Caminhos do processo. Permanências do reencontro

  Rafael Schultz Myczkowski

Caminhos do processo. Permanências do reencontro

 Paths of the process.  Permanence of re-encounter

Rafael Schultz Myczkowski

Doutor em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) –

rafael.s.myczkowski@gmail.com – orcid.org/0000-0002-7747-1252

Resumo

A presente pesquisa é fruto de práticas participativas junto a pessoas com deficiência. A partir da dissertação e exposição Apagamentos retratos da privação, busquei responder aos apagamentos sociais da deficiência no campo da arte atrelando práticas participativas, processos fotográficos alternativos e o reencontro com as pessoas que fizeram parte da minha produção artística. Por meio de um laboratório de experimentações fotográficas – adaptado e portátil – intencionei possibilitar que pessoas com deficiência elaborassem seu próprio discurso, estimulando diálogos, a produção de imagens e contribuindo assim com as discussões sobre precariedade e reconhecimento no contexto da arte. A pesquisa e a prática artística apresentada e discutida neste artigo culminaram na exposição Permanências do reencontro realizada no Museu da Escola Catarinense — MESC — compondo-se pela apresentação dos processos e seus resultados fotográficos.

Palavras-chave: Fotografia Artesanal. Integração social. Pessoas com deficiência e artes. Isolamento social.

Abstract

From my master´s thesis and exposition Apagamentos retratos da privação (“Erasures portraits of privation”), and through an artistic practice, I have proposed methodologies to answer the erasures and social deprivations upon disabled people. This thesis presents the seven meetings (re-encounters) documented through photography laboratory experimentation – adapted and portable – when I encouraged disabled people to develop their own speech, stimulating dialogues and photography production, articulating the concepts framing and precariousness as a gesture. A research and an artistic practice and discussed in this article culminated in the exhibition Permanências do reencontro (“Permanence of Re-encounter”) at the Museu da Escola Catarinense — MESC — consisting of the presentation of the processes and their photographic results.

Keywords: Photography, Handworked. Social integration. People with disabilities and the arts. Social isolation. .

Recebido em: 29/04/2020

Aceito em: 25/05/2020


1 INTRODUÇÃO A necessidade de continuidade e a reação aos apagamentos

Este artigo trada do processo artístico e discussões teóricas presentes na pesquisa no ranger da câmera. Permanências do reencontro (MYCZKOWSKI, 2019). Parte de um desenvolvimento poético contínuo faz-se necessário incialmente o relato breve dos desdobramentos que levaram a esta pesquisa. Influenciado por experiências anteriores e, com mais intensidade, a partir do período de quase três anos em que trabalhei como professor de artes na Escola de Educação Especial – Vivian Marçal – busco compreender, intervir e dar a ver minhas observações sobre a ambiguidade em que vivem as pessoas com múltiplas deficiências decorrentes, em muitos casos, de paralisia cerebral. Apesar das posições cambiantes que essas pessoas ocuparam política e culturalmente no decorrer das últimas décadas, esses indivíduos enfrentam ainda hoje as imposições sociais que os imputam os rótulos de improdutivos, desviantes de uma normalidade imaginada, inadaptáveis. Ao nos aproximarmos dessa realidade, não é difícil perceber como diferentes esferas da sociedade podem exercer e promover o distanciamento, não suportando as “diferenças” e, dessa forma, mostrando seu poder opressivo. Na convivência social, essa rejeição muitas vezes não é explícita, sendo exercida por formas veladas de exclusão. O campo da arte, por sua vez, pode reproduzir o distanciamento, seja por vezes acreditar gerar um conhecimento objetivo sobre o outro com deficiência ou por não abrir espaço para que essas pessoas, artistas ou não, tenham algum protagonismo na esfera da arte.

Partindo de trabalhos que surgiram em proposições diretas com os alunos da instituição de ensino mencionada anteriormente, e tocando em temas fundamentais que circundam essas vidas, mantive uma produção que pretendia destacar e expandir reflexões, mostrando a capacidade do processo de fatura da obra em questionar e recriar formas de tratar da problemática do recorrente apagamento desses indivíduos. O trabalho Apagamentos retratos da privação – pesquisa desenvolvida em minha dissertação de mestrado – foi permeado pela convivência e produções realizadas anteriormente junto às pessoas com deficiência e desenvolveu-se com intensidade após meu ingresso no mestrado (MYCZKOWSKI, 2015). Duas questões principais orientaram a poética. Como os imaginários sociais sobre a pessoa com deficiência afetam seu aparecimento público? Convencido de que existem espaços ideológicos que condicionam o reconhecimento, quais as formas coerentes de dar visibilidade pública a esses apagamentos?

Diante de uma neutralidade social que é política, propus uma emulação crítica dos apagamentos e estigmas enraizados no imaginário social. Nesse contexto, na tentativa de expor a situação daqueles que são tornados invisíveis, trouxe a público desenhos-instalações, dezoito retratos em grafite, sendo quatro deles acompanhados de gambiarras eletrônicas. Com o uso das gambiarras, engenhocas análogo/digitais que abrigaram parte dos desenhos e que ocasionaram um lento e contínuo apagamento mecânico desses retratos, pretendia expor o paradoxo quando afirmava a presença através do apagamento. Tais dispositivos são paralisados e acionados por meio de sensores de proximidade, onde o público expande a posição de observador interferindo minimamente no funcionamento da instalação e, apesar de sua participação ser prevista pelo programa, torna-se ainda agente de suas modificações. As interferências nos retratos passam a constituir a afirmação da responsabilidade pela existência do Outro, aquele que faz parte de mim que estou diante do retrato.

O desaparecimento progressivo dos desenhos se dá a cada nova montagem. No entanto, a sua inalcançável remoção, seja pelo mecanismo falho dos dispositivos ou pelos sulcos e manchas impregnadas no papel, deixa margem para inúmeras interpretações como o reconhecimento da impossibilidade do testemunho completo ou mesmo sobre a resistência ao apagamento daqueles que não podem ser completamente invisibilizados. Contudo, essa poética objetivou abordar a situação de forma a não substituir uma realidade por outra, criando um trabalho reflexivo com o propósito de estimular a habilidade de resposta do espectador à questão do apagamento social da pessoa com deficiência na contemporaneidade (MYCZKOWSKI, 2015). Vistos pelo ângulo do preconceito, da não identificação, da mistificação, da extrema compaixão, eles são apagados. O paradoxo transparece considerando que o Estado e a sociedade afirmam que a pessoa com deficiência, seguindo pensamento de Le Breton, é “membro da comunidade, cuja dignidade e valor pessoal não são enfraquecidos por causa da sua forma física ou suas disposições sensoriais, mas ao mesmo tempo ele é objetivamente marginalizado” [...].  (2011, p. 73).

Dado o contexto apresentado mantive-me inquieto em busca de respostas às questões levantadas pelo trabalho Apagamentos retratos da privação. Revisitando o repertório de trabalhos que eu havia construído até o momento – as expectativas de continuidade após o mestrado e o desenvolvimento da pesquisa – propus um processo poético. Primeiramente, me pareceu fundamental, como gesto artístico, retornar às comunidades as quais me impelira a investigar as questões dos apagamentos sociais das pessoas com múltipla deficiência e fazer o convite a algumas delas para participarem do trabalho. Em segundo lugar, busquei desenvolver um dispositivo facilitador e agenciador de narrativas, componente de uma pré-metodologia que pretendia um processo participativo de interdependência, de abertura e de valorização do discurso dos seus integrantes. Para tanto, construí uma câmera fotográfica artesanal adaptada, de grande formato, usada para registrar imagens designadas por cada integrante do projeto.

Após o reencontro com as determinadas comunidades, as pessoas que efetivamente fizeram parte deste trabalho foram aquelas que demonstraram pleno interesse e se sentiram confortáveis em relatar a si mesma, consulta essa que foi realizada individualmente. Num total de sete participantes, os processos aconteceram em duas cidades – Itaiópolis, no Estado de Santa Catarina e Curitiba, capital do Estado do Paraná. Em nossos encontros individuais, após a apresentação da proposta e dos equipamentos fotográficos, eram feitas as adaptações e, ao participante, era solicitado, com um pouco de antecedência, que elaborasse sobre si uma narrativa que deveriam compor com até quinze imagens. Se o gesto do apagamento era derivado dos apagamentos reais que eles sofrem, a resposta a essa condição deveria partir dos próprios sujeitos invisibilizados. Desse processo, discutido no decorrer do texto, surgiram setenta e quatro fotografias.

2 O ranger da engenhoca

Para uma metodologia aberta e porosa, desenvolvi uma lógica de trabalho que priorizou os discursos de pessoas com deficiência contribuindo, assim, para a atualização das noções de participação, reconhecimento e discurso neste contexto. Se, antes, o conceito de apagamento era movido como gesto artístico, emulando os apagamentos sociais e testando a sua própria capacidade em politizar esse apagamento; agora se expande em uma reação, mesmo que sutil, às invisibilizações desses sujeitos.

Baseados na minha experiência ao trabalhar técnicas fotográficas com os alunos da instituição de educação especial na cidade de Curitiba refleti sobre o interesse que essa atividade poderia despertar nos participantes e quais as formas de expandir essa prática. Pensando em dilatar o tempo de convivência e, consequentemente, causar uma redução da quantidade de imagens produzidas, encontrei nos processos fotográficos analógico-alternativos uma solução. Ao contrário dos processos fotográficos de alta tecnologia, busquei a construção artesanal dos dispositivos fotográficos, o que configurou uma modificação na forma de comprometimento entre os participantes, a performatividade envolvida no uso desses equipamentos e a estética resultante desses processos. Apesar de a ação propor a produção de discursos, a construção de temáticas a serem abordadas e a pós-produção, seus mecanismos de registro são parte essencial do gesto e não apenas meio de produção.

A partir dessas considerações, iniciei as experimentações e estudos para o desenvolvimento de uma câmera fotográfica artesanal. As necessidades que senti em construir uma câmera, ao invés de adaptar uma máquina já existente, são bem pontuais. Primeiramente, gostaria de trabalhar com uma câmera de grande formato que comportasse chapas de raios-X – usadas nesse processo em substituição a películas especificamente fotográficas – material aquele vantajoso se analisado entre os quesitos qualidade, facilidade de acesso e o custo. Além disso, a busca por técnicas analógicas amplia o tempo de convivência, exige mais comprometimento entre participantes e pode criar um nível maior de interesse pelo processo. A câmera inicialmente foi dimensionada para atender a três critérios: o uso de filmes para raios-X na dimensão 13x18cm, a manipulação e substituição desses filmes no interior da câmera e a construção de um obturador elétrico que poderia ser acionado à distância por botões adaptados às necessidades motoras de cada integrante. Os laboratórios portáteis de revelação construídos para esse trabalho reafirmam a mobilidade, a interdependência, a performatividade e a abertura a interferências propostas pelo processo. A cada dia e local em que aconteciam as investidas fotográficas, o laboratório era montado e as películas eram reveladas no mesmo local dos registros.

Figura 1 – Rafael Schultz. Câmera fotográfica artesanal, 2017.

Fonte: Acervo do artista.

Se para as práticas participativas – definição essa que não pretende encerrar a poética em um único processo, mas constituir-se como característica transversal –, ou quais sejam os possíveis nomes atribuídos a essas ações, as problematizações entre autonomia e heteronomia são uma discussão fundamental, para o processo que propus são conceitos indissociáveis. Tal circunstância é imanente, sendo que a complexidade de deficiências que compôs a prática está diretamente relacionada com a autonomia dessas pessoas e sua sujeição. Em outros termos, o foco dessa prática não foi conquistar a completa autonomia do indivíduo nos processos fotográficos utilizados, tampouco tem a pretensão de formá-los fotógrafos independentes, mas pretendeu evidenciar a interdependência entre sujeitos, mostrando que além da participação direta no domínio completo da experiência fotográfica, a sua força consiste na solicitação de apresentação de si a partir do que pretende mostrar e no trabalho criativo em elaborar as possíveis respostas. A construção do aparato fotográfico relaciona-se com essa discussão na medida em que o dispositivo adaptado desorienta a equação olho-câmera-mão e o próprio tempo do disparo. Foi construída atendendo a necessidade de acionadores alternativos de baixo custo, personalizados e adaptáveis. O disparador manufaturado não é apenas acionado pela mão e a autoria da foto é conjunta, há mais de um par de olhos deliberando sobre a imagem. Uma câmera sujeita a falhas que acaba por não deixar prever completamente o funcionamento de si mesma e trabalha com os participantes no limiar de seu funcionamento.

3 Encontros fotográficos, ponderações e permanências

Após o desenho inicial do processo poético e a construção de dos equipamentos descritos anteriormente, iniciou-se propriamente a segunda faze da metodologia proposta, consistindo no retorno às comunidades com as quais eu havia convivido. Os primeiros contatos, com os responsáveis pelas pessoas que eu gostaria de convidar a participar do projeto, demandaram inúmeras ligações e troca de mensagens. Muitos desses contatos foram pautados por perguntas e explicações a respeito do processo artístico, das finalidades do projeto e sobre possíveis custos – que foram arcados por mim. A maioria dos responsáveis legais com os quais consegui contato permitiu a participação de seus dependentes no projeto e alguns deles se disponibilizaram a ajudar na ação. As pessoas com deficiência com quem me propus a trabalhar eram aquelas que haviam feito parte da minha produção nos últimos doze anos, que haviam autorizado o uso de sua imagem, e que tiveram seus retratos compondo as exposições Possíveis Conexões ou Apagamentos retratos da privação; ou fazem parte de uma série de fotografias nunca expostas, realizadas em uma instituição de ensino em Curitiba. Dessas pessoas, sete vieram a participar do projeto apresentado aqui, sendo elas Bianca G. Ribas; Ana Flávia de Souza; Ricardo A. Purim; Eliézer D. Gonçalves; Afonso H. Kulikowski Pinheiro; José Gilson Liverio e Divaldo Pickcius.

Parte fundamental do trabalho consistiu-se em processos participativos e colaborativos. Pautado por experiências, referências e devaneios, elaborei uma pré-metodologia, ou seja, uma organização prévia de dispositivos acionadores de enunciações, entre eles a câmera fotográfica e os procedimentos de revelação das imagens, o que guiou a estrutura de desenvolvimento dos processos artísticos que propus. Neste sentido, foi fundamental a este trabalho a abertura metodológica para que o grupo de participantes do projeto elaborasse o próprio sentido do discurso, deliberando os temas o lugares a serem fotografados e como seriam fotografados. A não imposição de uma temática específica não significa perder o foco da pesquisa que se ocupa em solicitar respostas aos apagamentos da pessoa com deficiência, mas também caro a essa prática, foi justamente a manutenção da tensão na diferença, suscitando aos participantes heterogêneos que administrassem seus relatos, como resposta ao apagamento social, evidenciando o discurso de si, que muitas vezes é silenciado. Interpolar o outro, solicitando que elabore um relato sobre si, e a elaboração de uma narração própria, para Butler (2015), pode ser um princípio da responsabilidade. Elaboramos uma história de nós mesmos ao passo que somos solicitados a fazê-la sendo que tal função pressupõe a existência de um possível receptor, imediato ou imaginado. Essa autoridade narrativa, ao imaginar um público, também necessita criar formas de persuadir e se fazer entender. Solicitar aos participantes e deixar que criassem esse relato de si, no contexto deste trabalho, é se autonarrar de forma fragmentada e indeterminada, podendo desestabilizar os enquadramentos narrativos hegemônicos. Porém, o exercício de fugir desses enquadramentos pode exigir novas formas de aparição. A própria frustração da narração e do reconhecimento pode pôr em xeque um horizonte normativo sobre seu aparecimento. Os relatos não dão conta da complexidade dessas existências, são fragmentados, interrompidos, e dependem de uma sociabilidade disposta a lhe entender. Segundo Butler:

Quando pedimos para conhecer o outro, ou pedimos para que o outro diga, final ou definitivamente, quem é, é importante não esperar nunca uma resposta satisfatória. Quando não buscamos a satisfação e deixamos que a pergunta permaneça aberta e perdure, deixamos o outro viver, pois a vida pode ser entendida exatamente como aquilo que excede qualquer relato que dela possamos dar. Se deixar o outro viver faz parte da definição ética do reconhecimento, tal definição será baseada mais na apreensão dos limites epistêmicos do que no conhecimento. (2017, p. 61).

Não busquei, contudo, uma homogeneização dos discursos, mas sim evidenciar as singularidades e multiplicidades de manifestações que poderiam surgir de pessoas que, muito além da condição física, são seres desejantes, comunicantes, sensíveis, fabuladores e, na medida do possível, indivíduos de sua própria história.  

As adaptações que surgiram após o início da ação artística junto aos participantes respondem diretamente à manutenção desses critérios e possibilitam a participação de pessoas com mobilidade reduzida.

Figura 2 – Rafael Schultz.  Instalação do botão adaptado, 2018.

Fonte: Acervo do artista.

Além do processo fotográfico proposto, a precariedade ultrapassa a questão material e pretende se assemelhar à própria precariedade da vida, condição essa compartilhada por todos em alguma medida. Entender a vida como precária é desestabilizar uma lógica neoliberal que padroniza os corpos, que percebe a própria condição física como condicionável a padronização, criando cânones nos quais poucas pessoas se enquadram. Entre as categorias que se afastam do ser humano ideal, a pessoa com deficiência é efetivamente marginalizada. Não perceber nossa própria precariedade nos afasta do outro com uma condição corporal visivelmente diferenciada, apreendendo o sujeito que não conhecemos de forma superficial, e a não percepção da complexidade de sua existência corrobora com o afastamento. Seria importante perceber que a precariedade, em maior e menor medida, é a condição partilhada da vida. Segundo Butler:

A precariedade implica viver socialmente, isso é, o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos dos outros. Isso implica estarmos expostos não somente aqueles que conhecemos, mas aqueles que não conhecemos, isso é, dependemos das pessoas que conhecemos, das que conhecemos superficialmente e das que desconhecemos totalmente. (2015, p 30).

Porém, como sinaliza Butler, a precariedade como tal não pode ser completamente reconhecida visto que esse entendimento e apreensão sempre estarão sujeitos a normas de reconhecimento.

No trabalho abordado nesse artigo, as interferências não controladas podem revelar a precariedade à qual o processo está suscetível, as interposições não controladas decorrentes da interdependência e a colaboração, desestabilizando as expectativas de enquadramento sobre o tema. Estas ranhuras do processo podem ser percebidas, por exemplo, em uma fotografia de autoria compartilhada com Afonso H. Kulikowski Pinheiro realizada no Parque dos Tropeiros, no bairro industrial de Curitiba. Entre os sete participantes do projeto, Afonso foi um dos poucos que efetivamente pôde fotografar desvinculado de alguma instituição, realizando a sequência fotográfica em sua casa e no parque mencionado anteriormente, ambas as situações tendo o apoio de Patrícia, sua mãe. A escolha do parque deu-se por ser um dos lugares preferidos de Afonso para passear. Após passarmos algumas horas fotografando no parque, Afonso não nos deixou esquecer o último registro fotográfico a ser realizado: uma coruja que ele visita todas as vezes que está no local. Ela costuma permanecer na mesma árvore e nesse dia não foi diferente. A coruja parecia apreensiva com nossa movimentação e às vezes ensaiava uma fuga. Organizamos tudo lento e silenciosamente para que ela não se assustasse e gravamos a imagem. Dadas as dificuldades em capturar tal cena, acabamos por sobrepor duas películas no interior da câmera no momento do registro resultando em uma fotografia inesperada e surpreendente. Temos galhos de árvores com uma coruja imperceptível sobreposto à vista panorâmica da cidade.

Figura 3 – Afonso H. Kulikowski Pinheiro e Rafael Schultz . Sobreposição – Vista do Parque dos Tropeiros e galhos de árvores.  Curitiba/PR, 2018.

Fonte: Acervo do artista.

As fotos apresentaram indícios de sobreposições, manchas e supressões que evidenciam as falhas e as fragilidades técnicas, mas que por outro lado afirmam os rastros do processo. Ao me referir a esses efeitos menos previsíveis que um processo fotográfico artesanal pode oferecer, concordo com as considerações de Claire Bishop (2006), ao comentar o trabalho da brasileira Paula Trope, quando diz que, em alguma medida, esse aspecto formal da fotografia tem relação com sua recepção e sua produção. Nesse sentido, por não oferecer uma visão objetiva e clara, as imagens podem frustrar um desejo voyerístico sobre a condição de deficiência. A “frustração do nosso desejo por uma visão” é resultado de uma desestabilização do quadro, da frustração do enquadramento (2006). A imagem existe, o que se frustra é o imaginário quando não condiz com o que aparece nas fotos. Certamente, a opção por não editar as imagens resultantes desse projeto procede de uma questão ética e estética, qual seja, a preservação dos ruídos provenientes dessas participações na realização das fotografias. Fez-se a opção de tornar públicas as setenta e quatro fotografias geradas durante as ações sem recortes e tratamento digital além da sua positivação e ajuste de contraste. Decidir por essa forma de apresentação é uma maneira de reafirmar a origem das imagens na poética dos processos participativos, reforçando sua abertura a interferências e sinalizando o tempo de convívio. A instabilidade e ruídos derivados do processo de fatura são parte fundamental para a compreensão do seu próprio processo de produção. Elas denunciam a manipulação dos materiais, a precariedade na superfície. Elaborar uma edição do que deve ou não deve aparecer é subordinar uma parte fundamental dessa poética – o processo participativo e colaborativo – e focar apenas no resultado fotográfico que, apesar de ser fundamental, não é único constituinte da proposta.

Neste mesmo sentido a precariedade do processo em meu trabalho é um fundamento e criou a possibilidade de imagens fantasmáticas e o acúmulo de interferências. Essa estética está diretamente ligada às formas de enquadrar, de dar a ver algo e da incerteza quanto à efetividade do registro. A instabilidade do processo é revelada na película fotográfica, o que pode conferir pistas sobre a prática e faz parte do que relata a fotografia. Abertas a interpretação, cabe lembrar que:

Embora a coerência narrativa possa ser um padrão para alguns tipos de interpretação, isso certamente não se aplica a todas as interpretações. Na verdade, para que a noção de uma “interpretação visual” não se torne paradoxal, parece importante reconhecer que, ao enquadrar a realidade, a fotografia já determinou o que será levado em conta dentro do enquadramento - e esse ato de delimitação é sem dúvida interpretativo, como são, potencialmente, os vários efeitos de ângulo, foco, luz etc. (BUTLER, 2015, p.104-105).

Estas decisões fazem parte das funções delegadas aos participantes da proposição artística, principalmente as decisões sobre o tema a ser fotografado e sua organização dentro do quadro da imagem. A maioria dos participantes mostrou especial interesse em compor o enquadramento, incluindo ou excluindo elementos. Muitas vezes essas imagens se referem a um contexto subjetivo, mas que abrem margem para a capacidade de interpretação e resposta do observador. Apesar de seis dos sete participantes terem produzido autorretratos, todos fazem parte das imagens mesmo fora do enquadramento, sendo tão parte da fotografia quanto seus elementos visíveis. Mas o que nos mostram?

Figura 4 – Ana Flávia de Souza e Rafael Schultz. Autorretrato. Curitiba/PR, 2018.

Fonte: Acervo do artista.

Disso certamente resulta a potência do trabalho, a questão de que, ao invés de serem enquadrados, esses sujeitos decidem enquadrar algo, revelar algo, e – como suas próprias formas de comunicação – usam os fragmentos da vida para relatar a si mesmo a um interlocutor e um observador. Oferecer ao outro seu tempo, um outro ângulo, outros temas, disso é que trata essa “narração”. Expostas, a força das imagens fotográficas, suscitando o processo participativo, consistem em uma via de mão dupla se considerarmos que “[f]otos não podem criar uma posição moral, mas podem reforçá-la – e podem ajudar a desenvolver uma posição moral ainda embrionária” (SONTAG, 2004, p. 28), seja ela excludente ou inclusiva, mas que efetivamente está atrelada ao que mostra, como mostra, quando e onde mostra. O que seria necessário revelar é quais as instâncias normativas por trás da produção de determinados enquadramentos, desestabilizando esses enquadramentos e buscando mostrar que, tão parte do contexto quanto o que aparece na imagem é o que está fora dela, que inflige sua superfície, o que está fora do enquadramento e em alguns casos, a própria falha na tentativa de gerar uma imagem fotográfica. Enquadrar significa armar uma forma de compreensão, narrar por decisões do que deve ou não deve aparecer. Fugir dessa armação pode significar também desestabilizar o quadro e a norma. Não seria apenas uma tática de reconhecimento propor novas formas de enquadramento, mas pensar a própria questão do enquadramento como tal, em sua instabilidade e abertura interpretativa. (BUTLER, 2015).

Ao apresentar um trabalho participativo e aberto em seus significados, ao observador é exigida uma resposta, que pode estar baseada em um senso de responsabilidade. Para isso, o senso de responsabilidade, que muitas vezes está baseado em grupos de pertencimento imaginários ou reais, e que é pautado pela frágil ideia de igualdade, precisa abdicar do distanciamento das pessoas com deficiência. Além de uma problemática complexa que envolve o jogo entre igualdade e diferenciação, nesse senso de identificação estão em jogo as questões normativas políticas e culturais que estabelecem esse enquadramento. No caso da deficiência, poderia sugerir que nem sempre nosso senso de responsabilidade e pertencimento a essa realidade possa estar em “similitudes pré-fabricadas”. (BUTLER, 2015). Talvez um desvelamento das normas excludentes possa ser um início da criação de um campo de reconhecimento da pessoa com deficiência e, dessa forma, podemos nos identificar em nossas diferenças, nos identificarmos em nossa direta relação de precariedade, nos responsabilizarmos mutuamente um pelo outro e percebermos que essa relação de responsabilidade é mais ampla e necessária socialmente. (BUTLER, 2015). Precários porque somos condicionados a viver e sobreviver dentro de determinadas condições de existência. Dependemos, em maior ou menor medida, do que está fora de nós e, ao mesmo tempo em que essa dependência – uma condição indissolúvel – nos provê a vida, pode nos expor a interferências e a violência. Os dispositivos fotográficos usados na proposição reforçam a dependência entre os sujeitos para que o processo seja possível. Por um lado, a decisão sobre o que e como algo será fotografado e o próprio controle do disparo do obturador são de certa forma autônomas, a proposição e o restante do processo depende da colaboração e participação mútua entre seus integrantes. Para Bishop, ao tratar de práticas participativas ou colaborativas, “uma análise desta arte deve envolver necessariamente conceitos que tradicionalmente têm mais circulação dentro das ciências sociais do que nas humanidades: comunidade, sociedade, treinamento, agência” (BISHOP, 2012, p. 7, tradução nossa). Na proposta apresentada neste artigo não seria diferente visto a complexidade em que este trabalho está inserido. As produções no campo da arte que discutem a condição da deficiência atuam em um campo complexo, mas que podem movimentar as discussões sobre o tema e, em alguma medida, ampliar a compreensão dessa condição, subvertendo as representações estreitas e opressivas amplamente exercidas em diferentes manifestações culturais e midiáticas, devolvendo a complexidade do tema como abertura para o “reconhecimento” e a participação efetiva desses sujeitos.

4 Considerações provisórias

A resposta aos apagamentos não teve a intenção de estimular uma resposta literal ou ilustrativa sobre as situações de invisibilização, injúrias e exclusão de pessoas. As manifestações poderiam conter essas questões, mas o mecanismo teve como fundamento a estimulação da escolha de temáticas de forma livre, sujeita a negociações, onde poderiam emergir assuntos que não levantassem a questão do apagamento, mas entendendo que a valorização dos discursos desses sujeitos em si já seria uma forma de resistência à invisibilização. Para tanto, foram realizados alguns contatos antecipadamente e promoveu-se encontros que tiveram como eixo a experimentação de processos fotográficos com foco na produção e compartilhamento de narrativas fragmentadas em imagens. Com esse exercício de diálogo, acredito que foi possível estimular a curiosidade e a integração entre pessoas e a produção de poéticas que, ao invés de representar o sujeito com deficiência, aproximem-se do conceito de deficiência por um viés que ultrapasse sua representação literal e que transborde em enunciações que fazem parte das amplas existências dessas pessoas.

Há um universo fora, mas também um universo dentro dos quadros. Quando não explicativos, abrem margem para o mundo que mostram, suspendem a apreensão das origens de sua fatura, não revelando exatamente o quando e o onde aconteceram, sobre que circunstâncias exatas aconteceram e essa abertura, atrelada aos indícios de sua produção, nos proporciona ângulos menos óbvios para o reconhecimento dos participantes e suas escolhas narrativas. Afinal, presume-se que alguém intencionou fotografar tais situações e, além dessa decisão afetiva, exerceu parte da manipulação técnica do equipamento. O próprio padrão da altura da câmera, os ângulos a que ela se sujeita para captar uma imagem, são plenos indícios da perspectiva de visão do propositor das fotografias. Manter esses ângulos é manter uma coerência poética, uma ética do testemunho. Mais que uma escolha estética, trata-se de nivelar o equipamento ao alcance do olhar de quem fotografa. A exposição Permanências do reencontro ocorrida no Museu da Escola Catarinense composta por trabalhos resultante deste processo, pretendeu ir além da exibição das fotografias, trazendo pistas e indícios de como o processo participativo ocorreu, como seus curiosos aparatos funcionaram e circularam e, logicamente, quem são os participantes do projeto que apresentam seus discursos. Dar indícios de seu funcionamento é armar um dispositivo que convida o espectador a perceber algo além das fotografias e os registros do processo, permitindo que frua livremente em suas próprias apreensões, relações e descobertas através dos discursos promovidos por pessoas com deficiência.

REFERÊNCIAS

BISHOP. C. [Entrevista cedida] a Juliana Monachesi.  Folha de São Paulo, São Paulo, 10 dez. 2006.  Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1012200610.htm. Acesso em: 20 nov. 2016.

BISHOP. C . Artificial hells: participatory art and the politics of spectatorship. 1. ed. New York: Verso, 2012. 383 p.

BUTLER, J. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução: Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 1. ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 288 p.

LE BRETON, D. A sociologia do corpo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

MYCZKOWSKI, R.l S.  Apagamentos retratos da privação. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2015.

MYCZKOWSKI, R. S.  No ranger da câmera, permanências do reencontro. Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2019.

DAPesquisa, Florianópolis, v. 16, p. 01-15, fev. 2021.

DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0008