Experimentação de texturas: o
(des) construir das experiências artísticas com crianças
Texture
experimentation: the (de) construction of artistic experiences with children
Adriana Moreira
Professora do Curso de Teatro da Universidade Federal do
Amapá (UNIFAP) e Doutoranda
em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Enquanto atriz,
me dedico a investigar as artes performativas; enquanto professora, sigo
atravessada pelo meu interesse pela criança, por seu modo de ser e estar na
arte e na vida. O que podemos fazer de Teatro com crianças tão pequenas?” A
resposta: TUDO.
drika_talentos@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0001-6036-5405
Resumo
Este texto demonstra a busca
por encontrar modos de refletir e escrever sobre a experiência artística
denominada Experimentação de Texturas.
Essa experiência consiste em uma prática que foi realizada em 2014 com crianças
de 2 a 5 anos de idade em uma escola da rede particular de ensino. A prática, que tem momentos distintos em sua
elaboração, ganha força ao sair do espanto perante o Caos e assumir que uma perspectiva
caótica pode expressar os modos de a criança reelaborar o seu fazer artístico.
Conceitos emergidos da Teoria do Caos, como auto-organização,
imprevisibilidade, complexidade e sistemas, são pontos de análise, de (des)
construção e reelaboração dessa experiência realizada dentro do espaço escolar.
O texto está organizado em blocos de ideias e caixas de textos: blocos que
expõem as ideias centrais do processo prático e caixas de textos com
pensamentos que expressam o percurso prático da criação artística na forma de
citações, relatos, narrativas e imagens. Trata-se de um modo de elaborar uma
escrita menos linear, mais fragmentada e aberta a interpretações das leitoras e
leitores, trazendo, assim, respingos caóticos também para a forma textual.
Palavras-chave: Artes cênicas e crianças.
Escrita e arte. Textura (Arte)
Abstract
This
essay demonstrates the search for ways to reflect and write about the artistic
experience called Texture Experimentation. This experiment was carried out in
2014 with children from 2 to 5 years old in a private school. The practice,
which has distinct moments in its elaboration, gains strength when it comes out
of the astonishment before the Chaos and assumes that a chaotic perspective
could express the child's ways of re-elaborating his artistic work. Concepts
emerged from the Chaos Theory, such as self-organization, unpredictability,
complexity and systems are points of analysis, of (de) construction and
re-elaboration of this experience carried out within the school space. The text
is organized in blocks of ideas and text boxes: blocks that expose the central
ideas of the practical process and text boxes with thoughts that express the
practical path of artistic creation in the form of quotes, reports, narratives
and images. This is a try to write in a less linear, more fragmented and open
to the interpretations of readers way, thus bringing chaotic splashes also to
the form of the text.
Keywords: Performing arts and
children. Writing and art. Creation (Literary, artistic, etc.)
DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1808312915252020e0016
Recebido em: 06/08/2020
Aceito em: 09/09/2020
Organizar as
ideias. Escrever. Reescrever. Reinventar. Ter medo de reinventar.
Como é possível construir uma escrita que dê conta da
emergência que sinto sobre a necessidade de repensar as práticas artísticas
realizadas com crianças dentro dos espaços escolares? A prática aqui relatada se (des) construiu
pela aproximação e afinidade com o Caos. E, na escrita, como inscrevê-lo e
torná-lo parte da forma e do modo de expor as ideias? O texto aqui apresentado é o debruçar sobre minha
prática artístico-pedagógica, que ocorreu em 2014 em uma escola de Educação
Básica da rede particular de ensino na cidade de Uberlândia (MG). Atualmente, tal prática
tornou-se o foco de análise e investigação da minha pesquisa de doutorado em
Teatro. Aqui ela está
exposta tal qual ela se configura atualmente: em blocos de ideias difusas, que
estão e são interligadas, mas que nesse momento precisam ser apartadas para que
eu consiga mergulhar e perceber as sutilezas de uma prática que já aconteceu e
que, agora, corre o risco de ser traída pelo distanciamento entre prática,
reflexão e escrita.
Nessa prática, que chamo
de Experimentação de Texturas, tudo
aconteceu ao mesmo tempo, foram simultâneos: meu desejo por um novo modo de
fazer teatro com crianças pequenas; meu encontro com os escritos de Anna Marie
Holm; os planejamentos para se começar aquele ano (2014) e a mudança de espaço
físico da escola onde a prática ocorreu.
Aqui na escrita eu tento me reorganizar a partir da memória, dos
diários, das fotos, dos vídeos e dos cadernos de planos de aula. Tento retraçar
nosso percurso, meu e das crianças, a partir, claro, da minha visão sobre como
tudo ocorreu. Às vezes, isso me parece injusto e incoerente com a própria
investigação, mas há um desejo maior de gritar para o mundo que podemos ter
junto às crianças outros tipos de experiências artísticas, distintas daquelas
com as quais estamos habituados. Então, sigo… Sigo relutante, a princípio, em
escrever este texto. Sigo incentivada pelas pessoas envolvidas na organização
deste volume da revista DAPesquisa e sigo esperançosa de encontrar a melhor ou
a mais adequada forma de imprimir aqui uma parte essencial do que foram essas
experiências com as crianças de 2 a 5 anos de idade.
Em 2014 eu era
professora de Artes na Educação Infantil e estar em sala de aula com as
crianças sempre me deu a sensação de estar mais próxima do caos. Isso gerava em
mim um incômodo e um desconforto. Até que encontrei uma tranquilidade na
própria Teoria do Caos, que como um sopro me fez enxergar que tudo que eu vinha
chamando de caos – no sentido ruim, de bagunça, confusão, falta de controle –
tinha uma enorme potência artística.
Fico aliviada em saber
que se as crianças tiverem liberdade e que se eu confiar em seus modos de
criar, esse caos não atrapalha; ao contrário, ele me mostra a capacidade de
auto-organização das crianças, de lidarem com a imprevisibilidade e de estarem
sempre sensíveis às condições iniciais.
Nesse processo me rendi a uma prática que não só deu mais liberdade às
crianças, mas também desestabilizou o meu modo de olhar para elas, para o
espaço, para os materiais que nos rodeavam, enfim, para toda uma experiência
artística que ali já se estabelecia. De maneira aberta, imprevisível, sem
certezas e sem grandes planejamentos de aulas, fui apenas convivendo e
enxergando na criança e em seus próprios modos de ser e estar no mundo as
potencialidades estéticas, artísticas e subjetivas que tornavam aquelas
experimentações únicas. Há nessa experiência artística com as crianças,
inerentemente, uma outra forma de organização:
Mais caótica,
Menos previsível,
Menos ordenada e organizada.
Essas características me
permitiram perceber essa prática por meio de uma ótica investigada pela Teoria
do Caos, cujo pressuposto é estudar os sistemas que não seguem padrões
previsíveis e/ou repetitivos – tais como as ações, interações e relações que as
crianças estabeleciam ali. Por isso, compreender e aceitar a presença do caos
nessa experiência é dar margem às potencialidades que emergem no e pelo
caos.
Aqui já me refiro ao
caos no sentido compreendido pelas pesquisas científicas acerca da Teoria do
Caos e não como antagonista de ordem e organização – tal como costuma ser
entendido. A Teoria do Caos trata justamente de considerar as variações que
modificam bruscamente o estado inicial das coisas.
O caos não é ausência de ordem...
O caos não é ausência de ordem...
O caos não é ausência de ordem...
O caos não é ausência de ordem...
O caos não é ausência de ordem...
O caos não é ausência de ordem...
O caos não é ausência de ordem...
,,, mas sim excesso de
complexidade. Ou seja, excesso de muitas informações advindas das diversas
interações, respondendo às inúmeras interferências e se retroalimentando com o
meio o tempo todo. Nessa prática, o caos foi uma forma de as crianças se
colocarem, de produzirem e experienciarem a própria Arte.
Agora busco modos de refletir sobre essa
experiência e dialogá-la com os conceitos da Teoria do Caos. Como fazer? Como
elaborar uma escrita condizente com essa prática caótica? Como manter os
elementos caóticos na escrita de modo que se façam entendíveis para leitoras e
leitores? O equilíbrio entre o linear (acadêmico) e a não linearidade (caótica)
me assombra e, por isso, aqui me disponho a organizar meus pensamentos de um
modo que julgo manter a minha liberdade de escrita, sem deixar de apresentar os
elementos fundamentais que constituíram a prática: minhas percepções acerca do
fazer artístico com as crianças; os questionamentos e dúvidas que me cercaram
naquele percurso de elaboração da prática; os conceitos que a fundamentaram;
fatos, situações e as histórias que exemplificam o modo como a Experimentação de Texturas foi se
desenrolando e, por fim, as novas perspectivas acerca do fazer teatral com
crianças pequenas, apresentando como possibilidade o diálogo e a aproximação
entre a Arte e a Ciência –
especificamente, os estudos acerca da Teoria do Caos.
Essa liberdade pode ser
vista no modo de estruturação desta escrita (fragmentos textuais, narrativas,
citações de textos, relatos pessoais) que aparecem de forma híbrida, ora mais
poéticas, ora mais acadêmicas. Tal escrita está estruturada em blocos de ideias
que apresentam os pontos centrais da reflexão acerca da elaboração da prática Experimentação de Texturas. Esses
blocos estão subdivididos em caixas de textos que estão organizadas no seguinte
formato:
ENCONTRAM-SE OS TÍTULOS
QUE EVIDENCIAM A DISCUSSÃO QUE ESTARÁ PRESENTE NAQUELE BLOCO DE IDEIAS. ESTARÃO AS
PALAVRAS DESTACADAS DAS CAIXAS TEXTUAIS. PALAVRAS QUE EVIDENCIAM E REFORÇAM
AS IDEIAS MAIS SIGNIFICATIVAS DA REFLEXÃO DAQUELE BLOCO.
Estas serão as caixas
textuais e trarão as ideias em forma de: citações, relatos e narrativas
referentes à discussão daquele bloco.
Assim sendo, proponho um
compartilhamento não somente de uma experiência artística com crianças, mas de
um modo de escrita que aqui se inicia e assim como a própria prática, lança
possibilidades de (des) construção quanto à sua elaboração. Essa é a primeira
tentativa de aproximação do modo de escrita com a Teoria do Caos e a faço,
especialmente, por meio do conceito de auto-organização. Esse conceito refere-se, segundo a
pesquisadora literária Vanessa Ferreira (2008), à capacidade dos sistemas de
criarem novas configurações e interpretações, pois eles se comportam e se
reorganizam independentemente das intervenções de um controle (externo ou
interno). Isso significa que os blocos possuem uma linearidade, ou seja, um
padrão pré-estabelecido na estrutura e na forma de escrita. Esse padrão se
repete (utilização de cores, formatos e estilos de fontes) e é possível
identificá-lo ao longo do texto. No entanto, isso não impede que o leitor ou
leitora tenha opção de escolher, por exemplo, por qual caixa de texto irá
iniciar sua leitura dentro daquele bloco; se lerá os blocos na ordem em que
aparecem ou outra ordem de acordo com seus focos de interesse explicitados
tanto nas palavras das caixas amarelas, como nos títulos das caixas
rosa.
Há, portanto, mesmo
dentro dos padrões, novas configurações que irão se formar a partir da leitura
de cada um/uma. A beleza disso é que eu não as posso prever. Então... o texto
está aberto para as múltiplas interpretações, seja pela lógica textual da
escrita ou pelas compreensões suscitadas pela forma. Para melhor visualização,
acesse a versão em pdf.
Passei por algumas
práticas a partir do que eu entendia enquanto fazer teatral com crianças. Lentamente, comecei a
perceber as crianças com mais atenção e perceber sutilezas. Reparei em seus
modos de se relacionarem, de pensarem, de interagirem e de construírem suas
experiências artísticas. Entendi que havia muitas potencialidades criativas nas experiências
artísticas das crianças. |
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Quais materiais usar? Como fazer? É possível me aproximar das propostas de Anna Marie Holm dentro do espaço escolar? Como a arte e a criação
podem emergir em um espaço de controle? Como pode o adulto saber onde termina o
processo artístico? Ou conhecer o caminho de antemão e ter a situação sob
controle?
(Holm, 2004, p. 88) |
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IM PRE VI SI BI LI DA DE PADRONIZAÇÃO ORDEM ORDEM ORDEM VIDA COTIDIANA NÃOOOOO ESTRUTURADO
COMPLEXIDADE |
A professora Lilian França
(1994) faz uma análise das estruturas espaciais dos ambientes escolares e
recorre aos conceitos de imprevisibilidade e ordem, presentes na Teoria do Caos para questionar os processos de
ensino/aprendizagem |
Edgar Morin: discute um dos conceitos mais importantes para a Teoria do
Caos, a complexidade, de modo a traçar novas proposta para o ensino a partir de
uma aprendizagem que leva em consideração a dimensão complexa da elaboração
do pensamento e das relações humanas. |
BLOCO
DO DIÁLOGO:
ARTE
E CIÊNCIA
|
A artista visual
Anna Marie Holm (2005) não trata precisamente da Teoria do Caos, mas
discute conceitos como a imprevisibilidade,
a padronização, o acidental e o não estruturado em suas
investigações com as crianças, conferindo, assim, uma perspectiva caótica
sobre os modos de relação e interações entre criança e Arte. Marina Marcondes: O modo como a criança se organiza e se coloca dentro de uma aula de
Teatro está intrinsecamente ligado à sua vida cotidiana (ou seja, ao seu jeito de ser e estar no mundo). .
BLOCO DAS CONEXÕES:
EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS E
O caos
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MANUTENÇÃO DE PADRÕES PADRÕES PADRÕES INTER-RELAÇÃO CON------E------XÕES
DESEQUILÍBRIOS MÚLTIPLAS INTERAÇÕES |
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IMPREVISIBILIDADE Não há como prever ou esperar uma organização
ou a manutenção de padrões de comportamentos, de
relação ou criação. SISTEMA Elementos estão em inter-relação e em relação com seu
ambiente. As possibilidades criativas emergem da interação entre
criança-criança; criança-espaço e criança-material; DINÂMICO Constante adaptação e aprendizado. Na medida
em que as aulas aconteciam, as crianças se apropriavam mais e mais das
materialidades. Cada criança fazia novas conexões com o espaço, com os
outros e com os materiais. A investigação nunca cessa. NÃO LINEARES Não existe um padrão de mudança, há inúmeras
irregularidades, constantes desequilíbrios e variações que
surgem a partir das múltiplas interações das crianças. Conceitos apresentados a partir das discussões
dos autores Crispim e Barbosa (2006). |
Experimentação
de texturas e Teoria do Caos Imprevisibilidade Sensibilidade
das condições iniciais Sistemas Dinâmicos Não
lineares A prática Experimentação de Texturas se estabelece visando garantir a
potencialização artística da experiência da criança. E para tal, faz-se
necessário impregnar-se de uma perspectiva caótica que diz que você
somente chega ao artístico quando “está em um terreno deliciosamente
instável" (Holm, 2005, p. 13-14).
|
Após
apresentar estas ideias disparadoras para a elaboração da pratica Experimentação de Texturas, apresento
as duas perspectivas que auxiliaram nesta proposta de escrita (blocos de
ideias) e nas reflexões acerca da prática. Nos primeiros blocos (das percepções,
dos questionamentos e das narrativas) encontram-se as perspectivas
metodológicas que consistem em narrar os percursos, as escolhas e os
questionamentos – pedagógicos e artísticos- que fundamentaram a elaboração e a
realização destes experimentos artísticos. Já os últimos blocos (das reflexões
descontruídas, do diálogo e das conexões) apresentam uma perspectiva teórica,
cujo enfoque está em apresentar o diálogo com autores, pesquisadores e artistas
cujas investigações se debruçam sobre a educação, a infância e os conceitos da
Teoria do Caos.
Por fim, apresentarei de maneira
mais conclusiva uma perspectiva que não está presente nos blocos, mas que lança
um olhar importante para vislumbrar os desdobramentos possíveis acerca dos
fazeres artísticos na Educação Infantil, quando elaborados à luz dos conceitos
da Teoria do Caos.
1.
Perspectivas metodológicas
As ideias suscitadas nos blocos acima são,
portanto, o aprofundamento da minha pesquisa artística que se iniciou em 2008,
quando passei a integrar o grupo de teatro Coletivo
Teatro da Margem[1], cujas
investigações se dão a partir dos conceitos dos Viewpoints[2]
que é uma prática de caráter improvisacional que permite que os atuantes
desenvolvam maior consciência de suas relações com tempo/espaço nos momentos de
criação. O trabalho do grupo reverberou em minhas práticas dentro do ambiente
escolar e, consequentemente, culminou na minha pesquisa de mestrado, cuja
proposta foi a investigação das teatralidades contemporâneas e suas relações com espaço escolar.
Nesse momento eu me “esbarro” a primeira vez com as relações entre
ondem/desordem que perpassam a Teoria do Caos.
Posteriormente a essa
pesquisa, tive contato com o livro Fazer
e pensar arte da artista visual dinamarquesa Ana Marie Holm[3]. Seus estudos e a forma como
ela narra as experiências com crianças pequenas – entre 2 e 6 anos de idade –
aguçou meu olhar para os processos criativos realizados na infância. Nesse livro, a partir de suas experiências em
um ateliê de artes, Holm (2005) traz relatos do potencial criativo que envolve
as ações das crianças. Ela desenvolve propostas a partir de instalações e
explorações de materiais distintos, a fim de permitir que as crianças criem à
sua própria maneira suas histórias, situações e experiências estéticas.
Esse modo de pensar e fazer arte com crianças me fez iniciar
em 2014 uma prática que eu denominei de Experimentação de texturas. Tal
prática foi desenvolvida dentro das aulas de Teatro ministradas com crianças da
Educação Infantil dentro da grade curricular de uma escola da rede particular
na cidade de Uberlândia/MG. Eu buscava
uma prática em que fosse possível ir elaborando, testando e refazendo as
proposições de experiências artísticas com as crianças dentro daquele contexto,
pautado, principalmente, nas explorações de materiais diversos e nas relações
existentes entre criança/criança, criança/adulto e criança/espaço. Percebi, então, que havia muitas
potencialidades nessas experimentações das crianças e que as práticas que eu
realizava, até então, não as consideravam de maneira mais determinante. Meu
olhar tornara-se, aos poucos, cada vez mais de pesquisadora, logo, comecei a
perceber a necessidade de encontrar novas possibilidades para as experiências
artísticas vivenciadas junto às crianças.
Essa abertura de possibilidades trouxe para as aulas um
caráter mais imprevisível e uma irregularidade que começou a afetar os demais
elementos - o espaço, as sensações, os corpos e as histórias, minha postura, os
planos de aula- presentes na proposta de Experimentação de Texturas. Deparei-me pela segunda vez com o caos:
desordem, bagunça, turbulências e a impressão de estarmos – as crianças e eu – imersas
nas incontáveis imprevisibilidades. O caos era tão significativo, forte e
determinante naquele processo de experimentação que nos desestabilizou. Eu
sentia que ele era parte do processo que ali acontecia e que de alguma forma, o
caos direcionava incisivamente as experimentações. O caos produzira
diferenciações no uso das materialidades, interferia nas ações das crianças e
colocava-me fora da zona de conforto.
Comecei a repensar e a me questionar sobre os modos de
apreender o conhecimento cognitivo dentro das escolas e no nosso cultivo de um
ambiente silencioso, calmo e tranquilo como fonte de se obter a aprendizagem.
Nas experimentações artísticas, os processos de ensino/aprendizagem também
estariam atrelados a essa necessidade de calmaria, controle e silêncio? Foi,
assim, que se instauraram as premissas desta prática: Como as investigações
acerca da Teoria do Caos poderiam contribuir com as proposições de experimentos
artísticos com as crianças dentro do espaço escolar? De que modo os conceitos
dessa teoria poderiam potencializar os processos de criação e/ou experiências
artísticas das crianças?
Três aspectos foram
norteadores para a elaboração e a realização da prática Experimentação de Texturas: a investigação
que consistia em criar possibilidades da criança compreender informações
sobre o material que seria utilizado (de onde vem, como é feito e como é por nós utilizado em nosso
cotidiano etc.); na experimentação, que era o momento onde crianças testavam na
prática o material a partir de suas próprias ideias, sensações, emoções, percepções e suas ações lhes conferiam as
várias possibilidades de utilização do material e a criação, na qual a partir
das relações que as crianças estabeleciam com os materiais, com o espaço, com
outras crianças e com o adulto a experimentação ia trazendo nuances poéticas,
artísticas e de teatralidade.
O tempo para transitar entre
esses três aspectos durante as aulas não era pré-determinado, pois cada
material gerava uma demanda e um tempo diferente de ação, relação e interação.
Portanto, a duração das aulas com o mesmo material dependia do interesse das
crianças e das possibilidades (conversas entre as crianças, histórias que elas
me contavam ou situações que eu percebia no decorrer das aulas) que surgiam no
decorrer da própria prática. O importante é ressaltar que um mesmo material
continuava a ser experimentado mesmo quando ele assumia outras características:
mais sujo, mais rasgado, recortado, já pintado e etc., pois isso trazia novas
questões para serem investigadas pelas crianças permitindo que cada uma
desenvolvesse suas próprias ideias diante da nova perspectiva do material.
Nessa prática que chamo de Experimentação de Texturas tudo
aconteceu ao mesmo tempo: meu desejo por um novo modo de fazer teatro com crianças
pequenas e meu encontro com os escritos da artista e pesquisadora da infância
Anna Marie Holm. Portanto, nestes momentos minha principal questão era
conseguir reelaborar as experiências artísticas que eu já realizava junto às
crianças pequenas dentro do espaço escolar. E para tal, esse processo se inicia
ao perceber o diálogo possível entre os escritos de Anna Marie Holm, os
experimentos artísticos das crianças pequenas e a Teoria do Caos.
2. Perspectivas Teóricas
Para o mapeamento das investigações acerca da relação
experimentos artísticos, infância e Teoria do Caos, encontrei, autores,
artistas e pesquisadores que apesar de não terem como foco a própria Teoria do
Caos, apresentam ideias e/ou proposições passíveis de diálogos com os conceitos
e pressupostos que envolvem tal teoria. Por exemplo, as discussões propostas
pela professora Marina Marcondes Machado (2010; 2015) e pela artista visual
Anna Marie Holm (2005, 2007) acerca da potencialidade artística da criança
diante de suas experiências artísticas interseccionam-se de muitas formas com a
Teoria do Caos.
Marina Marcondes
Machado (2010) desenvolve em seu pós-doutorado os seguintes conceitos: criança performer e professor performer. Ambos estão vinculados aos modos de como a
criança e o adulto se organizam e se colocam dentro de uma aula de Teatro,
sendo os modos da criança intrinsecamente ligados à sua vida cotidiana (ou
seja, ao seu jeito de ser e estar no mundo), enquanto o professor performer está mais conectado com a sua
arte do que com seu ensejo do fazer pedagógico, no qual ele está atento ao seu
modo de narrar, de propor e de se observar. O professor é parte da aula e não
está à parte dela.
Portanto, os conceitos de criança performer e professor performer trazidos por Machado
(2010/2015) criam relações com a Teoria do Caos, na medida em que se traz uma
forma mais imprevisível de olhar tanto para a criança como para o adulto. Um
dos conceitos da Teoria do Caos é o chamado efeito borboleta ou sensibilidade
das condições inicias (SCI).
Por volta da década de 60,
um cientista, em particular, percebe que o caos poderia explicar muitos
“problemas” tomados como sem solução. Edward Lorenz, um meteorologista, percebe
que quaisquer modificações mínimas poderiam levar a mudanças catastróficas nos
resultados de determinadas equações. Esta constatação o levou a perceber o quão
compartimentalizada era a Ciência e, que era necessário na meteorologia
compreender que havia uma dependência das condições iniciais, ou seja, saber
exatamente a situação inicial tornava mais previsível as condições climáticas.
No entanto, dependência das condições iniciais faz com que as pequenas
variações produzam multiplicidades, o que tornava difícil precisar com que
frequência algum padrão irá aparecer à longo prazo. A cada posição inicial
dada, uma riqueza de comportamentos está prestes a emergir.
Sendo assim, considerar e
variar as condições inicias de um experimento artístico com crianças abre
espaço para que o professor e a criança explorem vastamente as possibilidades estéticas,
as teatralidades e as potencialidades. O
professor ao trabalhar a partir de determinada condição inicial tem a chance de
escolher que tipo de narrativa ele quer imprimir naquela aula, sem obviamente,
deixar de perceber as condições dadas e trazidas pela própria criança.
Trata-se de perceber que
assim como o fazer artístico, o fazer docente também permite variações: na
escolha do espaço, do tipo de material ou da posição ocupada, seja, pelo
adulto, seja pela criança. Cada mudança de condição inicial impregna o processo
de ações mais inesperadas e menos pragmáticas, que reforçam a necessidade se
começar a construir processos artísticos com as crianças pequenas mais calcados
na imprevisibilidade.
A criança performer
busca voltar suas percepções, sensações, sentimentos e ações para aquilo que
lhes é inerente ao seu cotidiano. Elas são atraídas pelas experiências que já
vivenciam, ou seja, voltam-se para lugares
semelhantes. Sendo assim, elas são capazes de agir e intervir desde suas relações cotidianas
até mesmo construir um campo de ação para si e suas ideias. Por isto, a
sensibilidade das condições iniciais, conferem autonomia às crianças, que,
gradativamente, sentem-se mais confiantes e engajadas a experimentar a Arte das
mais variadas formas possíveis.
Complementando as contribuições de Marina Marcondes, a
pesquisa da artista visual dinamarquesa Anna Marie Holm, traz reflexões
oriundas de sua prática de experimentação artística junto às crianças. A
artista propõe a inserção da Arte Contemporânea nas escolas voltada,
especificamente, para a infância. Dentro das experiências propostas por Ana
Marie Holm, as crianças criam algo que lhes é próprio, inventam relações e
estabelecem formas de expressão vivas e originais a partir da interação com os
materiais e das relações estabelecidas na convivência.
Anna Marie Holm, pauta-se
nos seguintes pressupostos: na liberdade de experimentação; na curiosidade da
criança; na criação de ambientes instigadores e em uma relação mais partilhada
entre criança e adultos. A liberdade de criação é um dos pressupostos do
trabalho de Anna Marie Holm. A artista chama nossa atenção para uma energia
criativa natural que a criança possui e que esta pode ser acionada quando
conferimos às crianças uma liberdade para manifestar seus anseios, desejos e
medos. Desse modo, a liberdade aguçaria a curiosidade da criança pelo mundo. Se
sentindo livre, a criança está mais segura de si e de suas ideias, ela, então,
ousa investigar, pesquisar, inventar e criar.
O trabalho da artista também faz uma ponte direta com
vários dos conceitos pertinentes à teoria, por exemplo, ao deixar explícito o
quanto o excesso de organização pode ser prejudicial a espontaneidade da
criança, Holm se aproxima do caos, pois, entende que com o excesso de
organização "(...) você nunca chega ao artístico, porque isso só acontece
se você está em um terreno deliciosamente instável" (HOLM, 2005, p.
13/14).
É nesta instabilidade que encontro algumas “certezas”
sobre as experiências artísticas realizadas com crianças. A principal delas é
esta relação intrínseca entre os modos como a criança cria e experiencia o
fazer teatral com o caos. Holm parece já ter percebido este tipo de diálogo em
muitos momentos em que esteve junto as crianças em seus processos de criação e
experimentação. A instabilidade de Holm é a imprevisibilidade, a aleatoriedade
e a variação constante que implica quando a criança manipula um material e as
descobertas surgem ali, sem pretensão, sem expectativa, sem um padrão
pré-estabelecido por outrem que não por ela mesma.
Ao atrelar a instabilidade a tipo de relação que as
crianças criam com a Arte, ela está apontando um caminho que nos diz que há na
criança um modo peculiar de lidar com os aspectos lúdicos, imagéticos,
estéticos e sensíveis que envolvem seus processos e experiências artísticas e
que isto não precisa mais ser visto como ruim ou um problema, ao contrário,
reforça-se a ideia de a criança nos propõe um novo tipo de ordem, distinta daquela
que acreditamos ser a única forma. E
esta ordem é o caos.
O caos nos coloca diante de um novo tipo de ordem que
explicita a sensibilidade diante das interferências, logo, tudo pode se
modificar profundamente e muito rápido, sem significar necessariamente que seja
ruim ou tomado por desordens, que aliás mais do que “bagunça”, indicaria que
alguns padrões foram rompidos e as crianças são “mestres” em estabelecerem sua
relação com a Arte por meio de proposições que rompem com a nossa lógica.
Sendo assim, pode-se afirmar
que diante dos ambientes escolarizados os conceitos trazidos tanto por Holm
(2005/2007) e Machado (2010/2015) são vistos nesta pesquisa enquanto tentativas
de intervir nos rituais de escolarização e padronização dos processos artísticos
que, geralmente, tendem a acontecer por regras estabelecidas pelos adultos a
respeito do que é, ou não, adequado para uma criança. A Teoria do Caos,
alinhada aos modos de pensar e realizar o artístico destas duas autoras e
artistas, rompe com a perspectiva de que aquilo que a criança faz é visto como
bagunça e, por isso, quase sempre passível de ser “recolhido ou jogado fora
pelos adultos” (Holm, 2007, p.14).
Na Educação, Edgar Morin
(2007/2010), discute um dos conceitos mais importantes para a Teoria do Caos, a
complexidade, de modo a traçar novas proposta para o ensino a partir de uma
aprendizagem que leva em consideração a dimensão complexa da elaboração do
pensamento e das relações humanas. A
professora Lílian França (1994) também repensa a Educação por meio dos aspectos
organizacionais das instituições. Ambos autores questionam os padrões
organizacionais pré-estabelecidos pelas escolas a partir das ideias de ordem/
desordem e buscam compreender como estes padrões afetam o modo como atualmente
as crianças lidam com sua própria aprendizagem.
Com a aproximação destes teóricos encaminha-se para
repensar a Pedagogia do Teatro à luz das considerações da Teoria do Caos. Isto,
implica, portanto, também em expandir a forma de perceber a forma da criança ser
e estar no mundo e como isto se reverbera nas suas experiências artísticas. A
criança atravessada por todas as relações que constrói, dentro e fora do espaço
do escolar, aponta e nos demonstra que não se deveria imaginar uma Pedagogia do
Teatro que não considerasse toda potência advinda da complexidade das relações
da criança no mundo.
3.
Perspectivas futuras:
possíveis desdobramentos para o ensino de teatro na Educação Infantil
O percurso desta prática aqui apresentada trata-se das
reflexões de uma professora de Artes na Educação Infantil. A Teoria do Caos vem
auxiliar, portanto, a atuação de professores de Teatro neste contexto
específico, visando ampliar as perspectivas sobre as práticas artísticas
realizadas com crianças pequenas dentro do espaço escolar.
Ao se debruçar sobre os conceitos desta teoria é possível
repensar os vários aspectos artísticos e pedagógicos pertinentes ao ensino de
Teatro na Educação Infantil e que são essenciais para que professores (as)
construam outras visões sobre a relação Teatro e Infância, tais como: a
observação do adulto como parte essencial da aula; a valorização e o inventivo
das teatralidades e das formas artísticas criadas pelas crianças; as
possibilidades diversas da função que o adulto ocupa nestas práticas ao se deslocar
do adultocentrismo; o repensar dos modos de organização dos planos de aula; a
percepção e o entendimento de que a criança pequena possui um modo caótico de
se relacionar e produzir Arte.
Ao lançar mão dos conceitos
da Teoria do Caos, os professores de Teatro compreendem melhor o caos e, com
isso, o vê como um aliado e, não mais, como um obstáculo as experiências
artísticas, pois, compreende-se cotidianamente que criança possui um modo de
apreensão e criação diante dos processos artísticos que perpassam vários
conceitos presentes na Teoria do Caos[4].
Portanto, este diálogo nos
oferece a oportunidade de elaborar praticas teatrais mais dialógicas com as
ações e experimentos das próprias crianças e construir novos significados
acerca do que são as experiências estéticas dentro das escolas e, assim, oferecer à futuros professores de Teatro que
atuarão na Educação Infantil uma visão mais vasta sobre o que é e como
vivenciar as experiências artísticas com crianças pequenas, de modo a tirar de
si a responsabilidade do controle excessivo tão marcadamente impregnada em
todos nós.
REFERÊNCIAS
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em fotografia das aulas. Não publicado, 2014. fotografia. Acervo
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de aulas de 2014/2015. 2015. 42 p. Arquivo pessoal.
[1] Um coletivo de egressos do curso de
Teatro da Universidade Federal de Uberlândia que surgiu em 2007.
[2] Os viewpoints foram
conceitualizados pela dançarina Mary Overlie. A partir de seus estudos acerca
da dança. Ela nomeia os six viewpoints: espaço, tempo, forma, movimento
e emoção. Em 1984 Anne Bogart, uma diretora teatral norte-americana,
interessa-se pelo trabalho de Mary Overlie e decide por aprofundar essa
pesquisa, expandindo os viewpoints e utilizando-os como uma prática de criação
e investigação nos processos criativos em Teatro.
[3] Artista visual e educadora dinamarquesa, cujas investigações se debruçaram na relação entre a arte e infância.
[4] Há artistas pesquisadoras como a Patrícia Fagundes (2010) que pensam o Caos e criação nos processos de ensaio e de ensino.