Somos todas iguais ou somos todas diferentes? Práticas cênicas estimulando o debate sobre a diferença no ambiente escolar

    Flavia Grützmacher dos Santos, Márcia Berselli

Somos todas iguais ou somos todas diferentes? Práticas cênicas estimulando o debate sobre a diferença no ambiente escolar

 Are we all the same or are we all different? Scenic practices stimulating the debate about the difference in the school environment

Flavia Grützmacher dos Santos

Graduanda do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – flavia.grutzmacher@gmail.com – orcid.org/0000-0002-1230-9465

Márcia Berselli

Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – bersellimarcia@gmail.com – orcid.org/0000-0002-2731-1373

Resumo

A sociedade contemporânea tem muitos padrões a serem seguidos: estéticos, formas de pensar e formas de agir. Pessoas que fogem de tais padrões, muitas vezes são vistas como desencaixadas (BERSELLI; ISAACSSON, 2018) e o ambiente escolar é um dos lugares que mais reforça padrões: estudantes enfileiradas, aprendendo os mesmos conteúdos, buscando as mesmas notas e não podendo dialogar. Práticas cênicas que vão contra o discurso dominante (FORTIN, 2011), são vistas aqui como possíveis potencializadoras de debates acerca das diferenças, promovendo uma revisão de entendimentos acerca da deficiência e eficiência ao colocarem a pessoa como centro das pesquisas a partir de experiências práticas. Com tamanha potencialidade, elas podem estar no ambiente escolar a partir dos anos iniciais, proporcionando práticas e experiências que evidenciem as singularidades de cada pessoa e o respeito por cada corpo.

Palavras-chave: Teatro na educação. Crianças com deficiência - Educação - Arte. Ambiente escolar. Preconceitos.

Abstract

The contemporary society have many standards to be followed: aesthetic, forms to think, forms to act. People that doesn’t follow this standards, many time are seen how undocked (BERSELLI; ISAACSSON, 2018) and the school environment is one of the places where the standards are more reinforced: students in a row, learning the same contents, seeking the same notes and they can’t dialogue. Scenic practices that go against the dominant discourse (FORTIN, 2011), are seen here as possible strengthens of debates about differences, promoting a review of understandings about disability and ability by put people in the focus of their own research based on practices experiences. Being that enhancers are so big, they can be in the school environment since the beginning’s years, affording practices and experiences that showing the singularities of everyone and the respect with everybody.

Keywords: Drama in education. Children with disabilities-Education-Art, [etc.].  School environment. Prejudices

Recebido em: 08/01/2020

Aceito em: 24/07/2020

1 INTRODUÇÃO

A sociedade se estrutura através de relações de poder, em que, por meio de variadas estratégias, diferentes instituições disciplinam os indivíduos. Para Michel Foucault (1999), no centro dos processos de disciplinarização se encontra o corpo. A adequação às normas estabelecidas é um dos modos de disciplinar, conter e controlar os corpos, sempre em busca de que eles sejam produtivos. Nesse sentido, podemos pensar em práticas e exercícios que docilizam os corpos, como também no ideal de corpo que se coloca por trás de tais práticas. O corpo ideal é entendido, neste estudo, como um corpo que segue padrões definidos, magro, atlético, ágil, masculino, branco, um corpo que aparenta conseguir fazer qualquer ação e vencer qualquer desafio (BERSELLI; ISAACSSON, 2018).

Um corpo ideal tem: dois braços, duas pernas, uma coluna, um tronco - com muitos órgãos dentro -, uma cabeça, dois olhos, um nariz, uma boca, duas sobrancelhas, duas orelhas, cabelos, duas mãos, dois pés, vinte dedos, vinte unhas, uma genitália e assim por diante. O corpo apresenta características biológicas, porém a sociedade criou símbolos sociais, negativos ou positivos, sobre suas características físicas: tamanho, peso e cor. Para o pesquisador Francisco Romão Ferreira (2008, p. 472),

A tentativa de compreensão da construção de sentidos sobre o corpo não cabe apenas em uma disciplina ou em um modelo rígido de análise. A pluralidade de perspectivas que influenciam tal construção é essencialmente inter ou transdisciplinar, ou melhor, o corpo é essencialmente indisciplinado, ele não cabe em disciplinas rígidas ou limitadoras.

O corpo em essência não cabe em um padrão, somos plurais. Mesmo assim, existe um corpo ideal, uma norma a ser seguida, um objetivo a ser atingido. Independentemente de estruturas corporais específicas, a norma opera aqui indicando que se busquem estratégias, como Primeiro parágrafo do texto.

[...] academias para malhar o corpo e queimar gordura, suplementos alimentares e produtos farmacêuticos para o aspecto dos músculos e para que se alcance e mantenha-se o peso ideal, uma infinidade de cosméticos, e as intervenções cirúrgicas que transformam os corpos para que se alcance – de certa forma, em um tempo mínimo, mas não sem sofrimento – os formatos de corpos tidos como padrões. (BERSELLI; ISAACSSON, 2018, p. 367)

A partir das autoras, professoras e pesquisadoras da área de Artes Cênicas, entende-se então que o padrão de corpo ideal é socialmente construído: “[...] as representações do corpo são representações da pessoa. [...] O corpo é uma falsa evidência, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cultural” (LE BRETON apud BERSELLI; ISAACSSON, 2018, p. 367). Porém, aceitar esse padrão é também negar as singularidades e especificidades de cada pessoa, é uma opressão contra um corpo vivo e único. Essas práticas disciplinares em torno do corpo são a marca de algumas instituições específicas, e podemos destacar a escola como uma dessas instituições disciplinadoras do corpo. Normas rígidas, vigilância, punição, uniformidade. Características amplamente estudadas por Foucault (1999) ao traçar um paralelo entre o contexto do controle militar e o contexto escolar.

Assim, o texto busca questionar se, apesar do excesso de controle, seria a escola um espaço aberto ao debate sobre as diferenças, ou, dito de outro modo, marcada pelo poder disciplinar, pode a escola se tornar um campo fértil ao debate sobre as diferenças? Em busca de responder a essa questão, iremos destacar algumas práticas realizadas em projetos de ensino e de extensão[1]  vinculados à Universidade Federal de Santa Maria, colocando no centro do debate o teatro e suas práticas (in)disciplinares.

2 CORPO HUMANO: RELAÇÕES COM A SOCIEDADE

O conceito de diferença também foi construído socialmente (LE BRETON apud FERREIRA, 2008), e para ele se manter forte com o passar dos anos, pessoas adotaram um discurso sobre a diferença, perpetuando cada vez mais um entendimento negativo sobre o termo. O professor e pesquisador Carlos Skliar (1999, p. 18) defende que

A alteridade do outro permanece como que reabsorvida em nossa identidade e a reforça ainda mais; torna-a, se possível, mais arrogante, mais segura e mais satisfeita de si mesma. A partir deste ponto de vista, o louco confirma e reforça nossa razão; a criança, nossa maturidade; o selvagem, nossa civilização, o marginal, nossa integração; o estrangeiro, nosso país; e o deficiente, a nossa normalidade.

Quando observamos a outra[2]  com um olhar que busca unicamente fazer comparações, dificilmente conseguiremos observar as particularidades de cada uma apenas como particularidades. O ato de comparar traz intrinsecamente um referencial, o qual normalmente existe e é imposto com o objetivo de controlar corpos e subjetividades. Ferreira (2008) defende que esse controle atende aos interesses ideológicos de parte da sociedade, mas que este não é o único interesse que move a padronização dos corpos:

Há uma multiplicidade de processos, de origens diferentes, que se reproduzem e se distinguem, fazendo da construção da imagem do corpo, hoje, não apenas uma forma de controle social que se manifesta diretamente, mas algo que atua na produção de subjetividade e, também, na montagem de uma estratégia de mercado pronto a atender aos desejos de metamorfose corporal. Os interesses individualistas e narcisistas dos sujeitos vão ao encontro dos interesses dos empresários e profissionais responsáveis pela “indústria da metamorfose”. (FERREIRA, 2008, p. 478-479)

Essa indústria, destacada por Ferreira, pode ser compreendida como um dos agentes que delimita que uma mulher magra, branca e esguia é bonita, contrastando com uma mulher gorda, negra e baixa. Foucault, citado por Ferreira, indica que “Como resposta à revolta ao corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘fique nu, [...] mas seja magro, bonito, bronzeado!’” (FOUCAULT apud FERREIRA, 2008, p. 479). Existe um grande mercado hoje que dita como devemos nos apresentar e, para que ele possa obter lucro financeiro, precisamos sentir-nos insatisfeitas com nossa aparência.

Se é a partir do corpo que a sociedade tem a primeira visão sobre o sujeito, as características físicas foram tornadas essenciais, pois são as primeiras a serem percebidas. Pode ser um objetivo do sujeito fazer uma transformação em si, destacando-se da maioria comum da sociedade, ou ele pode apresentar características biológicas diferentes do padrão socialmente estabelecido, como sobrepeso, pele escura ou deficiência, o que não é uma escolha. Porém, a valorização está relacionada a uma manutenção de um padrão estabelecido, e qualquer afastamento da norma acarretará consequências.

Ferreira (2008, p. 473) afirma que “Os processos fisiológicos e os processos psíquicos são interdependentes, fazendo com que o biológico e o simbólico dialoguem desde o início da construção da subjetividade.” O uso da expressão, corpo simbólico, parece indicar que são construídos símbolos sociais sobre características físicas. A sociedade define o que o sujeito é a partir de sua aparência sem levar em consideração sua singularidade, tomando por base um padrão socialmente instituído.

Ao questionarmos quem é capaz de ter as características do corpo ideal, percebemos que apenas um grupo restrito consegue alcançá-las, pois algumas são biológicas e quase imutáveis. Outras, com determinado investimento - monetário e de tempo -, conseguem ser alteradas para se aproximar do padrão estético vigente na sociedade. Os seres humanos que não estão dentro de tal padrão e não buscam se enquadrar nele são vistos muitas vezes como “desencaixados, aqueles que não funcionam no modo exigido pela sociedade. Assim, nos deparamos com uma proposição do corpo que não concorda com uma vivência cultural” (BERSELLI; ISAACSSON, 2018, p. 369).

Na sociedade brasileira atual, é perceptível que existem alguns estigmas relacionados às condições físicas de cada corpo, como a cor da pele, o peso do corpo e sua eficiência - para citar os mais importantes para este estudo. Desta forma, observa-se um juízo de valor que diferencia e categoriza as pessoas, estando hierarquicamente posicionadas em uma escada na qual no topo estão as pessoas brancas, magras, sem deficiência, heterossexuais e cisgênero, restando a base da escada para as pessoas que não se enquadram nesse padrão. Logo, as pessoas que apresentam características diferentes das consideradas comuns pela e para a sociedade, ao perceber-se diferentes podem ter o sentimento de inferioridade (BERSELLI; ISAACSSON, 2018). Tais características também delimitam como cada pessoa será tratada, e percebemos nesse ponto que a pessoa com deficiência será olhada pelo viés da incapacidade, a pessoa gorda como preguiçosa e descuidada e a pessoa negra ou parda como marginal, uma possível ameaça na e para a sociedade. Esses corpos diferentes tornam-se incômodos para os ditos “normais”:

Para Le Breton, as interações sociais implicam símbolos e códigos, determinando os modos de agir de acordo com cada contexto e situação, sendo que, diante da diferença, “o sistema de expectativas não é mais aceito, o corpo se apresenta de repente com uma evidência inevitável, ele se torna incômodo, não está mais atenuado para o bom funcionamento do ritual." (LE BRETON apud BERSELLI; ISAACSSON, 2018, p. 373-374)

O corpo é um fato: não se pode negar um corpo gordo, negro ou com deficiência. Essas são características biológicas de cada ser humano. Se alguma delas causar estranhamento ou incômodo em alguém, o que deve ser feito? A pergunta deve ser modificada: algo precisa ser feito? Algo precisa ser feito para modificar o ser humano, ou a sociedade precisa aprender a respeitar os indivíduos, tendo em vista que as diferenças são intrínsecas a nós, e que são elas que nos caracterizam enquanto sujeitos únicos e singulares?

3 A ESCOLA COMO UM LOCAL QUE REFORÇA A DIFERENÇA COMO ASPECTO NEGATIVO

O espaço escolar é um ambiente bastante plural. No entanto, de modo geral, crianças e jovens passam anos de suas vidas dentro de salas de aula, sentadas em cadeiras, olhando sempre para a frente, onde se encontra a professora. Não é permitido conversar, pois aquele espaço existe para ensinar determinados conteúdos, e todo o tempo dentro da sala precisa ser utilizado para a aprendizagem. Conversas paralelas atrapalham o aprendizado.

Ainda que se reconheça esforços e investimentos de profissionais da educação, pesquisadores e alguns agentes públicos em prol de transformações nas estruturas rígidas que pautam as instituições de ensino públicas brasileiras, observa-se que a instituição escolar segue exigindo uma padronização. Reconhece-se a presença de uniformes, carteiras enfileiradas, estudante atrás de estudante, estudantes não podem ter relação entre si, todas devem aprender as mesmas coisas no mesmo tempo linear e o resultado da aprendizagem precisa ser enquadrado em um número. Dificilmente as características específicas de cada indivíduo são importantes - são muitas pessoas em uma única sala -, e o resultado mínimo precisa ser alcançado.

Tendo isso em vista, é perceptível que o ambiente escolar, em seus moldes tradicionais, reforça a padronização: dos corpos, das inteligências, dos pensamentos e dos próprios sujeitos. Isso implica diretamente e de forma negativa nos indivíduos que estão fora dessa norma e/ou que não alcançam tais padrões. Muitas são as estudantes que são vistas como problemáticas por não cumprirem com os padrões esperados.

A estudante vista como diferente acaba sendo muitas vezes segregada pelas próprias colegas. Isso acontece também porque os padrões são tão fortemente reforçados que crianças e adolescentes acabam aceitando ideias e normas impostas sem questionar. São tantos os conteúdos ensinados de uma forma hierárquica e vertical, que os questionamentos vão sendo deixados de lado por uma busca pela absorção máxima de conteúdo.

Apontamos isso como um aspecto negativo da escola, por perceber que tal padronização exclui a possibilidade do ser diferente, do ser si mesmo, taxando isso como um aspecto negativo. O bullying, tão presente nesse ambiente, acontece também por sujeitos não aceitarem as singularidades de outros sujeitos, por um entendimento de que todas devem ser iguais, e de que diferente é sinônimo de ruim.

Reconhece-se que o contexto aqui retratado é resultado de anos de descaso com as políticas públicas voltadas ao ensino básico, dinâmica que engessa a escola em um modelo que não dialoga com a sociedade contemporânea e torna reféns professores e estudantes. Há cenários diversos, frutos do empenho e investimento de educadores que remam contra a maré para diariamente construir um outro modo de conviver, aprender e ensinar, na instituição escolar. Entende-se que as práticas que serão apresentadas abaixo informam sobre uma possibilidade, destacando a importância da relação entre escola e universidade, professoras, pesquisadoras e estudantes, engajadas por uma educação mais inclusiva e democrática. Trata-se de um exemplo, uma amostra das inúmeras parcerias que se concretizam diariamente entre universidades e escolas.

4 PRÁTICAS CÊNICAS QUE ACEITAM E RESPEITAM SINGULARIDADES

A professora e pesquisadora Sylvie Fortin (2011, p. 28) afirma que existem diferentes práticas dominantes na dança que prezam por “[...] um ideal de corpo em que prevalecem os critérios estéticos de beleza, esbeltez, virtuosidade, devoção e ascetismo, tendo como efeito uma aceitação silenciosa dos já considerados normais dor e ferimento”. Existe um discurso dominante na dança como também no teatro e em outras tantas áreas da vida humana, ditando o que deve ou não ser feito, o que é e o que não é certo, bonito, válido, interessante e cabível em cada situação. São padrões estabelecidos que não concordam com uma sociedade viva e plural.

Uma das ações de extensão do Grupo de Pesquisa Teatro Flexível: práticas cênicas e acessibilidade (CNPq/UFSM) é o desenvolvimento de oficinas de teatro para pessoas com e sem deficiência. As oficinas têm esse nome para que fique explícito para todas a busca por desenvolver práticas cênicas para qualquer pessoa, respeitando as particularidades de cada sujeito. As práticas desenvolvidas nas oficinas advêm do repertório de cada uma das participantes, que acabam sendo facilitadoras em alguns dos encontros e buscam, ao planejar, pensar práticas possíveis para qualquer uma das praticantes.

As práticas de educação somática e Contato Improvisação, presentes nas oficinas mencionadas, estão do lado oposto a maior parte das práticas corporais dominantes (FORTIN, 2011).

O objetivo de vários métodos de educação somática é encontrar, na falta de um modelo de corpo professoral a ser imitado, como é o caso de uma aula típica de dança, novas opções de movimentos baseadas nos seus próprios referenciais sensoriais. A educação somática interessa-se pelo corpo por meio da experiência do “eu”. Ali é valorizada uma subjetividade que se educa e se refina de uma sessão a outra por estratégias pedagógicas precisas. (FORTIN, 2011, p. 30)

Com práticas regulares, que envolvem o contato do sujeito consigo e com o outro, existe uma possibilidade de que as pessoas desenvolvam entendimentos básicos sobre si. Pode-se desenvolver o reconhecimento das estruturas físicas, das posturas corporais e do modo de organização do corpo na execução de ações diárias, fatores que podem melhorar a qualidade de vida, bem como auxiliar na identificação dos limites pessoais.

Isso é importante para que cada pessoa possa começar a respeitar o próprio corpo, tendo em vista que existem muitas práticas, de cotidianas e naturalizadas a técnicas artísticas tradicionais e consagradas, que acabam reforçando um discurso de que um bom resultado é alcançado apenas com a ultrapassagem diária dos próprios limites (FORTIN, 2011).

Fortin (2011) também apresenta considerações sobre os corpos dóceis, que são os corpos que aceitam as condições que lhes são impostas, com pouca autonomia de decisão sobre fazer ou não algo. A pesquisadora defende seu ponto de vista no campo da dança, que aqui se amplia para outras práticas cênicas, normalmente tradicionais, que exigem corpos dóceis para que possam continuar seus trabalhos de forma autoritária, buscando um resultado estético que não preza pelo bem-estar da praticante. Existe uma grande competitividade no meio artístico, e muitas pessoas estão dispostas a sacrificar seus corpos para chegar ao resultado esperado pela equipe. Quem escolhe pela “rebeldia” [3]de aceitar o próprio corpo e seus limites, corre o risco de perder seu espaço.

Tais práticas são tradicionais no meio artístico, e já têm seu espaço assegurado. Práticas “rebeldes”, como as abordagens somáticas e Contato Improvisação, estão ganhando seu espaço aos poucos dentro desse meio, sendo utilizadas muitas vezes como preparação corporal para criações artísticas. Fora do campo da arte, elas estão alcançando praticantes aos poucos, por estarem sendo vistas também como práticas que contribuem com a saúde e qualidade de vida. Por isso a importância de sua difusão, de modo a possibilitar que profissionais tenham conhecimento acerca de atividades práticas que pensam o corpo pelo viés da singularidade. Não é possível esquecer que “As artes da cena são tradicionalmente reconhecidas enquanto espaço promotor de questionamento e reflexão” (BERSELLI, 2017, p. 54).

Existe importância e certa necessidade em ensinar às crianças, desde os primeiros anos de vida, a respeitarem seus corpos, pois assim elas poderão desenvolver o entendimento da necessidade em respeitar e cuidar do próprio corpo. Se a prática for alinhada ao pensamento reflexivo, pode existir um entendimento de que é necessário respeitar também as outras pessoas. Defendemos, assim, a importância de práticas cênicas em escolas, pois elas são possibilitadoras da aprendizagem do respeito ao próprio corpo.

Tais práticas também abrem espaços para questionamentos, sobre, por exemplo, porque existem tantas técnicas que impõem padrões a serem alcançados. Se os questionamentos continuarem e forem ampliados a um contexto maior, é possível chegar ao ponto de tensionamento sobre a origem de alguns padrões sociais. Práticas corporais que respeitam corpos e particularidades podem se tornar um impulsionador de debates sobre o tema.

5 PRÁTICAS CÊNICAS NO AMBIENTE ESCOLAR

Sendo a escola um local em que, de modo geral, as diferenças normalmente não são respeitadas - tendo em vista a busca pela padronização dos corpos, dos saberes e das atitudes e a própria castração da infância (MACHADO, 2004), que objetiva ensinar uma forma de pensar e agir para crianças ainda em sua fase lúdica - as práticas citadas anteriormente podem abrir um espaço de questionamento e discussão sobre alguns dos discursos dominantes.

As práticas corporais que buscam uma mobilização na hierarquia posta na relação professora-aluna causam certo estranhamento em algumas estudantes, pois as estudantes não são incentivadas a questionar, mas sim a aceitar de forma passível e pacífica tudo o que é ensinado. São formatadas para serem dóceis. Assim, práticas que aceitam corpos, inteligências, ideias e saberes diferentes, acabam causando certo estranhamento e às vezes, incômodo. Quando uma estudante tem diante de si a possibilidade de escolha, muitas vezes não sabe o que fazer, pois sua autonomia pouco foi exercitada.

No projeto Teatro Flexível existe outra ação de ensino, nomeada Teatro e acessibilidade no ambiente escolar: aspectos metodológicos e atitudinais. Trata-se de uma ação que desenvolve workshops sobre teatro e acessibilidade no ambiente escolar, para professoras da rede pública da cidade de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. Tais workshops apresentam em sua estrutura dois momentos, o primeiro é constituído por práticas teatrais atreladas a princípios da dança Contato Improvisação: são exercícios que têm como base o contato com a outra, com o objetivo de ensinar, através da experimentação prática, dinâmicas que podem ser realizadas em sala de aula com todas as estudantes. O respeito ao corpo das praticantes e o reconhecimento da diferença como potência, e não pelo aspecto da ausência ou da negatividade, são elementos exercitados por meio das práticas.

O segundo momento é constituído por uma conversa, em que são expostos dados sobre deficiência e acessibilidade. As professoras expõem algumas dúvidas e observações, apresentando muitas vezes experiências que tiveram em seu cotidiano na escola, trazendo alguns receios acerca de como proceder quando da presença de pessoas com deficiências nas salas de aula. É interessante perceber o quanto, em algumas escolas, o debate é potente e vivo. Existe interesse entre as presentes em dialogar sobre o assunto.

A forma com que o workshop é organizado é interessante também por possibilitar uma vivência prática para as participantes. Assim, após o primeiro momento, elas têm a oportunidade de dialogar sobre o tema. Por conta também de terem feito uma prática que respeitou seus anseios e singularidades, algumas pessoas compartilham com o grupo sensações e pensamentos que tiveram enquanto desenvolviam as propostas. Isso é muito importante, pois

De acordo com a socióloga Markula (2004), novas experiências corporais são necessárias, porém insuficientes, para a instalação de mudanças capazes de resistir às tendências dominantes. Para isso, a presença de um pensamento reflexivo é indispensável. (FORTIN, 2011, p. 35)

Por isso defendemos que práticas corporais como abordagens somáticas e Contato Improvisação devem estar presentes em escolas, promovendo um alargamento do olhar não só das estudantes, mas das profissionais que atuam nos ambientes de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, parecem ser necessários esforços na implementação e manutenção da formação continuada das professoras, bem como da presença de profissionais das áreas específicas nos ambientes de ensino.

A presença de práticas corporais, tais como as citadas, desde os anos iniciais, pode possibilitar, a partir da experiência corporal, pensamentos reflexivos, questionamentos e debates sobre normalizações, sobre técnicas e sobre o próprio discurso dominante, que impõe modelos a serem seguidos, indo contra as singularidades de cada indivíduo. A partir de práticas corporais que respeitam corpos, concordamos com Fortin (2011, p. 37) ao destacar que “uma prática de consciência sobre si pode ajudar numa transformação da dinâmica relacional com o nosso entorno.” Pessoas podem aprender o auto-respeito e o respeito para com as demais, diminuindo os impactos negativos ao ver alguém que fuja do padrão social - afinal, todas somos diferentes.

Para as práticas citadas anteriormente, não é necessário ter um corpo específico. Não é necessário saber uma técnica para conseguir fazer. É necessário apenas ter vontade, disponibilidade e comprometimento, o que possibilita que processos aconteçam e que pessoas se percebam como uma existência única e singular. A escola é uma das primeiras instituições com a qual muitas pessoas têm contato para além da família, e ali existe um terreno fértil para ensinar crianças, desde a primeira infância, que somos diferentes em tamanhos, cores, formas, anseios e muito mais, e isso não é problema, mas é o que caracteriza cada um como ser humano.

Esperamos que este estudo possa ser um potencializador de debates acerca das práticas cênicas acessíveis e “rebeldes”, que aceitam diferenças e singularidades. Nosso desejo é que se amplie a presença de profissionais da área das artes cênicas em escolas e ambientes educacionais, para que cada vez mais pessoas possam ter contato desde a infância com práticas que respeitem seus corpos, suas subjetividades e seus limites. Acreditamos que essa é uma estratégia eficaz para que as pessoas, respeitando a si, possam respeitar também as demais.

REFERÊNCIAS

BERSELLI, M. Práticas e técnicas corporais promovendo a presença de artistas com deficiência na cena contemporânea. Revista GEARTE, Porto Alegre, RS, v. 4, n. 1, p. 54-66, jan./abr. 2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/gearte/article/view/71266. Acesso em: 29 set. 2019.

BERSELLI, M.; ISAACSSON, M. A presença de pessoas com deficiência na cena contemporânea desestabilizando construções sociais a respeito do corpo. Repertório, Salvador, BA, ano 21, n. 30, p. 365-387, 2018. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/view/25319. Acesso em: 24 set. 2019.

FERREIRA, F. R. A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, SP, v. 12, n. 26, p. 471-83, jul./set. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1414-32832008000300002 &lng =en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 23 dez. 2019.

FORTIN, S. Nem do Lado Direito, nem do Avesso: o artista e suas modalidades de experiências de si e do mundo. In: WOSNIAK, C.; MARINHO, N. (org.). O Avesso do Avesso do Corpo: Educação somática como práxis. Joinville: Nova Letra, 2011, p. 25-42.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

MACHADO, M. M. Cacos de infância: teatro da solidão compartilhada.  São Paulo: Annablume/FAPESP, 2004.

SKLIAR, C. A invenção e a exclusão da alteridade "deficiente" a partir dos significados da normalidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, RS, v. 24, n. 2, p. 15-32, jul./dez. 1999. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/55373. Acesso em: 10 set. 2019.

DAPesquisa, Florianópolis, v. 16,  p. 01-11, fev. 2021.

DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0001


[1] Trata-se de projetos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa Teatro Flexível: práticas cênicas e acessibilidade (CNPq/UFSM). Os projetos contaram com apoio FIEX/CAL/UFSM, ODH/PRE/UFSM, PROLICEN/PROGRAD/UFSM.

[2] Utilizamos o artigo “a” em palavras que generalizam o gênero e também em palavras no plural.

[3] Termo cunhado por Fortin (2011), ao referir-se às práticas que vão contra o discurso dominante.