Estilista ou autor: o percurso das figuras criadoras no sistema da moda

    Amanda Queiroz Campos

Estilista ou autor: o percurso das figuras criadoras no sistema da moda

 Designer or author: the path of creator figures in the fashion system

Amanda Queiroz Campos

Doutora em Design pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – 

amandaqc88@gmail.com –  orcid.org/ 0000-0001-9291-2979

Resumo

O presente artigo decorre de investigação sobre figuras criadoras de moda. Seu objetivo é exibir as diferentes figuras e instituições consideradas aptas e hábeis à criação no decorrer da história da moda. Esta pesquisa pode ser classificada como qualitativa, descritiva e bibliográfica. A metodologia aplicada foi a de revisão teórica, conduzindo-se levantamento, análise e interpretação de fontes teóricas como livros, dissertações e teses sobre história da moda, de forma a identificar e descrever brevemente tais figuras especialistas. O critério adotado para levantar e sistematizar a bibliografia foram as obras de Lipovetsky (2007), Sant’Anna (2009), Riello (2013), Laver (2008) e Baldini (2005). Os dados foram analisados criticamente e as informações foram sintetizadas e apresentadas em ordem cronológica. Como resultado, pode-se identificar que desde as corporações de ofício (manufaturas reais) e as figuras aristocráticas (com ênfase nas rainhas), o campo da moda guia-se por especialistas na definição dos cânones da beleza, do estilo e do bem vestir. Também se aponta que o tardio processo de industrialização da moda cedeu às marcas o papel legitimado da criação, colocando designers de moda no centro das atividades de ideação e desenvolvimento de produtos. Essa industrialização encontra seu apogeu no fenômeno fast fashion. Tal modelo de criação e produção sofre veementes críticas, incluindo aquelas à própria 'insustentabilidade criativa' dos designers de moda. Assim, como consideração final deste trabalho, observa-se um retorno à moda autoral, a qual tem como base a singularidade do criador e a subjetividade de seu processo criativo.

Palavras-chave: Moda. História. Criatividade.  Estilistas (Moda). Vestuário.

Abstract

This article arises from theoretical research on fashion creative figures. It presents the different figures and institutions considered apt and able to create fashion throughout history. This research is qualified as qualitative, descriptive, and bibliographic. The methodology was that of theoretical review, conducting a survey, analysis, and bibliographic interpretation of books, dissertations, and theses on the history of fashion, in order to identify and briefly describe various expert figures. The criterion adopted to raise and systematize the bibliography were the works of Lipovetsky (2007), Sant’Anna (2009), Riello (2013), Laver (2008), and Baldini (2005). Data was analyzed critically and the information was synthesized and organized in chronological order. As a result, one can identify that from the craft corporations (royal manufacturers) and the aristocratic figures (with an emphasis on queens), the field of fashion is guided by experts in defining the canons of beauty, style, and taste. Also, it is denoted that the late fashion industrialization process gave brands the legitimate role of creation, placing fashion designers at the center of product ideation and development activities. This industrialization finds its peak in the fast fashion phenomenon. Such a model of creation and production is strongly criticized, including those regarding the 'creative unsustainability' of fashion designers. Thus, as a final consideration of this work, one may observe a return to authorial fashion, which is based on the uniqueness of the creator and subjectivity in his creative process.

Keywords: Fashion . History. Creative ability.  Fashion designers. Clothing and dress.

Recebido em: 26/03/2020

Aceito em: 18/05/2021


1 INTRODUÇÃO

Uma corrente de reações à lógica da moda rápida entrou em cena no campo da moda nos últimos anos. Em investigação recente, a pesquisadora Julia Valle Noronha (2017) identificou termos como slow fashion, moda lenta, moda autoral, moda sustentável e alta costura como termos aplicados às formas de reação aos limites incontestáveis dos modos de criação, produção e consumo do fast fashion. Particularmente o termo moda de autor (ou moda autoral), apesar de altamente difundido nos círculos de moda experimental, e oralmente na academia, apresenta um diminuto número de produções acadêmicas textuais dedicadas a si[1] (VALLE NORONHA, 2017; SALOMON, 2009; FONSECA, 2013). Sendo assim, dedicou-se no presente artigo a contribuir para o aprofundamento da temática.

No decorrer da história da moda, pode-se identificar diferentes figuras centralizadoras no julgamento do gosto, na definição dos padrões estéticos e legitimadas na idealização e criação de produtos do vestuário (aqui entendidos como os principais produtos de moda) (CAMPOS, 2017; MONÇORES, 2013; SANT’ANNA MÜLLER, 2011). Este texto apresenta algumas dessas figuras e as mudanças entre pessoas e instituições consideradas aptas e hábeis à criação na moda. Sendo assim, parte-se das corporações de ofício e manufaturas reais (MONÇORES, op. cit.) como primeiras instituições que concentraram as expertises e os ofícios, e estabeleceram países – especificamente a França – como principal potência cultural no campo da moda. Durante os anos de absolutismo (1643-1789), as figuras reais contribuíram para reforçar esse mindset.

Não despropositadamente é na França que surge a Alta Costura, juntamente à figura do estilista-criador (BALDINI, 2005; CRAVERI, 2006; GODART, 2010). A partir, portanto, da segunda metade do século XIX, não é mais o costureiro que visita suas clientes e segue seus gostos e vontades. São as clientes que visitam as maisons dos criadores e moldam-se às suas modas. Foi nesse período que a autoria da criação torna-se evidente, e os estilistas assinam suas peças (obras, protegidas por direito autoral) em etiquetas a elas afixadas (ibid.). Os processos de industrialização e produção seriada de produtos de moda alterou a relação direta entre os estilistas e as consumidoras de moda, sendo institucionalizado em grandes marcas e magazines (CAMPOS, 2017; SANT´ANNA MÜLLER, 2011).

O cume da aceleração e massificação da criação da moda industrial é o fast fashion. Possibilitado pela sofisticação das tecnologias de produção e transporte e pela internet e suas bases de dados, a principal mudança introduzida pelo fast fashion foi o lançamento de diversas coleções durante um mesmo ano, responsivas às vendas da coleção vigente, adaptando a oferta à demanda (CAMPOS, GOMEZ, 2016). As críticas à insustentabilidade ambiental, práticas abusivas e condições desumanas dos trabalhadores, pasteurização da oferta e recorrentes denúncias de plágio explicitam os limites do sistema de moda rápida.

Assim, a moda autoral surge como reação ao fenômeno, ainda que não seja possível comparar ambos os fenômenos em função às suas absolutamente dissemelhantes dimensões. Conceitualmente, a moda autoral ganha força em mercados seletos, nos quais valorizam-se a produção artesanal, a base cultural e artística dos locais, a sustentabilidade e qualidade material das peças e a relação com o criador e a aproximação com seu processo criativo e a inspiração para sua criação (VALLE NORONHA, 2017; FONSECA, 2013). A moda autoral possibilita a experiência de espaço e tempo aderente à concepção e realização das peças. Assim, as peças criadas tomam emprestado a "alma" do criador, atribuindo a elas valor afetivo e a experimentação simbólica sensível de peças (obras) do vestuário. 

A pesquisa da qual resulta este trabalho pode ser classificada como descritiva quanto aos seus objetivos, pois opera um levantamento das características e os atributos dos fenômenos estudados. Para a coleta dos dados, foram utilizadas fontes bibliográficas de base teórica, por meio de levantamento e revisão de publicações em livros, dissertações e teses e artigos científicos publicados em periódicos. Tomou-se como parâmetro definidor dos diferentes momentos do estabelecimento de um sistema de criação, produção e consumo de moda os principais livros teóricos de moda, tais quais O Império do Efêmero (LIPOVETSKY, 2007), Teoria da Moda (SANT´ANNA, 2009), História da moda (RIELLO, 2013), A moda e a roupa (LAVER, 2008) e A invenção da moda (BALDINI, 2005). Posteriormente, conduziram-se pesquisas de aprofundamento de forma a identificar e descrever brevemente as figuras especialistas e suas práticas. Por meio da análise crítica, as informações foram sintetizadas e apresentadas em ordem cronológica.

O resultado da revisão bibliográfica foi apresentado nas próximas páginas. Ele é composto, brevemente, pelas (1) manufaturas reais, (2) haute couture e os estilistas-artesãos, (3) os estilistas do prêt-à-porter, (4) os designers industriais de moda de marca e (5) os designers de cadeias varejistas de redes fast fashion. Além desses, com o trabalho, identificou-se uma renovação no modelo contemporâneo padrão (default) para a criação de moda, fast fashion, com sugestões de contratendência que aponta para uma reaproximação da moda criada por estilistas (de haute couture no despertar do século XX). Atualmente esse modelo de criação de produtos de moda é ressignificado pela 'moda autoral', cuja ênfase está na pessoalidade no processo criativo do autor idealizador das peças, nomeadamente seu autor. O modo revisado de criação de moda propõe um retorno à produção manual e artesanal, proximidade com a história de vida do criador e aloca o diferencial simbólico na experiência estética do consumo da peça.

2 As corporações de ofício, manufaturas reais e exposições internacionais

Um dos primeiros centros de expertise da grande parte dos ofícios foram as guildas. Essas consistiam em oficinas medievais cuja tarefa era regulamentar, controlar e ensinar ofícios a artesões aprendizes. As guildas eram espaços onde os artesãos desenhavam e desenvolviam artefatos em produção coletiva, segmentada por área de atuação (MONÇORES, 2013). Nas atividades de produção de bens tidos como de luxo; como mobiliário, louças e têxteis. As guildas começam a enfraquecer em decorrência da ascensão de Manufaturas Reais entre os séculos XVII e XVIII como resposta à necessidade de produção em maiores quantidades (CARDOSO, 2008).

Essas últimas ocupavam-se da organização do acesso ao mercado e do ensinamento de ofícios, mas investiam mais no ensinamento da concepção e do desenho do que na atividade prática – habilidade investida no treinamento em guildas. A quebra entre as duas instituições consistiu na separação entre concepção e processo produtivo como estratégia para desenvolver produtos reproduzíveis pelas máquinas, em prol da facilitação da introdução de novos produtos em novos mercados. Todavia, houve dissonâncias entre o que era produzido com a estética da máquina e o que as pessoas julgavam ser produtos belos ou de bom gosto que tiveram de ser solucionadas por parte do Estado.

A centralização de expertise das guildas, das Manufaturas Reais e das escolas de ofício reverberam de modo significativo no que diz respeito a uma habilidade da moda na questão geográfica. A centralização da manufatura francesa ocorreu parcialmente como ação tática e meticulosa por parte de Luís XIV (1643 – 1715) e Jean-Baptiste Colbert[2]. Eles reconhecem a manufatura de têxteis como motor da economia (LEVENTON, 2009) de modo a consolidar culturalmente a produção de moda francesa. Já no início do século XVIII, o prestígio da corte de Versalhes provocou em toda a Europa um encantamento que “desencadeou a disposição em aceitar, em questões de moda e muito mais, o domínio da França” (LAVER, 2008, p.127).

A partir de então, roupas elegantes e de excelente qualidade, ao menos para os nobres, indicavam uma única procedência: a França. Não irrefletidamente, na segunda mais conhecida exposição industrial, ocorrida em Paris no ano de 1867, a Exposition Universelle d'Art et d'Industrie promovida por Napoleão III (1808-1873), a Imperatriz Eugênia (1826-1920), esposa de Napoleão III, incentivou a exposição de objetos pessoais da Rainha Maria Antonieta (SPINOSA, 2008). Essa exposição reafirma o papel maestro da aristocracia francesa como centro criador e difusor de “modas”, principalmente ao considerar a referência que a Inglaterra se tornara neste mesmo setor.

Anos depois em Paris, não por acaso, vinte casas de alta costura[3] francesa participaram da Exposição Industrial de 1900; entre elas: Worth, Routh, Paquim e Callout Soeurs (MONÇORES, 2013). Na exposição de 1925, foram mais de sessenta casas de alta costura. Nesse período, o segmento já era considerado muito lucrativo para a França, sendo responsável por mais de 15% das exportações do país. O surgimento da alta costura inaugurou aspectos um tanto quanto distintos na criação e na produção de artigos de moda. Se antes os costureiros deslocavam-se até suas clientes, agora eram elas que tinham de deslocar-se até os costureiros, os quais decidiriam em não atendê-las ou não. Nascem as maisons e, com elas, a aclamada figura do couturier.

3 O estilista de haute couture e o nascimento do sistema da moda

Charles Frederick Worth inaugurou em 1857 uma espécie de loja-laboratório em Paris, na qual inventou a alta costura e transformou o alfaiate – artesão de trabalhos recorrentes e habituais – em criador, gênio artístico moderno (LIPOVETSKY, 2007). Worth afirmou que o criador era o grande “senhor da moda” e não mais aquele que vestia a criação. Logo, o couturier não trabalhava sob as exigências de uma cliente, por mais ilustre que ela fosse. Considerado pai da alta costura, o inglês é também reconhecido como precursor das marcas de moda, por ter sido pioneiro em estampar etiquetas assinadas, legitimando a procedência de suas criações. Worth foi também introdutor da criação das datas prefixadas para o lançamento dos produtos de vestuário ao planejar suas coleções com tecidos e cartelas de cores desenvolvidas sob medida para cada estação. O costureiro foi o responsável por organizar um calendário para o mercado da moda já no século XIX.

Charles Worth, tal qual um grande pintor, não escolhia o tema de suas obras, porém a elas impunha seu tratamento. Seu ofício enquanto createur consistia não somente na execução das peças, mas essencialmente e, sobretudo, na sua criação. “Worth não se considerava um fornecedor das damas; ele queria ser igual a elas, seu confidente. Explicava que, como pertencia ao mundo delas, podia entender as expectativas da rainha ou da mulher do czar” (ERNER, 2005, p.32). Entretanto, Worth permanecia o único árbitro das suas criações. Ele alcançou grande renome por toda a Europa vestindo a aristocracia francesa – sendo o costureiro favorito da Imperatriz Eugênia – e a nobreza europeia, como a Princesa Pauline de Viena e a já mencionada Imperatriz Elisabeth da Áustria, Sissi.

O papel do estilista de moda simbolizado por Charles Frederick Worth, um inglês que trabalhou em Paris e criou estilos adotados pela realeza e pelas aristocracias europeias, pela classe média-alta e pelo demi-monde ("mundinho" de mulheres de reputação duvidosa) das cortesãs e atrizes. Worth iniciou a tradição do haute couture (alta-costura), roupas feitas sob medida para clientes que compravam diretamente dos estilistas (...), enfatizava estilos e técnica (CRANE, 2011, p.62)

Assim como Worth, outros estilistas alcançaram grande renome como criadores e alcançaram notoriedade como artista. Tornaram-se referência na criação de novos modos de vestir, tendo suas criações copiadas por costureiros em todo o mundo. O francês Paul Poiret adentrou o mercado de moda por volta dos anos de 1910 e em muito pouco tempo já havia vestido as personagens mais admiradas, abastadas e renomadas da sociedade parisiense do início do século XX, sendo reconhecido como um dos principais responsáveis pela ascensão da moda como mercado. Nos anos 1930, Coco Chanel era uma personalidade e poucos anos após o término da Segunda Grande Guerra, Christian Dior foi recebido nos Estados Unidos como chefe de Estado.

Por período inexato, “o mito do costureiro demiurgo, que impõe ao mundo a sua inefável essência por meio de um ato criativo único, gratuito e, portanto, artístico, além de ser uma construção arbitrária, foi difundido pelos próprios costureiros” (GIUSTI, 2008, pp.119-120). O mito, não devido ao acaso, é expressão romantizada e absolutamente abstrata do trabalho criativo. Essa representação oculta propositalmente os aspectos vulgares e comuns dos sistemas de produção, afastando as criações dos estilistas do “chão de fábrica”. Os estilistas perpetuavam por si mesmos uma ideia fantasiosa e errônea da produção do vestuário e dos acessórios de moda.

A oratória dos costureiros reafirmava a magia com a qual eles pretendiam ambientar o seu trabalho. Chanel chamava de poésie couturière a prática de nomear as criações, como se fossem obras de arte. A explicação para de onde veio a inspiração para uma coleção era floreada por mitos inspiradores, histórias românticas, devaneios literários, referências à arte: informações prontas para serem confirmadas e reverberadas pelos jornalistas de moda. Certamente é mais poético e também mais mítico, “contar que Christian Dior, no seu retiro criativo de Coudret, no sul da França, decidiu que o verde não está mais na moda ou que um sopro artístico lhe sugeriu levantar ainda mais a barra das saias” (ERNER, 2005, p.120).

Por um período inexato de tempo, o mito do costureiro demiurgo que impunha ao mundo sua essência inefável através de um ato criativo único, livre e, portanto, artístico, sendo uma construção arbitrária, foi divulgado pelos próprios costureiros. O mito, não por acaso, é uma expressão romantizada e absolutamente abstrata do trabalho criativo. Essa representação oculta deliberadamente os aspectos vulgares e comuns dos sistemas de produção, afastando as criações de designers dos "pisos da fábrica". Assim, os estilistas perpetuaram para si mesmos uma ideia fantasiosa da produção de roupas e acessórios de moda.

A ênfase da criação e habilidade técnica os associaria à definição de Becker (1982) como artista-artesão: desenvolvendo e aperfeiçoando suas técnicas (diferentemente de um artista que busca subvertê-las). Assim, os estilistas de moda esforçavam-se em criar um estilo pessoal pelo qual eram reconhecidos, mantendo seus cânones, tais como: rigor, beleza, elegância, etc. Mesmo os costureiros lutando para manter vivo o mito do couturier, pela retórica, pelo encanto divino de suas criações e pelo apoio da mídia especializada; as casas de alta costura sofreram forte impacto das Guerras Mundiais.

De acordo com Crane (1997 apud SANT'ANNA-MÜLLER, 2011), a maior parte das casas de alta costura ‒ maisons de haute couture ‒ padecem depois da Segunda Guerra Mundial. Algumas outras são criadas, mas nenhuma após a década de 1980. Os efeitos econômicos, políticos e socioculturais impeliram por mudanças que reverberam diretamente na produção e no consumo de moda. Economicamente, "a clientela para as roupas extremamente caras, feitas com materiais luxuosos e que exigem centenas de horas de trabalho especializado, diminui sem cessar" (ibid., p.200). Em termos de produção industrial, a fase possibilitou o surgimento do prêt-à-porter[4] como solução estratégica para atender um público ávido por consumir, mas sem o poder aquisitivo para investir em produtos de valor exorbitante do haute couture.

4  O prêt-à-porter de luxo

Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, uma nova sociedade foi configurada devido aos avanços tecnológicos e principalmente devido à hegemonia cultural e econômica dos Estados Unidos (SANT'ANNA MÜLLER, 2011). Os valores dessa nova sociedade não correspondiam mais aos valores propagados pela alta costura tradicional francesa, e ocorreu um processo de modificação. Segundo Sant'Anna Müller (ibid.), A impossibilidade de manutenção da alta costura como antes da guerra pode ser analisada por quatro aspectos distintos: [1] a insustentabilidade econômica das casas de moda; [2] o novo conceito de elegância imposto na década de 1960; [3] o novo perfil das elites e; [4] a difusão de produtos de moda e consumo.

A alta costura via-se frente à pressão de alterar sua forma de confecção de vestuário, diminuindo o tempo de trabalho dedicado à cada peça de roupa como forma de baratear os valores de seus produtos, ampliando seus mercados. O espaço de compra da boutique, segundo a esmerada investigação de Sant'Anna Müller (2011), funcionava como um exemplo dessa mudança porvindoura no consumo de bens do vestuário na França. Essas "lojas abertas" ofereciam a pronta entrega "‘alta-confecção de bom-gosto e de boa qualidade”. A professora também cita o estilista Jacques Heim (1899-1967), "que criou alguns tamanhos-padrões, os quais exigiam apenas adaptações rápidas, diminuindo o desperdício, o tempo de confecção e a mão-de-obra da roupa e, logo, seu preço" (SANT'ANNA-MÜLLER, 2011, p.118).

No pós-guerra quase todas as maisons de haute couture passam a desenvolver linhas de prêt-à-porter de luxo. É significativo frisar que o barateamento das peças do prêt-à-porter em comparação com a haute couture não implica que seja sinônimo do ready-to-wear americano. Os produtos seriados franceses mantinham altíssimos preços e a aura distintiva.[5] Assim, a especialista considera que o  prêt-à-porter consista mais na adaptação da imagem da alta costura para os tempos modernos, do que sua negação. Segundo ela:

Essa nova modalidade de organização da criação de moda não foi incumbida de atender a demanda de produtos de moda que as ruas faziam e nem surgiu como demanda dela. O prêt-à-porter nunca a atendeu diretamente e nem se ocupou dela. Como nova autoridade para ditar o que seria tendência de moda nas futuras estações, ele passa a ser um esteio onde outros estilistas e criadores de moda vêm buscar inspiração para traduzir as demandas dos diferentes públicos consumidores. [...] . O novo modelo de produção das marcas luxuosas foi uma opção bem sucedida para preservar a nação francesa como a única detentora da genialidade no campo da elegância e, logo, a mais autorizada para criar o novo (SANT'ANNA-MÜLLER, 2011, p.123-124).

Sendo assim, pode-se compreender que uma sociedade orientada ao consumo e ao espetáculo, cujas bases recaem nos acontecimentos da segunda metade do século XX intensificaram e consolidaram a sociedade de moda e seu ethos como lógica social (ibid.). A solidificação desse ethos moda – e de seus valores de efemeridade, centralidade das aparências e valorização do novo – implicou na valorização de produtos em função de sua dimensão estética. Ao mesmo tempo, é justamente a obsolescência estético-simbólica dos produtos, que poderiam ser usados por muito mais tempo, que leva ao consumo frequente e torna o mercado de "produtos de moda" competitivo e acelerado. 

Empresarialmente, a manifestação do prêt-à-porter na França e a expansão do modelo ready-to-wear americano para outras partes do globo ampliaram a formalização e organização do modo produtivo, do trabalho e de estratégias comerciais e estéticas no palco da moda. Enquanto indústria, a moda passa a operar através de uma lógica de apostas constantes. A condição de desconhecimento da demanda representa grandes riscos para os produtores e, como consequência, para todo o setor. Frente a tantas incertezas, coube à indústria da moda coordenar a oferta e a demanda de produtos a serem manufaturados em massa. Criou-se o mecanismo industrial da moda.

5 A produção industrial e a era das marcas

Apesar de a indústria de moda operar em pluralismos de fontes, tal qual uma colcha de retalhos, na qual sobrevivem costureiras, estilistas de haute couture e o prêt-à-porter de luxo, a forma mais expressiva da criação, produção e comercialização de produtos de moda – aqui leiam-se produtos do vestuário – é a produção industrial. Nessa cena, a figura do estilista como artista-artesão (que enfatiza beleza, técnica e qualidades estéticas) é trocada pela figura do "artesão" (de acordo com a tipologia definida por Becker), que preocupam-se mais em definir a utilidade como princípio basilar para suas criações. "O designer de mercado de massa tende a ser um artesão, enquanto o estilista de moda de luxo é geralmente um artista-artesão e, às vezes, um artista de vanguarda" (CRANE, 2011, p.211).

Esse estilista anônimo definido como designer de mercado de massa orienta sua criação para coleções variadas de peças do vestuário adequadas a diferentes gostos pessoais e estilos de vida, uma vez que o mercado de massa está cada vez mais fragmento. Principalmente após as décadas de 1960 e 1970, o consumo de vestuário e o vestir-se tornam-se meios de "expressão das nuances de individualidade baseado na percepção de gênero, orientação sexual, idade, raça e etnia. As roupas eram selecionadas mais por gosto pessoal do que por conformidade com as regras ditadas por autoridades da moda" (CRANE, 2011, p.186). Assim, num cenário competitivo de mercado, designers criam oferta variada de produtos, no intento de atender a fragmentada demanda.

Os novos contornos competitivos dos mercados, influenciados ainda mais recentemente pela globalização, a oferta de produtos é variada, mas se vê frente à redução de casas de moda e marcas comerciais de pequeno porte. Particularmente no caso das maisons de haute couture e prêt-à-porter,

as casas são compradas por conglomerados de produtos de luxo que transformaram o nome dos costureiros em marcas para venda de acessórios, perfumes e outros produtos. Em tal ambiente os estilistas veem sua autonomia desaparecer e são reduzidos à ordem de empregados que os diretores dos conglomerados avaliam segundo o sucesso de suas marcas. [...] Além disso, os direitos autorais de um estilista sobre suas criações são prejudicados pelo ambiente por demais midiatizado da apresentação das coleções: a internet difunde suas fotos assim que acontecem e, são imediatamente copiadas pelos distribuidores na europa e por seus produtores de massa implantados na Ásia (CRANE, 2011, p.201).

Ao mesmo tempo, os designers de mercado de massa, estilistas anônimos, trabalham para fabricantes internacionais gigantescos que dominam outra fatia do mercado de moda: o de massa. Os estilistas dessas grandes redes, criam e compram produtos do vestuário ligeiramente diferentes entre si a grupos sociais semelhantes também espalhados pelo globo. Vale-se notar que há pouca inovação no produto de moda, o que vende-se é a imagem de estilo, publicizada na mídia. Assim, pesquisadores veem a moda industrial como uma forma de cultura (e consumo) de mídia, pois além da ênfase na produção e consumo de imagens, os valores e atrativos dos produtos de moda para o consumidor são criados vastamente pela publicidade. A publicidade cria imagens e "looks" associadas a estilos de vida que s(er)ão almejados pelo público – principalmente pelo público jovem.

Esta previsão de estilos de vida é amparada por estudos prognósticos de tendência e de comportamento de consumo e apresenta marcas como detentoras de atributos. Além de conferir uma identidade e reputação a produtos, uma marca de sucesso se conecta a seus consumidores em um nível emocional, não meramente satisfazendo necessidades ou desejos por meio de produtos (KATHMAN, 2010). "Até cerca de uma década atrás, o gosto do público pelo design era prejudicado pelas limitações da produção em massa. Agora, as pessoas têm mais opções de compra, por isso estão escolhendo a favor da beleza, da simplicidade e da 'identidade tribal" de suas marcas favoritas" (NEUMEIER, 2010, p.22 apud OLHATS, 2012, p.44).

Assim, mais que buscar elevação do status social ao vestir-se da cabeça aos pés sob a criação de um estilista (artista-artesão) de prestígio, as pessoas buscam marcas de moda que combinem com seu estilo de vida – ou seu estilo de vida almejado. Assim, um designer de mercado preocupa-se mais em filtrar tendências e segmentar seu público em função das mesmas, contribuindo para criar uma imagem de marca de sucesso. Suas autonomias criativas estão subordinadas às marcas que representam e aos diretores que dirigem essas grandes empresas. Ganhando cada vez mais força e espaço de mercado por gerenciar de forma eficiente os novos modos de organização de moda, as redes de moda rápida, fast fashion, especializaram-se em prever as demandas ocultas dos consumidores dessas marcas.

6  O fast fashion e seus limites

Tradicionalmente, desde o século XIX,  a moda se organiza em duas coleções coordenadas pelos ciclos de vida das classes altas no Ocidente, que no verão partiam para o campo e no inverno assistiam a bailes, teatro e à ópera (DeMARLY, 1980 apud SKOV, 2006). É difícil definir quando as coleções intermediárias entraram no calendário das empresas, pois foi um processo gradual por parte de empresas de fast fashion renovando seus suprimentos em um fluxo contínuo. As empresas passaram a realizar lançamentos mensais. Assim, as alterações propostas pelo fast fashion, aceleração dos ciclos de consumo e produção interfere na lógica estrutural da moda, mas de forma a radicalizá-la, e não subvertê-la ou finda-la.

O modelo fast fashion causou furor no marketing de moda. Franceses e italianos contestam a invenção de tal "conquista". Para Cietta (2010), o novo modelo de negócios surgiu nas décadas de 1980 e 1990 no varejo italiano, impulsionado por mudanças na produção de vestuário. Como alternativa, Erner (2005) considera a França o lar da moda rápida, especificamente o distrito de Paris, Sentier, em que pequenos comerciantes começaram a produzir roupas somente depois de reconhecer as demandas e tendências dos consumidores. Uma das fundações desse sistema, no entanto, é originária dos Estados Unidos da América, onde a produção em massa real já havia começado na década de 1960.

A principal mudança introduzida pelo fast fashion é o lançamento de mais coleções durante o ano (SLACK et al. 2008). A empresa espanhola Zara lança uma média de 17 minicoleções em um único ano (GODART, 2010), enquanto as empresas mais tradicionais mantêm duas coleções anuais. A alteração começou com o lançamento de coleções intermediárias entre as duas coleções principais. Tais coleções permitiam a renovação mais frequente dos modelos. Coleções intermediárias geralmente são nomeadas Pre-Spring e Pre-Fall, antecipando lançamentos antes da coleção principal. Há também empresas que usam os nomes Cruise e Resort para coleções especiais de verão que podem ser lançadas em diferentes períodos do ano.

O contexto do aumento da moda rápida respondeu às demandas dos consumidores por produtos novos, de boa aparência e baixíssimo preço – rapidamente adaptados ao mercado a partir de desfiles de moda. Como característica de uma radicalização do sistema de moda, o desejo por novidades cada vez mais urgentes nas passarelas implica o encurtamento dos ciclos de produção. A nova dinâmica enfatiza o papel dos consumidores, pois eles demandam a disponibilidade dos produtos quando os desejam (CIETTA, 2010), o que por outro lado torna possível que essas empresas ofereçam coleções mais assertivas, já baseadas nas demandas de consumo.

Os antigos modelos de produção duravam cerca de seis meses e tinham como ponto de partida as tendências previstas pelas agências de previsão de tendências, os bureaux de style. Já o que impulsiona a criação de produtos de moda no modelo de moda rápida é, mormente, a eficiência de vendas. As empresas de fast fashion substituíram uma lógica liderada pelos grandes estilistas por outra na qual as empresas respondem diretamente às mudanças nas demandas dos consumidores. A responsividade aos desejos dos consumidores é possível devido à coordenação industrial da cadeia de suprimentos, tornando exequível que um novo produto seja comercializado em poucas semanas ou dias.

Outro aspecto relevante do fast fashion são os baixos preços, que, de certa maneira, ilustram a abordagem democrática da moda desde a segunda metade do século XX (BALDINI, 2005). As razões para essa prática são a produção barata, devido a uma força de trabalho mal paga e terceirizada (RIELLO, 2013) e aos equipamentos de baixo custo em comparação com outras indústrias. Outro aspecto de redução de custo consiste no não pagamento de royalties às casas de haute couture e prêt-a-porter dos modelos originais que servem de inspiração – ou cópia – para as coleções de empresas fast fashion. Ao mesmo tempo, tais empresas economizam ao não investirem em desfiles, campanhas publicitárias e lojas excessivamente sofisticadas (RIBEIRO, 2010).

Os consumidores em geral não percebem os produtos de moda rápida como investimento. As compras ocorrem mais frequentemente e os consumidores usam itens de vestuário por um ano somente (MIHM, 2010). Os preços baixos são atraentes para os consumidores, capazes de agradar a si mesmos repetidamente, em resposta à tendência de consumo hedonista (LIPOVETSKY, 2007). Segundo Anicet e Rüthschilling (2013, s.p.), a indústria da moda

é uma das indústrias que mais gera lixo, o que muitas vezes poderia ser evitado. Além desse descaso com a consciência ambiental na dispersão de lixo, inúmeras são as marcas de moda que seguem o ritmo da fast fashion, moda efêmera, de mudanças rápidas, seguindo tendências de moda, em alta escala produtiva, focada no consumo de massa, com roupas de baixa qualidade, muitas vezes, produzidas com trabalho escravo ou outro tipo de inconformidade. Sendo assim, as roupas são descartadas porque não têm durabilidade e por estarem “fora da moda”.

O fast fashion opera de acordo com uma lógica de demanda homogênea e assumindo que todo o mundo estaria interessado nas mesmas tendências estéticas e propostas de moda, sem prestar atenção às características locais. A mídia global trabalha para aumentar o sabor homogeneizado, também aprimorado pelo acesso rápido e amplo à Internet, às redes de streaming e à televisão por cabo - paisagens médias (APPADURAI, 2011). A homogeneização da demanda corrobora com custos reduzidos, uma vez que as empresas produzem um único item de vestuário em larga escala para distribuição mundial.

O episódio do desabamento do edifício Rana Plaza, que sediava uma indústria de confecção em Bangladesh, tragicamente levando 1.134 trabalhadores à morte e deixando mais de 2.500 feridos, escancarou os limites do sistema de produção fast fashion. Além das mortes e ferimentos, a tragédia evidenciou as condições análogas à escravidão nas quais trabalhavam as vítimas (SIMON, 2020). Com mais força desde então, há movimentos que surgem em prol da transformação do sistema da moda; fomentando a sustentabilidade ambiental, social e cultural.  Assim, o exagero na rapidez, reprodução, homogeneização e desterritorialização anuncia também contrapontos, restringimentos que impelem para uma redefinição do criar, produzir e comercializar a moda.  

7 Reaproximações e ressignificações da moda autoral

A teoria tradicional das tendências afirma que para toda tendência, há uma contratendência (CALDAS, 2004). Paralelamente, os contornos contemporâneos da sociedade mostram-se fluidos e indefinidos, possibilitando não somente a coexistência de opostos, mas também - e principalmente - uma intricada e complexa rede de relações, que envolve uma diversidade de diferentes práticas e figuras, onde o pluralismo parece ser a tônica dominante. Alicerçando-se em Lipovetsky (2007), Gonçalves afirma que

o hiperconsumo, apesar de dominante na sociedade contemporânea, “não é absoluto, a cultura de prevenção e a “ética do futuro” dão nova vida aos imperativos da posteridade menos ou mais adiante”. Percebem-se indícios de novas formas de produção, mais preocupadas com o meio ambiente e com a valorização das culturas locais. Se a lógica da produção impera na sociedade hipermoderna, novos tempos de consumo podem se instalar a partir dessas novas formas de produzir que levam em consideração o desenvolvimento sustentável e as questões éticas e sociais (GONÇALVES, 2015, p. 153-154).

Sendo assim, um pilar estrutural e definidor da moda autoral, fortemente mencionado por Gonçalves, é a produção artesanal e a valorização das culturas locais. Trabalhos teóricos sobre a criação autoral tendem a enfatizar o processo artesanal no feitio das peças, frequentemente associado à técnicas e feitios da cultura local. Parte de tal investimento recai na pessoalidade no processo criativo do autor idealizador das peças, considerando que as criações materializam e estão impregnadas da história e da cultura do autor e, por conseguinte, do local onde nasceu, cresceu, habita. Além de carregarem simbolicamente o autor (idealizador), cada peça toma emprestado parte de cada pessoa que contribuiu para sua produção; "sua história, seus sentimentos e emoções, gerando mais que bens de consumo, artefatos imbuídos de afeto" (GONÇALVES, 2015, p.155).

Outro aspecto importante é aquele ligado à sustentabilidade e qualidade material das peças. Assim, pode-se considerar que há uma busca por uma moda lenta (slow fashion, em oposição ao fast fashion), cuja temporalidade desacelerada é apenas uma de suas características marcantes aos seus produtores e consumidores. A considerada moda autoral implica na preferência e valorização por matérias primas que causem menor impacto ambiental, tais como bases e corantes naturais e não poluentes, elaborados por fornecedores locais e de pequeno porte. Os preços mais elevados para custear tais escolhas são justificados para além da qualidade física dos materiais, pela expressividade visual e tridimensional das peças que tais materiais conformam.

Somado a isso, a demora no feitio das peças realizadas artesanalmente contribui por instaurar uma "nova" experiência de espaço e tempo, mais aderente à concepção e realização das peças. Segundo o sociólogo inglês Anthony Giddens (1991), é característico da Modernidade a existência de mecanismos de desencaixe que decorreram da divisão da experimentação direta de processos cotidianos da vida, ou seja, a vivência indireta das experiências. As antigas comunidades, nas quais o relacionamento presencial era central, foram substituídas por outras onde as situações estão cada vez mais vinculadas e mediadas por desconhecidos e acontecem numa temporalidade não identificável.

A vida moderna vê o contato direto, com conjuntos de sensações e percepções que lhe oferecem sentido, intermediado por uma série de informações que alteram a percepção entre a experiência em si e o sentido que lhe é atribuído.  Nós vivemos num mundo paralelo da ação, no qual se vê florescer instituições entre o eu e o mundo, e essas instituições canibalizam nossa experiência direta e concreta com o mundo. O "retorno" da pessoalidade proposta pela moda autoral leva à anulação desse vácuo de experiência, uma vez que a aquisição de uma peça autoral normalmente envolve a relação com o criador e a aproximação com seu processo criativo e a inspiração para sua criação.

Parte dessas ações orientam-se por novos pressupostos de valor, que contemporaneamente sopesam a crescente experimentação simbólica sensível de peças do vestuário. Um desses pressupostos implica na durabilidade das peças criadas. Ao apresentar de forma pessoal e personalizada a cada consumidor o seu processo criativo, suas ideias, formas de trabalho e poética, os designers/criadores conseguem transubstanciar suas práticas em suas criações. Contribuindo para a atribuição de valor afetivo, as peças criadas tomam emprestado a "alma" do criador. Assim, não são mais tão facilmente descartáveis, pelo contrário, tornam-se duradouras. E tornam as experiências de consumo menos instantâneas e fugazes (GONÇALVES, 2015; FONSECA, 2013).

Portanto, o que dá de forma exclusiva a compreensão de moda autoral à criação e produção de um produto de moda é o processo criativo artístico centrado na figura do criador. As práticas de criação explicitamente orientadas ao mercado - norteadas pelo lançamento de ao menos duas coleções anuais referentes às estações da moda e guiado pelas tendências de moda vigente - são colocadas em xeque. Na vertente autoral, o autor cria "obras" seguindo seu ritmo próprio e mais centrado na própria subjetividade. O termo singularidade é fortuito para expressar o processo criativo particular do autor que "consegue agregar suas referências subjetivas, singulares, únicas, criando novos territórios para dar sentido [suas] referências, misturando-as de modo que se possa reconhecer na sua criação, a sua vontade, a sua construção de subjetividade." (GONÇALVES, 2014, p.55).

8 Considerações

O presente texto teve como objetivo proceder uma revisão histórica das figuras criadoras na moda. Por meio de esforços teóricos na coleta e interpretação de textos acadêmicos, buscou-se inicialmente apresentar as diferentes figuras e processos de criação no campo da moda no decorrer dos tempos. Sabe-se, todavia, que a moda não é um campo de atuação que envolve sujeitos isolados, ou pasteurizada o bastante para que todos os criadores desse sistema atuem de forma semelhante - sequer idêntica. O empenho deste trabalho foi evidenciar o modus operandi mais correntemente associado à criação e manufatura de produtos de vestuário; os quais são tradicional e amplamente reconhecidos como produtos de moda.

Por toda a história, a criação de moda esteve mais fortemente associada à figura de uma pessoa criativa (ou criadora), passando de figuras de estilo que centralizavam e ditavam seus gostos para serem executados, para a figura do estilista createur das casas de alta costura. Processos de industrialização e massificação dos produtos de moda levaram à criação por muitos designers - frequentemente sem rosto - que criavam numerosas peças etiquetadas com o nome das marcas para as quais trabalham. O apogeu da produção em série e criação acelerada nomeou-se moda rápida, fast fashion. Essa, além da insustentabilidade ambiental provocou a insustentabilidade criativa; e o mercado de moda vê-se em meio a profissionais esgotados e produtos que são meras reproduções de produtos ordinários.

Uma corrente de reações à lógica da moda rápida entrou em cena no campo da moda nos últimos anos. A pesquisadora Julia Valle Noronha identificou termos como slow fashion, moda lenta, moda autoral, moda sustentável e alta costura; identificando o crescimento exponencial de vários deles (VALLE NORONHA, 2017).  Cada uma dessas denominações apresenta particularidades que as diferenciam ainda que sutilmente uma das outras. No recorte desta investigação, procurou-se enfatizar a moda autoral, haja vista o diminuto número de produções acadêmicas a si dedicadas. A partir da investigação realizada, pode-se considerar que moda autoral é o termo empregado adequadamente para identificar o modo de criação centrado na figura e na singularidade do idealizador da peça, nomeadamente seu autor. Além disso, a moda autoral sustenta-se sobre os pilares da sustentabilidade de matérias-primas, produção manual e artesanal, investimento na cultura local e na história de vida do criador, vínculo afetivo e diferencial simbólico pela experiência estética sensível com a peça, que se torna obra duradoura a ser cultuada não por si, mas por sua atividade artística.

REFERÊNCIAS

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DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0017


[1] Em breve pesquisa realizada no repositório Google Scholar, Google Acadêmico, a busca por “moda autoral” apresenta menos de 150 artigos totais, dos quais uma maioria trata da perspectiva dos consumidores desse tipo de moda, seguida por outra que considera a prática sob um viés de estratégica de mercado. Busca disponível em: https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=%22moda%2Bautoral%22&btnG. Acesso em: 10 de janeiro de 2021.

[2] A Inglaterra também era considerada a outra grande potência europeia do período todavia, em termos de exportação cultural, a França ganha destaque, principalmente através das ações empreendidas pelo Reil Sol com o objetivo de demarcar a supremacia francesa. Estudos de Burke evidenciam que Luís XIV influenciava, mas também era influenciado por outros soberanos e procurava sempre ultrapassá-los, na corrida constate à supremacia e exploram as ferramentas pelas quais se construiu e se expandiu a imagem pública do rei francês. Ver mais em: BURKE, Peter. A fabricação do rei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

[3] Haute couture, ou alta-costura, é o termo designado ao mercado de moda responsável pela criação, produção e comercialização de peças do vestuário geralmente únicas, feitas sob medida, muito caras (de alguns milhares a algumas dezenas de milhares de euros) e destinadas a uma clientela  muito abastada, limitada quantativamente. A alta-costura é uma especialidade francesa, protegida por lei, entretanto alguns estrangeiros compõem o limitado grupo de maisons. Os atuais integrantes da Câmara da Alta-Costura são: Andeline André, Anne-Valérie Hash, Chanel, Christian Dior, Christian Lacroix, Dominique Sirop, Emanuel Ungaro, Franck Sorbier, Givanchy, Jean-Paul Gaultier, Maurizio Galante e os internacionais Elie Saab, Giorgio Armani, Martin Margiela e Valentino.

[4] Prêt-à-porter, ou pronto para usar,  moda para uso imediato. “Implica séries de produtos acabados, sem retoques nem transformações. Implica a necessidade de que a extensa cadeia industrial escolha e fabrique, ao logo de 18 meses, uma tendência de moda que estará à disposição dos clientes pelo curto período de uma estação. Até então, tal coordenação jamais parecera possível num processo criativo [da moda]” (VINCENT, RICARD, 1996, p.32).

[5] Diane Crane (2011) opta pelo termo prêt-à-porter de luxo, como adotado neste subtítulo.