Sobre escRITOS
mitopoéticos, percursos mitodológicos
e palavras-chave para abrir presença nas páginas
About mythopoetic writings, mythodological paths and keywords to
open presence on pages
Franciele Machado de Aguiar
Doutoranda no Programa de
Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Fran é atriz, professora, gosta de escutar as vozes das pessoas e prefere
cantar a falar. Quando ainda podia contar a idade nos dedos de uma única mão, transformou
em microfone um pedaço de cano de PVC. Ao encontrar dramaturgia na estante da
biblioteca da escola, decidiu brincar de teatro e o fez. E o faz. Tem meia
dúzia de gatos: uma delas se chama Cigana e gosta de acompanhar as escritas
deitada sobre livros e anotações feitas à mão.
aguiafranciele@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0327-247X
Luane Pedroso de Oliveira
Doutoranda no Programa de
Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Luane é atriz, bailarina, gosta muito de teatro de bonecos. Arrisca-se em
instrumentos percussivos e adora música brasileira. Nasceu em uma família de
artistas, o que para ela foi de vital importância em sua formação, que se deu,
sobretudo, do lado de fora da Academia. Ama cachorros e dias de sol. Prefere
teatro a cinema. Deseja a superação do capitalismo. Gosta de escrever
despretensiosamente. Tem a sorte de amar o que faz.
luane.mainha@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-8127-617X
Resumo
O texto experimenta e reflete acerca dos modos de escrita das pesquisas das autoras — que investigam processos de criação de dramaturgias e poéticas e pedagogias vocais. Em jogo de escRITOS, buscam modos de pesquisa e escrita de pesquisa mitodológicos, inspirados nas ressonâncias míticas da imaginação. Esses escRITOS contemplam, ainda, a experiência em formas comumente colocadas às margens daquelas consideradas “oficiais” na escrita acadêmica, como as cartas, a poesia, a ficção. Traçando nas páginas as palavras e imagens ditadas pelos afetos e ritmos de seus corpos em trabalho de criação, as autoras buscam também constituir e cartografar poéticas e pedagogias feministas no contexto da cena.
Palavras-chave:
Escrita e arte. Teatro feminista. Performance (Arte).
Arte e antropologia.
Abstract
The text experiments and reflects on the writing modes of the research of its authors — who investigate creative processes of dramaturgies, vocal poetics and vocal pedagogies. In play of writing, they looking for ways of research and mythodologicals research writings, inspired by the mythical resonances of the imagination. These writings also contemplate experiments in forms commonly placed on the margins of those considered “official” in academic writing, such as letters, poetry, fiction. Drawing on the pages the words and images dictated by the affects and rhythms of their bodies in creative work, the authors also seek to constitute and map feminist poetics and pedagogies in the context of the scene.
Keywords: Writing and art. Feminist theater. Performance art. Art and anthropology.
Recebido em: 04/06/2020
Aceito em: 13/07/2020
DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1808312915252020e0019
Escreva como você gosta, use os ritmos que
aparecerem, tente diferentes instrumentos, sente-se ao
piano, destrua o que é linear, grite ao invés de cantar, arrase na guitarra e
toque a buzina. Odeie matemática e ame redemoinhos. Criação é um pássaro sem um
plano de voo, que nunca irá voar em uma linha reta.
Violeta
Parra
O critério utilizado para definição da escrita
performática advém [...] da crença em que uma resposta metafórica e imaginativa
à experiência é mais fecunda
pelo aprofundamento e
elaboração das imagens,
em detrimento de uma
resposta descritiva ou
literal, que dissipa ou
programa as imagens numa
significação rasa ou fixamente
dogmática. As imagens devem,
de fato, ser estudadas
por outras imagens,
o que implica igualmente uma escrita, um estilo poético adaptado.
Luciana Lyra
Este texto se pretende um relato de
experiência da escrita de duas pesquisas que buscam vivenciar o processo
criativo na perspectiva da imaginação, das lógicas do mito como espaço de
conhecimento e criação, tendo também como horizonte a constituição de poéticas
e pedagogias feministas no contexto da cena. Somos
duas mulheres pesquisadoras escrevendo estas linhas a quatro mãos e integramos
a rede do grupo de pesquisa MOTIM - Mito, Rito e Cartografias Feministas nas
Artes, liderado pela professora Luciana Lyra, vinculada à Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em
Teatro da UDESC[1].
As investigações e reflexões que aqui empreendemos buscam por um espaço
de discussão para os campos do mito, do rito e das práticas conduzidas por
mulheres. Quais modos de escrita melhor cartografam esses territórios e
percursos?
Diante da necessidade de descolonização
de nossos saberes e práticas, cabe questionar as definições muitas vezes pejorativas
dadas ao conceito de mito, junto das quais se afirma um modo racionalista de
pensamento que classifica os saberes não-hegemônicos
como primitivos, irracionais... Se estamos escrevendo
e pesquisando sobre arte, com arte, em arte, é fundamental que nossa escrita
não reproduza os preconceitos, as desconfianças com as quais a academia recebe
aquilo que é produzido às margens das normas, das fórmulas, dos percursos
lineares, daquilo que ganha o estatuto de ciência.
No entanto, cada pesquisa e cada escrita
de pesquisa que pretenda espraiar o tema aos modos de comunicá-lo, aos métodos,
à forma, sempre se depara com um caminho inexplorado,
de um lado, e, de outro, com uma estrutura tão fortemente enraizada que mal se
cogitam alternativas: ao papel, à letra, à palavra escrita, aos conceitos
legitimados por sobrenomes impressos em letras maiúsculas, preferencialmente
estrangeiros, traduzidos, vindos do norte global, com condições materiais de
serem editados, impressos, traduzidos e bem distribuídos nas estantes das
bibliotecas, nas prateleiras das livrarias, nas plataformas, catálogos e
portais.
Nesta escrita que vai se
urdindo a quatro mãos, que vai sendo construída por duas pesquisadoras, as
reflexões sobre voz e dramaturgia são compartilhadas e, na busca e na escuta de
poéticas da oralidade e da vocalidade, a dificuldade do registro daquilo que é
performativo se impõe. Perguntamos: como podemos escrever um canto? Descrever
um timbre, a qualidade de um som, a maneira como um corpo singular emite,
ressoa uma melodia, uma palavra? As tecnologias audiovisuais nos permitem registros que, nesse caso, a escrita
não contemplaria. Mas com frequência eles só adquirem legitimidade como
pesquisa se acompanhados da escrita. Como seria realizar uma audiotese, uma audiodissertação?
As mesmas palavras escritas seriam lidas na versão em áudio? Ou o ouvido
exigiria outras formas de reflexão, outras construções do discurso? Como
funcionariam citações, paginações, notas de rodapé? É diante dessas questões
que o predomínio da visão nas nossas formas de conhecer e produzir conhecimento
se mostra, afirma sua autoridade.
É nesse momento que lembramos que não
está apenas nos livros e artigos o que aprendemos com nossas pesquisas; esse
aprendizado não tem necessariamente a marca de uma autoria. “A criatividade é coletiva”, diz Eliara Guarani,
liderança da Terra Indígena do Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. A
criatividade é coletiva, e a voz de Eliara logo se dissolve no ar, ecoando
agora dentro. Não foi publicada, mas registrada na memória e nas pautas do
caderno[2].
Não tem a marca de uma autoria. Mas é essa marca que, nas escritas de nossas
pesquisas, costuma se destacar na página, com recuo especial, outro tamanho de
fonte, ou colocada entre aspas. E seguida de sobrenomes, datas e páginas. Mas
aquilo que escutamos de alguém, de uma contadora de histórias, de uma aluna
durante um exercício em aula, de uma mestra de cultura popular[3], de
brincantes em uma roda de coco, de uma rendeira que
tece com fios, alfinetes, bilros e canções[4];
permanece oculto, anônimo, talvez sequer seja mencionado, embora possa ser
fundamental aos rumos da pesquisa.
Falamos de um impasse. E de relações de
poder: da teoria sobre a ficção, da ciência sobre a arte. Da letra sobre a voz.
Da visão sobre o conjunto dos sentidos. Pensando sobre os cantos de tradição de
culturas populares, como torés,
aboios, toadas, cocos de roda, pontos de orixás, lembramos
dos tantos saberes que, em nosso país, não têm espaço na academia. Que
são, justamente, aqueles colocados sob a etiqueta de mito, mitologia. Que têm
autoria anônima. Que ganham o nome de folclore e como tal são arquivados. Que
após o genocídio das populações tradicionais, viram coleções de línguas e
objetos em museus que podem incendiar a qualquer momento. Parecemos preferir os
arquivos às existências. E com títulos falsos escritos em papéis habilmente
envelhecidos, terras indígenas e quilombolas são griladas, roubadas. Pessoas
não alfabetizadas, embora tenham vivido por gerações em um lugar, da noite para
o dia perdem suas casas porque alguém chegou com um papel escrito. E dizem que
ali está escrito que aquela terra não lhes pertence. Aquele papel cala as vozes
e os cantos, derruba as florestas e as hortas cultivadas com trabalho e melodia[5].
A jornalista, escritora e
documentarista Eliane Brum, acompanhando desde 2011 a vida de famílias
ribeirinhas no Xingu, expulsas de suas terras para a construção da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, mostra-nos o quanto esse poder, essa “autoridade”
da escrita, desempenhou um papel extremamente violento no processo histórico do
Brasil:
A história
dos povos da floresta tem sido contada por nós e para nós, o que podemos chamar
de “brancos”, num sentido mais amplo da palavra, pela escrita. E a escrita tem
sido historicamente um instrumento de dominação das elites. Para os povos da
floresta, os documentos escritos, mesmo que falsos dos grileiros, sempre
valeram mais do que a documentação oral e material de séculos de ocupação do
território. A escrita sempre foi utilizada para expulsá-los da floresta e
destruir a floresta, assim como outros ecossistemas. A escrita é extremamente
violenta no processo histórico do Brasil. Como aconteceu em Belo Monte nesta
década, neste século: as pessoas foram pressionadas a assinar papéis que lhes
tiravam tudo e que não eram capazes de ler. Da mesma forma, o imenso
conhecimento destas pessoas é ignorado porque não escrito. Hoje eles estão
encontrando formas de contar sua história. De fato, eles sempre contaram. A
questão é que uma grande parte do Brasil não quer escutá-los. As pessoas têm
voz, o que têm faltado são ouvidos. Então, talvez o mais necessário seja mesmo
escutar. E aprender com esses povos, e resistir junto com eles. (Brum, 2020,
n.p.)
Há um peso da letra, de uma linguagem
que se torna pouco acessível, que circula em espaços restritos. Há um peso da
letra que muitas vezes não dá conta dos processos da cena. Como podemos fazer da
escrita uma “forma-força” — expressão com a qual o medievalista Paul Zumthor se refere à performance?
Ou um movimento-grafia que é também insubordinação, autoinscrição,
escrevivência,
como nos relata a escritora Conceição Evaristo? Como escrever uma tese
dramatúrgica onde não apenas o texto seja contemplado, mas a dança, a cena, as
paisagens sonoras… Como materializar?
Conceição Evaristo lembra
de um gesto antigo de sua mãe, desenhando com um graveto um sol sobre a
terra lamacenta, uma grafia-desenho, um movimento-grafia que Conceição percebe
como a origem de sua escrita, aquela que ela nomeará como escrevivência. Ali onde a escrita
de um sol feita por sua mãe faz também nascer a sua noção de escrita, ela
lembra que esse ato não apenas representa, mas materializa aquele sol.
Conceição e sua mãe sabem que o desenho grafado na terra chama pelo sol, “assim como os artistas das
culturas tradicionais africanas sabem que as suas máscaras não representam uma
entidade, elas são as entidades esculpidas e nomeadas por eles” (Evaristo,
2007, p. 17). Concebendo uma escrita marcada, então, por um comprometimento
entre traços e corpo, a escritora encontra ali um sentido de autoinscrição e insubordinação:
Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido
que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os
limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do
sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua autoinscrição
no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres
negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos
lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de
insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma
escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina
Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada. (Evaristo, 2007, p. 20-21)
Diante de tais questões, é urgente repensarmos nossos modos de fazer
pesquisa, questionarmos o quanto o nosso trabalho dentro da academia ainda
perpetua estruturas de poder que são machistas, racistas, coloniais, o quanto o
acesso às pesquisas fica restrito ao ambiente acadêmico, dialogando pouco com a
realidade e, consequentemente, incapaz de transformá-la. Se a escrita tem tanto
poder e legitimidade, cabe inventarmos outras formas e
usos, que não escondam nossas vozes, nossos corpos, nossas práticas. Nessa
escrita performática, combinamos, num processo alquímico “uma vontade
documental e uma vontade poético-literária”. (Lyra, 2011, p. 41)
Chamaremos de escRITOS,
unindo escrita e rito, alguns pequenos exercícios com os quais temos refletido
e construído o registro de nossas pesquisas. EscRITOS, como registros ou rastros de experiências
nas quais buscamos modos de proceder que contemplem: o valor da imaginação, as
imagens evocadas pela prática, pelo corpo em movimento e jogo, o exercício de
gêneros de escrita comumente colocados às margens das formas “oficiais” de
escrita acadêmica — e então nos aventuramos na escrita de cartas, diários,
memoriais e também de ficção, transformada em f(r)icção,
onde atuamos “em um plano liminar entre o real e o ficcional” (Lyra, 2014, p.
177). EscRITOS também
poéticos, à medida que guardam imagens ditadas pelos afetos e ritmos de nossos
corpos em trabalho de criação. EscRITOS
que f(r)iccionam experiências pessoais e memórias
coletivas, num percurso mitopoético que transita
entre elementos de autobiografia, ficção e autoficção.
Nesses escRITOS,
não identificaremos a autoria de uma ou de outra. Cada um deles registra
momentos individuais de nossas pesquisas, às vezes em diálogo, compartilhados.
No jogo em que as memórias e experiências de cada uma podem se confundir no
percurso do olhar de quem lê, evocamos a fusão, a f(r)icção que as narrativas míticas operam entre o que é
pessoal e o que é coletivo. O
caráter pedagógico das narrativas míticas exercita-nos em uma prática de
sentido, confere possibilidades de sentidos à prática, à travessia dos
processos criativos. Caminhamos com os métodos dos mitos. Traçamos percursos mitodológicos.
escRITO 1: CARTA-CHAMADO
Janeiro, 2019.
Querida F,
escrevo para lhe contar que esses tempos estão mexendo comigo. Às vezes
acordo sentindo alegria, mas logo vem o pensamento de que esse não é o momento
para ficar alegre. Tá tudo esquisito. Tenho duvidado do que sinto. Bem, talvez
eu escreva outra carta para lhe contar sobre essas coisas que têm me
atravessado... Nesta, meu desejo é que imaginemos.
Como você sabe, minha pesquisa
está direcionada à construção de dramaturgias... Conversei com Luciana e ela me
disse que talvez você poderia me ajudar em alguns
aspectos nesse processo de criação. Vi sua apresentação na ABRACE em 2018 e
fiquei muito encantada com o seu canto. A voz, o canto, são pontos que eu
gostaria de trabalhar em minha criação artística. Acredito que você possa me
ajudar muito nisso! Um convite, um trabalho feminista. Em tempos de acusação e
censura das artes, este é um convite político para que aproveitemos esse lugar
que estamos, na universidade, e o amparo que temos por estar dentro desse
espaço, para criar fissuras, brechas.
Brevemente vou pontuar minhas
ideias para que você possa refletir sobre esse convite que estou lhe fazendo.
Na pesquisa de mestrado realizei em conjunto com a Jussyanne
a peça Guerreiras Donzelas[6],
que inclusive você já assistiu. Foi durante a elaboração dessa dramaturgia que
a figura de Joana d’Arc surgiu e me inquietou. A peça foi elaborada já no final
da pesquisa e não houve tempo para maiores aprofundamentos... Agora, nessa outra etapa acadêmica, trago
mais uma vez Joana, na tentativa de desvelar aspectos que ainda não conheço
dessa figura mítica. Assim, a dramaturgia tem como eixo mítico, mito-guia,
Joana d’Arc. Não a personagem histórica tal qual conhecemos, mas uma Joana que
se aproxime em alguma medida das mulheres comuns e sobretudo
das mulheres do século XXI. Esse é o desafio.
Para mim a dramaturgia não precisa ser fixada
em uma única linguagem artística. Quero me aventurar em possibilidadeS. O canto, a dança, o teatro... acredito que essas diferentes vertentes possam apoiar essa
f(r)icção. Espero que lhe interesse a pesquisa e o
convite.
Um beijo,
L.P.
escRITO 2:
BUSCANDO A VOZ NA ESCRITA, OU A RESPIRAÇÃO DA PRÁTICA, NUMA PÁGINA DE AR E TEMPO
escRITO 3: NARRAR O PRESENTE DE UM CORPO EM CRIAÇÃO
Entrego meu corpo ao chão. A superfície de madeira de uma sala de ensaio
me recebe sem fazer perguntas. Pousados ali, braços, pernas, cabeça... Tentam abandonar-se, a cada respiração, a cada meditada,
controlada fala de um diálogo entre o ar que está dentro, na intimidade dos
pulmões, e o ar que está fora, no vasto espaço de uma sala vazia. Ouve-se o
ruído que está além das paredes, de corpos e máquinas que se movem num pedaço
da cidade inquieta. O diálogo respiratório continua, em falas-expirações e escutas-inspirações.
Aos poucos os pulmões tentam prolongar a sua escuta, na lenta e contínua tomada
de um ar cuja posse detêm por mais tempo, como se
enfim refletissem antes de dar ao espaço de fora sua resposta, agora dita
calmamente, até a extinção do fôlego. Não apenas a cidade é ruidosa, com seus
corpos e máquinas em trânsito contínuo: das salas ao lado ouvem-se vozes,
conversas, passos, músicas, risos, aplausos.
Mas ali onde estou, entregue ao chão, na tarefa de aumentar a cada
instante o pedaço de corpo que toca o solo – impossível naufrágio de um sólido
em outro! – apenas o sussurro de um ar que se despede, regressa, torna a
despedir-se... Se a carne, por mais que se esforce em pesar, não penetra o
chão; se pele, músculos e ossos parecem encontrar seus limites ali onde a madeira começa; se as coisas aparentemente acentuam os
traços que as tornam individuais, o ar, ao se despedir, regressar e tornar a
despedir-se dos pulmões – num respirar que é quase silencioso comparado ao som
ao redor – lembra a existência do fluxo. Sem me pertencer, dissolve-me a cada
expiração no espaço vazio da sala de ensaio, nem tão vazio assim, posto que ali
transitam fragmentos, intensidades, potências e
virtualidades em displicente anonimato.
É um começo. Um espaço vazio, uma roupa confortável. Deitada no chão da
sala de trabalho eu respiro. As paredes não bloqueiam os sons que vêm de fora.
Respiro tentando concentrar-me, mas os decibéis do pensamento são quase
intoleráveis. Não se deixam mensurar, mas são ensurdecedores. Eu tenho medo. Eu
tenho vontade. E por ter medo e vontade, prossigo.
(De uma solidão em pesquisa, em sala de ensaio.[7])
escRITO 4: 06 DE
JUNHO, 11 HORAS. ENCONTRO COMIGO
A PESQUISA
ANDA SEMPRE JUNTO
DESENHA OS
ESPAÇOS, BRINCA
COM O TEMPO
TEM GOSTO,
CHEIRO, RUÍDO, TEXTURA E FORMA
Panela no
fogo e dentro o óleo, depois açafrão-da-terra, gengibre, alho e cebola. Me convidei para
preparar o almoço e cozinhar um poema. O dia cinza de novo, o gato preto da
vizinha aninhado na bagunça da cama desde cedo. Desde que despertei com o miado
dele na porta, bem cedinho, antes ainda do sol que até agora não veio. Dia de
poema-musgo, grudando no azulejo e na alma úmida? Corto a abóbora com
dificuldade, dureza da casca e de dentro, eu me ponho inteira na faca, com todo
o peso que eu tenho e o que me arrasa e arrasta. Toda na ponta da faca,
partindo em pedaços amarelo-alaranjados a
abóbora-menina. A panela à espera, eu também. Na janela o olhar procura o céu.
Digo: se o sol aparecer, caminho até a praia, estendendo o tempo desse
encontro, alargando o espaço. Sal. Um pouco de açúcar, um tantinho de pimenta.
Água até cobrir. Fogo alto. Aquela música de ontem na cabeça, entre a lança e a
capa, São Jorge[8]. O
abismo da garganta dolorido. O fogo fazendo seu trabalho, as alquimias todas
para a passagem do cru ao cozido[9]. Lembro de ontem e antes e antes. Do fogo difícil, tão
racional para mim. Atrito, fricção dos ossos nos músculos, nas carnes cheias de
ar e terra e água. Na ponta dos pés, dos cascos, braços pendurados nas chamas.
Chama. Chamar. Eu chamo. Encho de fogo a voz e tudo vem para perto, incendiado,
incandescente. Chamar, invocar. Evocar. Há voz nessas palavras que queimam. Voz
tremendo, rebatendo dentro, enegrecendo as paredes. Atrito: lixando a ferida
sai sangue e fogo. Ocupar o espaço com a pélvis: minhas cadeiras chegam antes,
sabem mais, dizem que vieram, a que vieram. Cadê o fogo nas mãos? Nos olhos?
Tão rápido, passa tão rápido. Relevo: na pele retorcida das queimaduras, uma
geografia se revela. Nas panelas, o almoço feito de fogo e tempo. Penso na
pesquisa, na angústia que se instala e na carta que eu poderia escrever. Penso
que ela poderia dizer de pessoas que me ensinaram e me ensinam,
polifonia de vozes e aprendizagens. De pessoas, e cantos e silêncios. Ouvindo
as páginas dos livros e os ecos da memória. No caminho até o mar a lembrança da
terra. Um pé de aroeira e três borboletas. Dois grandes cães de pelo cor de ferrugem pisam suas oito patas na água salgada.
O mar emite suas ondas sonoras ao pé do ouvido da areia. Os pés na areia, meus
dedos pressionam, escavam os dentros úmidos do mundo.
A lembrança da terra: derramei palavras ao chão, hoje eu derramei. Quando eu
fui terra tinha voz de terra grande. Terra
para o pé firmeza, terra para a mão carícia...[10]
Caminhava lenta e trêmula, tirando as camadas do
ar, as pétalas do ar eu terra. E a voz de gritar? de
parir? de mugir? Cantando. Borbulhando o som quente de
dentro do começo do avesso. Ferida. Força. Joelhos no chão, violino longe. Não lembrei do outro canto, só aquele, tão pequena eu era tão
grande. Só fui. Só, fui. E parei. Não sei onde. Terra trêmula, vibrando.
Descascando o peito. Onde? Quem? Há mar. Areia. Áspera. Espera. Experiência de
terra, um canto que não sai do começo. Eu tão nascida e tão morta, criança e
velha e bicho. Jogo e júbilo. Jogo e júbilo. E toda a travessia que há entre as
duas palavras aqui no papel tão próximas. Criança e
velha. Afecção e memória. Aprender e ensinar, travessia e encontro, talvez o
silêncio do não saber falar, do não saber mais falar.
Ou do sabor de uma fala que canta, que é poesia cozida
com gengibre e açafrão, que é canto que embala, nas portas do sono, do sonho,
do transe, do delírio. Tenho uma coleção de palavras perigosas: travessia,
tradição, transe. Tremo. Muitas há para descobrir, para nomear, para numear o caminho. Traçar as formas da força, as
formas-força, nas páginas, no corpo, no sopro.
QUEM ME ESPERA?
Querida Joana, escrevo para lhe contar que hoje, 6
de junho de 2019, quinta-feira, às 10h da manhã, me encontrei na praia do
Campeche. Desafiada pela outra Lu, a Lyra, fui ver o que eu tinha para me
contar.
Tomei café, dei remédio para minha cachorra Olívia,
tomei banho. Estava me preparando para um momento especial. Quando fui
sair o céu já estava encoberto por nuvens de chuva. Cantei e toquei um samba
esperando que o sol secasse as águas que caíam do céu, esperava não derramar.
Mas continuou cinza.
Eu não gosto de sair na chuva, a praia não seria
o melhor local para ter um encontro debaixo de chuva. Remarquei, não pra outro
dia, mas para outro local. Um lugar mais aquecido, confortável, que eu pudesse
ficar… na cama. Vamos conversar aqui mesmo, entre cobertas que não deixam o
calor escapar.
Eu, “terra, signo de elemento terra, do mar se diz terra à vista, terra
para o pé firmeza, terra para o chão carícia…” Durante
uma aula de escritas performáticas fizemos prática de terra. Luciana nos
estimulou a desbravar esse elemento que não está fora, nem dentro, mas que é
parte constituinte de nós.
Imagens me vieram, lama, terra maleável que se
molda, e também se foram como se fugissem, chão batido, areias... Terra
escorregadia, lama. Lama que me carinhou o corpo. Sou
terra. Mas algo não me deixava mergulhar. Abrir-se em terra, não é fácil. Como
disse Chico Science, “da lama ao caos, do caos à lama”[11]
tudo está tão próximo. Naquele momento eu não queria caos, talvez por isso
tenha rejeitado me entregar à lama.
Outra imagem que emergiu foi o lobo, loba, bicho, sempre vem. Eu tenho um
sonho bem recorrente desde criança… Começo a correr, correr muito e durante a
corrida vou abaixando meu tronco até as mãos tocarem o chão. Continuo então
mais veloz com as quatro patas no chão e me transformo
em loba.
Sempre gostei muito desse sonho, é uma sensação de liberdade e força… até
que veio a Saga Crepúsculo e
trabalhou exatamente essa imagem de transformação de humanos em lobos. Fiquei
cabreira. Meu sonho estava sendo comercializado, tinha virado produto. Até
nossos sonhos viram, principalmente eles. O sonho não era só meu.
Cheiro, chão, caça que vem. Desgosto, não querer. Olhava ao meu redor e
aquelas pessoas
que estavam fazendo aula comigo eram todas caçadoras. Eu tinha que me proteger.
Sou bicho que caça também aquela gente que parece de mentira. Desejo de caçar,
armadura no peito, lá estava localizada você Joana,
imagem bicho também.
E no fim da minha escrita sobre o dia de terra relatei:
Agora chega disso que não há vazios desavisados. Ausentes aparecem no
olho que pesca. Loucura na carne que foi sem sentido.
E eu que estava com a terra, a lama e a loba esparramando para fora, fui,
durante a escrita daquele dia, equalizando minhas energias e guardando a loba
em lugar aconchegante dentro de mim.
O sol voltou. As águas que há pouco derramavam do céu agora apenas forram
o chão com fina camada.
O sol voltou, sou fogo! Agora escrevendo, brasa. Você, Joana guerreira, me atravessou, se espalhou pela sala e não sentiu medo dos homens, nem raiva. Encaramos eles de frente.
Você e eu, espalhadas por fogo. Fogueira que nos faz e constrói, “é do
fogo que ressuscito”, disse a outra Joana. Somos em brasa.
O fogo me energizou ontem, me
abasteceu ainda que fogo controlado. Por ser elemento bastante sinuoso e que
não dá para tocar é bem complexo palavrear ele… As expressões somem. O fogo tem
que ser dançado. Fogo é movimento que queima. Elemento que transmuta,
desverticaliza o pensamento.
Minha querida, já passa da hora de eu ir. Nesse encontro comigo
inevitavelmente encontrei você. Sempre bom. Nos falamos em breve…
Enlameie seus bichos
Um beijo, L.
(De um
exercício proposto na disciplina Escrita acadêmica e performática: Pureza e
Perigo II, ministrada pela professora Luciana Lyra no Programa de Pós-Graduação
em Teatro da UDESC. Junho de 2019.)
escRITO 5:
ESCRITA-ESCUTA, LUGAR DE ECOS
A PESQUISA
COLA OS SONS
Eu anotei o
que eu vivi naquele ano. Eu já tentei, eu quero fazer, já tá disponível, eu me
dei conta de que eu anotava, de que eu fazia cada rabisco que tinha muito
valor. Mas na folha de um dia começou a faltar espaço. Protótipo. Abstraí
tanto, tanto! Eu travo. Madrugada. Tudo a gente começa com um não. O não pra
mim é algo que... quando eu vejo eu tô dizendo não. Eu falava muito não. A gente tem a mania de
repetir. Em cima do muro respondendo alguma coisa ideia consciente tu já
colocou um não na frente, mas tu quer dizer sim na verdade. Um clima, um tom
mais claro. A mulher usava na novela. Eu nunca assisto. Funcionou bem para.
Diferente, né? De terça a sexta. Será que sobrou? Sejam mais criativos. Eu sei.
Depende do contexto, alguma coisa que tem significado. Querendo ou não, são
bonecas. Eu tenho uma pasta de papel de carta. Papel é árvore e árvore tem
valor. Uma coisa nova.
(Intervozes capturadas em um intervalo, em escrita-escuta de
palavras no ambiente. Interlocutoras desconhecidas. Uma manhã de sexta-feira.)
escRITO 6:
MEMORIAR
A PESQUISA
TEM UM ONTEM
Manhã de 15
de agosto de 2018. Eu ouço o canto que nela vibra. Ela vai levar, ela vai levar
flores pro mar, ela vai levar... Ela vai levar, ela
vai levar flores pro mar, ela vai levar... Eu vou
levar, vou levar flores pro mar, eu vou levar[12].
Faço-lhe eco, somando à dela a minha voz, nas ondas que o som faz no ar. Aquele
canto revolve as águas de dentro que os meus passos cuidadosos costumam tentar
evitar que derramem. Já não posso, paisagem acidentada
que sou pelos abalos sísmicos dos ontens, de hoje…
Nos golpes de dentro o coração me esculpe. Choques tectônicos nas eras do meu
corpo reconfiguram minhas distâncias, meus oceanos, meus continentes. Cada
pedaço de mim sabe uma língua e canta, anuncia o caos, desfaz, dissona e sonha.
Deito no
chão, conduzida por sua voz. A madeira fria recebe meu corpo. Percebo o ar que
adentra e se mistura ao sal das lágrimas de há pouco, sal a gosto na água de
dentro que arde, banha de mar os meus avessos, a ferida aberta que sou. Coloco
a palma de uma das mãos no chão, ao lado da cabeça, e é ela que me empurra, com
vagar, na direção oposta. A mão permanece ali, feito âncora, enquanto o corpo
vai e volta. O gosto da lágrima me inventa um cais[13],
faz de mim barco atracado que o mar embala e chama. A maré surra o casco, a
correnteza tensiona a corda, terra e mar conflitam o
drama em mim até que se desfaz o nó que prende à margem. Volto às águas
profundas do tempo.
1990. 27 de
fevereiro. Sol em Peixes. Terça-feira de carnaval. Uma mulher descasca cebolas
para fazer conserva e talvez seus olhos ardam. No seu ventre carrega outra
mulher, existe em camadas nesse momento, como se fosse também cebola. O lado de
fora é de samba e feriado, a lua começa uma nova fase, a mulher também. A água
do ventre é mar de ressaca, revolta-se, transborda, escorre. Anuncia à
criança-mulher de dentro que é hora de trocar o elemento acolhedor e quente
pelo ar de fora, ar inaugural de seus pulmões, que a criança devolve ao mundo
no primeiro canto-choro. Venha, pequena! Venha rápido.
Ainda é verão e hoje é carnaval. Ela nasce com pressa: quase que te pari nas
escadas, a mãe dirá, mais tarde, à filha. Não deu tempo para quase nada.
“Quero lonjuras. Minha selvagem
intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou
implícita. E quando vou me explicar perco a úmida intimidade.”
(Clarice Lispector, Água Viva)
... me lanço às tormentas
Abro a janela e ouço de longe o apito do
navio. O céu está azul. Com os pés fincados na terra, posso avistar embarcações
chegando, partindo… Fiquei por muito tempo em terra firme esperando e
suportando frustrações e dores daqueles que retornavam. Agora, percebo que
tenho coragem de construir meu próprio navio e arriscar-me em águas que eu só
conhecia pelas beiras.
Quais histórias poderão surgir dessa
nova jornada? Quem irei encontrar no caminho? Joana, me acompanhe
durante o percurso. Navegaremos juntas construindo, f(r)iccionando, dramatizando e dançando histórias.
Histórias ao avesso. De fissuras.
escRITO 7: MANDALA
A Mandala Cartográfica ou Dramatúrgica faz
parte de um dos procedimentos de criação elaborados por Luciana Lyra (2011) em
sua tese de doutorado. A Mandala seria uma forma de
organizar o material que surge a partir dos outros processos que ocorreram
anteriormente, práticas corporais, ritos, definição do mito-guia. A Mandala pode ser feita em qualquer etapa da criação, ser
modificada durante o processo, construída em conjunto. Além disso, mais de uma Mandala Dramatúrgica pode surgir durante o percurso de
elaboração de dramaturgias. Para Luciana Lyra, a Mandala:
é a exposição plástica e visual do retorno à unidade pela delimitação de
um espaço-tempo divino da criação por meio de um caleidoscópio de cores, uma
profusão de fragmentos, estabelece o terreno de meditação acerca de todo
processo vivenciado. (Lyra, 2011, p. 386)
Mandala sendo construída
escRITO 8: RESPOSTA OU O COMEÇO DE UM CANTO
Fevereiro, 2019.
L,
querida. Fico muito feliz com a possibilidade de trabalharmos juntas em nossas
pesquisas. Também sinto que os tempos sombrios pesam no cotidiano, tem sido
difícil me dedicar exclusivamente à pesquisa: sinto-me numa espécie de estado
de alerta, como se alguma urgência fosse me interromper ou solicitar a qualquer
momento. Talvez seja isso mesmo, isso tudo que a gente deseja entender, criar,
está vivo, está conversando com a vida, respirando de um jeito acelerado no
meio do caos. Todo dia muda, todo dia. Você disse: “meu desejo é que imaginemos”.
É o que penso e quero também, que imaginemos. Imaginar como condição possível
para seguir em frente. Como condição para conhecer. Lembro de
algumas aulas e leituras sobre os estudos do imaginário, e para muitos autores
a imaginação seria uma falsificação do real, ela é vista com desconfiança,
quase que em oposição ao pensamento racional. A imaginação é vista como uma
deformação no contexto de afirmação de uma ciência que quer explicar, que
pretende explicar, buscar verdade e objetividade. Já faz mais de cinquenta anos
que Gilbert Durand constituiu a sua teoria do
imaginário, dialogando com a antropologia e a psicologia profunda, por exemplo,
e chamando a atenção para a complexidade do pensamento mítico, das imagens do
inconsciente, do sonho, do devaneio poético...
Durand diz que
a imaginação não está em oposição ao real, ao pensamento racional, mas que o
próprio pensamento racional, a ciência, os sistemas filosóficos, provêm dessa
grande fonte do imaginário. Ele diz que nós imaginamos,
que nós criamos, porque temos consciência da morte, da nossa finitude. E que os
mitos são formas muito concretas de nos relacionarmos com o mundo, nas quais
procedemos por (bri)colagens,
analogias, articulando as imagens que surgem das nossas experiências. Mesmo
quando ouvimos uma dessas histórias antigas, é no diálogo com a nossa
experiência que elas ganham sentido, por isso as narrativas míticas têm sempre
um vazio, lacunas, desafios às nossas lógicas mais usuais de pensamento. Nosso
encontro com as narrativas míticas é potencialmente criador — a não ser quando
os sentidos do mito passam a ser controlados por alguém, por uma instituição.
Aí sim, ele pode vir a ser uma ferramenta de opressão e alienação.
Mas penso
que pesquisar e criar pelo viés de uma mitodologia — esse é o conceito que a antropologia do
imaginário vai usar para falar de um método dos mitos, um método para o
imaginário — pode ser muito potente, sabe? Talvez seja uma forma de afirmar e
legitimar os saberes que construímos fazendo arte, ao invés de tentar “encaixar”
nossas práticas e reflexões naquilo que a academia considera ciência,
conhecimento. A mitodologia
do Durand, que compreende uma mitocrítica e uma mitanálise, vai buscar reconhecer imagens
recorrentes em determinadas obras (no caso da mitocrítica)
ou períodos históricos (no caso da mitanálise). Essas
imagens estão enraizadas nos gestos do nosso corpo e são geradas por diferentes
atitudes imaginativas. Quando a gente percebe imagens recorrentes, num texto,
numa peça, no material que criamos em sala de ensaio, a gente consegue se
aproximar de alguns mitos (como o fogo, a mulher guerreira, a luta te aproximam
da Joana d’Arc), e então fazer com que o nosso trabalho dialogue com essas
narrativas.
Fico
muito feliz com a ideia de trabalharmos em parceria, atravessarmos os caminhos
das nossas pesquisas. Quero muito exercitar relações entre voz e imaginação,
como uma pedagogia para criar. E penso que o canto, libertando um pouco a voz
do sentido das palavras para percebê-las como sopro, como corpo, como ritmo,
como melodia, como ação, possa abrir espaços de imaginar. E sim, trabalharmos
em parceria seria um posicionamento e um processo feminista com o qual
poderíamos criar brechas em uma estrutura que nos isola tanto numa lógica de
competição, propriedade, autoria...
Imagino
que a Joana de Guerreiras ainda
guarde muitos mistérios, que te convide a chegar mais perto, a pesquisar, a
usar o seu fogo nas alquimias da sua pesquisa. Acho que podemos buscar essa voz
de Joana, os espaços que ela percorre, os silêncios nos
quais se abriga... Quem sabe a gente descubra que a Joana também cantava?
O convite
para uma pesquisa a duas vozes está aceito! Estamos e vamos juntas.
Outro
beijo,
F.
REFERÊNCIAS
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arquétipo-herói. 2015. Dissertação (Mestrado
em Artes Cênicas). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do
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TERRA. Intérprete:
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Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Polygram, 1978. 1
disco sonoro, lado A, faixa 1 (6 min.,
43 sec).
VERSOS
da ilha - Curta Documentário. Direção: Daniel Choma. Florianópolis.: [s.
n], 2013. 1 vídeo (13 min., 3 sec.). Publicado pelo
canal Câmara Clara. Disponível em: https: //youtu.be/pqlfgwVfJpU. Acesso em: 21 jan. 2020.
VIOLETA foi para o céu (Violeta se fue
a los cielos). Direção:
Andrés Wood. Argentina : Imovision,
2013. 1 DVD (110 min).
ZUMTHOR, P. Performance,
recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[1] Os trechos em
vermelho são as marcas das idas e vindas, do trajeto de leitura deste texto por
outras pessoas e do consequente movimento de
reescrita gerado por essas leituras. Decidimos manter em vermelho pois entendemos ser importante mostrar o processo pelo qual
o texto foi se modificando.
[2] “A criatividade é
coletiva.” Nota sobre a fala de Eliara Guarani durante a Mostra Rosa Teatral,
realizada no Centro de Artes da UDESC em outubro de 2018. Além de Eliara, cacica da Tekoa
Yakã Porã do Território Indígena Morro dos Cavalos, participaram
da fala-partilha sobre a
cura e a saúde das mulheres em perspectivas decoloniais, indígenas, negras e de
matrizes africanas: A Nêga, artista independente,
cantora e instrumentista autodidata, Geni Nuñez, psicóloga, mestre em Psicologia Social e doutoranda
no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC e Alexandra Alencar,
mulher, negra, mãe, doutora e mestre em Antropologia Social pela UFSC.
[3] Como na mesa
temática Culturas Tradicionais e
Identidades, realizada na décima edição do congresso da ABRACE - Associação
Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal. Na conversa conduzida pela
mestra Luzia Maria da Silva (Tejucupapo/PE), pelo
mestre Aguinaldo Roberto da Silva (Condado/PE), pela mestra Nice Teles
(Condado/PE), pelo mestre Inácio Lucindo
(Camutanga/PE) e
pelo mestre Pedro Correia (Natal/RN), conhecemos suas práticas como brincantes
do cavalo marinho, seus trabalhos com teatro comunitário, com a tradição do
reisado e outras manifestações da região. A mesa terminou com um cortejo com
grupos de cultura popular da Vila de Ponta Negra, no qual ouvimos, cantamos e
dançamos os ritmos do coco de roda,
com mestre Severino, dos congos de
calçola, com mestre Pedro dos Santos Correia, do pastoril, com mestra Helena Correia, do boi pintadinho,
com mestre Pedro de Lima, da lapinha,
com mestra Lucimar Ferreira, do bambelô, com mestre Pedro de Lima e do batuque resistência, com mestre Marcos Vinicius.
[4] Enquanto exercem o
ofício da renda de bilro, Anita Maria Lopes de
Moraes, Marlene Carolina Lopes, Zenaide Maria de Souza, Isolina
Machado Oliveira, Juliana Machado da Silveira, Daura Lúcia Correia e Florentina
Olina Coelho compartilham suas memórias na trama da
cultura das cantigas de “ratoeira”, em Florianópolis-SC. https://www.youtube.com/watch?v=pqlfgwVfJpU
[5] Silvia Federici (2018) em Calibã e a bruxa:
mulheres, corpo e acumulação primitiva, conta-nos sobre as canções mágicas
que as mulheres da etnia indígena Achuar, comunidade
amazônica situada na fronteira entre Peru e Equador, cantam às ervas de seus
jardins, canções das quais dependem o cultivo e o crescimento de suas plantas.
[6] Guerreiras Donzelas foi uma peça teatral
de criação conjunta entre Luane Pedroso e Jussyanne
Emídio. Ver: Guerreiras Donzelas: uma
experiência de teatro feminista para crianças. Disponível em:
<http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573103332018142> Acessado em:
jan. 2020.
[7] Este fragmento é
parte de um exercício de escrita realizado pela autora no memorial de processo
de criação de sua pesquisa de mestrado. (AGUIAR, 2015)
[8] Santo Guerreiro. Canção tradicional presente no álbum Folia
de Santo, de Alessandra Leão (2008), cantada durante exercício na
disciplina Escrita acadêmica e performática: pureza e perigo, ministrada pela professora Luciana Lyra no PPGT-UDESC em
junho de 2019.
[9] Referência ao
ensaio de Claude Lévi-Strauss (2010), O
cru e o cozido, primeiro volume da série Mitológicas, na qual o autor
percorre o universo mítico ameríndio. Tendo como ponto de partida um mito do
povo indígena Bororo, habitante da região do Mato Grosso, O cru e o cozido reúne mitos em
torno do tema da “passagem” da natureza à cultura. O mito, em uma das
definições dadas por Lévi-Strauss, seria uma história do tempo em que seres
humanos e animais ainda não eram diferentes.
[10] Trecho da música Terra, do álbum Muito - Dentro da estrela azulada, de Caetano Veloso (1978).
[11] Música de Chico
Science, do álbum Da lama ao caos
(1994), da banda pernambucana Nação Zumbi.
[12] Ponto tradicional
para Iemanjá, presente no álbum Macumbas
e Catimbós (2019), de Alessandra Leão. Cantada durante a disciplina Escrita
Acadêmica e Performática: Pureza e Perigo, ministrada por Luciana Lyra no
PPGT-UDESC em agosto de 2018.
[13] Referência à música
Cais, de Milton Nascimento, presente
no álbum Clube da Esquina (1972).