Sobre escRITOS
mitopo�ticos, percursos mitodol�gicos
e palavras-chave para abrir presen�a nas p�ginas
�About mythopoetic writings, mythodological paths and keywords to
open presence on pages
Franciele Machado de Aguiar
Doutoranda no Programa de
P�s-Gradua��o em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Fran � atriz, professora, gosta de escutar as vozes das pessoas e prefere
cantar a falar. Quando ainda podia contar a idade nos dedos de uma �nica m�o, transformou
em microfone um peda�o de cano de PVC. Ao encontrar dramaturgia na estante da
biblioteca da escola, decidiu brincar de teatro e o fez. E o faz. Tem meia
d�zia de gatos: uma delas se chama Cigana e gosta de acompanhar as escritas
deitada sobre livros e anota��es feitas � m�o.
�aguiafranciele@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0327-247X
Luane Pedroso de Oliveira
Doutoranda no Programa de
P�s-Gradua��o em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Luane � atriz, bailarina, gosta muito de teatro de bonecos. Arrisca-se em
instrumentos percussivos e adora m�sica brasileira. Nasceu em uma fam�lia de
artistas, o que para ela foi de vital import�ncia em sua forma��o, que se deu,
sobretudo, do lado de fora da Academia. Ama cachorros e dias de sol. Prefere
teatro a cinema. Deseja a supera��o do capitalismo. Gosta de escrever
despretensiosamente. Tem a sorte de amar o que faz.
�luane.mainha@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-8127-617X
Resumo
O texto experimenta e reflete acerca dos modos de escrita das pesquisas das autoras � que investigam processos de cria��o de dramaturgias e po�ticas e pedagogias vocais. Em jogo de escRITOS, buscam modos de pesquisa e escrita de pesquisa mitodol�gicos, inspirados nas resson�ncias m�ticas da imagina��o. Esses escRITOS contemplam, ainda, a experi�ncia em formas comumente colocadas �s margens daquelas consideradas �oficiais� na escrita acad�mica, como as cartas, a poesia, a fic��o. Tra�ando nas p�ginas as palavras e imagens ditadas pelos afetos e ritmos de seus corpos em trabalho de cria��o, as autoras buscam tamb�m constituir e cartografar po�ticas e pedagogias feministas no contexto da cena.
Palavras-chave:
Escrita e arte. Teatro feminista. Performance (Arte).
Arte e antropologia.
Abstract
The text experiments and reflects on the writing modes of the research of its authors � who investigate creative processes of dramaturgies, vocal poetics and vocal pedagogies. In play of writing, they looking for ways of research and mythodologicals research writings, inspired by the mythical resonances of the imagination. These writings also contemplate experiments in forms commonly placed on the margins of those considered �official� in academic writing, such as letters, poetry, fiction. Drawing on the pages the words and images dictated by the affects and rhythms of their bodies in creative work, the authors also seek to constitute and map feminist poetics and pedagogies in the context of the scene.
Keywords: Writing and art. Feminist theater. Performance art. Art and anthropology.
Recebido em: 04/06/2020
Aceito em: 13/07/2020
DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1808312915252020e0019
Escreva como voc� gosta, use os ritmos que
aparecerem, tente diferentes instrumentos, sente-se ao
piano, destrua o que � linear, grite ao inv�s de cantar, arrase na guitarra e
toque a buzina. Odeie matem�tica e ame redemoinhos. Cria��o � um p�ssaro sem um
plano de voo, que nunca ir� voar em uma linha reta.
�Violeta
Parra
O crit�rio utilizado para defini��o da escrita
perform�tica adv�m [...] da cren�a em que uma resposta metaf�rica e imaginativa
� experi�ncia �� mais� fecunda�
pelo� aprofundamento� e�
elabora��o� das� imagens,�
em� detrimento� de� uma
resposta� descritiva� ou�
literal, que� dissipa� ou�
programa� as� imagens numa�
significa��o� rasa ou� fixamente�
dogm�tica. As� imagens� devem,�
de� fato,� ser estudadas�
por� outras� imagens,�
o que implica igualmente uma escrita, um estilo po�tico adaptado.
Luciana Lyra
Este texto se pretende um relato de
experi�ncia da escrita de duas pesquisas que buscam vivenciar o processo
criativo na perspectiva da imagina��o, das l�gicas do mito como espa�o de
conhecimento e cria��o, tendo tamb�m como horizonte a constitui��o de po�ticas
e pedagogias feministas no contexto da cena. Somos
duas mulheres pesquisadoras escrevendo estas linhas a quatro m�os e integramos
a rede do grupo de pesquisa MOTIM - Mito, Rito e Cartografias Feministas nas
Artes, liderado pela professora Luciana Lyra, vinculada � Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e colaboradora no Programa de P�s-Gradua��o em
Teatro da UDESC[1].
As investiga��es e reflex�es que aqui empreendemos buscam por um espa�o
de discuss�o para os campos do mito, do rito e das pr�ticas conduzidas por
mulheres. Quais modos de escrita melhor cartografam esses territ�rios e
percursos?
Diante da necessidade de descoloniza��o
de nossos saberes e pr�ticas, cabe questionar as defini��es muitas vezes pejorativas
dadas ao conceito de mito, junto das quais se afirma um modo racionalista de
pensamento que classifica os saberes n�o-hegem�nicos
como primitivos, irracionais... Se estamos escrevendo
e pesquisando sobre arte, com arte, em arte, � fundamental que nossa escrita
n�o reproduza os preconceitos, as desconfian�as com as quais a academia recebe
aquilo que � produzido �s margens das normas, das f�rmulas, dos percursos
lineares, daquilo que ganha o estatuto de ci�ncia.
No entanto, cada pesquisa e cada escrita
de pesquisa que pretenda espraiar o tema aos modos de comunic�-lo, aos m�todos,
� forma, sempre se depara com um caminho inexplorado,
de um lado, e, de outro, com uma estrutura t�o fortemente enraizada que mal se
cogitam alternativas: ao papel, � letra, � palavra escrita, aos conceitos
legitimados por sobrenomes impressos em letras mai�sculas, preferencialmente
estrangeiros, traduzidos, vindos do norte global, com condi��es materiais de
serem editados, impressos, traduzidos e bem distribu�dos nas estantes das
bibliotecas, nas prateleiras das livrarias, nas plataformas, cat�logos e
portais.
Nesta escrita que vai se
urdindo a quatro m�os, que vai sendo constru�da por duas pesquisadoras, as
reflex�es sobre voz e dramaturgia s�o compartilhadas e, na busca e na escuta de
po�ticas da oralidade e da vocalidade, a dificuldade do registro daquilo que �
performativo se imp�e. Perguntamos: como podemos escrever um canto? Descrever
um timbre, a qualidade de um som, a maneira como um corpo singular emite,
ressoa uma melodia, uma palavra? As tecnologias audiovisuais nos permitem registros que, nesse caso, a escrita
n�o contemplaria. Mas com frequ�ncia eles s� adquirem legitimidade como
pesquisa se acompanhados da escrita. Como seria realizar uma audiotese, uma audiodisserta��o?
As mesmas palavras escritas seriam lidas na vers�o em �udio? Ou o ouvido
exigiria outras formas de reflex�o, outras constru��es do discurso? Como
funcionariam cita��es, pagina��es, notas de rodap�? � diante dessas quest�es
que o predom�nio da vis�o nas nossas formas de conhecer e produzir conhecimento
se mostra, afirma sua autoridade.
� nesse momento que lembramos que n�o
est� apenas nos livros e artigos o que aprendemos com nossas pesquisas; esse
aprendizado n�o tem necessariamente a marca de uma autoria. �A criatividade � coletiva�, diz Eliara Guarani,
lideran�a da Terra Ind�gena do Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. A
criatividade � coletiva, e a voz de Eliara logo se dissolve no ar, ecoando
agora dentro. N�o foi publicada, mas registrada na mem�ria e nas pautas do
caderno[2].
N�o tem a marca de uma autoria. Mas � essa marca que, nas escritas de nossas
pesquisas, costuma se destacar na p�gina, com recuo especial, outro tamanho de
fonte, ou colocada entre aspas. E seguida de sobrenomes, datas e p�ginas. Mas
aquilo que escutamos de algu�m, de uma contadora de hist�rias, de uma aluna
durante um exerc�cio em aula, de uma mestra de cultura popular[3], de
brincantes em uma roda de coco, de uma rendeira que
tece com fios, alfinetes, bilros e can��es[4];
permanece oculto, an�nimo, talvez sequer seja mencionado, embora possa ser
fundamental aos rumos da pesquisa.
Falamos de um impasse. E de rela��es de
poder: da teoria sobre a fic��o, da ci�ncia sobre a arte. Da letra sobre a voz.
Da vis�o sobre o conjunto dos sentidos. Pensando sobre os cantos de tradi��o de
culturas populares, como tor�s,
aboios, toadas, cocos de roda, pontos de orix�s, lembramos
dos tantos saberes que, em nosso pa�s, n�o t�m espa�o na academia. Que
s�o, justamente, aqueles colocados sob a etiqueta de mito, mitologia. Que t�m
autoria an�nima. Que ganham o nome de folclore e como tal s�o arquivados. Que
ap�s o genoc�dio das popula��es tradicionais, viram cole��es de l�nguas e
objetos em museus que podem incendiar a qualquer momento. Parecemos preferir os
arquivos �s exist�ncias. E com t�tulos falsos escritos em pap�is habilmente
envelhecidos, terras ind�genas e quilombolas s�o griladas, roubadas. Pessoas
n�o alfabetizadas, embora tenham vivido por gera��es em um lugar, da noite para
o dia perdem suas casas porque algu�m chegou com um papel escrito. E dizem que
ali est� escrito que aquela terra n�o lhes pertence. Aquele papel cala as vozes
e os cantos, derruba as florestas e as hortas cultivadas com trabalho e melodia[5].
A jornalista, escritora e
documentarista Eliane Brum, acompanhando desde 2011 a vida de fam�lias
ribeirinhas no Xingu, expulsas de suas terras para a constru��o da Usina
Hidrel�trica de Belo Monte, mostra-nos o quanto esse poder, essa �autoridade�
da escrita, desempenhou um papel extremamente violento no processo hist�rico do
Brasil:
A hist�ria
dos povos da floresta tem sido contada por n�s e para n�s, o que podemos chamar
de �brancos�, num sentido mais amplo da palavra, pela escrita. E a escrita tem
sido historicamente um instrumento de domina��o das elites. Para os povos da
floresta, os documentos escritos, mesmo que falsos dos grileiros, sempre
valeram mais do que a documenta��o oral e material de s�culos de ocupa��o do
territ�rio. A escrita sempre foi utilizada para expuls�-los da floresta e
destruir a floresta, assim como outros ecossistemas. A escrita � extremamente
violenta no processo hist�rico do Brasil. Como aconteceu em Belo Monte nesta
d�cada, neste s�culo: as pessoas foram pressionadas a assinar pap�is que lhes
tiravam tudo e que n�o eram capazes de ler. Da mesma forma, o imenso
conhecimento destas pessoas � ignorado porque n�o escrito. Hoje eles est�o
encontrando formas de contar sua hist�ria. De fato, eles sempre contaram. A
quest�o � que uma grande parte do Brasil n�o quer escut�-los. As pessoas t�m
voz, o que t�m faltado s�o ouvidos. Ent�o, talvez o mais necess�rio seja mesmo
escutar. E aprender com esses povos, e resistir junto com eles. (Brum, 2020,
n.p.)
H� um peso da letra, de uma linguagem
que se torna pouco acess�vel, que circula em espa�os restritos. H� um peso da
letra que muitas vezes n�o d� conta dos processos da cena. Como podemos fazer da
escrita uma �forma-for�a� � express�o com a qual o medievalista Paul Zumthor se refere � performance?
Ou um movimento-grafia que � tamb�m insubordina��o, autoinscri��o,
escreviv�ncia,
como nos relata a escritora Concei��o Evaristo? Como escrever uma tese
dramat�rgica onde n�o apenas o texto seja contemplado, mas a dan�a, a cena, as
paisagens sonoras� Como materializar?
Concei��o Evaristo lembra
de um gesto antigo de sua m�e, desenhando com um graveto um sol sobre a
terra lamacenta, uma grafia-desenho, um movimento-grafia que Concei��o percebe
como a origem de sua escrita, aquela que ela nomear� como escreviv�ncia. Ali onde a escrita
de um sol feita por sua m�e faz tamb�m nascer a sua no��o de escrita, ela
lembra que esse ato n�o apenas representa, mas materializa aquele sol.
Concei��o e sua m�e sabem que o desenho grafado na terra chama pelo sol, �assim como os artistas das
culturas tradicionais africanas sabem que as suas m�scaras n�o representam uma
entidade, elas s�o as entidades esculpidas e nomeadas por eles� (Evaristo,
2007, p. 17). Concebendo uma escrita marcada, ent�o, por um comprometimento
entre tra�os e corpo, a escritora encontra ali um sentido de autoinscri��o e insubordina��o:
Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido
que se o ato de ler oferece a apreens�o do mundo, o de escrever ultrapassa os
limites de uma percep��o da vida. Escrever pressup�e um dinamismo pr�prio do
sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua autoinscri��o
no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres
negras, que historicamente transitam por espa�os culturais diferenciados dos
lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de
insubordina��o. Insubordina��o que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma
escrita que fere �as normas cultas� da l�ngua, caso exemplar o de Carolina
Maria de Jesus, como tamb�m pela escolha da mat�ria narrada.� (Evaristo, 2007, p. 20-21)
Diante de tais quest�es, � urgente repensarmos nossos modos de fazer
pesquisa, questionarmos o quanto o nosso trabalho dentro da academia ainda
perpetua estruturas de poder que s�o machistas, racistas, coloniais, o quanto o
acesso �s pesquisas fica restrito ao ambiente acad�mico, dialogando pouco com a
realidade e, consequentemente, incapaz de transform�-la. Se a escrita tem tanto
poder e legitimidade, cabe inventarmos outras formas e
usos, que n�o escondam nossas vozes, nossos corpos, nossas pr�ticas. Nessa
escrita perform�tica, combinamos, num processo alqu�mico �uma vontade
documental e uma vontade po�tico-liter�ria�. (Lyra, 2011, p. 41)
Chamaremos de escRITOS,
unindo escrita e rito, alguns pequenos exerc�cios com os quais temos refletido
e constru�do o registro de nossas pesquisas. EscRITOS, como registros ou rastros de experi�ncias
nas quais buscamos modos de proceder que contemplem: o valor da imagina��o, as
imagens evocadas pela pr�tica, pelo corpo em movimento e jogo, o exerc�cio de
g�neros de escrita comumente colocados �s margens das formas �oficiais� de
escrita acad�mica � e ent�o nos aventuramos na escrita de cartas, di�rios,
memoriais e tamb�m de fic��o, transformada em f(r)ic��o,
onde atuamos �em um plano liminar entre o real e o ficcional� (Lyra, 2014, p.
177). EscRITOS tamb�m
po�ticos, � medida que guardam imagens ditadas pelos afetos e ritmos de nossos
corpos em trabalho de cria��o. EscRITOS
que f(r)iccionam experi�ncias pessoais e mem�rias
coletivas, num percurso mitopo�tico que transita
entre elementos de autobiografia, fic��o e autofic��o.
Nesses escRITOS,
n�o identificaremos a autoria de uma ou de outra. Cada um deles registra
momentos individuais de nossas pesquisas, �s vezes em di�logo, compartilhados.
No jogo em que as mem�rias e experi�ncias de cada uma podem se confundir no
percurso do olhar de quem l�, evocamos a fus�o, a f(r)ic��o que as narrativas m�ticas operam entre o que �
pessoal e o que � coletivo. �O
car�ter pedag�gico das narrativas m�ticas exercita-nos em uma pr�tica de
sentido, confere possibilidades de sentidos � pr�tica, � travessia dos
processos criativos. Caminhamos com os m�todos dos mitos. Tra�amos percursos mitodol�gicos.
escRITO 1: CARTA-CHAMADO
Janeiro, 2019.
Querida F,
escrevo para lhe contar que esses tempos est�o mexendo comigo. �s vezes
acordo sentindo alegria, mas logo vem o pensamento de que esse n�o � o momento
para ficar alegre. T� tudo esquisito. Tenho duvidado do que sinto. Bem, talvez
eu escreva outra carta para lhe contar sobre essas coisas que t�m me
atravessado... Nesta, meu desejo � que imaginemos.��
Como voc� sabe, minha pesquisa
est� direcionada � constru��o de dramaturgias... Conversei com Luciana e ela me
disse que talvez voc� poderia me ajudar em alguns
aspectos nesse processo de cria��o. Vi sua apresenta��o na ABRACE em 2018 e
fiquei muito encantada com o seu canto. A voz, o canto, s�o pontos que eu
gostaria de trabalhar em minha cria��o art�stica. Acredito que voc� possa me
ajudar muito nisso! Um convite, um trabalho feminista. Em tempos de acusa��o e
censura das artes, este � um convite pol�tico para que aproveitemos esse lugar
que estamos, na universidade, e o amparo que temos por estar dentro desse
espa�o, para criar fissuras, brechas.
Brevemente vou pontuar minhas
ideias para que voc� possa refletir sobre esse convite que estou lhe fazendo.
Na pesquisa de mestrado realizei em conjunto com a Jussyanne
a pe�a Guerreiras Donzelas[6],
que inclusive voc� j� assistiu. Foi durante a elabora��o dessa dramaturgia que
a figura de Joana d�Arc surgiu e me inquietou. A pe�a foi elaborada j� no final
da pesquisa e n�o houve tempo para maiores aprofundamentos...� Agora, nessa outra etapa acad�mica, trago
mais uma vez Joana, na tentativa de desvelar aspectos que ainda n�o conhe�o
dessa figura m�tica. Assim, a dramaturgia tem como eixo m�tico, mito-guia,
Joana d�Arc. N�o a personagem hist�rica tal qual conhecemos, mas uma Joana que
se aproxime em alguma medida das mulheres comuns e sobretudo
das mulheres do s�culo XXI. Esse � o desafio.
�Para mim a dramaturgia n�o precisa ser fixada
em uma �nica linguagem art�stica. Quero me aventurar em possibilidadeS. O canto, a dan�a, o teatro... acredito que essas diferentes vertentes possam apoiar essa
f(r)ic��o. Espero que lhe interesse a pesquisa e o
convite.
Um beijo,
L.P.
escRITO 2:
BUSCANDO A VOZ NA ESCRITA, OU A RESPIRA��O DA PR�TICA,� NUMA P�GINA DE AR E TEMPO
escRITO 3: NARRAR O PRESENTE DE UM CORPO EM CRIA��O
Entrego meu corpo ao ch�o. A superf�cie de madeira de uma sala de ensaio
me recebe sem fazer perguntas. Pousados ali, bra�os, pernas, cabe�a... Tentam abandonar-se, a cada respira��o, a cada meditada,
controlada fala de um di�logo entre o ar que est� dentro, na intimidade dos
pulm�es, e o ar que est� fora, no vasto espa�o de uma sala vazia. Ouve-se o
ru�do que est� al�m das paredes, de corpos e m�quinas que se movem num peda�o
da cidade inquieta. O di�logo respirat�rio continua, em falas-expira��es e escutas-inspira��es.
Aos poucos os pulm�es tentam prolongar a sua escuta, na lenta e cont�nua tomada
de um ar cuja posse det�m por mais tempo, como se
enfim refletissem antes de dar ao espa�o de fora sua resposta, agora dita
calmamente, at� a extin��o do f�lego. N�o apenas a cidade � ruidosa, com seus
corpos e m�quinas em tr�nsito cont�nuo: das salas ao lado ouvem-se vozes,
conversas, passos, m�sicas, risos, aplausos.
Mas ali onde estou, entregue ao ch�o, na tarefa de aumentar a cada
instante o peda�o de corpo que toca o solo � imposs�vel naufr�gio de um s�lido
em outro! � apenas o sussurro de um ar que se despede, regressa, torna a
despedir-se... Se a carne, por mais que se esforce em pesar, n�o penetra o
ch�o; se pele, m�sculos e ossos parecem encontrar seus limites ali onde a madeira come�a; se as coisas aparentemente acentuam os
tra�os que as tornam individuais, o ar, ao se despedir, regressar e tornar a
despedir-se dos pulm�es � num respirar que � quase silencioso comparado ao som
ao redor � lembra a exist�ncia do fluxo. Sem me pertencer, dissolve-me a cada
expira��o no espa�o vazio da sala de ensaio, nem t�o vazio assim, posto que ali
transitam fragmentos, intensidades, pot�ncias e
virtualidades em displicente anonimato.
� um come�o. Um espa�o vazio, uma roupa confort�vel. Deitada no ch�o da
sala de trabalho eu respiro. As paredes n�o bloqueiam os sons que v�m de fora.
Respiro tentando concentrar-me, mas os decib�is do pensamento s�o quase
intoler�veis. N�o se deixam mensurar, mas s�o ensurdecedores. Eu tenho medo. Eu
tenho vontade. E por ter medo e vontade, prossigo.
(De uma solid�o em pesquisa, em sala de ensaio.[7])
escRITO 4: 06 DE
JUNHO, 11 HORAS. ENCONTRO COMIGO
A PESQUISA
ANDA SEMPRE JUNTO
DESENHA OS
ESPA�OS,� BRINCA
COM O TEMPO
TEM GOSTO,
CHEIRO, RU�DO, TEXTURA E FORMA
Panela no
fogo e dentro o �leo, depois a�afr�o-da-terra, gengibre, alho e cebola. Me convidei para
preparar o almo�o e cozinhar um poema. O dia cinza de novo, o gato preto da
vizinha aninhado na bagun�a da cama desde cedo. Desde que despertei com o miado
dele na porta, bem cedinho, antes ainda do sol que at� agora n�o veio. Dia de
poema-musgo, grudando no azulejo e na alma �mida? Corto a ab�bora com
dificuldade, dureza da casca e de dentro, eu me ponho inteira na faca, com todo
o peso que eu tenho e o que me arrasa e arrasta. Toda na ponta da faca,
partindo em peda�os amarelo-alaranjados a
ab�bora-menina. A panela � espera, eu tamb�m. Na janela o olhar procura o c�u.
Digo: se o sol aparecer, caminho at� a praia, estendendo o tempo desse
encontro, alargando o espa�o. Sal. Um pouco de a��car, um tantinho de pimenta.
�gua at� cobrir. Fogo alto. Aquela m�sica de ontem na cabe�a, entre a lan�a e a
capa, S�o Jorge[8]. O
abismo da garganta dolorido. O fogo fazendo seu trabalho, as alquimias todas
para a passagem do cru ao cozido[9]. Lembro de ontem e antes e antes. Do fogo dif�cil, t�o
racional para mim. Atrito, fric��o dos ossos nos m�sculos, nas carnes cheias de
ar e terra e �gua. Na ponta dos p�s, dos cascos, bra�os pendurados nas chamas.
Chama. Chamar. Eu chamo. Encho de fogo a voz e tudo vem para perto, incendiado,
incandescente. Chamar, invocar. Evocar. H� voz nessas palavras que queimam. Voz
tremendo, rebatendo dentro, enegrecendo as paredes. Atrito: lixando a ferida
sai sangue e fogo. Ocupar o espa�o com a p�lvis: minhas cadeiras chegam antes,
sabem mais, dizem que vieram, a que vieram. Cad� o fogo nas m�os? Nos olhos?
T�o r�pido, passa t�o r�pido. Relevo: na pele retorcida das queimaduras, uma
geografia se revela. Nas panelas, o almo�o feito de fogo e tempo. Penso na
pesquisa, na ang�stia que se instala e na carta que eu poderia escrever. Penso
que ela poderia dizer de pessoas que me ensinaram e me ensinam,
polifonia de vozes e aprendizagens. De pessoas, e cantos e sil�ncios. Ouvindo
as p�ginas dos livros e os ecos da mem�ria. No caminho at� o mar a lembran�a da
terra. Um p� de aroeira e tr�s borboletas. Dois grandes c�es de pelo cor de ferrugem pisam suas oito patas na �gua salgada.
O mar emite suas ondas sonoras ao p� do ouvido da areia. Os p�s na areia, meus
dedos pressionam, escavam os dentros �midos do mundo.
A lembran�a da terra: derramei palavras ao ch�o, hoje eu derramei. Quando eu
fui terra tinha voz de terra grande. Terra
para o p� firmeza, terra para a m�o car�cia...[10]
Caminhava lenta e tr�mula, tirando as camadas do
ar, as p�talas do ar eu terra. E a voz de gritar? de
parir? de mugir? Cantando. Borbulhando o som quente de
dentro do come�o do avesso. Ferida. For�a. Joelhos no ch�o, violino longe. N�o lembrei do outro canto, s� aquele, t�o pequena eu era t�o
grande. S� fui. S�, fui. E parei. N�o sei onde. Terra tr�mula, vibrando.
Descascando o peito. Onde? Quem? H� mar. Areia. �spera. Espera. Experi�ncia de
terra, um canto que n�o sai do come�o. Eu t�o nascida e t�o morta, crian�a e
velha e bicho. Jogo e j�bilo. Jogo e j�bilo. E toda a travessia que h� entre as
duas palavras aqui no papel t�o pr�ximas. Crian�a e
velha. Afec��o e mem�ria. Aprender e ensinar, travessia e encontro, talvez o
sil�ncio do n�o saber falar, do n�o saber mais falar.
Ou do sabor de uma fala que canta, que � poesia cozida
com gengibre e a�afr�o, que � canto que embala, nas portas do sono, do sonho,
do transe, do del�rio. Tenho uma cole��o de palavras perigosas: travessia,
tradi��o, transe. Tremo. Muitas h� para descobrir, para nomear, para numear o caminho. Tra�ar as formas da for�a, as
formas-for�a, nas p�ginas, no corpo, no sopro.
QUEM ME ESPERA?
Querida Joana, escrevo para lhe contar que hoje, 6
de junho de 2019, quinta-feira, �s 10h da manh�, me encontrei na praia do
Campeche. Desafiada pela outra Lu, a Lyra, fui ver o que eu tinha para me
contar.
Tomei caf�, dei rem�dio para minha cachorra Ol�via,
tomei banho. Estava me preparando para um momento especial. Quando fui
sair o c�u j� estava encoberto por nuvens de chuva. Cantei e toquei um samba
esperando que o sol secasse as �guas que ca�am do c�u, esperava n�o derramar.
Mas continuou cinza.
Eu n�o gosto de sair na chuva, a praia n�o seria
o melhor local para ter um encontro debaixo de chuva. Remarquei, n�o pra outro
dia, mas para outro local. Um lugar mais aquecido, confort�vel, que eu pudesse
ficar� na cama. Vamos conversar aqui mesmo, entre cobertas que n�o deixam o
calor escapar.
Eu, �terra, signo de elemento terra, do mar se diz terra � vista, terra
para o p� firmeza, terra para o ch�o car�cia�� Durante
uma aula de escritas perform�ticas fizemos pr�tica de terra. Luciana nos
estimulou a desbravar esse elemento que n�o est� fora, nem dentro, mas que �
parte constituinte de n�s.
Imagens me vieram, lama, terra male�vel que se
molda, e tamb�m se foram como se fugissem, ch�o batido, areias... Terra
escorregadia, lama. Lama que me carinhou o corpo. Sou
terra. Mas algo n�o me deixava mergulhar. Abrir-se em terra, n�o � f�cil. Como
disse Chico Science, �da lama ao caos, do caos � lama�[11]
tudo est� t�o pr�ximo. Naquele momento eu n�o queria caos, talvez por isso
tenha rejeitado me entregar � lama.
Outra imagem que emergiu foi o lobo, loba, bicho, sempre vem. Eu tenho um
sonho bem recorrente desde crian�a� Come�o a correr, correr muito e durante a
corrida vou abaixando meu tronco at� as m�os tocarem o ch�o. Continuo ent�o
mais veloz com as quatro patas no ch�o e me transformo
em loba.
Sempre gostei muito desse sonho, � uma sensa��o de liberdade e for�a� at�
que veio a Saga Crep�sculo e
trabalhou exatamente essa imagem de transforma��o de humanos em lobos. Fiquei
cabreira. Meu sonho estava sendo comercializado, tinha virado produto. At�
nossos sonhos viram, principalmente eles. O sonho n�o era s� meu.
Cheiro, ch�o, ca�a que vem. Desgosto, n�o querer. Olhava ao meu redor e
aquelas� pessoas
que estavam fazendo aula comigo eram todas ca�adoras. Eu tinha que me proteger.
Sou bicho que ca�a tamb�m aquela gente que parece de mentira. Desejo de ca�ar,
armadura no peito, l� estava localizada voc� Joana,
imagem bicho tamb�m.
E no fim da minha escrita sobre o dia de terra relatei:
Agora chega disso que n�o h� vazios desavisados. Ausentes aparecem no
olho que pesca. Loucura na carne que foi sem sentido.
E eu que estava com a terra, a lama e a loba esparramando para fora, fui,
durante a escrita daquele dia, equalizando minhas energias e guardando a loba
em lugar aconchegante dentro de mim.
O sol voltou. As �guas que h� pouco derramavam do c�u agora apenas forram
o ch�o com fina camada.
O sol voltou, sou fogo! Agora escrevendo, brasa. Voc�, Joana guerreira, me atravessou, se espalhou pela sala e n�o sentiu medo dos homens, nem raiva. Encaramos eles de frente.
Voc� e eu, espalhadas por fogo. Fogueira que nos faz e constr�i, �� do
fogo que ressuscito�, disse a outra Joana. Somos em brasa.
O fogo me energizou ontem, me
abasteceu ainda que fogo controlado. Por ser elemento bastante sinuoso e que
n�o d� para tocar � bem complexo palavrear ele� As express�es somem. O fogo tem
que ser dan�ado. Fogo � movimento que queima. Elemento que transmuta,
desverticaliza o pensamento.
Minha querida, j� passa da hora de eu ir. Nesse encontro comigo
inevitavelmente encontrei voc�. Sempre bom. Nos falamos em breve�
Enlameie seus bichos
Um beijo, L.
(De um
exerc�cio proposto na disciplina Escrita acad�mica e perform�tica: Pureza e
Perigo II, ministrada pela professora Luciana Lyra no Programa de P�s-Gradua��o
em Teatro da UDESC. Junho de 2019.)
escRITO 5:
ESCRITA-ESCUTA, LUGAR DE ECOS
A PESQUISA
COLA OS SONS
Eu anotei o
que eu vivi naquele ano. Eu j� tentei, eu quero fazer, j� t� dispon�vel, eu me
dei conta de que eu anotava, de que eu fazia cada rabisco que tinha muito
valor. Mas na folha de um dia come�ou a faltar espa�o. Prot�tipo. Abstra�
tanto, tanto! Eu travo. Madrugada. Tudo a gente come�a com um n�o. O n�o pra
mim � algo que... quando eu vejo eu t� dizendo n�o. Eu falava muito n�o. A gente tem a mania de
repetir. Em cima do muro respondendo alguma coisa ideia consciente tu j�
colocou um n�o na frente, mas tu quer dizer sim na verdade. Um clima, um tom
mais claro. A mulher usava na novela. Eu nunca assisto. Funcionou bem para.
Diferente, n�? De ter�a a sexta. Ser� que sobrou? Sejam mais criativos. Eu sei.
Depende do contexto, alguma coisa que tem significado. Querendo ou n�o, s�o
bonecas. Eu tenho uma pasta de papel de carta. Papel � �rvore e �rvore tem
valor. Uma coisa nova.
(Intervozes capturadas em um intervalo, em escrita-escuta de
palavras no ambiente. Interlocutoras desconhecidas. Uma manh� de sexta-feira.)
escRITO 6:
MEMORIAR
A PESQUISA
TEM UM ONTEM
Manh� de 15
de agosto de 2018. Eu ou�o o canto que nela vibra. Ela vai levar, ela vai levar
flores pro mar, ela vai levar... Ela vai levar, ela
vai levar flores pro mar, ela vai levar... Eu vou
levar, vou levar flores pro mar, eu vou levar[12].
Fa�o-lhe eco, somando � dela a minha voz, nas ondas que o som faz no ar. Aquele
canto revolve as �guas de dentro que os meus passos cuidadosos costumam tentar
evitar que derramem. J� n�o posso, paisagem acidentada
que sou pelos abalos s�smicos dos ontens, de hoje�
Nos golpes de dentro o cora��o me esculpe. Choques tect�nicos nas eras do meu
corpo reconfiguram minhas dist�ncias, meus oceanos, meus continentes. Cada
peda�o de mim sabe uma l�ngua e canta, anuncia o caos, desfaz, dissona e sonha.
Deito no
ch�o, conduzida por sua voz. A madeira fria recebe meu corpo. Percebo o ar que
adentra e se mistura ao sal das l�grimas de h� pouco, sal a gosto na �gua de
dentro que arde, banha de mar os meus avessos, a ferida aberta que sou. Coloco
a palma de uma das m�os no ch�o, ao lado da cabe�a, e � ela que me empurra, com
vagar, na dire��o oposta. A m�o permanece ali, feito �ncora, enquanto o corpo
vai e volta. O gosto da l�grima me inventa um cais[13],
faz de mim barco atracado que o mar embala e chama. A mar� surra o casco, a
correnteza tensiona a corda, terra e mar conflitam o
drama em mim at� que se desfaz o n� que prende � margem. Volto �s �guas
profundas do tempo.
1990. 27 de
fevereiro. Sol em Peixes. Ter�a-feira de carnaval. Uma mulher descasca cebolas
para fazer conserva e talvez seus olhos ardam. No seu ventre carrega outra
mulher, existe em camadas nesse momento, como se fosse tamb�m cebola. O lado de
fora � de samba e feriado, a lua come�a uma nova fase, a mulher tamb�m. A �gua
do ventre � mar de ressaca, revolta-se, transborda, escorre. Anuncia �
crian�a-mulher de dentro que � hora de trocar o elemento acolhedor e quente
pelo ar de fora, ar inaugural de seus pulm�es, que a crian�a devolve ao mundo
no primeiro canto-choro. Venha, pequena! Venha r�pido.
Ainda � ver�o e hoje � carnaval. Ela nasce com pressa: quase que te pari nas
escadas, a m�e dir�, mais tarde, � filha. N�o deu tempo para quase nada.
�Quero lonjuras. Minha selvagem
intui��o de mim mesma. Mas o meu principal est� sempre escondido. Sou
impl�cita. E quando vou me explicar perco a �mida intimidade.�
(Clarice Lispector, �gua Viva)
�... me lan�o �s tormentas
�Abro a janela e ou�o de longe o apito do
navio. O c�u est� azul. Com os p�s fincados na terra, posso avistar embarca��es
chegando, partindo� Fiquei por muito tempo em terra firme esperando e
suportando frustra��es e dores daqueles que retornavam. Agora, percebo que
tenho coragem de construir meu pr�prio navio e arriscar-me em �guas que eu s�
conhecia pelas beiras.
Quais hist�rias poder�o surgir dessa
nova jornada? Quem irei encontrar no caminho? Joana, me acompanhe
durante o percurso. Navegaremos juntas construindo, f(r)iccionando, dramatizando e dan�ando hist�rias.
Hist�rias ao avesso. De fissuras.
escRITO 7: MANDALA
A Mandala Cartogr�fica ou Dramat�rgica faz
parte de um dos procedimentos de cria��o elaborados por Luciana Lyra (2011) em
sua tese de doutorado. A Mandala seria uma forma de
organizar o material que surge a partir dos outros processos que ocorreram
anteriormente, pr�ticas corporais, ritos, defini��o do mito-guia. A Mandala pode ser feita em qualquer etapa da cria��o, ser
modificada durante o processo, constru�da em conjunto. Al�m disso, mais de uma Mandala Dramat�rgica pode surgir durante o percurso de
elabora��o de dramaturgias. Para Luciana Lyra, a Mandala:
� a exposi��o pl�stica e visual do retorno � unidade pela delimita��o de
um espa�o-tempo divino da cria��o por meio de um caleidosc�pio de cores, uma
profus�o de fragmentos, estabelece o terreno de medita��o acerca de todo
processo vivenciado. (Lyra, 2011, p. 386)
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Mandala sendo constru�da
escRITO 8: RESPOSTA OU O COME�O DE UM CANTO
Fevereiro, 2019.
L,
querida. Fico muito feliz com a possibilidade de trabalharmos juntas em nossas
pesquisas. Tamb�m sinto que os tempos sombrios pesam no cotidiano, tem sido
dif�cil me dedicar exclusivamente � pesquisa: sinto-me numa esp�cie de estado
de alerta, como se alguma urg�ncia fosse me interromper ou solicitar a qualquer
momento. Talvez seja isso mesmo, isso tudo que a gente deseja entender, criar,
est� vivo, est� conversando com a vida, respirando de um jeito acelerado no
meio do caos. Todo dia muda, todo dia. Voc� disse: �meu desejo � que imaginemos�.
� o que penso e quero tamb�m, que imaginemos. Imaginar como condi��o poss�vel
para seguir em frente. Como condi��o para conhecer. Lembro de
algumas aulas e leituras sobre os estudos do imagin�rio, e para muitos autores
a imagina��o seria uma falsifica��o do real, ela � vista com desconfian�a,
quase que em oposi��o ao pensamento racional. A imagina��o � vista como uma
deforma��o no contexto de afirma��o de uma ci�ncia que quer explicar, que
pretende explicar, buscar verdade e objetividade. J� faz mais de cinquenta anos
que Gilbert Durand constituiu a sua teoria do
imagin�rio, dialogando com a antropologia e a psicologia profunda, por exemplo,
e chamando a aten��o para a complexidade do pensamento m�tico, das imagens do
inconsciente, do sonho, do devaneio po�tico...
Durand diz que
a imagina��o n�o est� em oposi��o ao real, ao pensamento racional, mas que o
pr�prio pensamento racional, a ci�ncia, os sistemas filos�ficos, prov�m dessa
grande fonte do imagin�rio. Ele diz que n�s imaginamos,
que n�s criamos, porque temos consci�ncia da morte, da nossa finitude. E que os
mitos s�o formas muito concretas de nos relacionarmos com o mundo, nas quais
procedemos por (bri)colagens,
analogias, articulando as imagens que surgem das nossas experi�ncias. Mesmo
quando ouvimos uma dessas hist�rias antigas, � no di�logo com a nossa
experi�ncia que elas ganham sentido, por isso as narrativas m�ticas t�m sempre
um vazio, lacunas, desafios �s nossas l�gicas mais usuais de pensamento. Nosso
encontro com as narrativas m�ticas � potencialmente criador � a n�o ser quando
os sentidos do mito passam a ser controlados por algu�m, por uma institui��o.
A� sim, ele pode vir a ser uma ferramenta de opress�o e aliena��o.
Mas penso
que pesquisar e criar pelo vi�s de uma mitodologia � esse � o conceito que a antropologia do
imagin�rio vai usar para falar de um m�todo dos mitos, um m�todo para o
imagin�rio � pode ser muito potente, sabe? Talvez seja uma forma de afirmar e
legitimar os saberes que constru�mos fazendo arte, ao inv�s de tentar �encaixar�
nossas pr�ticas e reflex�es naquilo que a academia considera ci�ncia,
conhecimento. A mitodologia
do Durand, que compreende uma mitocr�tica e uma mitan�lise, vai buscar reconhecer imagens
recorrentes em determinadas obras (no caso da mitocr�tica)
ou per�odos hist�ricos (no caso da mitan�lise). Essas
imagens est�o enraizadas nos gestos do nosso corpo e s�o geradas por diferentes
atitudes imaginativas. Quando a gente percebe imagens recorrentes, num texto,
numa pe�a, no material que criamos em sala de ensaio, a gente consegue se
aproximar de alguns mitos (como o fogo, a mulher guerreira, a luta te aproximam
da Joana d�Arc), e ent�o fazer com que o nosso trabalho dialogue com essas
narrativas.
Fico
muito feliz com a ideia de trabalharmos em parceria, atravessarmos os caminhos
das nossas pesquisas. Quero muito exercitar rela��es entre voz e imagina��o,
como uma pedagogia para criar. E penso que o canto, libertando um pouco a voz
do sentido das palavras para perceb�-las como sopro, como corpo, como ritmo,
como melodia, como a��o, possa abrir espa�os de imaginar. E sim, trabalharmos
em parceria seria um posicionamento e um processo feminista com o qual
poder�amos criar brechas em uma estrutura que nos isola tanto numa l�gica de
competi��o, propriedade, autoria...
Imagino
que a Joana de Guerreiras ainda
guarde muitos mist�rios, que te convide a chegar mais perto, a pesquisar, a
usar o seu fogo nas alquimias da sua pesquisa. Acho que podemos buscar essa voz
de Joana, os espa�os que ela percorre, os sil�ncios nos
quais se abriga... Quem sabe a gente descubra que a Joana tamb�m cantava?
O convite
para uma pesquisa a duas vozes est� aceito! Estamos e vamos juntas.
Outro
beijo,
F.
REFER�NCIAS
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VERSOS
da ilha - Curta Document�rio. Dire��o: Daniel Choma.� Florian�polis.: [s.
n], 2013. 1 v�deo (13 min., 3 sec.). Publicado pelo
canal C�mara Clara. Dispon�vel em: https: //youtu.be/pqlfgwVfJpU. Acesso em: 21 jan. 2020.
VIOLETA foi para o c�u (Violeta se fue
a los cielos). Dire��o:
Andr�s Wood. Argentina : Imovision,
2013. 1 DVD (110 min).
ZUMTHOR, P. Performance,
recep��o, leitura.� S�o Paulo: Cosac Naify, 2007.
[1] Os trechos em
vermelho s�o as marcas das idas e vindas, do trajeto de leitura deste texto por
outras pessoas e do consequente movimento de
reescrita gerado por essas leituras. Decidimos manter em vermelho pois entendemos ser importante mostrar o processo pelo qual
o texto foi se modificando.
[2] �A criatividade �
coletiva.� Nota sobre a fala de Eliara Guarani durante a Mostra Rosa Teatral,
realizada no Centro de Artes da UDESC em outubro de 2018. Al�m de Eliara, cacica da Tekoa
Yak� Por� do Territ�rio Ind�gena Morro dos Cavalos, participaram
da fala-partilha sobre a
cura e a sa�de das mulheres em perspectivas decoloniais, ind�genas, negras e de
matrizes africanas: A N�ga, artista independente,
cantora e instrumentista autodidata, Geni Nu�ez, psic�loga, mestre em Psicologia Social e doutoranda
no Programa Interdisciplinar em Ci�ncias Humanas da UFSC e Alexandra Alencar,
mulher, negra, m�e, doutora e mestre em Antropologia Social pela UFSC.��
[3] Como na mesa
tem�tica Culturas Tradicionais e
Identidades, realizada na d�cima edi��o do congresso da ABRACE - Associa��o
Brasileira de Pesquisa e P�s-Gradua��o em Artes C�nicas, na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal. Na conversa conduzida pela
mestra Luzia Maria da Silva (Tejucupapo/PE), pelo
mestre Aguinaldo Roberto da Silva (Condado/PE), pela mestra Nice Teles
(Condado/PE), pelo mestre In�cio Lucindo
(Camutanga/PE)� e
pelo mestre Pedro Correia (Natal/RN), conhecemos suas pr�ticas como brincantes
do cavalo marinho, seus trabalhos com teatro comunit�rio, com a tradi��o do
reisado e outras manifesta��es da regi�o. A mesa terminou com um cortejo com
grupos de cultura popular da Vila de Ponta Negra, no qual ouvimos, cantamos e
dan�amos os ritmos do coco de roda,
com mestre Severino, dos congos de
cal�ola, com mestre Pedro dos Santos Correia, do pastoril, com mestra Helena Correia, do boi pintadinho,
com mestre Pedro de Lima, da lapinha,
com mestra Lucimar Ferreira, do bambel�, com mestre Pedro de Lima e do batuque resist�ncia, com mestre Marcos Vinicius.
[4] Enquanto exercem o
of�cio da renda de bilro, Anita Maria Lopes de
Moraes, Marlene Carolina Lopes, Zenaide Maria de Souza, Isolina
Machado Oliveira, Juliana Machado da Silveira, Daura L�cia Correia e Florentina
Olina Coelho compartilham suas mem�rias na trama da
cultura das cantigas de �ratoeira�, em Florian�polis-SC. https://www.youtube.com/watch?v=pqlfgwVfJpU
[5] Silvia Federici (2018) em Calib� e a bruxa:
mulheres, corpo e acumula��o primitiva, conta-nos sobre as can��es m�gicas
que as mulheres da etnia ind�gena Achuar, comunidade
amaz�nica situada na fronteira entre Peru e Equador, cantam �s ervas de seus
jardins, can��es das quais dependem o cultivo e o crescimento de suas plantas.
[6] Guerreiras Donzelas foi uma pe�a teatral
de cria��o conjunta entre Luane Pedroso e Jussyanne
Em�dio. Ver: Guerreiras Donzelas: uma
experi�ncia de teatro feminista para crian�as. Dispon�vel em:
<http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573103332018142> Acessado em:
jan. 2020.
[7] Este fragmento �
parte de um exerc�cio de escrita realizado pela autora no memorial de processo
de cria��o de sua pesquisa de mestrado. (AGUIAR, 2015)
[8] Santo Guerreiro. Can��o tradicional presente no �lbum Folia
de Santo, de Alessandra Le�o (2008), cantada durante exerc�cio na
disciplina Escrita acad�mica e perform�tica: pureza e perigo, ministrada pela professora Luciana Lyra no PPGT-UDESC em
junho de 2019.
[9] Refer�ncia ao
ensaio de Claude L�vi-Strauss (2010), O
cru e o cozido, primeiro volume da s�rie Mitol�gicas, na qual o autor
percorre o universo m�tico amer�ndio. Tendo como ponto de partida um mito do
povo ind�gena Bororo, habitante da regi�o do Mato Grosso, O cru e o cozido re�ne mitos em
torno do tema da �passagem� da natureza � cultura. O mito, em uma das
defini��es dadas por L�vi-Strauss, seria uma hist�ria do tempo em que seres
humanos e animais ainda n�o eram diferentes.
[10] Trecho da m�sica Terra, do �lbum Muito - Dentro da estrela azulada, de Caetano Veloso (1978).
[11] M�sica de Chico
Science, do �lbum Da lama ao caos
(1994), da banda pernambucana Na��o Zumbi.
[12] Ponto tradicional
para Iemanj�, presente no �lbum Macumbas
e Catimb�s (2019), de Alessandra Le�o. Cantada durante a disciplina Escrita
Acad�mica e Perform�tica: Pureza e Perigo, ministrada por Luciana Lyra no
PPGT-UDESC em agosto de 2018.
[13] Refer�ncia � m�sica
Cais, de Milton Nascimento, presente
no �lbum Clube da Esquina (1972).