Preconceituoso, graças a Deus!: a intervenção urbana e a escrita ensaística como
reinvenção de si
Judgmental, thanks to God!: urban
intervention and the critical essay as a reinvention of oneself
Diego Baffi
Doutor em Teatro pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mestre em Artes e Bacharel em
Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); docente do
Curso de Bacharelado em Artes Cênicas da Universidade Estadual do Paraná
(UNESPAR) lotado em Curitiba Campus II (FAP). É membro do GP Processos
Criativos em Artes Cênicas (Unespar/CNPq) e
coordenador do projeto de pesquisa “Arte e Espaço Público: uma discussão no
meio da rua”. Paulistano de nascimento, campineiro de formação e curitibano de
morada, é membro fundador da quandonde intervenções
urbanas em arte (plataforma criada em 2012 que já atuou em 30 cidades do
Brasil, além de 12 outros países da África, América e Europa), palhaço (atuação
e direção), vegano, pai da Luísa, ciclista e antifascista.
www.quandonde.com.br –
diego_baffi@yahoo.com.br – https://orcid.org/0000-0003-1751-9047
Resumo
Este ensaio baseia-se em
escritores clássicos e contemporâneos para apresentar as bases históricas e
conceituais da escrita ensaística. Concomitantemente, trata da experiência do
autor na construção site specificda intervenção urbana em arte Aguarda-te Escuridão (concebida e apresentada em setembro de 2018
em Lomé, Togo). Deste modo, o texto apresenta e defende a pertinência tanto do
uso do formato do ensaio literário para a escrita derivada da pesquisa
acadêmica que discuta a prática em arte quanto do que define como uma
“metodologia ensaística” de produção de obras e conhecimento em arte.
Palavras-chave: Arte de rua. Urbanização. Escrita e arte. Performance (Arte).
Abstract
The
essay is based on classic and contemporary writers to present the historical
and conceptual bases of essay writing. Concomitantly, it deals with the
author's experience in the site-specific construction of the urban intervention
in art Darkness Awaits (conceived and presented in September 2018 in Lomé,
Togo). In this way, the text presents and defends the relevance both of using
the literary essay format for writing derived from academic research that
discusses practice in art and of what is defined as an “essay methodology” for
the production of works and knowledge in art.
Keywords Street art. Urbanization.
Writing and art. Performance art.¨
DOI:
http://dx.doi.org/10.5965/1808312915252020e0017
Recebido em: 10/06/2020
Aceito em: 07/08/2020
“Devemos ser bilíngues mesmo em uma única língua, Devemos ter uma língua menor no interior de nossa língua,
Devemos fazer de nossa própria língua um uso menor. O multilinguismo
não é apenas a posse de vários sistemas, Sendo cada um
homogêneo em si mesmo; É, antes de tudo, A linha de fuga ou de variação que
afeta cada sistema Impedindo-o de ser homogêneo. [...] Falar em sua própria
língua como um estrangeiro.” (Gilles Deleuze e Claire Parnet)
* A diagramação deste ensaio é fruto de uma parceria com a
designer Cynthia Bresser (flickr. com/photos/183433746@N05). Para o texto final colaboraram
Liliane Küpper, Raquel Gouvêa e Ines Saber. A todas,
meu sincero agradecimento pela generosidade no olhar e pelas valiosas
contribuições. Preconceituoso, graças ao Deus!: a
intervenção urbana e a escrita ensaística como reinvenção de si. PARA
VISUALIZAÇÃO do arquivo com design acessar a versão em PDF.
Preconceituoso, graças ao Deus!: a intervenção
urbana e a escrita ensaística como reinvenção de si. Ou então: ‘Descobrir-me
preconceituoso. E ter orgulho disso!’. Tanto o título deste ensaio quanto a
frase que abre o texto além de tratarem de preconceito buscam circunscrever o
que me seria identitário. Outra característica comum é que, ao mesmo tempo em
que se aproximam dos temas que se enunciam, ambos pretendem promover desvios
das interpretações recorrentes e de leituras viciadas pelo hábito. O primeiro
deslocamento – proposto em relação à frase que abre o ensaio – é o da
manifestação do apreço de si por reconhecer-se preconceituoso. Neste caso, o
apreço de que gostaria de tratar não está no preconceito, mas no
reconhecimento. Em setembro de 2018, enquanto o avião no qual viajava descia em
Lomé, capital da República Togolesa (Togo), emocionei-me ao ver o pôr do sol
pela janela. O pensamento que acompanhava essa emoção era de que eu revia algo
conhecido por filmes ambientados na África, especialmente em O Rei Leão.
Essa animação dos estúdios Walt Disney de 1994 – uma visão estadunidense sobre
a África a partir do estereótipo de um lugar habitado por animais não-humanos
organizados sob um regime monárquico – havia me marcado de tal forma que minha
primeira visita ao continente africano se iniciou como um pretenso reencontro.
Reconhecer (ou descobrir) essa tendência a buscar estereótipos que me foram
anteriormente apresentados pelo meu ambiente cultural; foi um passo importante
para tentar diminuir a mediação do meu olhar por um modelo previamente
conhecido em relação ao qual eu testaria a África à minha frente; um gesto no
sentido de suspender tanto quanto possível o preconceito a respeito do que
encontraria.
Dito em outros termos: como
não se opera alijado de si, mas consigo – nesse espaço de tensão entre o que
vai sendo sendo (força de recognição
com modos de ser e modos de perpetuar uma certa configuração de mundo que já se
habita e conhece) e o que vai vai sendo (força de
novas cognições com modos de inaugurar e de destituir configurações próprias ou
partilhadas de mundo) –, o reconhecimento do preconceito tem como função
contribuir à conscientização do modus operandi sedimentado pelo hábito.
Tal conscientização é o primeiro passo para inaugurar uma nova ética, calcada
na presentificação. Confrontar o preconceito com a
singularidade do que tem/pode a realidade que se apresenta, recusando
generalizações e etiquetas. O segundo deslocamento – proposto em relação ao
título deste ensaio – é o do uso da palavra graças como ligação entre o
preconceito e Deus. Aqui, a acepção da palavra desvia do seu uso corriqueiro,
como forma de agradecimento, e faz alusão ao reconhecimento de quem é a
responsabilidade. Em continuidade à frase que abre o ensaio, quero, com essa
expressão, reconhecer que parte significativa do meu preconceito pode ser
diretamente atribuída ao fato de eu ser oriundo de um meio cultural altamente
influenciado por princípios judaico-cristãos: monoteísta, dogmático,
maniqueísta e que tem sua representação maior nesta figura chamada Deus, suposto
definidor de todas as condutas e fim último de todas as ações consideradas
positivas a partir de tais condutas. Nesse sentido, posso supor que a emoção
que aquela imagem do pôr do sol no horizonte africano me proporcionou
tratava-se de uma reminiscência, ainda que inconsciente, do Jardim do Éden
judaico-cristão: o paraíso incólume com natureza
imaculada à prova das ações maléficas do homem. Ao evocar dualidades
valorativas (certo/errado) apriorísticas, colonialistas e imutáveis, a cultura
judaico-cristã oferece parâmetros de leitura preconceituosos a outras
experiências culturais, sejam elas individuais ou coletivas. Para além do juízo
moral, o preconceito mata a experiência, pois ter um padrão determinado de
leitura do que está por vir condiciona a uma visão de mundo classificável
segundo chaves binárias, que fazem ver sempre as mesmas coisas (parâmetros) em
coisas diferentes, de modo que o observado está sempre em função de algo que
lhe é alheio, externo e anacrônico. Dessas chaves de leitura derivam determinadas
maneiras de agir e de falar sobre o mundo que tendem a se perpetuar com mínimas
alterações ad infinitum. A busca de uma
alternativa à leitura a partir do alheio, do externo e do anacrônico se
orientará pela construção de uma leitura situada nas condições da ocorrência,
do intrínseco e do presente ou, resumidamente, de uma leitura situada. A
leitura situada[1]
se apresenta como resistência às leituras de mundo ditadas por preconceitos,
aplicando-se, como uma das derivações possíveis, às formas de agir e de
descrever o mundo, de traduzi-lo e compor com ele através da linguagem. Neste
ensaio, proponho aprofundar o que se refere à escrita situada, a escrita que
desvia daquilo que Deus manda: a escrita ensaística. Essa relação entre
a escrita ensaística como um desvio da norma padrão representada por Deus está
presente na maneira como o filósofo espanhol Jorge Larossa
(2003) aborda a questão do ensaio e da sua relação com o ambiente acadêmico:
Na verdade, falo do ensaio como um ‘modo de escrita’ normalmente excluído de um espaço de saber [acadêmico]. Porém, os dispositivos de controle do saber são também dispositivos de controle da linguagem e da nossa relação com a linguagem, quer dizer, das nossas práticas de ler e escrever, de falar e escutar. […] poderíamos dizer que o conformismo linguístico está na base de todo conformismo, e que falar como Deus manda, escrever como Deus manda e ler como Deus manda, ao mesmo tempo, é pensar como Deus manda. Também poderíamos dizer que não há revolta intelectual que não seja também, de alguma forma, uma revolta linguística, uma revolta no modo de nos relacionarmos com a linguagem e com o que ela nomeia. Ou seja, que não há modo de “pensar de outro modo” que não seja, também, “ler de outro modo” e “escrever de outro modo” (Larossa, 2003, p. 102, acréscimo meu).
Se a escrita acadêmica é a
escrita regida pelos modelos externos ditados por Deus, a revolta contra o que Deus
manda na escrita ensaística é a expressão da heresia. Como aponta o
filósofo alemão Theodor Adorno:
[…] a lei formal mais profunda do ensaio é a heresia. Apenas a infração à ortodoxia do pensamento toma visível, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisível (ADORNO, 2003, p. 45).
Há certa disposição metafórica nessa relação entre Deus e a escrita acadêmica, mas há também uma esfera/contexto literal: o contexto histórico do que entendemos por escrita acadêmica. As primeiras universidades modernas ocidentais foram implementadas a partir do século XII pela Igreja Católica que, desde então, determinou conteúdo e forma dos estudos acadêmicos. Ainda que, na atualidade, a Igreja tenha perdido seu posto de principal administradora das instituições de ensino superior, seus dogmas estão profundamente arraigados na organização dos estudos acadêmicos. O ensaio, por sua vez, surge ainda no contexto medieval como uma das categorias de estudos não acadêmicos, ou seja, um estudo que não seguia os ditames de Deus e não tinha as bênçãos da Igreja. Na ocasião de seu surgimento a nomenclatura ensaio visava definir um modo de escrita e proteger seus autores, já que determinava um caráter despretensioso (por “inconclusivo”, “esboçado”, “fantástico”, “díspar” e “plural”) diante do conhecimento, de modo a desviar de uma possível condenação pela Igreja Católica e de seu malfamado Índex (Starobinski, 2011, p. 16, passim).
De fato, o ensaio foi se
estabelecendo como uma das formas de escrita que se opõe à pretensão à pureza e
à grandiosidade, marcas da escrita acadêmica. Ao invés disso, é marcada pela
impureza, pela minoridade e pela relação com a vida mundana e com a paixão,
como aponta a filósofa espanhola Maria Zambrano[2], apresentada por Larossa em citação passim:
Para Maria Zambrano, a razão não deve dominar a vida, deve enamorá-la, e são justamente as formas de escrita com capacidade de enamorar a vida, quer dizer, de capturá-la e dirigi-la desde dentro, as que desapareceram. Maria Zambrano faz uma reivindicação dos gêneros menores, impuros e dominados justamente por isso, porque mantinham essa relação com a vida que os gêneros maiores, puros, e hoje dominantes, perderam (Zambrano, 1972 apud Larossa, 2003, p. 105).
Mesmo com sua especialização
ao longo dos séculos, o ensaio não constituirá um gênero de bases
criteriosamente determinadas, sendo, sobretudo um modo de exploração do
conhecimento que visa à criação de uma zona híbrida. Larossa
(2003), a partir de Adorno, aponta que o ensaio atuaria na fronteira entre arte
e ciência. Segundo os autores, ao transpor e questionar esta distinção, o
ensaio atuaria contra mecanismos de exclusão, ampliando os limites do visível,
do pensável e do dizível:
O
ensaio confundiria ou atravessaria a distinção entre ciência, conhecimento,
objetividade e racionalidade, por um lado; e arte, imaginação, subjetividade e
irracionalidade por outro. O que o ensaio faz é colocar as fronteiras em
questão. E as fronteiras, como se sabe, são gigantescos mecanismos de exclusão.
[…]. Por isso, são precisamente todos esses questionadores de fronteiras os que
ampliaram o âmbito do visível – ao ensinar-nos a olhar de outra maneira o
âmbito do pensável, ao ensinar-nos a pensar de outro modo – e o âmbito do
dizível, ao ensinar-nos a falar de outro modo (Larossa,
2003, p. 106).
O filósofo alemão Max Bense também situa o ensaio em uma zona de fronteira,
porém, para o autor, tal fronteira se daria entre territórios diversos daqueles
que especifica Larossa:
[…] entre a poesia e a prosa, entre o
estado estético da criação e o estado ético da convicção, há um terreno
intermediário que é digno de nota. De aspecto iridescente, oscilando numa
ambivalência entre a criação e a convicção, ele se fixa na forma literária do
ensaio. […] O ensaio é uma peça de realidade em prosa que não perde de vista a
poesia (Bense, 2014, s. p.).
É importante notar que o
terreno intermediário de Bense ou o espaço
transfronteiriço de Larossa não visam (e, no limite,
não podem) se constituir como uma nova disciplina, ou como um espaço de
compartilhamento (inter) ou trânsito (trans)
determinável e reproduzível entre disciplinas, isso porque, ao contrário dos
movimentos contemporâneos no ambiente acadêmico, o ensaio não se pretende compartimentador:
A
questão é que o mundo acadêmico está altamente compartimentalizado e tenho a
sensação de que toda essa moda da transdisciplinaridade, da
interdisciplinaridade e coisas desse estilo, não faz outra coisa senão abrir
novos compartimentos, como se não fossem suficientes os que já temos. É como se
estivéssemos fabricando especialistas na relação, na síntese, no ‘inter’ e no ‘trans’; como se houvesse uma política
acadêmica da mestiçagem; como se além das raças puras estivéssemos inventando
os especialistas em impurezas, quer dizer, nas relações entre as raças puras (Larossa, 2003, p. 106).
Se o ensaio não trabalha no
sentido da formação de especialistas, ele nega um dos pilares da ciência tradicional,
cujo processo de formação de novos pesquisadores se organiza a partir de
especializações constantes e progressivas. Além do elogio ao móvel e ao
precário (que toma o lugar do compartimentado e do estabelecido) como espaço de
potência do ensaio, existe outra linha de fuga da ciência proposta pelo ensaio,
o enfrentamento à manutenção do status quo:
Se a
ciência, falseando segundo seu costume, reduz a modelos simplificadores as
dificuldades e complexidades de uma realidade antagônica e monadologicamente
cindida, diferenciando posteriormente esses modelos por meio de um pretenso
material, então o ensaio abala a ilusão desse mundo simples, lógico até em seus
fundamentos, uma ilusão que se presta comodamente à defesa do status quo
(Adorno, 2003, p. 33).
A intervenção urbana em
arte, abordada na perspectiva de minha pesquisa de doutoramento[3], compartilha desse duplo movimento.
Primeiramente, ela não defende a construção de especialistas, pois, se a
especialidade exige aprofundamento em um tema para a construção de uma
habilidade (de saber e/ou de fazer), a intervenção urbana trabalha a partir da
contingência e da necessidade e, nesse sentido, transita suas proposições na
medida em que transitam as condições ao seu redor. Além disso, a pessoa
especialista é aquela que pode ser reconhecida por sua habilidade e que
constrói com ela um lugar para si dentro do status quo, lugar no qual e
através do qual se estabelece; já o interventor urbano busca não ser
reconhecido como tal e está mais interessado em criar abertura para outros
mundos possíveis do que em contribuir à perpetuação de um mundo qualquer,
existente ou a ser criado.
Esse enfrentamento do status
quo pela intervenção urbana é abordado nesta passagem da arquiteta
brasileira Adriana Fontes, que prefere denominá-las intervenções temporárias,
enfocando a efemeridade que normalmente constitui traço identitário das intervenções
urbanas:
[…] o atual estágio da modernidade, que
denomino como de condição efêmera, imprime alguns traços característicos ao
espaço público como a sensação de hostilidade, o individualismo e as relações
superficiais (novas formas de engajamento […] consideradas como aspectos
negativos desta nova era). As intervenções temporárias, nesse sentido,
funcionam como catalisadores de relações de proximidade e intimidade, tanto com
o próprio espaço quanto na relação entre os indivíduos da urbis,
qualidade que já pude nomear como amabilidade urbana. Por sua vez, essas
intervenções […] também estão ancoradas na condição de efemeridade, muitas
vezes como expressões ou reflexos da patente aceleração da vida contemporânea e
da leveza e liberdade com que nela se move o indivíduo (e, por isso,
consideradas o aspecto positivo da condição contemporânea), com maior ou menor
grau de contemporaneidade (Fontes, 2013, p. 71).
A ação de intervenção urbana
concebida a partir da minha experiência como estrangeiro em Lomé – vivida ao
longo de dez dias, em setembro de 2018, como parte das pesquisas de campo do
meu doutoramento, compostas pela concepção e execução de ações site specifics a partir das especificidades do choque
cultural derivado do meu status de estrangeiro em cada um dos doze
países nos quais as pesquisas de campo foram realizadas – acompanhou esse
movimento de catalisar relações efêmeras de proximidade e intimidade em meio a
um espaço que me provocava uma grande sensação de hostilidade.
Parte desta hostilidade foi
sentida como consequência da quebra dos padrões que eu projetava no país, ou
seja, a quebra de meus preconceitos. Se, por um lado, a quebra de preconceitos
é algo bem-vindo, como já pude apontar; por outro, ele me colocava muitas vezes
perdido pela ausência de referências e pela necessidade de frequente
readaptação e isso me gerava uma sensação de irritabilidade e impaciência. No
entanto, há outros aspectos que me despertaram a sensação de hostilidade e que
ainda não foram apontados.
Quando cheguei, fui
surpreendido com uma taxa para obtenção do visto três vezes superior à
anunciada na página da internet da aduana togolesa, que estava desatualizada;
enquanto fazia os meus procedimentos de entrada no país, minha bagagem de mão
sumiu, sendo encontrada cerca de uma hora depois; esperei em vão na esteira
para a retirada da bagagem de porão, já que a minha mala foi embarcada em outro
voo e só chegou a mim cinco dias após minha entrada no país. No alojamento em
que me abriguei, havia outro hóspede que não foi devidamente avisado de minha
chegada; depois de quase uma hora tentando em vão acordá-lo conseguimos, eu e
meu anfitrião, abrir a porta trancada por dentro e quase sofremos um ataque do
hóspede, assustado com o que julgou ser uma invasão da propriedade por ladrões;
no quarto no qual fui hospedado não havia nenhum acesso à cozinha, nem nenhum
eletrodoméstico ligado à alimentação, como fogão ou geladeira, o que limitou
bastante a diversidade de alimentos que podia consumir. Assim que cheguei, fui
alertado por várias pessoas do alto risco de contrair malária. Infelizmente,
minha habitação não era suficientemente fechada e pernilongos conseguiam entrar
facilmente no quarto a qualquer hora do dia ou da noite. Com dois dias na
cidade, fui surpreendido por uma dermatite que me fez ter de ir atrás de
atendimento médico emergencial. A cidade tinha um dos trânsitos de veículos
mais intensos que já presenciei. Em horários de pico, a poluição do ar era tão
alta que, mesmo sendo acostumado a poluição do ar em minha cidade de origem e
criação (São Paulo, SP), sentia significativa dificuldade de respirar; a cidade
conta com uma quantidade considerável de ruas largas e muito movimentadas, sem
iluminação pública ou sinalização de trânsito, o que me fazia ter com bastante
frequência a sensação de um iminente acidente de trânsito. A sensação não foi
uma falsa impressão: em três dias, fui atropelado duas vezes na cidade, ambas
sem gravidade.
Nos primeiros dias, esses
acontecimentos somados me tiraram parte da fome e da sede e da disposição para
longas conversas. Essa apatia se contrastava com um movimento interno bastante
caótico, uma tentativa constante e inicialmente infrutífera de construção de
novos entendimentos, de compreender e organizar internamente o que estava
acontecendo. Esse processo produziu em mim uma sensação intensa de hostilidade
em relação às condições do espaço em que me encontrava. Porém, eu tinha a
consciência de que essa sensação foi uma resposta reativa derivada de minha
dificuldade psicofísica em lidar com aspectos imprevistos daquela realidade, de
maneira similar ao modo como o filósofo brasileiro Nelson Brissac
Peixoto (2003) descreve a relação entre cidades estrangeiras e recém-chegados:
Privilégio
de cidades estrangeiras visitadas pela primeira vez, dos desertos, das ruínas,
dos céus pitorescos: serem desorientadores. Não acolhem, desolam o espírito.
Interrompem o tempo e o espaço, impõem uma pausa ao pensamento (Peixoto, 2003,
p. 354).
Se não havia condutas
pré-determinadas a partir da minha experiência para lidar com esse conjunto de
acontecimentos, estes eram princípios norteadores para a definição de uma
resposta situada, e que vieram a desenvolver processos de convivência com a
realidade que me permitiram desviar da minha sensação inicial de hostilidade.
Entendi, então, a necessidade de problematizar e desenvolver alternativas à
minha ação e à leitura que fazia de cada situação que me foi apresentada.
Por estar disposto a produzir um ensaio como
consequência dos acontecimentos ali vivenciados, a atitude de problematizar
minha leitura dos eventos foi duplamente bem-vinda, já que ela também me
colocava em uma postura ensaística em relação à realidade. O trecho a seguir
traz apontamentos de Larossa a respeito da postura
ensaísta diante da escrita e da leitura de textos literários. Tenho tomado a
liberdade de propor a aplicação de suas reflexões à leitura de eventos em
geral, mas, em especial, durante a pesquisa, já que pretendia gerar ensaios
como este que aqui transcorre. Diz o autor:
Para o ensaísta, a escrita e a leitura não são apenas a sua tarefa, o seu meio de trabalho, mas também o seu problema. O ensaísta problematiza a escrita cada vez que escreve, e problematiza a leitura cada vez que lê, ou melhor, é alguém para quem a leitura e a escrita são, entre outras coisas, lugares de experiência, ou melhor ainda, é alguém que está aprendendo a escrever cada vez que escreve, e aprendendo a ler cada vez que lê: alguém que ensaia a própria escrita cada vez que escreve e que ensaia as próprias modalidades de leitura cada vez que lê (Larossa, 2003, p. 108).
Colocar-se em experiência
não é uma atitude meramente intelectual, é a pretensão de uma integridade que envolve
entrega e risco. À semelhança da amabilidade urbana de Fontes, a disposição
para realização do ensaio, segundo Adorno, é aquela na qual a pessoa ensaísta
se dispõe passionalmente à experiência da escrita:
O ensaio reflete o que é amado e odiado,
em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o
modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são
essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que se deseja
falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim,
não onde nada mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar entre os
despropósitos (Adorno, 2003, p. 16-17).
Dizer que o ensaísta está em
processo de aprendizagem de modos de ler e escrever; que ensaio é uma expressão
passional do qual a felicidade e o jogo são essenciais e que ele abdica de
remontar à origem do conhecimento tratado e de chegar a uma conclusão
definitiva (e a referência a Adão e Eva, ao princípio no Jardim do Éden, vem a
corroborar à conexão entre a escrita acadêmica e aquela que se dá segundo o que
Deus manda), pode dar a impressão de que o ensaio abre mão de um
compromisso diante do conhecimento.
Para dirimir esta impressão,
vale nos demorarmos em algumas considerações a respeito dos percursos que o
ensaio traça na construção do conhecimento:
1) O procedimento experimental – o
ensaísta será aquele que, diante de um conjunto de experiências,
considerações e reflexões, inicia uma busca por relações intrínsecas que
lhe permitam testar a sua verdade para que esta revele suas delimitações
internas e possa atingir, em sua melhor forma, a gênese de uma teoria.
Segundo Bense:
Deve-se entender por procedimento experimental a tentativa de
extrair uma ideia, um pensamento, uma imagem abrangente a partir de certa massa
de experiências, considerações e reflexões. O autor fareja uma verdade, sem,
contudo, tê-la em mãos; o autor vai fechando o círculo em torno delas por meio
de sucessivas conclusões, fórmulas verbais ou mesmo reflexões digressivas que
descobrem lacunas, contornos, cernes, conteúdos. A prosa que nasce daí não é
transparente como uma teoria. No melhor dos casos, vamos ao encontro da gênese
de uma teoria, presenciamos um nascimento e não nos livramos da impressão de
que o processo criativo em alguma medida impede a visão unitária do todo. A
mestria consumada no ensaio consistiria, pois, em levar o procedimento
experimental encarnado na expressão verbal às raias do teórico, até o limite em
que começa uma outra espécie de prosa – a teoria (Bense,
2014, s.p.).
2) O ocorrido como
assunto – para o filósofo húngaro Georg Lukács, a diferença entre o ensaio
e a literatura está no fato de que o primeiro trata exclusivamente de coisas
que já existiram (na arte ou na vida), e as toma como modelo,
reordenando-as:
[…]
o ensaio fala sempre de algo já formado, ou ao menos de algo que já existiu; é,
portanto, próprio de sua essência não retirar coisas novas de um nada vazio, e
sim apenas reordenar aquelas que já foram vivas alguma vez. E porque ele apenas
as reordena, em vez de formar algo novo do informe, ele está também
comprometido com elas, tem sempre de dizer “a verdade” sobre elas, encontrar
expressões para sua essência. Talvez se possa formular a diferença da maneira
mais breve da seguinte maneira: a literatura retira da vida (e da arte) os seus
motivos, para o ensaio a arte (e a vida) serve como modelo (Lukács, 2008, p.
08).
3) A presentificação e a verdade – ao contrário da escrita acadêmica, que pretende o encontro
da verdade eterna, o ensaísta lê e escreve “para um contexto cultural concreto
e determinado” […] “no presente e para o presente” (Larossa,
2003, p. 111). Ao substituir o ato de buscar o eterno no transitório por
eternizar o transitório, o ensaio altera também a sua ligação com a
verdade:
Níveis
mais elevados de abstração não outorgam ao pensamento uma maior solenidade nem
um teor metafísico; pelo contrário, o pensamento torna-se volátil com o avanço
da abstração, e o ensaio se propõe precisamente a reparar uma parte dessa
perda. A objeção corrente contra ele, de que seria fragmentário e contingente,
postula por si mesma a totalidade como algo dado, e com isso a identidade entre
sujeito e objeto, agindo como se o todo estivesse a seu dispor. O ensaio,
porém, não quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo
a partir deste, mas sim eternizar o transitório. A sua fraqueza testemunha a
própria não-identidade, que ele deve expressar; testemunha o excesso de
intenção sobre a coisa e, com isso, aquela utopia bloqueada pela divisão do
mundo entre o eterno e o transitório. No ensaio enfático, o pensamento se
desembaraça da ideia tradicional de verdade (Adorno, 2003, p. 26-27).
4) O método situado – ao
contrário das metodologias aplicadas aos estudos acadêmicos clássicos (nos
quais, métodos previamente determinados organizam e orientam a pesquisa que se
fará), o ensaio substitui o aprofundamento no método pelo aprofundamento
experimental no objeto, do qual provém uma metodologia situada na experiência:
Escreve ensaisticamente quem tenta
capturar seu objeto por via experimental, quem descobre ou inventa seu objeto no
ato mesmo de escrever, dar forma, comunicar, quem interroga, apalpa, prova,
ilumina e aponta tudo o que pode se dar a ver sob as condições manuais e
intelectuais do autor. O ensaio busca apreender um objeto abstrato ou concreto,
literário ou não literário, tal como ele se dá nas condições criadas pela
escrita (Bense, 2014, s. p.).
É na exploração do objeto que o ensaio
se confunde com o método:
Além disso, o ensaio duvida do
método. […]. Digamos que o ensaísta não sabe bem o que busca, o que quer, aonde
vai. Descobre tudo isso à medida que anda. Por isso, o ensaísta é aquele que
ensaia, para quem o caminho e o método são propriamente ensaio (Larossa, 2003, p. 111-112).
Até o ponto
em que, da experiência com o objeto, surge outra concepção de método, não dedutível
e aplicável a um contexto histórico determinado:
Desse modo, o ensaio suspende […] o conceito tradicional de
método. O pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela
profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa. O ensaio lida com
esse critério de maneira polêmica, manejando assuntos que, segundo as regras do
jogo, seriam considerados dedutíveis, mas sem buscar a sua dedução definitiva.
Ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de
sua livre escolha. Não insiste caprichosamente em alcançar algo para além das
mediações – e estas são mediações históricas, nas quais está sedimentada a
sociedade como um todo –, mas busca o teor de verdade como algo histórico por
si mesmo (Adorno, 2003, p. 27).
5) A estrutura em fragmentos –
tomando o fragmento como matéria e estrutura, o ensaio não se dispõe a abarcar
nada além da descontinuidade da realidade com a qual compõe seu pensamento:
É inerente à forma do ensaio sua própria relativização: ele
precisa se estruturar como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido. O
ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele
encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a
realidade fraturada. A harmonia uníssona da ordem lógica dissimula a essência
antagônica daquilo sobre o que se impõe. A descontinuidade é essencial ao
ensaio; seu assunto é sempre um conflito em suspenso (Adorno, 2003, p. 35).
6) A escrita pelo meio – o ensaio
recusa a unidade e a perenidade almejadas pelo texto acadêmico clássico. No que
se refere à unidade, defende um formato não delimitado pela introdução e
conclusão, delimitando-se pelas conexões entre os elementos do seu objeto; no
que se refere à perenidade, evoca em seu lugar o espaço do efêmero e do
individual. As reflexões infracitadas são de Adorno, mas escolho iniciar com o
resumo trazido por Larossa (2003) sobre o modo como o
tema aparece naquele:
[…] o ensaio não adota a lógica do princípio e do fim, nem
começa pelos princípios, pelos fundamentos, pelas hipóteses, nem termina com as
conclusões, ou com o final, ou com a tese, ou com a pretensão de ter esgotado o
tema. O ensaísta inicia no meio e termina no meio, começa falando do que quer
falar, diz o que quer e termina quando sente que chegou ao final e não por que
já nada resta a dizer, sem nenhuma pretensão de totalidade (Larossa,
2003, p. 112).
No lugar da conclusão, o ensaio delimita-se pelo conteúdo e
pelas conexões entre seus elementos:
[…] o ensaio, de fato, não chega a uma
conclusão, e essa sua incapacidade reaparece como paródia de seu próprio a
priori; a ele é imputada a culpa que na verdade cabe às formas que apagam
qualquer vestígio de arbitrariedade. […]. O que determina o ensaio é a unidade
de seu objeto, junto com a unidade de teoria e experiência que o objeto acolhe.
O caráter aberto do ensaio não é vago como o do ânimo e do sentimento, pois é
delimitado por seu conteúdo. […]. Suas transições repudiam as deduções
conclusivas em favor de conexões transversais entre os elementos, conexões que
não têm espaço na lógica discursiva (Adorno, 2003, p. 36-43).
Ao
recusar as deduções conclusivas, o ensaio abre espaço para o efêmero e o
individual:
Ele se
revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o
mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa
antiga injustiça cometida contra o transitório, pela qual este é novamente
condenado no conceito. O ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma,
que atribui dignidade ontológica ao resultado da abstração, ao conceito
invariável no tempo, por oposição ao individual nele subsumido (Adorno, 2003,
p. 25).
7a) A precisão dos conceitos – nos ensaios, os conceitos não são definidos, mas
engendrados a partir das relações que estabelecem entre si e com os demais
elementos do texto, como aponta Larossa, o ensaísta
“[…] não torna o conceito um fetiche, não define conceitos, mas vai precisando-os
no texto à medida em que os desdobra e os relaciona. Por isso é tão importante
que o ensaio assuma a forma de exposição” (2003, p.
114). É nesse sentido que o “como” ganha destaque (e a isso concordam Larossa e Adorno), já que o modo como os conceitos se
apresentam definirá a fecundidade do pensamento que introduzem:
Assim como o ensaio renega os dados primordiais, também se
recusa a definir os seus conceitos. […] O ensaio, em contrapartida, incorpora o
impulso antissistemático em seu próprio modo de proceder, introduzindo sem
cerimônias e “imediatamente” os conceitos, tal como eles se apresentam. Estes
só se tornam mais precisos por meio das relações que engendram entre si. […].
Na verdade, todos os conceitos já estão implicitamente concretizados pela
linguagem em que se encontram. O ensaio parte dessas significações e, por ser
ele próprio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar
o relacionamento da linguagem com os conceitos, acolhendo-os na reflexão tal
como já se encontram inconscientemente denominados na linguagem (Adorno, 2003,
p. 28-29).
7b) A experiência estrangeira diante do conhecimento e a
disposição ao risco – ainda tratando dos conceitos, destaco este trecho por ser
especialmente bem-vindo na junção da discussão do ensaio com a estrangeiridade. É, de maneira mais ampla, um tema caro à
especificidade do modo de produção de intervenções urbanas que venho me
aprofundando, e, de maneira focal, à minha condição no Togo. O estrangeiro que
mergulha no ambiente cultural como um gesto de aprendizagem é aqui apresentado
como aquele que se dispõe ao risco do erro e da incerteza, caros também à
produção ensaística:
O
modo como o ensaio se apropria dos conceitos seria, antes, comparável ao
comportamento de alguém que, em terra estrangeira, é obrigado a falar a língua
do país, em vez de ficar balbuciando a partir das regras que se aprendem na
escola. Essa pessoa vai ler sem dicionário. Quando tiver visto trinta vezes a
mesma palavra, em contextos sempre diferentes, estará mais segura de seu
sentido do que se tivesse consultado o verbete com a lista de significados,
geralmente estreita demais para dar conta das alterações de sentido em cada
contexto e vaga demais em relação às nuances inalteráveis que o contexto funda
em cada caso. É verdade que esse modo de aprendizado permanece exposto ao erro,
e o mesmo ocorre com o ensaio enquanto forma; o preço de sua afinidade com a
experiência intelectual mais aberta é aquela falta de segurança que a norma do
pensamento estabelecido teme como a própria morte. O ensaio não apenas negligencia a certeza indubitável, como também renuncia ao
ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o
leva para além de si mesmo, e não pela obsessão em buscar seus fundamentos como
se fossem tesouros enterrados (Adorno, 2003, p. 30).
À semelhança do personagem da metáfora de
Adorno, em Lomé eu apreendi a cultura sem dicionário. Atravessado por paixões
diversas em meu percurso estrangeiro na cidade, encarei tanto a minha
hostilidade como a necessidade de convertê-la em amabilidade urbana, em criação
de proximidade e afeto. Com o passar dos dias, pela repetição dos vocabulários
corporais que fui aprendendo no contato com a cidade, mostraram-me caminhos
para a transgressão da hostilidade. As pessoas, em sua imensa maioria, foram
afáveis e compreensíveis às minhas dificuldades. Suas atitudes me auxiliaram a
encontrar caminhos para me situar e estabelecer uma convivência pacífica com a
rotina na cidade.
A exceção era o trânsito de
veículos.
Talvez por conta dos
atropelamentos: mas, é importante que se diga, estes me pareceram revelar mais
a minha incapacidade de agir diante do trânsito da cidade do que uma
periculosidade do trânsito em si, já que, além dos atropelamentos que sofri, vi
apenas mais um acidente de trânsito nos dez dias que estive na cidade;
Talvez por conta da poluição
que tanto me incomodava a respiração;
Talvez pelo intenso barulho que
faziam: a falta de sinalização de trânsito é muitas vezes substituída por
toques intermitentes nas buzinas;
Ou talvez, o que é mais
provável, por tudo isso junto; O trânsito de veículos me incomodava profunda e
frequentemente.
Ao mesmo tempo, uma situação
vivida no trânsito foi um dos primeiros momentos em que, tendo acabado de
chegar no país e estando já profundamente incomodado (na ocasião, pelo sumiço
das bagagens e pelos gastos imprevistos), a hostilidade foi atravessada por uma
relação empática. No meio da rua de quatro pistas não sinalizadas e sem
iluminação pública, em um momento de intenso fluxo de toda sorte de veículos
particulares (carros e motos), os faróis do carro onde eu estava iluminaram, a
poucos metros de distância, uma moça que atravessava na escuridão. Eu temi que
acabássemos por atropelá-la, mas ela seguiu habilmente e atravessou em
segurança por entre os carros em movimento. Momentos depois voltei a me
assustar por conta de outras pessoas que eram, de tempos em tempos, iluminadas
por nossos faróis. A sensação de sobressalto de causar acidentalmente um
atropelamento me acompanhou ao longo de minha estadia na cidade. Apesar de ir
se atenuando, sua constância me pareceu uma via pela qual o exercício da
amabilidade poderia romper com a hostilidade que o trânsito me provocava.
Então, foi a partir da minha empatia para com essas pessoas que propus a ação
Aguarda-te Escuridão, definida pelo seguinte programa:
No período noturno, convidar
as pessoas que estiverem prestes a atravessar uma rua movimentada e sem
iluminação ou sinalização de trânsito a me acompanharem na passagem ao outro
lado da rua sob um guarda-chuva equipado com luzes led e outros materiais
para nos iluminar durante a travessia.
Definidos os aspectos
orientadores da escrita ensaística e o processo de criação do programa da
intervenção site specific Aguarda-te Escuridão;
passo a tecer algumas considerações a respeito dos seus modos de execução e sua
eventual pertinência em outros processos de pesquisa em arte.
A intervenção urbana em arte, como abordada da
perspectiva de minha pesquisa de doutoramento; compartilha equivalentes de
todos os sete elementos norteadores da escrita ensaística aqui compilados.
Estar no exercício de investigação de uma manifestação estético-poética que se
vale do procedimento experimental, do compromisso ao ocorrido como assunto, da presentificação, do método situado, da fragmentação, de sua
concepção pelo meio com o aprofundamento no objeto e em suas conexões ao invés
dos pressupostos conceituais (ou estéticos) e da conexão com a estrangeiridade como delimitação de sua força criativa, me
levaram a compreender e desenvolver o ensaio como o espaço preferencial de
construção de minhas escritas ao longo dos últimos anos e – respeitada a
exceção do que se refere à estrangeiridade –
considerar sua pertinência nas pesquisas acadêmicas que têm como percurso e
objeto a realização de obras artísticas.
De modo mais amplo,
parece-me que há pertinência em trazer à tona a discussão do ensaio como um
modo de escrita acadêmica. De fato, ainda que espaços para a escrita ensaística
não sejam raros em programas nacionais e internacionais de pós-graduação, o
ensaio ainda padece da distância do ambiente acadêmico stricto sensu.
Segundo Larossa aponta, retomando Adorno passim, tal
distância pode ser atribuída a um modo de organização da academia:
[...]
o ensaio se vê esmagado por uma ciência em que todos defendem o direito de
controlar a todos. A ciência organizada é o lugar dos controles, o lugar das
bancas, dos tribunais, das avaliações, das hierarquias, e exclui com o aparente
elogio de “interessante” ou “sugestivo” o que não está ajustado ao padrão de
consenso (Adorno, 2003 apud Larossa, 2003, p. 107).
No lugar de recusar a
ciência, a arte pode sugerir através de suas especificidades (e o uso da
escrita ensaística está entre elas) a construção de um lugar alternativo, como
bem aponta Lukács (2008, p. 09-10): “há uma ciência da arte e é preciso que
haja. E são justamente os maiores representantes do ensaio os que menos podem
renunciar a ela: o que eles criam tem de ser também ciência”.
Se é verdade que a ciência
do ensaio é a mesma que se insere no âmbito artístico, parece-me que é hora da
arte se tornar protagonista no estudo e na aplicação dessa maneira de construir
e de pensar ciência. Até porque, como nos lembra Larossa,
“a escrita acadêmica [tradicional] é alérgica ao riso, à subjetividade e à
paixão” (2003, p. 110, acréscimo meu), e talvez não haja ciência na qual o
riso, a subjetividade e a paixão sejam mais intrínsecos que aquela construída a
partir da pesquisa em arte.
Por fim, uma característica
própria do ensaio moderno diretamente relacionada às pesquisas nas quais o
artista investiga é o destaque do seu próprio processo criativo. Segundo
Lukács, o ensaio moderno é aquele no qual o ensaísta se vê obrigado a incluir a
si mesmo como objeto: “Agora o ensaísta tem de refletir sobre si mesmo,
encontrar-se e construir algo próprio com o que lhe é próprio” (Lukács, 2008,
p. 11), ao que concorda o crítico literário suíço Jean Starobinski,
quando afirma que: “Para satisfazer plenamente à lei do ensaio é preciso que o
‘ensaiador’ se ensaie a si mesmo” (Starobinski, 2011,
p. 19)4 .
Olhar para minha vivência em
Lomé e construir com ela uma ação situada assemelha-se a olhar as cicatrizes –
ou seja, o que presentifica, o que persiste como
marcas da experiência e não o que foi – que essa vivência deixou em mim e
buscar construir neste ensaio uma escrita situada, presentificada,
comprometida com o objeto e com a duração das conexões que aqui se façam
possíveis.
Quando ofereci a travessia
aos passantes, contei com ajuda de dois togoleses que falavam francês e inglês,
além de, pelo menos, uma das línguas locais. Cada um deles se posicionou em um
dos lados da avenida e nós três abordamos as pessoas que pareciam ter a
intenção de atravessar a via. Do que se seguiu ao convite inicial vivenciei
momentos marcantes, tanto de pessoas que não se permitiram me acompanhar na
travessia – das quais destaco um casal que disse a um de meus ajudantes que o
que eu estava fazendo poderia ser um ritual religioso maléfico no qual eu
roubaria suas almas – como de pessoas que se permitiram – das quais destaco
três: 1) as profissionais do sexo que voltavam de mototáxi de seus programas e
desciam do lado oposto àquele no qual aguardavam os próximos clientes, e das
quais naquela noite eu me tornei o “ajudante oficial”; 2) uma mulher ressabiada
com a proposta, que inquiriu a meus ajudantes e depois a mim do preço a se
pagar e, ao ouvir de todos que era gratuito perguntou: “mas por que um branco
faria isso por mim?”, e se mesmo sem estar convencida do porquê me permitiu
acompanhá-la; 3) alguns jovens que decidiram atravessar só para ter a
experiência e começaram a cantar e dançar comigo músicas de discoteca durante a
travessia em referência ao efeito das luzes sobre nós.
Ao caminhar durante aquelas
duas horas de um lado a outro da pista, ao marcar a cidade com os meus passos e
ao marcar o meu corpo com a cidade, as pessoas, a fuligem e a poluição sonora,
as luzes e a escuridão etc., eu também ensaiava[4]. Eu fui a metáfora do ensaísta
para Larossa (2003, p. 110): “um transeunte, um
passeador, um divagador, um ‘extravagante’”, desses que, “não sabe bem o que
busca, o que quer, aonde vai. Descobre tudo isso à medida que anda. Por isso, o
ensaísta é aquele que ensaia, para quem o caminho e o método são propriamente
ensaio”. Metáfora essa tão próximas das discussões que aqui traçamos sobre o
ensaio, quanto das errâncias realizadas em Lomé, que me conduziram ao encontro
da intervenção e também à configuração deste ensaio –
cicatriz e divagação daquela experiência em mim.
Quando eu me dispus a
atravessar a rua, acompanhado dos transeuntes que ali estavam e me deram o
privilégio de suas companhias, eu não tinha consciência de que procurava
justamente aqueles encontros. Encontros estes que me ampliaram a possibilidade
de empatia e de descobrir o trânsito como um organismo vivo. Depois de ter sido
atropelado duas vezes, logo nos primeiros dias que cheguei à cidade, eu não poderia
supor que minha ação seria passar duas horas transitando por uma via
movimentada e escura, até eu me tornar também parte daquele organismo, até
aprender a conviver, com a ajuda de meus companheiros de passagem.
Ao chegar em Lomé, a
percepção de quais de minhas leituras de mundo eram determinadas por
pressupostos adquiridos em vivências anteriores (pessoais ou culturais) me
auxiliou à compreensão da necessidade de suspensão desses juízos e conformação
de uma leitura situada. A descoberta, por consequência, de uma forma específica
de ser derivada dessa nova leitura, inaugura não apenas mundos possíveis (no
qual guarda-chuvas de luz atravessam as ruas à noite sobre cabeças de
transeuntes unidos), mas também outros eus,
experimentais, compromissados com a experiência, presentificados,
situados, estrangeiros, heréticos e à espreita das conexões possíveis; desses eus aos quais possa agradecer: não ser
preconceituoso, graças a d’eus!
REFERÊNCIAS
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forma. In: ADORNO, T. W. Notas de Literatura
I. São Paulo :Editora 34, 2003. p.
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BAFFI, D. E. Ensaios entre mundos possíveis: a estrangeiridade como
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Tese (Doutorado em Teatro) — Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
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Website: Instituto Moreira Salles, Serrote. Disponível em:
https://www.
revistaserrote.com.br/ 2014/04/o-ensaio-e-sua-prosa/. Acesso
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conversa, o que é, para que serve? In: DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p.
7-45
FONTES, A. S. Intervenções temporárias, marcas
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festa na cidade contemporânea. Rio
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LUKÁCS, G. Sobre a essência e
a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper. Revista
UFG, Goiás, v. 9, n. 4, p. 1-13,2008. Disponível
em: https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48186/23535. Acesso em: 03 ago. 2020.
PEIXOTO, N. B. Paisagens Urbanas. São Paulo: Editora
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STAROBINSKI, J. É possivel definir o Ensaio?. Revista Remate de males, Campinas, SP, v. 31, n. 1-2, p. 13-24, 2011.
DOI: https://doi.org/10.20396/remate.v31i1-2.8636219. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/%20remate/article/view/8636219.
Acesso em: 03 ago. 2020.
[1] A leitura e a ação
situadas são temas que venho me dedicando desde 2006 (como assunto e/ou
exercício). Sobre estes temas destaco, dentre as publicações de minha autoria,
os ensaios Destino: Poesia - tentativas de fazer arte na condição de
estrangeiro, publicado na revista eletrônica Arte da Cena (Art on Stage),
Goiânia, v. 2, n. 3, p. 203- 218, jul-dez/2016, disponível em:
https://goo.gl/KTY9Yb; e Pognometria e Intervenção Urbana: um exercício de
variáveis, publicado em Boitatá Revista do GT de Literatura Oral e Popular da
ANPOLL, n. 25, p. 259-292, janjun de 2018, disponível em:
https://tinyurl.com/rhfau47. Acesso em: 08 jan. 2020. Esses e outros ensaios
podem ser acessados em https://www.quandonde.com.br/publicacoes.
[2] María Zambrano. La
guía como forma dei pensamiento. In: Apulltes sobre el tiempo y la poesía.
Madrid:Alianza, 1987. p. 45-50.
[3] Entre 2015 e 2019 conduzi uma pesquisa prático-teórica que relacionava o desenvolvimento de estratégias de construção e efetivação de ações site specifics em intervenções urbanas em arte a partir do status de estrangeiro ao desdobramento de modos de dizer acadêmico-científicos em arte adequados às especificidades das práticas às quais se filiavam. Tal pesquisa originou a tese Ensaios entre mundos possíveis: a estrangeiridade como princípio para a criação de intervenções urbanas em arte. 2019. 9 v. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Rio de Janeiro (RJ), 2019. Este ensaio, que aqui se encontra revisado e ampliado, originalmente integra esta pesquisa.
[4] A relação entre ensaio e escrita de si é especialmente profícua para o desenvolvimento da reflexão sobre a pesquisa em arte em primeira pessoa. Porém, por sua amplitude e singularidade, optei por não aprofundá-la neste texto. Tal discussão é tema de outro ensaio de minha autoria, Cronofagia e intervenção urbana: a arte de comer lixo como quem come o tempo, 2019, ainda inédito.