do estabelecido) como espa�o de
pot�ncia do ensaio, existe outra linha de fuga da ci�ncia proposta pelo ensaio,
o enfrentamento � manuten��o do status quo:
Se a
ci�ncia, falseando segundo seu costume, reduz a modelos simplificadores as
dificuldades e complexidades de uma realidade antag�nica e monadologicamente
cindida, diferenciando posteriormente esses modelos por meio de um pretenso
material, ent�o o ensaio abala a ilus�o desse mundo simples, l�gico at� em seus
fundamentos, uma ilus�o que se presta comodamente � defesa do status quo
(Adorno, 2003, p. 33).
A interven��o urbana em
arte, abordada na perspectiva de minha pesquisa de doutoramento[3], compartilha desse duplo movimento.
Primeiramente, ela n�o defende a constru��o de especialistas, pois, se a
especialidade exige aprofundamento em um tema para a constru��o de uma
habilidade (de saber e/ou de fazer), a interven��o urbana trabalha a partir da
conting�ncia e da necessidade e, nesse sentido, transita suas proposi��es na
medida em que transitam as condi��es ao seu redor. Al�m disso, a pessoa
especialista � aquela que pode ser reconhecida por sua habilidade e que
constr�i com ela um lugar para si dentro do status quo, lugar no qual e
atrav�s do qual se estabelece; j� o interventor urbano busca n�o ser
reconhecido como tal e est� mais interessado em criar abertura para outros
mundos poss�veis do que em contribuir � perpetua��o de um mundo qualquer,
existente ou a ser criado.
Esse enfrentamento do status
quo pela interven��o urbana � abordado nesta passagem da arquiteta
brasileira Adriana Fontes, que prefere denomin�-las interven��es tempor�rias,
enfocando a efemeridade que normalmente constitui tra�o identit�rio das interven��es
urbanas:
�[�] o atual est�gio da modernidade, que
denomino como de condi��o ef�mera, imprime alguns tra�os caracter�sticos ao
espa�o p�blico como a sensa��o de hostilidade, o individualismo e as rela��es
superficiais (novas formas de engajamento [�] consideradas como aspectos
negativos desta nova era). As interven��es tempor�rias, nesse sentido,
funcionam como catalisadores de rela��es de proximidade e intimidade, tanto com
o pr�prio espa�o quanto na rela��o entre os indiv�duos da urbis,
qualidade que j� pude nomear como amabilidade urbana. Por sua vez, essas
interven��es [�] tamb�m est�o ancoradas na condi��o de efemeridade, muitas
vezes como express�es ou reflexos da patente acelera��o da vida contempor�nea e
da leveza e liberdade com que nela se move o indiv�duo (e, por isso,
consideradas o aspecto positivo da condi��o contempor�nea), com maior ou menor
grau de contemporaneidade (Fontes, 2013, p. 71).
A a��o de interven��o urbana
concebida a partir da minha experi�ncia como estrangeiro em Lom� � vivida ao
longo de dez dias, em setembro de 2018, como parte das pesquisas de campo do
meu doutoramento, compostas pela concep��o e execu��o de a��es site specifics a partir das especificidades do choque
cultural derivado do meu status de estrangeiro em cada um dos doze
pa�ses nos quais as pesquisas de campo foram realizadas � acompanhou esse
movimento de catalisar rela��es ef�meras de proximidade e intimidade em meio a
um espa�o que me provocava uma grande sensa��o de hostilidade.
Parte desta hostilidade foi
sentida como consequ�ncia da quebra dos padr�es que eu projetava no pa�s, ou
seja, a quebra de meus preconceitos. Se, por um lado, a quebra de preconceitos
� algo bem-vindo, como j� pude apontar; por outro, ele me colocava muitas vezes
perdido pela aus�ncia de refer�ncias e pela necessidade de frequente
readapta��o e isso me gerava uma sensa��o de irritabilidade e impaci�ncia. No
entanto, h� outros aspectos que me despertaram a sensa��o de hostilidade e que
ainda n�o foram apontados.
Quando cheguei, fui
surpreendido com uma taxa para obten��o do visto tr�s vezes superior �
anunciada na p�gina da internet da aduana togolesa, que estava desatualizada;
enquanto fazia os meus procedimentos de entrada no pa�s, minha bagagem de m�o
sumiu, sendo encontrada cerca de uma hora depois; esperei em v�o na esteira
para a retirada da bagagem de por�o, j� que a minha mala foi embarcada em outro
voo e s� chegou a mim cinco dias ap�s minha entrada no pa�s. No alojamento em
que me abriguei, havia outro h�spede que n�o foi devidamente avisado de minha
chegada; depois de quase uma hora tentando em v�o acord�-lo conseguimos, eu e
meu anfitri�o, abrir a porta trancada por dentro e quase sofremos um ataque do
h�spede, assustado com o que julgou ser uma invas�o da propriedade por ladr�es;
no quarto no qual fui hospedado n�o havia nenhum acesso � cozinha, nem nenhum
eletrodom�stico ligado � alimenta��o, como fog�o ou geladeira, o que limitou
bastante a diversidade de alimentos que podia consumir. Assim que cheguei, fui
alertado por v�rias pessoas do alto risco de contrair mal�ria. Infelizmente,
minha habita��o n�o era suficientemente fechada e pernilongos conseguiam entrar
facilmente no quarto a qualquer hora do dia ou da noite. Com dois dias na
cidade, fui surpreendido por uma dermatite que me fez ter de ir atr�s de
atendimento m�dico emergencial. A cidade tinha um dos tr�nsitos de ve�culos
mais intensos que j� presenciei. Em hor�rios de pico, a polui��o do ar era t�o
alta que, mesmo sendo acostumado a polui��o do ar em minha cidade de origem e
cria��o (S�o Paulo, SP), sentia significativa dificuldade de respirar; a cidade
conta com uma quantidade consider�vel de ruas largas e muito movimentadas, sem
ilumina��o p�blica ou sinaliza��o de tr�nsito, o que me fazia ter com bastante
frequ�ncia a sensa��o de um iminente acidente de tr�nsito. A sensa��o n�o foi
uma falsa impress�o: em tr�s dias, fui atropelado duas vezes na cidade, ambas
sem gravidade.
Nos primeiros dias, esses
acontecimentos somados me tiraram parte da fome e da sede e da disposi��o para
longas conversas. Essa apatia se contrastava com um movimento interno bastante
ca�tico, uma tentativa constante e inicialmente infrut�fera de constru��o de
novos entendimentos, de compreender e organizar internamente o que estava
acontecendo. Esse processo produziu em mim uma sensa��o intensa de hostilidade
em rela��o �s condi��es do espa�o em que me encontrava. Por�m, eu tinha a
consci�ncia de que essa sensa��o foi uma resposta reativa derivada de minha
dificuldade psicof�sica em lidar com aspectos imprevistos daquela realidade, de
maneira similar ao modo como o fil�sofo brasileiro Nelson Brissac
Peixoto (2003) descreve a rela��o entre cidades estrangeiras e rec�m-chegados:
Privil�gio
de cidades estrangeiras visitadas pela primeira vez, dos desertos, das ru�nas,
dos c�us pitorescos: serem desorientadores. N�o acolhem, desolam o esp�rito.
Interrompem o tempo e o espa�o, imp�em uma pausa ao pensamento (Peixoto, 2003,
p. 354).
Se n�o havia condutas
pr�-determinadas a partir da minha experi�ncia para lidar com esse conjunto de
acontecimentos, estes eram princ�pios norteadores para a defini��o de uma
resposta situada, e que vieram a desenvolver processos de conviv�ncia com a
realidade que me permitiram desviar da minha sensa��o inicial de hostilidade.
Entendi, ent�o, a necessidade de problematizar e desenvolver alternativas �
minha a��o e � leitura que fazia de cada situa��o que me foi apresentada.
�Por estar disposto a produzir um ensaio como
consequ�ncia dos acontecimentos ali vivenciados, a atitude de problematizar
minha leitura dos eventos foi duplamente bem-vinda, j� que ela tamb�m me
colocava em uma postura ensa�stica em rela��o � realidade. O trecho a seguir
traz apontamentos de Larossa a respeito da postura
ensa�sta diante da escrita e da leitura de textos liter�rios. Tenho tomado a
liberdade de propor a aplica��o de suas reflex�es � leitura de eventos em
geral, mas, em especial, durante a pesquisa, j� que pretendia gerar ensaios
como este que aqui transcorre. Diz o autor:
Para o ensa�sta, a escrita e a leitura n�o s�o apenas a sua tarefa, o seu meio de trabalho, mas tamb�m o seu problema. O ensa�sta problematiza a escrita cada vez que escreve, e problematiza a leitura cada vez que l�, ou melhor, � algu�m para quem a leitura e a escrita s�o, entre outras coisas, lugares de experi�ncia, ou melhor ainda, � algu�m que est� aprendendo a escrever cada vez que escreve, e aprendendo a ler cada vez que l�: algu�m que ensaia a pr�pria escrita cada vez que escreve e que ensaia as pr�prias modalidades de leitura cada vez que l� (Larossa, 2003, p. 108).
Colocar-se em experi�ncia
n�o � uma atitude meramente intelectual, � a pretens�o de uma integridade que envolve
entrega e risco. � semelhan�a da amabilidade urbana de Fontes, a disposi��o
para realiza��o do ensaio, segundo Adorno, � aquela na qual a pessoa ensa�sta
se disp�e passionalmente � experi�ncia da escrita:
�O ensaio reflete o que � amado e odiado,
em vez de conceber o esp�rito como uma cria��o a partir do nada, segundo o
modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe s�o
essenciais. Ele n�o come�a com Ad�o e Eva, mas com aquilo sobre o que se deseja
falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim,
n�o onde nada mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar entre os
desprop�sitos (Adorno, 2003, p. 16-17).
Dizer que o ensa�sta est� em
processo de aprendizagem de modos de ler e escrever; que ensaio � uma express�o
passional do qual a felicidade e o jogo s�o essenciais e que ele abdica de
remontar � origem do conhecimento tratado e de chegar a uma conclus�o
definitiva (e a refer�ncia a Ad�o e Eva, ao princ�pio no Jardim do �den, vem a
corroborar � conex�o entre a escrita acad�mica e aquela que se d� segundo o que
Deus manda), pode dar a impress�o de que o ensaio abre m�o de um
compromisso diante do conhecimento.
Para dirimir esta impress�o,
vale nos demorarmos em algumas considera��es a respeito dos percursos que o
ensaio tra�a na constru��o do conhecimento:
1) O procedimento experimental � o
ensa�sta ser� aquele que, diante de um conjunto de experi�ncias,
considera��es e reflex�es, inicia uma busca por rela��es intr�nsecas que
lhe permitam testar a sua verdade para que esta revele suas delimita��es
internas e possa atingir, em sua melhor forma, a g�nese de uma teoria.
Segundo Bense:
Deve-se entender por procedimento experimental a tentativa de
extrair uma ideia, um pensamento, uma imagem abrangente a partir de certa massa
de experi�ncias, considera��es e reflex�es. O autor fareja uma verdade, sem,
contudo, t�-la em m�os; o autor vai fechando o c�rculo em torno delas por meio
de sucessivas conclus�es, f�rmulas verbais ou mesmo reflex�es digressivas que
descobrem lacunas, contornos, cernes, conte�dos. A prosa que nasce da� n�o �
transparente como uma teoria. No melhor dos casos, vamos ao encontro da g�nese
de uma teoria, presenciamos um nascimento e n�o nos livramos da impress�o de
que o processo criativo em alguma medida impede a vis�o unit�ria do todo. A
mestria consumada no ensaio consistiria, pois, em levar o procedimento
experimental encarnado na express�o verbal �s raias do te�rico, at� o limite em
que come�a uma outra esp�cie de prosa � a teoria (Bense,
2014, s.p.).
2) �O ocorrido como
assunto � para o fil�sofo h�ngaro Georg Luk�cs, a diferen�a entre o ensaio
e a literatura est� no fato de que o primeiro trata exclusivamente de coisas
que j� existiram (na arte ou na vida), e as toma como modelo,
reordenando-as:
[�]
o ensaio fala sempre de algo j� formado, ou ao menos de algo que j� existiu; �,
portanto, pr�prio de sua ess�ncia n�o retirar coisas novas de um nada vazio, e
sim apenas reordenar aquelas que j� foram vivas alguma vez. E porque ele apenas
as reordena, em vez de formar algo novo do informe, ele est� tamb�m
comprometido com elas, tem sempre de dizer �a verdade� sobre elas, encontrar
express�es para sua ess�ncia. Talvez se possa formular a diferen�a da maneira
mais breve da seguinte maneira: a literatura retira da vida (e da arte) os seus
motivos, para o ensaio a arte (e a vida) serve como modelo (Luk�cs, 2008, p.
08).
3) �A presentifica��o e a verdade � ao contr�rio da escrita acad�mica, que pretende o encontro
da verdade eterna, o ensa�sta l� e escreve �para um contexto cultural concreto
e determinado� [�] �no presente e para o presente� (Larossa,
2003, p. 111). Ao substituir o ato de buscar o eterno no transit�rio por
eternizar o transit�rio, o ensaio altera tamb�m a sua liga��o com a
verdade:
N�veis
mais elevados de abstra��o n�o outorgam ao pensamento uma maior solenidade nem
um teor metaf�sico; pelo contr�rio, o pensamento torna-se vol�til com o avan�o
da abstra��o, e o ensaio se prop�e precisamente a reparar uma parte dessa
perda. A obje��o corrente contra ele, de que seria fragment�rio e contingente,
postula por si mesma a totalidade como algo dado, e com isso a identidade entre
sujeito e objeto, agindo como se o todo estivesse a seu dispor. O ensaio,
por�m, n�o quer procurar o eterno no transit�rio, nem destil�-lo
a partir deste, mas sim eternizar o transit�rio. A sua fraqueza testemunha a
pr�pria n�o-identidade, que ele deve expressar; testemunha o excesso de
inten��o sobre a coisa e, com isso, aquela utopia bloqueada pela divis�o do
mundo entre o eterno e o transit�rio. No ensaio enf�tico, o pensamento se
desembara�a da ideia tradicional de verdade (Adorno, 2003, p. 26-27).
4) O m�todo situado � ao
contr�rio das metodologias aplicadas aos estudos acad�micos cl�ssicos (nos
quais, m�todos previamente determinados organizam e orientam a pesquisa que se
far�), o ensaio substitui o aprofundamento no m�todo pelo aprofundamento
experimental no objeto, do qual prov�m uma metodologia situada na experi�ncia:
Escreve ensaisticamente quem tenta
capturar seu objeto por via experimental, quem descobre ou inventa seu objeto no
ato mesmo de escrever, dar forma, comunicar, quem interroga, apalpa, prova,
ilumina e aponta tudo o que pode se dar a ver sob as condi��es manuais e
intelectuais do autor. O ensaio busca apreender um objeto abstrato ou concreto,
liter�rio ou n�o liter�rio, tal como ele se d� nas condi��es criadas pela
escrita (Bense, 2014, s. p.).
� na explora��o do objeto que o ensaio
se confunde com o m�todo:
Al�m disso, o ensaio duvida do
m�todo. [�]. Digamos que o ensa�sta n�o sabe bem o que busca, o que quer, aonde
vai. Descobre tudo isso � medida que anda. Por isso, o ensa�sta � aquele que
ensaia, para quem o caminho e o m�todo s�o propriamente ensaio (Larossa, 2003, p. 111-112).
At� o ponto
em que, da experi�ncia com o objeto, surge outra concep��o de m�todo, n�o dedut�vel
e aplic�vel a um contexto hist�rico determinado:
Desse modo, o ensaio suspende [�] o conceito tradicional de
m�todo. O pensamento � profundo por se aprofundar em seu objeto, e n�o pela
profundidade com que � capaz de reduzi-lo a uma outra coisa. O ensaio lida com
esse crit�rio de maneira pol�mica, manejando assuntos que, segundo as regras do
jogo, seriam considerados dedut�veis, mas sem buscar a sua dedu��o definitiva.
Ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de
sua livre escolha. N�o insiste caprichosamente em alcan�ar algo para al�m das
media��es � e estas s�o media��es hist�ricas, nas quais est� sedimentada a
sociedade como um todo �, mas busca o teor de verdade como algo hist�rico por
si mesmo (Adorno, 2003, p. 27).
5) A estrutura em fragmentos �
tomando o fragmento como mat�ria e estrutura, o ensaio n�o se disp�e a abarcar
nada al�m da descontinuidade da realidade com a qual comp�e seu pensamento:
� inerente � forma do ensaio sua pr�pria relativiza��o: ele
precisa se estruturar como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido. O
ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a pr�pria realidade � fragmentada; ele
encontra sua unidade ao busc�-la atrav�s dessas fraturas, e n�o ao aplainar a
realidade fraturada. A harmonia un�ssona da ordem l�gica dissimula a ess�ncia
antag�nica daquilo sobre o que se imp�e. A descontinuidade � essencial ao
ensaio; seu assunto � sempre um conflito em suspenso (Adorno, 2003, p. 35).
6) �A escrita pelo meio � o ensaio
recusa a unidade e a perenidade almejadas pelo texto acad�mico cl�ssico. No que
se refere � unidade, defende um formato n�o delimitado pela introdu��o e
conclus�o, delimitando-se pelas conex�es entre os elementos do seu objeto; no
que se refere � perenidade, evoca em seu lugar o espa�o do ef�mero e do
individual. As reflex�es infracitadas s�o de Adorno, mas escolho iniciar com o
resumo trazido por Larossa (2003) sobre o modo como o
tema aparece naquele:
[�] o ensaio n�o adota a l�gica do princ�pio e do fim, nem
come�a pelos princ�pios, pelos fundamentos, pelas hip�teses, nem termina com as
conclus�es, ou com o final, ou com a tese, ou com a pretens�o de ter esgotado o
tema. O ensa�sta inicia no meio e termina no meio, come�a falando do que quer
falar, diz o que quer e termina quando sente que chegou ao final e n�o por que
j� nada resta a dizer, sem nenhuma pretens�o de totalidade (Larossa,
2003, p. 112).
No lugar da conclus�o, o ensaio delimita-se pelo conte�do e
pelas conex�es entre seus elementos:
�[�] o ensaio, de fato, n�o chega a uma
conclus�o, e essa sua incapacidade reaparece como par�dia de seu pr�prio a
priori; a ele � imputada a culpa que na verdade cabe �s formas que apagam
qualquer vest�gio de arbitrariedade. [�]. O que determina o ensaio � a unidade
de seu objeto, junto com a unidade de teoria e experi�ncia que o objeto acolhe.
O car�ter aberto do ensaio n�o � vago como o do �nimo e do sentimento, pois �
delimitado por seu conte�do. [�]. Suas transi��es repudiam as dedu��es
conclusivas em favor de conex�es transversais entre os elementos, conex�es que
n�o t�m espa�o na l�gica discursiva (Adorno, 2003, p. 36-43).
Ao
recusar as dedu��es conclusivas, o ensaio abre espa�o para o ef�mero e o
individual:
Ele se
revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Plat�o, segundo a qual o
mut�vel e o ef�mero n�o seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa
antiga injusti�a cometida contra o transit�rio, pela qual este � novamente
condenado no conceito. O ensaio recua, assustado, diante da viol�ncia do dogma,
que atribui dignidade ontol�gica ao resultado da abstra��o, ao conceito
invari�vel no tempo, por oposi��o ao individual nele subsumido (Adorno, 2003,
p. 25).
7a) A precis�o dos conceitos � nos ensaios, os conceitos n�o s�o definidos, mas
engendrados a partir das rela��es que estabelecem entre si e com os demais
elementos do texto, como aponta Larossa, o ensa�sta
�[�] n�o torna o conceito um fetiche, n�o define conceitos, mas vai precisando-os
no texto � medida em que os desdobra e os relaciona. Por isso � t�o importante
que o ensaio assuma a forma de exposi��o� (2003, p.
114). � nesse sentido que o �como� ganha destaque (e a isso concordam Larossa e Adorno), j� que o modo como os conceitos se
apresentam definir� a fecundidade do pensamento que introduzem:
Assim como o ensaio renega os dados primordiais, tamb�m se
recusa a definir os seus conceitos. [�] O ensaio, em contrapartida, incorpora o
impulso antissistem�tico em seu pr�prio modo de proceder, introduzindo sem
cerim�nias e �imediatamente� os conceitos, tal como eles se apresentam. Estes
s� se tornam mais precisos por meio das rela��es que engendram entre si. [�].
Na verdade, todos os conceitos j� est�o implicitamente concretizados pela
linguagem em que se encontram. O ensaio parte dessas significa��es e, por ser
ele pr�prio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar
o relacionamento da linguagem com os conceitos, acolhendo-os na reflex�o tal
como j� se encontram inconscientemente denominados na linguagem (Adorno, 2003,
p. 28-29).
7b) A experi�ncia estrangeira diante do conhecimento e a
disposi��o ao risco � ainda tratando dos conceitos, destaco este trecho por ser
especialmente bem-vindo na jun��o da discuss�o do ensaio com a estrangeiridade. �, de maneira mais ampla, um tema caro �
especificidade do modo de produ��o de interven��es urbanas que venho me
aprofundando, e, de maneira focal, � minha condi��o no Togo. O estrangeiro que
mergulha no ambiente cultural como um gesto de aprendizagem � aqui apresentado
como aquele que se disp�e ao risco do erro e da incerteza, caros tamb�m �
produ��o ensa�stica:
O
modo como o ensaio se apropria dos conceitos seria, antes, compar�vel ao
comportamento de algu�m que, em terra estrangeira, � obrigado a falar a l�ngua
do pa�s, em vez de ficar balbuciando a partir das regras que se aprendem na
escola. Essa pessoa vai ler sem dicion�rio. Quando tiver visto trinta vezes a
mesma palavra, em contextos sempre diferentes, estar� mais segura de seu
sentido do que se tivesse consultado o verbete com a lista de significados,
geralmente estreita demais para dar conta das altera��es de sentido em cada
contexto e vaga demais em rela��o �s nuances inalter�veis que o contexto funda
em cada caso. � verdade que esse modo de aprendizado permanece exposto ao erro,
e o mesmo ocorre com o ensaio enquanto forma; o pre�o de sua afinidade com a
experi�ncia intelectual mais aberta � aquela falta de seguran�a que a norma do
pensamento estabelecido teme como a pr�pria morte. O ensaio n�o apenas negligencia a certeza indubit�vel, como tamb�m renuncia ao
ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o
leva para al�m de si mesmo, e n�o pela obsess�o em buscar seus fundamentos como
se fossem tesouros enterrados (Adorno, 2003, p. 30).
�� semelhan�a do personagem da met�fora de
Adorno, em Lom� eu apreendi a cultura sem dicion�rio. Atravessado por paix�es
diversas em meu percurso estrangeiro na cidade, encarei tanto a minha
hostilidade como a necessidade de convert�-la em amabilidade urbana, em cria��o
de proximidade e afeto. Com o passar dos dias, pela repeti��o dos vocabul�rios
corporais que fui aprendendo no contato com a cidade, mostraram-me caminhos
para a transgress�o da hostilidade. As pessoas, em sua imensa maioria, foram
af�veis e compreens�veis �s minhas dificuldades. Suas atitudes me auxiliaram a
encontrar caminhos para me situar e estabelecer uma conviv�ncia pac�fica com a
rotina na cidade.
A exce��o era o tr�nsito de
ve�culos.
Talvez por conta dos
atropelamentos: mas, � importante que se diga, estes me pareceram revelar mais
a minha incapacidade de agir diante do tr�nsito da cidade do que uma
periculosidade do tr�nsito em si, j� que, al�m dos atropelamentos que sofri, vi
apenas mais um acidente de tr�nsito nos dez dias que estive na cidade;
Talvez por conta da polui��o
que tanto me incomodava a respira��o;
Talvez pelo intenso barulho que
faziam: a falta de sinaliza��o de tr�nsito � muitas vezes substitu�da por
toques intermitentes nas buzinas;
Ou talvez, o que � mais
prov�vel, por tudo isso junto; O tr�nsito de ve�culos me incomodava profunda e
frequentemente.
Ao mesmo tempo, uma situa��o
vivida no tr�nsito foi um dos primeiros momentos em que, tendo acabado de
chegar no pa�s e estando j� profundamente incomodado (na ocasi�o, pelo sumi�o
das bagagens e pelos gastos imprevistos), a hostilidade foi atravessada por uma
rela��o emp�tica. No meio da rua de quatro pistas n�o sinalizadas e sem
ilumina��o p�blica, em um momento de intenso fluxo de toda sorte de ve�culos
particulares (carros e motos), os far�is do carro onde eu estava iluminaram, a
poucos metros de dist�ncia, uma mo�a que atravessava na escurid�o. Eu temi que
acab�ssemos por atropel�-la, mas ela seguiu habilmente e atravessou em
seguran�a por entre os carros em movimento. Momentos depois voltei a me
assustar por conta de outras pessoas que eram, de tempos em tempos, iluminadas
por nossos far�is. A sensa��o de sobressalto de causar acidentalmente um
atropelamento me acompanhou ao longo de minha estadia na cidade. Apesar de ir
se atenuando, sua const�ncia me pareceu uma via pela qual o exerc�cio da
amabilidade poderia romper com a hostilidade que o tr�nsito me provocava.
Ent�o, foi a partir da minha empatia para com essas pessoas que propus a a��o
Aguarda-te Escurid�o, definida pelo seguinte programa:
No per�odo noturno, convidar
as pessoas que estiverem prestes a atravessar uma rua movimentada e sem
ilumina��o ou sinaliza��o de tr�nsito a me acompanharem na passagem ao outro
lado da rua sob um guarda-chuva equipado com luzes led e outros materiais
para nos iluminar durante a travessia.
Definidos os aspectos
orientadores da escrita ensa�stica e o processo de cria��o do programa da
interven��o site specific Aguarda-te Escurid�o;
passo a tecer algumas considera��es a respeito dos seus modos de execu��o e sua
eventual pertin�ncia em outros processos de pesquisa em arte.
�A interven��o urbana em arte, como abordada da
perspectiva de minha pesquisa de doutoramento; compartilha equivalentes de
todos os sete elementos norteadores da escrita ensa�stica aqui compilados.
Estar no exerc�cio de investiga��o de uma manifesta��o est�tico-po�tica que se
vale do procedimento experimental, do compromisso ao ocorrido como assunto, da presentifica��o, do m�todo situado, da fragmenta��o, de sua
concep��o pelo meio com o aprofundamento no objeto e em suas conex�es ao inv�s
dos pressupostos conceituais (ou est�ticos) e da conex�o com a estrangeiridade como delimita��o de sua for�a criativa, me
levaram a compreender e desenvolver o ensaio como o espa�o preferencial de
constru��o de minhas escritas ao longo dos �ltimos anos e � respeitada a
exce��o do que se refere � estrangeiridade �
considerar sua pertin�ncia nas pesquisas acad�micas que t�m como percurso e
objeto a realiza��o de obras art�sticas.
De modo mais amplo,
parece-me que h� pertin�ncia em trazer � tona a discuss�o do ensaio como um
modo de escrita acad�mica. De fato, ainda que espa�os para a escrita ensa�stica
n�o sejam raros em programas nacionais e internacionais de p�s-gradua��o, o
ensaio ainda padece da dist�ncia do ambiente acad�mico stricto sensu.
Segundo Larossa aponta, retomando Adorno passim, tal
dist�ncia pode ser atribu�da a um modo de organiza��o da academia:
[...]
o ensaio se v� esmagado por uma ci�ncia em que todos defendem o direito de
controlar a todos. A ci�ncia organizada � o lugar dos controles, o lugar das
bancas, dos tribunais, das avalia��es, das hierarquias, e exclui com o aparente
elogio de �interessante� ou �sugestivo� o que n�o est� ajustado ao padr�o de
consenso (Adorno, 2003 apud Larossa, 2003, p. 107).
No lugar de recusar a
ci�ncia, a arte pode sugerir atrav�s de suas especificidades (e o uso da
escrita ensa�stica est� entre elas) a constru��o de um lugar alternativo, como
bem aponta Luk�cs (2008, p. 09-10): �h� uma ci�ncia da arte e � preciso que
haja. E s�o justamente os maiores representantes do ensaio os que menos podem
renunciar a ela: o que eles criam tem de ser tamb�m ci�ncia�.
Se � verdade que a ci�ncia
do ensaio � a mesma que se insere no �mbito art�stico, parece-me que � hora da
arte se tornar protagonista no estudo e na aplica��o dessa maneira de construir
e de pensar ci�ncia. At� porque, como nos lembra Larossa,
�a escrita acad�mica [tradicional] � al�rgica ao riso, � subjetividade e �
paix�o� (2003, p. 110, acr�scimo meu), e talvez n�o haja ci�ncia na qual o
riso, a subjetividade e a paix�o sejam mais intr�nsecos que aquela constru�da a
partir da pesquisa em arte.
Por fim, uma caracter�stica
pr�pria do ensaio moderno diretamente relacionada �s pesquisas nas quais o
artista investiga � o destaque do seu pr�prio processo criativo. Segundo
Luk�cs, o ensaio moderno � aquele no qual o ensa�sta se v� obrigado a incluir a
si mesmo como objeto: �Agora o ensa�sta tem de refletir sobre si mesmo,
encontrar-se e construir algo pr�prio com o que lhe � pr�prio� (Luk�cs, 2008,
p. 11), ao que concorda o cr�tico liter�rio su��o Jean Starobinski,
quando afirma que: �Para satisfazer plenamente � lei do ensaio � preciso que o
�ensaiador� se ensaie a si mesmo� (Starobinski, 2011,
p. 19)4 .
Olhar para minha viv�ncia em
Lom� e construir com ela uma a��o situada assemelha-se a olhar as cicatrizes �
ou seja, o que presentifica, o que persiste como
marcas da experi�ncia e n�o o que foi � que essa viv�ncia deixou em mim e
buscar construir neste ensaio uma escrita situada, presentificada,
comprometida com o objeto e com a dura��o das conex�es que aqui se fa�am
poss�veis.
Quando ofereci a travessia
aos passantes, contei com ajuda de dois togoleses que falavam franc�s e ingl�s,
al�m de, pelo menos, uma das l�nguas locais. Cada um deles se posicionou em um
dos lados da avenida e n�s tr�s abordamos as pessoas que pareciam ter a
inten��o de atravessar a via. Do que se seguiu ao convite inicial vivenciei
momentos marcantes, tanto de pessoas que n�o se permitiram me acompanhar na
travessia � das quais destaco um casal que disse a um de meus ajudantes que o
que eu estava fazendo poderia ser um ritual religioso mal�fico no qual eu
roubaria suas almas � como de pessoas que se permitiram � das quais destaco
tr�s: 1) as profissionais do sexo que voltavam de motot�xi de seus programas e
desciam do lado oposto �quele no qual aguardavam os pr�ximos clientes, e das
quais naquela noite eu me tornei o �ajudante oficial�; 2) uma mulher ressabiada
com a proposta, que inquiriu a meus ajudantes e depois a mim do pre�o a se
pagar e, ao ouvir de todos que era gratuito perguntou: �mas por que um branco
faria isso por mim?�, e se mesmo sem estar convencida do porqu� me permitiu
acompanh�-la; 3) alguns jovens que decidiram atravessar s� para ter a
experi�ncia e come�aram a cantar e dan�ar comigo m�sicas de discoteca durante a
travessia em refer�ncia ao efeito das luzes sobre n�s.
Ao caminhar durante aquelas
duas horas de um lado a outro da pista, ao marcar a cidade com os meus passos e
ao marcar o meu corpo com a cidade, as pessoas, a fuligem e a polui��o sonora,
as luzes e a escurid�o etc., eu tamb�m ensaiava[4]. Eu fui a met�fora do ensa�sta
para Larossa (2003, p. 110): �um transeunte, um
passeador, um divagador, um �extravagante��, desses que, �n�o sabe bem o que
busca, o que quer, aonde vai. Descobre tudo isso � medida que anda. Por isso, o
ensa�sta � aquele que ensaia, para quem o caminho e o m�todo s�o propriamente
ensaio�. Met�fora essa t�o pr�ximas das discuss�es que aqui tra�amos sobre o
ensaio, quanto das err�ncias realizadas em Lom�, que me conduziram ao encontro
da interven��o e tamb�m � configura��o deste ensaio �
cicatriz e divaga��o daquela experi�ncia em mim.
Quando eu me dispus a
atravessar a rua, acompanhado dos transeuntes que ali estavam e me deram o
privil�gio de suas companhias, eu n�o tinha consci�ncia de que procurava
justamente aqueles encontros. Encontros estes que me ampliaram a possibilidade
de empatia e de descobrir o tr�nsito como um organismo vivo. Depois de ter sido
atropelado duas vezes, logo nos primeiros dias que cheguei � cidade, eu n�o poderia
supor que minha a��o seria passar duas horas transitando por uma via
movimentada e escura, at� eu me tornar tamb�m parte daquele organismo, at�
aprender a conviver, com a ajuda de meus companheiros de passagem.
Ao chegar em Lom�, a
percep��o de quais de minhas leituras de mundo eram determinadas por
pressupostos adquiridos em viv�ncias anteriores (pessoais ou culturais) me
auxiliou � compreens�o da necessidade de suspens�o desses ju�zos e conforma��o
de uma leitura situada. A descoberta, por consequ�ncia, de uma forma espec�fica
de ser derivada dessa nova leitura, inaugura n�o apenas mundos poss�veis (no
qual guarda-chuvas de luz atravessam as ruas � noite sobre cabe�as de
transeuntes unidos), mas tamb�m outros eus,
experimentais, compromissados com a experi�ncia, presentificados,
situados, estrangeiros, her�ticos e � espreita das conex�es poss�veis; desses eus aos quais possa agradecer: n�o ser
preconceituoso, gra�as a d�eus!
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Acesso em: 03 ago. 2020.
[1] A leitura e a a��o
situadas s�o temas que venho me dedicando desde 2006 (como assunto e/ou
exerc�cio). Sobre estes temas destaco, dentre as publica��es de minha autoria,
os ensaios Destino: Poesia - tentativas de fazer arte na condi��o de
estrangeiro, publicado na revista eletr�nica Arte da Cena (Art on Stage),
Goi�nia, v. 2, n. 3, p. 203- 218, jul-dez/2016, dispon�vel em:
https://goo.gl/KTY9Yb; e Pognometria e Interven��o Urbana: um exerc�cio de
vari�veis, publicado em Boitat� Revista do GT de Literatura Oral e Popular da
ANPOLL, n. 25, p. 259-292, janjun de 2018, dispon�vel em:
https://tinyurl.com/rhfau47. Acesso em: 08 jan. 2020. Esses e outros ensaios
podem ser acessados em https://www.quandonde.com.br/publicacoes.
[2] Mar�a Zambrano. La
gu�a como forma dei pensamiento. In: Apulltes sobre el tiempo y la poes�a.
Madrid:Alianza, 1987. p. 45-50.
[3] Entre 2015 e 2019 conduzi uma pesquisa pr�tico-te�rica que relacionava o desenvolvimento de estrat�gias de constru��o e efetiva��o de a��es site specifics em interven��es urbanas em arte a partir do status de estrangeiro ao desdobramento de modos de dizer acad�mico-cient�ficos em arte adequados �s especificidades das pr�ticas �s quais se filiavam. Tal pesquisa originou a tese Ensaios entre mundos poss�veis: a estrangeiridade como princ�pio para a cria��o de interven��es urbanas em arte. 2019. 9 v. Programa de P�s-Gradua��o em Artes C�nicas (PPGAC), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Rio de Janeiro (RJ), 2019. Este ensaio, que aqui se encontra revisado e ampliado, originalmente integra esta pesquisa.
[4] A rela��o entre ensaio e escrita de si � especialmente prof�cua para o desenvolvimento da reflex�o sobre a pesquisa em arte em primeira pessoa. Por�m, por sua amplitude e singularidade, optei por n�o aprofund�-la neste texto. Tal discuss�o � tema de outro ensaio de minha autoria, Cronofagia e interven��o urbana: a arte de comer lixo como quem come o tempo, 2019, ainda in�dito.